Resumo: o presente artigo traz uma reflexão garantista do instituto da reincidência. Neste viés, inclui-se nas seguintes páginas a axiologia da Teoria do Garantismo penal de Luigi Ferrajoli, a qual invoca a responsabilidade do legislador e do julgador, sendo que ao primeiro é vedada a redação de normas maniqueístas e arbitrárias por propiciarem juízo de valor, enquanto ao segundo é defeso a consideração de normas alicerçadas em critérios subjetivos por impedirem a falseabilidade. Ilustra-se ainda, que o sistema garantista, como instrumento de intervenção mínima, propõe-se a conferir ao Direito Penal um modelo racional, opondo-se às políticas criminais expansionistas e extremistas, que recaem mormente sobre aqueles que se encontram à margem da sociedade. Por fim, infere que a agravante da reincidência opõe-se materialmente aos valores fundamentais, traduzindo-se numa norma inquisitorial que deve ser submetida à filtragem constitucional.
Palavras-chave: reincidência; garantismo; secularização; culpabilidade; axiomas.
Sumário: 1 Introdução; 2 O sistema garantista: a construção de Luigi Ferrajoli; 3 O instituto da reincidência numa análise pelo garantismo; Considerações finais; Referências.
1 INTRODUÇÃO
De “[…] uma (mera) racionalidade instrumental[1]” à salvaguarda dos direitos fundamentais. Através desse raciocínio, a teoria do garantismo penal visa imprimir ao Direito um novo papel, contrapondo-se ao juspositivismo vigente, a fim de adequá-lo aos valores constitucionais. Nesta direção, ressalta a dicotomia entre a vigência e a validade da norma, uma vez que esta pode obedecer à forma, mas o seu conteúdo pode ser inválido por não acolher as garantias fundamentais, vinculando o julgador a uma análise crítica e não à mera aplicação da lei vigente[2].
Todavia, frisa-se que o Judiciário não possui responsabilidade exclusiva quanto ao êxito da teoria garantista, eis que no seu ofício de julgar depara-se com conflitos já instalados pela ineficiência na concretude dos direitos fundamentais e sociais. Nesta empreitada, denota-se que os demais poderes e a própria sociedade são imprescindíveis na efetivação do sistema garantidor, seja na elaboração de leis condizentes com os ditames da Carta Magna, seja na prestação dos direitos sociais[3].
Porém, no contexto brasileiro em que há a persistência do Executivo na implementação de políticas públicas mediatistas, incapazes de aplacar situações de vulnerabilidade social, bem como do Legislativo na produção de uma legiferação penal que subjuga as garantias aos anseios escusos de clamor social, cumpre ao julgador, como elemento final e depurador da cadeia, refrear a violência dirigida aos direitos fundamentais, adequando suas decisões aos preceitos constitucionais.
Por este viés, ao apregoar a minimização da intervenção penal através do resguardo das garantias, a teoria de Ferrajoli evidencia-se avessa aos modelos dogmáticos e antipluralistas representados pela Inquisição, pelo nacional-socialismo, pelo Direito penal do inimigo e outros tantos marcados pelo paradigma da intolerância, incluindo-se nessa atroz sistemática a previsão infraconstitucional da reincidência criminal[4].
2 O SISTEMA GARANTISTA: A CONSTRUÇÃO DE LUIGI FERRAJOLI
Resumidamente, o sistema garantista de Ferrajoli, representado pela sigla SG, é composto por dez axiomas, conexos e não deriváveis, que dividem-se em garantias penais e processuais penais que, representadas por equações, visam limitar o arbítrio punitivo do Estado, tanto na cominação, quanto na aplicação da pena.
Desse modo, são garantias penais: nulla poena sine crimine (A1), denominada como princípio da retributividade; nullum crimen sine lege (A2), intitulada como princípio da legalidade em sentido lato ou estrito; nulla lex (poenalis) sine necessitate (A3) chamada de princípio da necessidade ou economia do direito penal; nulla necessita sine iniuria (A4), traduzida pelo princípio da lesividade ou ofensividade do ato; nulla iniuria sine actione (A5), que corresponde à materialidade ou exterioridade da ação; e nulla actio sine culpa (A6), que indica o princípio da culpabilidade ou responsabilidade pessoal.
