Resumo: O presente trabalho tem por objeto o estudo da proposta de relativização da coisa julgada material, nas hipóteses em que a decisão judicial for proferida em desconformidade com os preceitos constitucionais fundamentais, casos nos quais o princípio da segurança jurídica, consubstanciado na imutabilidade da “res iudicata” deve ceder passo a outros princípios constitucionais, uma vez que o direito processual moderno, dito de resultados, exige a condução do processo orientado à construção de soluções materialmente justas para as lides submetidas à apreciação do judiciário, evitando-se, deste modo, a cristalização de injustiças.
Palavras-chave: relativização da coisa julgada, justiça material, segurança jurídica.
Sumário: introdução. 1. A coisa julgada 1.1. Graus de indiscutibilidade da sentença. 1.2. Campo de incidência da coisa julgada sobre a sentença. 1.2.1. Quanto à eficácia, efeitos e conteúdo da sentença. 1.2.2. Quanto à estrutura da sentença. 2. O princípio da supremacia da constituição e os valores constitucionais da justiça e da segurança jurídica 2.1 supremacia da constituição. 2.2. Justiça como um valor constitucional. 2.3. Segurança jurídica como fundamento do estado democrático de direito 2.4. Decisões judiciais inconstitucionais. 3. Relativização da coisa julgada: a controvérsia 3.1. Controvérsia quanto ao regime jurídico (enquadramento normativo) da coisa julgada 3.2. Controvérsia quanto à relativização da coisa julgada com fundamento na injustiça da decisão e na violação de princípios constitucionais 3.2.1. A injustiça da decisão e o problema do regresso ao infinito. Conclusão.
INTRODUÇÃO
A coisa julgada, instituto jurídico dos mais antigos, fundamenta-se na imperiosa necessidade de pôr termo à lide submetida à apreciação do judiciário, pois do contrário, tornar-se-iam infindáveis as controvérsias e, conseqüentemente, inatingíveis seriam a paz social e a segurança jurídica.
Conforme Lima (1997, p.13), “o instituto da coisa julgada é obrigatório em qualquer sistema jurídico. Submeter matérias à apreciação do judiciário pressupõe que haja uma resposta final”.
Complementando o raciocínio acima exposto, Theodoro Jr. (1996, p.5) afirma que a coisa julgada é “a preocupação fundamental do processo de conhecimento. É por meio dela que, ao fim do processo, a sentença se torna imutável e indiscutível, desde que não haja mais possibilidade de interposição de recurso”. E arremata dizendo que “o processo é instrumento de atuação do direito frente às situações litigiosas, valendo, por isso, como real veículo de manutenção da paz social almejada pela ordem jurídica”.
Entretanto, parte da doutrina vem questionando a busca irracional pela estabilidade das decisões judiciais que, tendo elevado o instituto da coisa julgada à categoria de um verdadeiro dogma, insusceptível de qualquer discussão, pode ter se tornado, em certos casos, uma indesejável fonte de cristalização de injustiças, na medida em que, prestigiando em demasia o princípio da segurança jurídica, distancia-se da justiça material e, em última análise, dos valores protegidos pela Carta da República.
Obra clássica do Direito Processual Civil, citada por Eduardo Juan Couture (apud CÂMARA, 2006, p.14) ilustra com precisão o que se afirmou no parágrafo acima, in expressi verbis: “a coisa julgada faz do branco preto, origina e cria as coisas, transforma o quadrado em redondo, altera os laços de sangue e transforma o falso em verdadeiro”.
Trata-se precisamente daquilo que Marinoni (2006) chamou de “tensão entre a facticidade (Faktizität) e a validade (Geltung) do direito, a tensão entre a justiça e a segurança”.
A preocupação a respeito da constitucionalidade das decisões judiciais desdobra-se no conflito entre justiça e segurança, no dilema de se saber se as decisões advindas do Poder Judiciário, notadamente aquelas cobertas pelo manto “sagrado” da coisa julgada, devem ainda ser postas numa redoma inatingível ou, pelo contrário, como toda e qualquer decisão do Poder Público, devem estar igualmente submetidas aos ditames constitucionais.
Deve-se considerar, portanto, a possibilidade de que não apenas os atos administrativos e legislativos estejam sujeitos ao controle de constitucionalidade, mas também aqueles oriundos da função jurisdicional do Estado, sob pena de quebra da hierarquia do Sistema Constitucional.
Cumpre ressaltar que a proteção constitucional à coisa julgada, inscrita no art. 5º, XXXVI da CF, tem como destinatário o legislador infraconstitucional e limita-se, simplesmente, a impedir que lei nova venha modificar o conteúdo de sentença já transitada em julgado. O preceito, entretanto, não impede a regulamentação do instituto através de legislação ordinária que preveja, inclusive, limitações ao seu alcance, ou seja, hipóteses para sua relativização.
Ademais disso, com fundamento no relativismo inerente aos direitos e garantias constitucionais, pode seguramente afirmar-se que a segurança jurídica consubstanciada na imutabilidade da res iudicata não deve, de forma absoluta, sobrepor-se aos demais princípios constitucionais, como v.g., o da dignidade da pessoa humana, pois não há “uma garantia sequer nem mesmo a da coisa julgada, que conduza invariavelmente e de modo absoluto à renegação das demais ou dos valores que elas representam”. (DINAMARCO, 2002, p. 73).
Há, portanto, a necessidade premente de harmonizarem-se exigências constitucionais divergentes, “transigindo razoavelmente quanto a certos valores em nome da segurança jurídica, mas abrindo-se mão desta sempre que sua prevalência seja capaz de sacrificar o insacrificável”. (DINAMARCO, 2002, p. 62).
Portanto, diante de um conflito entre princípios o interprete haverá de, através de um exercício de ponderação, sopesando os princípios contrapostos, decidir em qual medida um dos princípios deverá ser mitigado para ceder passo ao outro, a fim de que se tenha a melhor e mais justa solução para determinado caso concreto, uma vez que a coisa julgada inconstitucional traz em seu âmago a necessidade de “ponderação entre os valores da segurança jurídica e da justiça, consubstanciada na supremacia da Constituição”. (Cavalcante SILVA, 2005, p. 5).
1 a COISA JULGADA
Uma vez estabelecida pelo juiz a vontade concreta da lei para o caso concreto posto em juízo, concluída está a atividade jurisdicional e, como conseqüência, tem-se a resolução do conflito de interesses que é o elemento essencial ao surgimento da coisa julgada.
É neste mesmo sentido que ensina Baptista (2000, p. 484):
“Somente a sentença – e nem todas elas – poderá oferecer este tipo de estabilidade protetora daquilo que o juiz haja declarado como sendo a ‘lei do caso concreto’, de tal modo que isto se torne um preceito imodificável para as futuras relações jurídicas que se estabelecerem entre as partes perante as quais a sentença tenha sido proferida.”
Explica Lucon (2006, p.299) que a coisa julgada é a “qualidade (ou atributo) consistente na imutabilidade que a lei atribui ao conteúdo constante da parte dispositiva (conclusão) da sentença em decorrência do trânsito em julgado”.
Pode-se dizer, portanto, que a res iudicata é uma qualidade da sentença e que a esta se adere em determinado momento processual, seja quando do esgotamento dos recursos eventualmente cabíveis, seja por que já decorrido o prazo sem que o recurso admissível tenha sido interposto.
1.1 GRAUS DE INDISCUTIBILIDADE DA COISA JULGADA
Neste ponto, é necessário fazer referência aos graus de indiscutibilidade da sentença transitada em julgado. Diz-se que a coisa julgada é formal quando o conteúdo da sentença não mais poderá ser debatido dentro do mesmo processo em que a decisão foi proferida, sendo possível rediscuti-lo em outra relação processual.
Na coisa julgada material, a indiscutibilidade é externa à relação processual original, sendo, em princípio, impossível reabrir a discussão em qualquer outro processo. Em que pese a coisa julgada material pressuponha a formal, esta não é relevante para o estudo da relativização da res iudicata, pois se confunde com o instituto da preclusão, conforme o explica Marinoni:
“A ‘coisa julgada formal’ opera-se em relação a qualquer sentença, a partir do momento em que precluir o direito do interessado em impugná-la internamente à relação processual. Como preclusão que é, não deve ser confundida com a figura (e o regime) da coisa julgada (material). Naturalmente a coisa julgada material tem como pressuposto inafastável a coisa julgada formal. Todavia, a imutabilidade que realmente tem relevância é aquela caracterizada externamente ao processo” (decorrente da coisa julgada material). (MARINONI, 2006, p. 628).
1.2 CAMPO DE INCIDÊNCIA DA COISA JULGADA SOBRE A SENTENÇA
O ponto de partida para uma adequada análise da relação entre sentença e coisa julgada está na compreensão da abrangência desta sobre aquela. Isto é, saber quais as partes e elementos da sentença que serão dotados, após o trânsito em julgado, da qualidade ou atributo de intangibilidade conferido pelo instituto da res iudicata.
Para isso, faz-se necessários algumas observações acerca dos conceitos de eficácia, efeitos e conteúdo da sentença, bem como referência aos seus requisitos essenciais, como o relatório, fundamentação e dispositivo.
1.2.1 QUANTO À EFICÁCIA, EFEITOS E CONTEÚDO DA SENTENÇA
Eficácia da sentença é a aptidão, a potencialidade ou a suscetibilidade para produzir efeitos, v.g., eficácia declaratória, constitutiva ou condenatória das sentenças.
Marinoni (2006) e Batista (2000) sustentam que se confundem conteúdo e os efeitos da sentença que se operam exclusivamente no plano jurídico, pois “o conjunto dessas eficácias, somado a alguns efeitos (que ocorre concomitantemente com a sentença), conforma aquilo que se denomina de conteúdo da sentença”. (MARINONI, 2006, p. 632).
Numa outra linha de pensamento, Lucon (2006), Câmara (2004) e Moreira (1984) argumentam que embora o efeito de um ato jurídico guarde correspondência com o seu conteúdo, aquele não pode ser confundido com este, “uma vez que o conteúdo se localiza dentro do ato, enquanto que o efeito é necessariamente extrínseco” (CÂMARA, 2004, p. 440), isto é, “os efeitos são as alterações provocadas pela sentença sobre as relações jurídicas existentes no mundo exterior, fora do processo”. (LUCON, 2006, p. 287).
Assim, temos que para a primeira corrente, como conseqüência da sua própria definição de conteúdo, a coisa julgada incide não só sobre este, mas também sobre os efeitos – apenas os declaratórios – que se realizam sem a concorrência de qualquer outro fator externo à sentença. Senão Vejamos:
“Nem todos os efeitos tornam-se imutáveis em decorrência da coisa julgada, pois se a coisa julgada representa a imutabilidade decorrente da formação da lei do caso concreto, se ela representa a certificação dada pela jurisdição a respeito da pretensão do direito material exposta pelo autor, somente isso é que pode transitar em julgado. Somente o efeito declaratório é que pode, efetivamente, tornar-se imutável em decorrência da coisa julgada” (MARINONI, 2006, p. 633).
Para a segunda corrente, a coisa julgada opera-se tão-somente sobre o conteúdo da sentença, ficando todo e qualquer efeito, seja declaratório ou não, fora do seu alcance. É que para Moreira (1984), a formação da coisa julgada material não será, de modo algum, obstáculo a que os efeitos da sentença venham a, qualquer tempo, modificar-se. Neste ponto faz-se imprescindível a defesa de Câmara sobre o tema:
“Não são, pois, os efeitos da sentença que se tornam imutáveis com a coisa julgada material, mas sim o seu conteúdo. É este conteúdo, ou seja, é o ato judicial consistente na norma reguladora do caso concreto, que se torna imutável e indiscutível quando da formação da coisa julgada. Ainda que desapareçam os efeitos da sentença, não se poderá jamais por em dúvida que a sentença revela a norma que se mostrava adequada para a resolução daquela hipótese que fora submetida à cognição judicial. È este conteúdo da sentença que se faz imutável e indiscutível”. (CÂMARA, 2004, p. 467).
Os argumentos acima expostos por Moreira e Câmara são irrespondíveis, uma vez que, realmente, não há qualquer força externa à sentença que garanta a manutenção dos seus efeitos de forma perene. Portanto, sempre será possível a alteração ou mesmo extinção daqueles efeitos, seja por vontade das partes seja por outra razão qualquer, restando cristalino que a coisa julgada torna imutável unicamente o conteúdo e não os efeitos da sentença transitada em julgado .
1.2.2 QUANTO À ESTRUTURA DA SENTENÇA
Determina o art. 458 do Código de Processo Civil que são requisitos essenciais da sentença, in verbis:
“Art. 458. São requisitos essenciais da sentença:
I – o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;
II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;
III – o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes Ihe submeterem.
No relatório, tem-se o resumo pertinente aos fatos relevantes e atos processuais produzidos ao longo das fases postulatória, ordinatória e instrutória que compõem o desenvolvimento do processo.
A constituição, no art. 93, IX determina que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade. Esta obrigatoriedade de motivação dá-se por exigência não apenas do princípio do livre convencimento motivado do juiz, mas, sobretudo, em decorrência dos preceitos do Estado Democrático de Direito.
É exigência do Estado Democrático de Direito que se dê ao cidadão a ciência dos motivos e razões que fundamentam a decisão do magistrado, até para que seja possível atacá-la, por via recursal, quando há irresignação do jurisdicionado contra a sentença que lhe foi desfavorável.
A motivação da sentença é, portanto, uma garantia do cidadão contra eventual arbítrio do Estado-juiz, uma vez que contém os fundamentos de fato e de direito pelos quais o julgador formou o seu convencimento para decidir pela procedência ou improcedência do pedido veiculado pelo autor na petição inicial.