As garantias processuais, por seu turno, são compostas pela nulla culpa sine iudicio (A7), que reveste o princípio da jurisdicionariedade em sentido lato ou estrito; pela nullum iudicium sine accusatione (A8), que denota o princípio acusatório ou da separação do juiz e acusação; pela nulla accusatio sine probatione (A9) que consiste no princípio ônus da prova ou da verificação e, por fim, pela nulla probatio sine defensione (A10) que enuncia o princípio do contraditório, também conhecido como da defesa ou da falseabilidade[5].
O atendimento de tais axiomas que, combinados podem expressar até 75 teoremas[6], revelam o grau de garantismo de cada sistema, pois não basta que as garantias estejam previstas no texto constitucional, mas sim que sejam efetivadas, sendo inadmitida a interferência de qualquer legislação ordinária ou de cunho inquisitorial sobre os direitos fundamentais que delas decorrem[7].
O princípio da retributividade é a primeira e mais singela garantia penal esposada por Ferrajoli. Traduzido pela máxima nulla poena sine crimine, indica que a pena só pode ser aplicada na ocorrência do seu pressuposto, isto é, o delito. Para tanto, a pena exerceria uma função retributiva e não preventiva, eis que se optasse pela segunda alternativa, revelar-se-ia acolhedora de uma política inquisitorial e, portanto, antigarantista, haja vista que
“La garantía del carácter retributivo de la pena – en virtud de la cual nadie puede ser castigado más que por lo que ha hecho (y no por lo que es) – sirve precisamente para excluir, al margen de cualquier posible finalidad preventiva o de cualquier otro modo utilitarista, el castigo del inocente aun cuando se le considere por sí malvado, desviado, peligroso, sospechoso o proclive al delito, etc[8]”.
Contudo, alerta o autor italiano que a prática de um ato descrito como crime não é suficiente para acionar a punição, visto que da análise do caso concreto, sob a observância das demais garantias, uma excludente poderá ser encontrada[9].
Doravante, traz-se a lume as concepções substancialista e formalista, as quais pretendem explicar o que é ou o quê deve ser concebido como delito.
A primeira acepção, também denominada quia peccatum, é radicalmente repudiada pelo sistema garantista, eis que ao acoplar ao delito elementos subjetivos, ligados à moral e à natureza, ceifa qualquer possibilidade de refutação. Sinteticamente, menciona Ferrajoli que “se trata, en efecto, de una técnica punitiva que criminaliza inmediatamente la interioridad o, peor, la identidad subjetiva del reo y que, por ello, tiene un carácter explícitamente discriminatorio, además de antiliberal[10]”.
Constata-se, então, que a aludida vertente fere frontalmente o princípio da secularização dando guarida a decisões inquisitoriais motivadas por critérios extraordinários ao fato[11].
A segunda concepção, também chamada quia prohibitum, determina que o texto legal atenha-se a dados objetivos ao descrever o tipo penal, a fim de propiciar a sua aferição no lastro probatório. Desnudando-se de aspectos morais, a criminalização primária resultaria num suporte racional, atuando como instrumento limitador do Estado e, ao mesmo tempo, desencadeador dos demais axiomas garantistas.
Destarte, é manifesta a importância do princípio da legalidade na estruturação da ordem jurídica e no controle interventivo penal. Todavia, cabe esclarecer que o sistema de Ferrajoli não se satisfaz com a diretiva em sentido lato, também denominada mera legalidade, mas sim com o princípio em sentido estrito.
Consoante o princípio da mera legalidade, toda norma vigente implica punição, independentemente de seu conteúdo. Tal visão, extremamente mecanicista, é contrária aos preceitos garantistas, posto que o intérprete, ao não questionar a validade da norma, alimenta o ciclo de desigualdade. Contudo, como fiel defensora da vigência, contribuiu para o direito penal, inserindo ao sistema os corolários da irretroatividade da lei e da ultra-atividade.