Não obstante a importância da fundamentação, que é exigência do Estado Democrático de Direito, é no dispositivo, elemento decisório da sentença, que o juiz, ao decidir a causa, afirma o comando (a vontade) da lei para o caso concreto. Por esta razão, o dispositivo é o requisito mais importante da sentença, pois além de encerrar a manifestação do poder de império estatal, é precisamente a única parte da sentença que será revestida pela autoridade da coisa julgada, uma vez que esta não alcança a fundamentação.
Lima (1997) explica que pelo princípio da co-extensividade entre ação e jurisdição (pedido – decisão), o sistema brasileiro adotou a tese restritiva da coisa julgada, consoante prevê expressamente o art. 469 do Código de Processo Civil:
“Art. 469. Não fazem coisa julgada:
I – os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença;
II – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença;
III – a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo.”
No entanto, se a parte provocar a jurisdição, no que tange à questão prejudicial, prevista no inciso III, como no caso da ação declaratória incidental, permite o art. 470 do CPC que a solução a ela dada seja também revestida pelo manto da coisa julgada material.
Assim, os pedidos é que fixam os limites da coisa julgada e não os fundamentos da sentença, pois “Não faz coisa julgada, diz a lei, qualquer decisão sobre questão distinta da que foi objeto do pedido […]. E a coisa julgada se limitará ao comando emergente da sentença, decorrente da jurisdição e co-extensivo ao pedido”. (LIMA, 1997, p.31).
2 O PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO E OS VALORES CONSTITUCIONAIS DA JUSTIÇA E DA SEGURANÇA JURÍDICA
2.1 SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO
A constituição é o diploma normativo que ocupa o ápice da pirâmide hierárquica do ordenamento jurídico. Partindo deste pressuposto, o princípio da Supremacia da Constituição informa que esta, por ser a lei fundante de um dado sistema jurídico, deve pautar (e servir de fundamento de validade) todo e qualquer ato emanado pelo Poder Público. Portanto, a princípio, há de se terem como nulas leis ou quaisquer outros atos editados em desconformidade com o texto constitucional.
“A garantia jurídica de que é merecedora a Constituição decorre de um princípio que é caro ao Estado de Direito: o da constitucionalidade. Aludido princípio é conseqüência direta da força normativa e vinculativa da Constituição enquanto Lei Fundamental da ordem jurídica”. (DELGADO, 2002, p. 130).
Por isso é que “a concordância, a relação positiva da norma ou do acto com a Constituição envolve validade, o contraste, a relação negativa implica invalidade. Se a norma vigente ou o acto é conforme a Constituição reveste-se de eficácia; se não é, torna-se ineficaz”. (MIRANDA, 1996, p.11).
Assim o é porque no Texto Constitucional estão assentados a Estrutura do Estado, a Organização dos Poderes e os Direitos Fundamentais, portanto, a guarda dos preceitos constitucionais é, em última análise, a própria preservação do Estado Democrático de Direito, que é a base de todo o sistema político-jurídico estatal.
2.2 JUSTIÇA COMO UM VALOR CONSTITUCIONAL
O valor justiça aparece assiduamente no conteúdo da Carta Federal. Os dispositivos constitucionais a ele se reportam ora de forma direta como acontece na enunciação dos objetivos da República Federativa do Brasil (art.3º, I, CF), na exigência de justa indenização na desapropriação (art. 5º, XXIV, CF); ora de forma indireta, como ocorre nos capítulos dos direitos sociais (art. 7º, CF) e dos princípios gerais da atividade econômica (art. 170, CF).
É inegável, entretanto, a dificuldade em definir-se justiça, devido ao alto grau de abstração e de amplitude do seu conteúdo, tornando, por vezes, difícil a identificação do que seja uma decisão justa ou injusta para o desate de determinada controvérsia posta em juízo.
Góes (2006, p. 146) afirma que a justiça é um valor e o Estado Democrático de Direito brasileiro fez opção por ele, mas pelo justo possível, como padrão de segurança jurídica com a coisa julgada, pois o “justo utópico está solitário, o Brasil permaneceu com o justo viável, que se desdobra no Estado Democrático de Direito”.
Nojiri (2006, p.324), admitindo a impossibilidade de um critério seguro para se identificar o valor justiça, diz que, devido à complexidade e pluralidade dos elementos que compõem o tecido social, observamos que as opiniões a respeito do “senso de justiça variam de grupos sociais para grupos sociais ou, em alguns casos, até mesmo de pessoa para pessoa. Não há uma uniformidade de pensamento a respeito de questões de justiça, de ética e de moral”.
Esta aparente indefinição do valor justiça não pode, entretanto, servir de pretexto para que o Estado, mormente no exercício da atividade jurisdicional, não atue sempre no sentido da máxima aproximação da justiça material, que é a única que resulta na distribuição igualitária dos bens da vida entre os cidadãos, o que concorre, juntamente com a segurança jurídica, para o estabelecimento da paz social.
2.3 SEGURANÇA JURÍDICA COMO FUNDAMENTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Por sua vez, a estabilidade das decisões judiciais, promovida pelo instituto da coisa julgada material, decorre do princípio, também de ordem constitucional, da segurança jurídica, ligado precipuamente à atividade jurisdicional. A eliminação dos conflitos de interesses e, por conseqüência, a pacificação social são indissociáveis da noção de julgamento definitivo.
Segundo Wambier (2003) e Otero (1993), o princípio da segurança jurídica é princípio agregado ao Estado Democrático de Direito, porquanto para que se possa dizer, efetivamente, esteja este plenamente configurado, é imprescindível a garantia de estabilidade jurídica, de segurança de orientação e realização do Direito.
Da mesma forma, para Greco (2006), Marinoni (2006) e Nery Jr. (2006) a segurança jurídica é garantia fundamental que o Estado de Direito deve oferecer a todo jurisdicionado, sem a qual a “jurisdição nunca assegurará em definitivo a eficácia concreta dos direitos do cidadão” (GRECO, 2006, p. 225), ou seja, “de nada adianta falar em direito de acesso à justiça sem dar ao cidadão o direito de ver seu conflito solucionado definitivamente”. (MARINONI, 2006, p. 234).
Para Nojiri, entre Direito e segurança existe uma relação intrínseca que faz com que a existência de um dependa da do outro:
“O Direito, nessa linha de raciocínio, é um produto cultural (fabricado pelo homem) que atua sob o influxo de certeza e segurança, já que há, por trás disso tudo, uma premente necessidade de ordem na vida social. Nesse sentido, o direito se caracteriza como um instrumento técnico de manutenção da ordem, com o intuito de viabilizar uma convivência cotidiana civilizada entre as pessoas”. (NOJIRI, 2006, p. 327).