No que tange ao princípio da estrita legalidade, cumpre ao magistrado, através de uma filtragem axiológica, analisar a validade da norma vigente, a fim de anulá-la ou, então, deixar de aplicá-la quando for considerada inválida[12]. Nesse momento, as concepções substancialistas seriam rechaçadas de plano, haja vista que a diretiva veda inclusive a analogia in malam partem[13]. As formalistas, por seu turno, seriam apontadas como válidas, eis que são internalizadas pela norma regulativa que dispõe sobre o ato.
Desse raciocínio, surge o princípio da regulatividade a fim de vedar as normas constitutivas ou quase-constitutivas que, por serem características de direito penal máximo, apregoam a discriminação e a desigualdade. Por este aspecto, Ferrajoli comenta que no decorrer da história
“[…] han cambiado, obviamente, los tipos y las técnicas constitutivas: no trata ya de la previsión directamente constitutiva de determinadas categorías de personas como desviadas (brujas, herejes, judíos, etc.), sino de la relevancia que las leyes cuasi-constitutivas conceden a condiciones personales cuya comprobación queda confiada a normas constitutivas. Los tipos más importantes en los que se explicita este moderno paradigma cuasi-constitutivo son los de la ‘reincidencia’, el ‘vagabundo’ y la ‘peligrosidad’[14]”.
Da união dos axiomas da legalidade e da retributividade, tem-se o princípio da proporcionalidade, revelado pela máxima poena debet commensurari delicto. De acordo com o corolário, a resposta penal deve ser proporcional ao crime cometido, tanto na fase da predeterminação quanto nas fases da determinação e pós-determinação da pena.
Na predeterminação, o legislador deve guiar-se por critérios objetivos que propiciem a falseabilidade, como a lesividade e a culpabilidade da ação praticada, para que a pena cominada não seja onerosa ou tão mínima a ponto de não intimidar o indivíduo. Com relação à determinação da pena, cabe ao juiz analisar o caso concreto de acordo com as peculiaridades do ato, como a responsabilidade subjetiva e a extensão do dano, a fim de que a decisão seja fundamentada na sua verificabilidade. No que tange à pós-determinação, esta ocorre na execução da pena, com a autorização de benefícios ou imposição de gravames ao detento. Tal fase revela-se inquisitorial, uma vez que os procedimentos baseiam-se em uma avaliação de disciplina cujos parâmetros são contrários às regras que norteiam o convívio social[15].
O princípio da necessidade ou da economia do direito penal possui uma íntima ligação com o princípio da proporcionalidade, eis que considera a certeza da punição, ainda que branda, um estímulo coercitivo mais eficaz do que previsão de severas penas. Para tanto, visa coibir a violência institucional por meio da minimização das penas e das normas, salvaguardando as garantias fundamentais do agente, pois “[…] un estado que mata, que tortura, que humilla a um ciudadano no sólo pierde cualquier legitimidad, sino que contradice su razón de ser, poniéndose al nivel de los mismos delincuentes[16]”.
A quarta equação garantista é o cerne do direito penal. Vinculada ao axioma retro, o princípio da lesividade afasta a incidência normativa e, por conseguinte, repressiva sobre a conduta interna do autor, determinando que somente lesões a bens jurídicos fundamentais sejam consignadas no texto penal[17]. Por este viés, prima pela despenalização de contravenções, delitos bagatelares e de desobediência, deixando a cargo do direito penal somente as penas privativa de liberdade e restritiva de direitos, evitando etiquetamentos desnecessários.
Fundada na laicização do Estado, o princípio da materialidade firma-se na objetividade, devendo ser observado o nexo causal entre a ação externa e o resultado como pressuposto da pena. Desse modo, preconiza ao agente “[…] el derecho de ser uno mismo y a seguir siéndolo – esto es, el derecho a libertad interior y a la propia identidad, malvada, inmoral, o peligrosa[18]”, revelando-se antigarantista a punição amparada na imaterialidade de preceitos como reincidência ou delinqüência habitual[19].