O autor chega a dizer que a coisa julgada, por exercer uma “função instrumental do sistema normativo”, é indissociável da própria finalidade do Direito, pois “a res iudicata, que é uma conseqüência do princípio da segurança jurídica, confunde-se com a atividade jurisdicional do Estado, impedindo que os litígios sejam permanentemente retomados” (NOJIRI, 2006, p. 326).
2.4 DECISÕES JUDICIAIS INCONSTITUCIONAIS
No que se refere ao tema de inconstitucionalidade dos atos do poder público, durante muito tempo, os estudos e escritos concentraram-se tão somente no exame da desconformidade daqueles atos oriundos do poder legislativo, fazendo crer que apenas as leis pudessem padecer do vício de inconstitucionalidade.
Segundo afirma Otero (1993, p. 9), grande parte deste equívoco deve-se à “persistência do mito liberal que configura o juiz como ‘a boca que pronuncia as palavras da lei,’ e o poder judicial como ‘invisível e nulo'”. (OTERO, 1993, p.9).
No entanto, é induvidoso que as decisões judiciais são susceptíveis de padecer do defeito da inconstitucionalidade. Para Zavascki,
“É equivocada a idéia de que a inconstitucionalidade é apenas a incompatibilidade da norma com a Constituição, ou, em outras palavras, que apenas o legislador comete ofensa à carta magna. Na verdade as “inconstitucionalidades” podem derivar do comportamento de vários agentes e ser perpetradas por diversos modos. Inconstitucional será também o ato do juiz que desrespeitar, no comando do processo, as garantias e prerrogativas dos litigantes”. (ZAVASCKY, 2001, p.13).
Basta visualizarmos, através da clássica exemplificação idealizada por Delgado (2002), algumas decisões injustas, ofensivas aos princípios da legalidade e da moralidade, atentatórias à constituição, tais como:
“a) a expedida sem que o demandado tenha sido citado com as garantias exigidas pela lei processual;
b) a baseada em fatos falsos depositados durante o curso da lide;
c) a reconhecedora da existência de um fato que não está adequado à realidade;
d) a sentença conseguida graças a um perjúrio ou a um juramento falso;
e) a ofensiva à soberania estatal;
f) a violadora dos princípios guardadores da dignidade humana;
g) a provocadora de anulação dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
h) a que estabeleça, em qualquer tipo de relação jurídica, preconceito de raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação;
i) a que obrigue alguém a fazer alguma coisa ou deixar de fazer, de modo contrário à lei; […].” (DELGADO, 2002, p. 101).
Portanto, a simples possibilidade da existência de decisões portadoras dos graves erros acima expostos exigiu a previsão de um mecanismo de controle destes atos, que no sistema recursal brasileiro, entre outros, corresponde a três diferentes hipóteses: recurso ordinário em sentido amplo (agravo, apelação, recurso ordinário constitucional…), no qual se pedirá a revisão de decisão inconstitucional; impugnação de decisões divergentes da constituição através de recurso extraordinário para o STF (art.102, III, CF) e a ação rescisória, com base na hipótese prevista no inciso IV do art. 485 do Código de Processo Civil.
Todavia, o problema surge quando a sentença que ofende a constituição transita em julgado soberanamente, isto é, quando já não cabe mais qualquer dos instrumentos acima referidos e quando já expirado o prazo para manejo da ação rescisória.
Portanto, como salientado, os atos jurisdicionais como as sentenças transitadas em julgado, enquanto espécie de ato originário do Poder Público, tanto quanto os atos administrativos e legislativos, devem portar, necessariamente, o atributo da constitucionalidade, sob pena de tornar o texto constitucional letra morta.
É neste diapasão que uma boa parte da doutrina tem admitido a relativização da coisa julgada na hipótese de ser proferida decisão judicial violadora de regra ou princípio constitucional.
Neste ponto funda-se toda a controvérsia sobre a relativização da coisa julgada, ou seja, discute-se a possibilidade de desconstituição da res iudicata, fora dos limites temporais previstos expressamente em lei, quando a decisão veicula conteúdo portador do grave vício de inconstitucionalidade.
3 Relativização da coisa julgada: a controvérsia
“A análise desta controvérsia deve ter como ponto de partida o seguinte questionamento: será a coisa julgada, com sua eficácia sanatória geral, capaz de sanar a inconstitucionalidade contida na sentença?” (CÂMARA, 2006, p. 11).
É perguntar: seria possível admitirmos a subsistência no mundo jurídico de uma decisão transitada em julgado contrária aos princípios e valores basilares da norma fundamental, norma esta de onde todo e qualquer ato do poder público deve extarir o seu fundamento de validade?
A doutrina divide-se radicalmente sobre o tema, sendo possível encontrar argumentos bastante sólidos e relevantes tanto em favor como contrários à tese da relativização.
3.1 CONTROVÉRSIA QUANTO AO REGIME JURÍDICO (ENQUADRAMENTO NORMATIVO) DA COISA JULGADA
Ora, é sabido que a coisa julgada tem assento no rol dos direitos fundamentais, mais precisamente, no art. 5º, XXXVI da Carta Federal: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. O que não está ainda pacificado na doutrina, como será demonstrado, é a questão do seu regime jurídico, ou seja, saber se o conceito, alcance, regulamentação e limites da garantia da coisa julgada são de índole constitucional ou infraconstitucional.
Delgado (2002) afirma que se impõe a relativização da coisa julgada toda vez que haja agressão a um mandamento constitucional. Conforme o autor, está em jogo a própria dimensão ética do Estado, o qual não pode dar guarida à decisão que tenha ferido os primados da moralidade e da legalidade, que são uma exigência do Estado Democrático de Direito. Para o autor, tal decisão nunca poderá ter força de coisa julgada, sendo possível, a qualquer tempo, sua desconstituição, na medida em que o regime jurídico da coisa julgada é de ordem infraconstitucional e, portanto, de hierarquia inferior à Carta Magna.
Por outro lado, Nery Jr. (2006), lança severa crítica à teoria da relativização, argumentando que o termo não passa de um eufemismo, posto que na verdade o que se pretende é desprezar a coisa julgada como se ela nunca tivesse existido, trazendo tal atitude, como conseqüência, a “quebra do Estado Democrático de Direito, fundamento constitucional da própria República brasileira”. (NERY Jr., 2006, p. 257).
Alguns autores, como Nascimento (2002), Dinamarco (2002), Delgado (2002) e Wambier (2003), entendem que embora a norma trazida pelo art. 5º, XXXVI da Carta da República tenha dado proteção constitucional à coisa julgada, todos os aspectos que a determinam e delineiam ficaram a cargo da legislação ordinária.
In expressi verbis, ainda a lição de Delgado acerca da questão:
“O tratamento dado pela Carta Maior à coisa julgada não tem o alcance que muitos intérpretes lhe dão. Consoante se observa da leitura do dispositivo (art. 5º, XXXVI, CF), a regra nele insculpida se dirige ao legislador ordinário. Trata-se, pois de sobre-direito, na medida em que disciplina a própria edição de outras regras jurídicas pelo legislador, ou seja, ao legislar é interdito ao poder legisferante ‘prejudicar’ a coisa julgada. É esta a única regra sobre coisa julgada que adquiriu foro constitucional. Tudo o mais no instituto é matéria objeto de legislação ordinária.” (Delgado, 2002, p. 84).
Isto é, para estes autores a norma veiculada pelo referido artigo da constituição tem como destinatário, única e especificamente, o legislador infraconstitucional, enviando-lhe a determinação de que lei nova não poderá alterar o conteúdo da sentença proferida em um determinado processo, quando aquela já tenha transitado em julgado.
Veja-se também a opinião de Wambier:
“Não se deve, portanto, superestimar a proteção constitucional à coisa julgada, tendo sempre presente que o texto protege a situação concreta da decisão transitada em julgado contra a possibilidade de incidência de nova lei. Não se trata de proteção ao instituto da coisa julgada, (em tese) de molde a torná-la inatingível, mas de resguardo de situações em que se operou a coisa julgada, da aplicabilidade de lei superveniente”. (WAMBIER, 2003, p. 171).
Ainda com referência à doutrina que se põe favorável à relativização do caso julgado inconstitucional, está Theodoro Jr. (2006) o qual expõe o entendimento de que por ter regime jurídico infraconstitucional, a coisa julgada deverá sempre ceder passo ao Princípio da Supremacia da Constituição, uma vez que este é hierarquicamente superior àquele regime, in verbis:
“A inferioridade hierárquica do princípio da intangibilidade da coisa julgada, que é uma noção processual e não constitucional, traz como consectário a idéia de sua submissão ao princípio da constitucionalidade. Isto nos permite a seguinte conclusão: a coisa julgada será intangível enquanto tal apenas quando conforme com a Constituição. Se desconforme, estar-se-á diante do que a doutrina vem denominando coisa julgada inconstitucional.” (THEODORO JR., 2006, p.94).
Assim, conclui-se que o regime jurídico da coisa julgada é infraconstitucional, posto que a constituição no art. 5º, XXXVI, impede tão-somente que a lei retroaja para atingir a coisa julgada. É o que Lima (1997) chama de Princípio da não-surpresa, que impede apenas que inovação legal atinja o comando de uma determinada sentença já transitada em julgado, dada na resolução de um caso concreto específico. Neste mesmo sentido, Araújo (2007, p. 131), para quem
“a Constituição da República não se preocupou na definição do instituto da coisa julgada, devendo tal norma ser complementada pelos dispositivos infraconstitucionais.Esta conceituação infraconstitucional, a nosso ver, permitirá traçar os parâmetros do funcionamento adequado desta garantia, pois que existem hipóteses de ações autônomas desconstitutivas da coisa julgada (e.g. ação rescisória e revisão criminal) já previstas no ordenamento Máximo, o que não se vislumbraria caso a garantia fosse absoluta.”
Portanto, é perfeitamente possível a alteração em abstrato da coisa julgada, como um instituto de direito processual civil, no que diz respeito à sua amplitude ou controle. Pois se assim não fosse, “a ação rescisória seria considerada inconstitucional, dado que se trata de remédio jurídico que tem como único objetivo destruir a coisa julgada”. (LIMA, 1997, p. 86).
Inversamente, Nojiri (2006) contra-argumenta afirmando que o alcance do inciso XXXVI do art. 5º da CF, não foi bem compreendido, talvez pelo fato de ter dito menos do que queria dizer (lex minus dixit quam voluit).
O autor interpreta extensivamente o dispositivo porque para ele, na verdade, se há proibição da lei retroagir seus efeitos para apanhar a coisa julgada, “há também proibições de atos judiciais, e de atos administrativos, além dos legislativos, de terem efeitos retroativos incidentes sobre a res iudicata”. (NOJIRI, 2006, p. 318).
No mesmo sentido, Góes (2006), defende o caráter constitucional da coisa julgada, ainda mais pela sua localização topográfica no Texto Maior, encartada que está no rol dos direitos fundamentais. Sendo, segundo a autora, por isso mesmo, uma cláusula pétrea conforme estabelece o §4º do art. 60.
Em sendo assim, “a coisa julgada é norma-princípio constitucional e não mera norma-regra do diploma processual civil, como núcleo que irradia e imanta todo o ordenamento jurídico”. (GÓES, 2006, p. 145).
José Ignácio Botelho de Mesquita (2005) assevera que a permissão para que o legislador ordinário promova a restrição ou abolição da coisa julgada tornaria ineficaz o dispositivo constitucional que a protege, causando uma inversão na hierarquia das normas jurídicas.
Marinoni, negando também a tese da infraconstitucionalidade do enquadramento normativo da coisa julgada, afirma que o seu regime jurídico é, na sua plenitude, de estatura constitucional, uma vez que esta é uma garantia do cidadão em face do poder do Estado:
“A coisa julgada é inerente ao Estado de Direito e, assim, deve ser vista como um subprincípio que lhe dá conformação. Não há como aceitar a tese no sentido de que a garantia da coisa julgada material, insculpida no art. 5º, XXXVI, da CF dirige-se apenas ao legislador, impedindo-o de legislar em prejuízo da coisa julgada. Ora, como é evidente, a coisa julgada é garantia constitucional do cidadão diante do Estado (em geral) e dos particulares.” (MARINONI, 2006, p. 679).
A meu ver, razão assiste à doutrina que sustenta a infraconstitucionalidade do enquadramento normativo do regime jurídico da coisa julgada, pois é induvidoso que a lei ordinária possa prever certas hipóteses para mitigação ou desconstituição da coisa julgada material. Ora, a ação rescisória, os embargos à execução e a impugnação ao cumprimento da sentença são limites infraconstitucionais impostos à autoridade da coisa julgada e nem por isso são preceitos normativos inconstitucionais.
Entretanto, penso também que a controvérsia estabelecida sobre o assento constitucional ou não do regime jurídico da coisa julgada não traz prejuízo ao estudo da sua relativização. Ora, é óbvio que tanto a segurança jurídica como os princípios da Supremacia da Constituição e da justiça são valores caros ao Estado Democrático de Direito. Mas deve-se, neste ponto, relembrar a lição comezinha de que não há qualquer direito fundamental de índole absoluta, isto é, haverá sempre uma ocasião em que havendo um embate insuperável entre dois princípios, ainda que ambos sejam fundamentais e de estatura constitucional (v.g., segurança jurídica versus dignidade da pessoa humana), um deles haverá de ser mitigado através de um exercício de ponderação de valores realizado pelo intérprete, tendo sempre em vista a melhor resolução para o caso concreto:
“É preciso considerar, portanto, que os princípios de segurança e certeza jurídicas consubstanciados pela coisa julgada convivem com outros princípios constitucionais e com eles devem ser harmonizados tendo em vista o completo equilíbrio do sistema jurídico.” (CAVALCANTE SILVA, 2006, p. 7).