Todavia, a exterioridade da ação lesiva não é suficiente, eis que a pena somente poderá ser aplicada se também for comprovada a responsabilidade subjetiva do agente imputável. Nesta esteira surge o princípio da culpabilidade que, por ser o axioma mais recente na história da civilização, ainda encontra problemas, pois além da culpabilidade não ser mensurável, alguns sistemas insistem em recobri-la de critérios ético-biológicos que propiciam o juízo de valor. Atento à questão, o mestre italiano propõe que a culpabilidade seja aferida pelo ato criminoso praticado, eis que no sistema garantista
“[…] no tienen sitio ni la categoría peligrosidad ni cualquier otra tipología subjetiva o de autor elaboradas por la criminología antropológica o eticista, tales como la capacidad criminal, la reincidencia, la tendencia a delinquir, la inmoralidad o la deslealtad[20]”.
Neste sentido, lamenta que as codificações penais ainda prevejam a reincidência, eis que tal instituto “[…] es un modo de ser más que un modo de actuar, que actúa, indebidamente, como un sustitutivo de la culpabilidad en el que queda expresada la actual subjetivización del derecho penal[21]”.
Encerrada a breve abordagem acerca das garantias penais, passa-se às processuais, responsáveis pela instrumentalização do sistema garantista.
O princípio da jurisdicionariedade se divide nos sentido lato e estrito. Enquanto o lato sustenta que não há “[…] culpa sin juicio (axioma 7)[22]”, o estrito abrange todos os demais axiomas em prol do controle punitivo, primando pela presunção da inocência[23].
Neste diapasão, o princípio da estrita jurisdicionariedade assenta que o julgador deve apreciar as provas de acusação e de defesa cunhadas em aspectos verificáveis, evitando assim, que a decisão seja motivada por resquícios inquisitoriais, pois conforme Ferrajoli
“[…] el objetivo justificador del proceso penal se identifica con la garantía de las ‘libertades’ de los ciudadanos, a través de la garantía de la ‘verdad’ – una verdad no caída del cielo, sino obtenida mediante pruebas y refutaciones – frente al abuso y el error. Es precisamente esta doble función garantista la que confiere valor político e intelectual a la profesión del juez, exigiendo de él tolerancia para las razones controvertidas, atención y control sobre todas las hipótesis y las contrahipótesis en conflicto, imparcialidad frente a la contienda, prudencia, equilibrio, ponderación y duda como hábito profesional y como estilo intelectual[24]”.
Por este viés, é manifesta a importância do princípio acusatório que, por assentar-se no contraditório e na imparcialidade do juiz, garante a isonomia entre as partes[25].
Neste prisma, o princípio do ônus da prova confere à acusação a tarefa de comprovar a culpa do réu mediante critérios que possam ser contestados, eis que a inocência é presumida. Depreende-se então, que o aludido axioma surge como ferramenta crucial no livre convencimento do magistrado, posto que a fundamentação da decisão deve versar somente sobre provas e não sobre a conduta interna do processado[26].
Atendido o princípio supramencionado, advém o princípio do contraditório que constitui a essência do sistema acusatório. Ausente em modelos inquisitoriais, este último axioma imprime uma tonalidade democrática ao sistema garantista, eis que ao assegurar à defesa a refutação da integralidade dos argumentos explanados pela acusação, coíbe implicitamente o juízo de valor[27].
3 O INSTITUTO DA REINCIDÊNCIA NUMA ANÁLISE PELO GARANTISMO
Ao invadir a conduta interna do autor, a referida circunstância agravante demonstra-se adepta ao modelo inquisitorial e contrária ao sistema acusatório, surrupiando as garantias fundamentais. Neste diapasão, o instituto, embora vigente, é inválido, pois enseja a apreciação de elementos subjetivos que sequer podem ser comprovados ou refutados em virtude da sua imaterialidade e da não lesividade a qualquer bem jurídico tutelado pela norma[28], devendo, portanto, ser anulado ou não aplicado, pois conforme magistério de Ferrajoli,
“el juez […] no debe someter a indagación el alma del imputado, ni debe emitir veredictos morales sobre su persona, sino sólo investigar sus comportamientos prohibidos. Y un ciudadano puede ser juzgado, antes de ser castigado, sólo por aquello que ha hecho, y no, como