3.2 CONTROVÉRSIA QUANTO À RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA COM FUNDAMENTO NA INJUSTIÇA DA DECISÃO E NA VIOLAÇÃO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
Afirma Armelin que a grave injustiça e a violação dos valores basilares do ordenamento jurídico constantes em uma determinada decisão judicial, mesmo que já transitada em julgado, justificam a “erosão” da auctoritas rei iudicatae
“Não restam dúvidas que a sacralização da coisa julgada material vai sendo paulatinamente erodida, aceitando-se a sua relativização sempre que o conflito de valores torna-se mais agudo em razão da intensidade da injustiça do caso concreto ou do grau de sua colidência com os princípios informativos e fundamentais do ordenamento jurídico.” (ARMELIN, 2006, p. 94).
Da análise dos seguintes casos pinçados do cotidiano forense por Lima (1997), aduz o autor que fica patente a injustiça e o grave prejuízo ao princípio constitucional da isonomia quando, por interpretações distintas da mesma espécie normativa, decisões judiciais podem chegar a resultados antagônicos para as mesmíssimas situações de fato.
“Magoa fundo a noção de justiça, v.g., que determinado contribuinte pague certa exação, porque vencido em ação onde argüiu a inconstitucionalidade do tributo, quando todos os demais (ou muitos, ou alguns, ou outro) venceram suas demandas e livraram-se do ônus tributário […]. A comunidade jurídica assistiu surpresa e impotente, a formação de coisas julgadas em processos idênticos, com soluções antagônicas. Assim, quanto ao reajuste de 147,07%, reclamado pelos aposentados em setembro de 1991; quanto ao saque do FGTS mercê da alteração do regime de emprego de celetista para estatutário; quanto ao reajuste de 84,32% reclamado por empregados particulares e servidores públicos, em março de 1990. Nestes casos e em vários outros, as decisões judiciais, inclusive as dos tribunais superiores, ora sufragaram uma tese, ora a outra, criando coisas julgadas intangíveis e garantindo direitos a uns e negando a outros, sem embargo de estarem todos na mesma e inalterada situação. Casos há, e não são poucos, onde servidores da mesma repartição e no exercício dos mesmos cargos e funções recebem remunerações diferentes, justos porque uns venceram e outros perderam suas demandas. Nestes casos, olvida-se o princípio constitucional da isonomia, maltrata-se a regra magna da prevalência do interesse público sobre o privado, aniquila-se o princípio do Direito Administrativo, de que todos devem, na mesma medida, contribuir para a manutenção do Estado, espanca-se o valor psicossocial da justiça, tudo em louvor à coisa julgada.” (LIMA, 1997, p. 116).
Nestas situações, tendo em vista o efeito psicológico do princípio da igualdade sobre os jurisdicionados, não há como permitir que o ordenamento jurídico permaneça desprovido da solução adequada para os “casos de julgamentos díspares que revoltam os protagonistas, deixam perplexa a sociedade e desorganizam o meio social” (LIMA, 1997, p.110).
Valendo-se de uma análise metajurídica do embate entre segurança e justiça, J.J. Calmon de Passos (apud ARMELIN, 2006, p.73), relaciona a prevalência de um ou outro valor com as forças atuantes no meio social, de modo que para o autor a dialética entre justiça e segurança jurídica não é nada mais nada menos do que o reflexo da tensão entre Poder (status quo) e Sociedade Civil:
“O processo persegue dois objetivos que, no final das contas, são os objetivos também buscados pela própria ordem jurídica. Nem poderia ser diversamente, visto como o processo é ao lado do adimplemento (aplicação voluntária do direito) o outro modo pelo qual se efetiva ou se realiza o direito. São eles a justiça e a segurança, ou em outros termos, a justa participação de todos nos bens da vida e a pacificação social. Esses objetivos deveriam se complementar, integrando-se em algo que bem poderíamos simbolizar com a palavra JUSTIÇA, assim maiúscula e proeminente. Na prática isso não ocorre. Antes eles se porfiam dialeticamente, ora um interferindo no outro, em seu prejuízo e detrimento. Porque, em verdade, como já frisamos, a ordem jurídica é a resultante da tensão dialética, nunca eliminada, entre a vocação do Poder para excluir, discriminar, privilegiar, estabilizar, e a vocação da sociedade civil de obter, de modo mais acentuado, melhor participação nos bens da vida, com satisfação do maior número possível das necessidades individuais e coletivas, que a vida social engendra e a formação de cada qual particulariza. Quando a sociedade civil é frágil em termos de participação e organização, prevalecem os valores relacionados com a pacificação social e a segurança, que beneficiam o poder, visto como privilegiam o status quo. Quando aquela sociedade logra maior participação e tem melhor organização, predominam os valores de justiça, que proporcionam mais eqüitativa fruição dos bens da vida por maior número.”
No entanto, os seguintes autores criticam os “relativistas” pelo fato de não estabelecerem, de forma segura, o que se entende por Justiça, quando a contrapõem à segurança jurídica representada pelo instituto da coisa julgada material.
Marinoni (2006, p. 248) afirma que os defensores da relativização aparentemente “partem de uma noção de justiça como senso comum, capaz de ser descoberto por qualquer cidadão (l’uomo della strada), o que a torna imprestável a seu propósito, por sofrer de evidente inconsistência”.
Ainda segundo Marinoni (2006), como não existe um sistema normativo perfeito, que assegure totalmente a justiça da decisão, não pode ainda o ordenamento jurídico despojar-se do princípio garantidor da segurança jurídica, pois, do contrário, permitir-se-á o surgimento de situações ainda mais injustas. Do mesmo modo, Ferraz Júnior (apud ARAÚJO, 2007, p. 141) entende que “a oposição entre justiça e segurança pode ser remontada a Radbruch quando afirmava que, diante da impossibilidade de se certificar o que é justo, cabia a quem de direito competente, estabelecer o que é jurídico.”
No dilema diante da tensão entre a segurança e a justiça, qual dos dois valores haveria de prevalecer, Góes (2006) invoca a premissa de que a decisão judicial é válida porque representa a vontade da Lei, ou seja, é válida porque oriunda do Estado-Juiz e não porque é justa. Segundo a autora, a justiça que importa ao Estado é a realizável, é o justo possível. Não se pode sobrevalorizar a justiça do caso concreto em detrimento da segurança jurídica geral.
Nojiri (2006) defende a tese de que a única justiça que se pode aferir com alguma dose de certeza e confiança, válida para o sistema jurídico normativo, é a da “justiça formal (ou instrumental), que é aquela que se extrai do complexo de regras do ordenamento” (NOJIRI, 2006, p. 324).
Eurico de Santi e Paulo César Conrado (apud Nojiri, 2006, p. 325) sustentam que:
“A coisa julgada não serve para fazer justiça material, serve para outorgar segurança ao direito, segurança às partes da contenda, segurança a terceiros que encontram na coisa julgada um porto seguro para a realização de outros negócios jurídicos. Faz, a seu modo, outra justiça: a formal, a única que importa para o direito. A segurança jurídica, realizadora da justiça formal, se sobrepõe à idéia de justiça material.”
Batista aduz que os argumentos utilizados na defesa da relativização são demasiadamente abstratos, v.g. injustiça grave, desprovidos de qualquer intimidade com a concreta controvérsia judicial e com o cotidiano da prática forense. Com lastro neste raciocínio desafia:
“Este é um discurso apropriado para uma sala de aula, produzida ao estilo de nossas universidades; ou para um livro de doutrina. Todos, porém haverão de concordar em que será necessário testar o projeto de “relativização” da coisa julgada em sua dimensão, digamos, funcional e pragmática, indagando como as coisas se darão quando, a tranqüila segurança do discurso teórico, perdendo a dimensão estática e formal com que o raciocínio abstrato lhe protege, tenha de descer das alturas, para enfrentar as inimagináveis diversidades dos casos concretos.” (BATISTA, 2006, p. 280).
Nery Jr. (2006) prega que a sentença uma vez revestida pelo manto da intangibilidade que lhe atribui a res iudicata, assim se manterá, sendo irrelevante perquirir-se a (in)justiça do comando que emerge do seu dispositivo, haja vista que a coisa julgada material “tem força criadora, tornando imutável e indiscutível a matéria por ela acobertada, independentemente da constitucionalidade, legalidade ou justiça do conteúdo intrínseco dessa mesma sentença”. (NERY Jr., 2006, p. 259).
3.2.1 A INJUSTIÇA DA DECISÃO E O PROBLEMA DO REGRESSO AO INFINITO
Os autores contrários à tese da relativização da coisa julgada sustentam, ainda, que esta possibilidade levaria à eternização dos conflitos, pois, admitindo-se a desconstituição de uma decisão transitada em julgado por uma outra, pretensamente mais justa, dever-se-ia, por coerência e atendimento ao princípio da igualdade, abrir a possibilidade de se desconstituir, a qualquer tempo, a decisão posterior que anulou a anterior e assim sucessivamente. Sustentam que a sentença substitutiva daquela tida por injusta ou inconstitucional será sempre oriunda do mesmo poder (judiciário) e não haveria como garantir que esta segunda decisão traria mais justiça para as partes.
Para Marinoni (2006, p. 678), a idéia de relativização não logra êxito em explicar que “se o Estado-juiz errou no julgamento que se cristalizou, obviamente implica aceitar que o Estado-juiz pode errar no segundo julgamento, quando a idéia de relativizar a coisa julgada não traria qualquer benefício ou situação de justiça”.
Ainda segundo Marinoni (2004, p. 3):
“A coisa julgada material é atributo indispensável ao Estado Democrático de Direito e à efetividade do direito fundamental de acesso ao poder judiciário. Ou seja, de nada adianta falar em direito de acesso à justiça sem dar ao cidadão o direito de ver o seu conflito solucionado definitivamente. Por isso, se a definitividade inerente à coisa julgada pode, em alguns casos, produzir situações indesejáveis ao próprio sistema, não é correto imaginar que, em razão disso, ela simplesmente possa ser desconsiderada”.
Os “anti-relativistas” defendem que haveria apenas a substituição da justiça, da legalidade, da moralidade e isonomia da sentença transitada em julgado por uma outra justiça, legalidade, moralidade e isonomia da decisão desconstitutiva da coisa julgada que será, igualmente, susceptível de ser considerada inconstitucional ou injusta e assim sucessivamente.
É neste sentido que Gustavo Valverde (apud NOJIRI, 2006, p. 315) desenvolve o seguinte raciocínio:
“Uma primeira dificuldade que se coloca diante desse tipo de reflexão é a de que sempre será uma decisão judicial que decidirá que a coisa julgada viola a Constituição. E muitas vezes fica difícil evitar o regresso ao infinito, por meio de perquirições como esta: a decisão que decide pela inconstitucionalidade da coisa julgada não será, também ela (ou somente ela), uma decisão inconstitucional, que redundará numa coisa julgada inconstitucional, e assim sucessivamente?”
Baptista (2006) indaga-se: se a sentença que destruiu a primeira coisa julgada seria, ipso iuri, justa e não abusiva ? Qual seria o impedimento para a intangibilidade desta segunda coisa julgada e o que impediria o vencido de intentar uma ação inversa, pretendendo demonstrar a injustiça da segunda sentença?
Nessa esteira, Assis (2006) assevera que a simples possibilidade de rediscutir o julgado sem os limites impostos pela rescisória, alegando-se simplesmente a injustiça da decisão ou a violação de um ou outro princípio constitucional levará, inevitavelmente, a uma multiplicação e eternização dos litígios, permitindo que as portas do judiciário estejam sempre indevidamente abertas às iniciativas mais frívolas e fúteis do vencido.
Por esta razão, mostra-se iminente “o risco de se perder qualquer noção de segurança e de hierarquia judiciária. Ademais, os litígios jamais acabarão, renovando-se, a todo instante, sob o pretexto de ofensa a este ou aquele princípio constitucional”. (ASSIS, 2006, p.36).
Aduz ainda Moreira (2006) que a relativização da coisa julgada com base tão somente na injustiça da sentença seria o equivalente a “golpear de morte” o instituto da coisa julgada, posto que raríssimos seriam os casos em que a parte vencida se convenceria da justiça da sua derrota. Para o autor, teríamos que suportar “uma série indefinida de processos com idêntico objeto. Mal comparando, algo como uma sinfonia não apenas inacabada como a de Schubert, mas inacabável – e bem menos bela”. (MOREIRA, 2006, p. 209) (grifo do autor).
Com estes argumentos, a doutrina anti-relativista tenta demonstrar, sem razão, a temeridade de se admitir a desconstituição da coisa julgada, acarretando sucessivas desconsiderações, impedindo a resolução definitiva das contendas e, por conseqüência, obstando o estabelecimento da paz social.
Em defesa da relativização, Theodoro Jr. (2006, p. 195) argumenta ser este um falso problema, uma vez que se operará a preclusão sobre as eventuais argüições de inconstitucionalidade já decididas. “A respeito da solução que for dada operaria a preclusão pro iudicato e a res iudicata, tornando inviável o espiral sem fim em torno da matéria cogitada pelos eminentes doutrinadores”.
Ademais, a indefinição ou mesmo o alto grau de abstração do conceito de justiça, todavia, não deve tolher a perseguição dos operadores do direito pela máxima aproximação à justiça material. Existem vários princípios que são verdadeiros guias na busca da justiça material, como o princípio da isonomia, da dignidade da pessoa humana, da moralidade, da impessoalidade, da capacidade contributiva, da anterioridade da lei tributária, do in dúbio pro misero, da função social da propriedade, entre muitos outros.
Wambier (2003, p. 174) diz que “parece ter-se delineado um quadro em que já não satisfaz mais a resolução ‘formal’ dos conflitos; o que se quer são soluções ‘reais’, ainda que ocorram num esquema de menor segurança […] em favor do valor efetividade”.
Portanto, o argumento de que a única justiça possível é a justiça formal é insuficiente, falho e acaba tornando acomodado o intérprete na busca do verdadeiro espírito que anima a constituição, pois quando a Constituição consignou o Princípio da Inafastabilidade do Poder Judiciário, assegurando amplo acesso à tutela jurisdicional, o fez “não como uma garantia a uma tutela jurisdicional qualquer, mas como direito a uma tutela justa” (ARMELIN, 2006, p. 73), pois apenas neste caso, com observância da justiça nas relações interindividuais e coletivas, é que se atingirá a justiça social.
Para Câmara (2006, p. 29),
“O direito processual moderno é um sistema orientado à construção de resultados justos. A ideologia do processualista contemporâneo, conhecida como processo civil de resultados, leva à necessária revisão de diversos conceitos que pareciam firmemente estabelecidos no panteão dos dogmas jurídicos. Isto se dá porque não é aceitável que, em um momento histórico como o atual, em que tanto se luta por justiça, possamos abrir mão dela em nome de uma segurança que não dá paz de espírito ao julgador nem tranqüilidade à sociedade. É preciso, pois, relativizar a coisa julgada material, como forma de manifestar crença na possibilidade de se criar um mundo mais justo.”
Além disto, a proposta não é de relativização radical da res iudicata, não sugere uma abertura total para que todo e qualquer tipo de argüição de inconstitucionalidade seja admitida como ensejadora de eventual desconsideração da coisa julgada.
A relativização deve estar reservada para casos extremos ou inequívocos de injustiça, como aqueles retirados da obra de Lima (1997, p. 116) e acima colacionados, em que diante da mesma norma e da mesma situação de fato, decisões totalmente antagônicas foram tomadas pelo poder judiciário.
Por todos, cite-se o magistério de Dinamarco (2002, p. 67):
“Além disso, não estou a postular a sistemática desvalorização da auctoritas rei judicatae, mas apenas o cuidado para situações extraordinárias e raras, a serem tratadas mediante critérios extraordinários. Cabe aos juízes de todos os graus jurisdicionais a tarefa de descoberta das extraordinariedades que devam conduzir a flexibilizar a garantia da coisa julgada, recusando-se a flexibilizá-la sempre que o caso não seja portador de absurdos, injustiças graves, transgressões constitucionais etc.”
CONCLUSÃO
A coisa julgada não é um efeito, mas um atributo da sentença e que a esta se adere em determinado momento processual, seja quando do esgotamento dos recursos eventualmente cabíveis, seja por que já decorrido o prazo sem que o recurso admissível tenha sido interposto.
Por força do princípio da co-extensividade entre ação e jurisdição, a imutabilidade conferida pela coisa julgada material tem como campo de incidência o dispositivo da sentença e seus limites fixados pelos pedidos deduzidos pelo autor e efetivamente decididos através do exercício da jurisdição realizado pelo juiz.
A incidência da coisa julgada não se opera sobre os efeitos da sentença, sejam declaratórios, constitutivos ou condenatórios, mas torna, isto sim, imutável e indiscutível o seu conteúdo, pois é este que revela a norma (a vontade da lei) adequada para solução do caso concreto submetido à apreciação do judiciário.
As decisões oriundas do poder judiciário, assim como acontece com os atos do poder executivo e legislativo, são susceptíveis de serem editados em desconformidade com a Constituição, dando ensejo a que a imutabilidade da coisa julgada material incida sobre sentença ou acórdão cujo conteúdo é contrário à Carta da República e aos seus princípios e valores fundamentais.
O sistema jurídico-processual brasileiro prevê mecanismos para o controle daquelas decisões judiciais discrepantes dos mandamentos constitucionais, quais sejam, os recursos ordinários, em sentido amplo; o recurso extraordinário e, após o trânsito em julgado, a ação rescisória. Ocorre que a possibilidade de utilização destes instrumentos é limitada no tempo, o que não é capaz de resolver o problema da sentença inconstitucional transitada em julgado soberanamente.
Segurança jurídica e justiça são valores constitucionalmente protegidos, sendo ambos uma garantia do cidadão contra o arbítrio do Estado. A coisa julgada, em que pese seja instituto decorrente do princípio constitucional da segurança jurídica, tem seu regime jurídico determinado por norma de hierarquia infraconstitucional, devendo, portanto, a relativização da coisa julgada material contrária à constituição ser encarada, sobretudo, como uma questão de hierarquia de normas. E mesmo que assim não fosse, pelo simples fato de conviver com outros princípios de igual estatura, está sujeita, inevitavelmente, ao exercício da ponderação de valores por parte do intérprete.
Não obstante a indemarcabilidade da noção de justiça, é imperioso que o poder público, no exercício de qualquer das funções de Estado, notadamente da função jurisdicional, preze pela maior aproximação do justo, ou seja, atue no sentido de conferir efetividade máxima aos comandos constitucionais que determinam uma distribuição igualitária dos bens da vida a todos os cidadãos e em todos os setores da sociedade, pois, em ultima análise, esta foi a opção política fundamental tomada pela ordem constitucional a partir do advento da atual Carta da República.
Os instrumentos previstos no ordenamento jurídico, citados nos parágrafos acima, resolvem o problema das sentenças inconstitucionais condenatórias ou daquelas que ainda não transitaram em julgado soberanamente, persistindo o impasse quanto à relativização da coisa julgada no que diz respeito às sentenças de eficácia declaratória e constitutiva ou daquelas cujo trânsito em julgado ocorreu há mais de dois anos, impedindo o manejo da ação rescisória.
Portanto, objetivando-se o aperfeiçoamento do sistema, urge imediata intervenção legislativa para criação de mecanismos processuais outros que, dotados de requisitos específicos e altamente criteriosos, possibilitem a superação do problema.
Por fim, pode-se afirmar que a proposta de relativização não é, de forma alguma, a de desprezar por completo a firmeza da coisa julgada, tornando nula a garantia fundamental e instrumental do direito à pacificação social, mas apenas a de assumir a necessidade imperiosa de relativizá-la quando da ocorrência de casos extraordinários em que a decisão judicial for proferida em desconformidade com os preceitos constitucionais fundamentais, uma vez que o direito processual moderno, dito de resultados, exige a condução do processo orientado à construção de soluções justas para as lides submetidas à apreciação do judiciário.
Informações Sobre o Autor
Gustavo Anderson Correia de Castro
Procurador da Fazenda Nacional. Especialista em Direito Público pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió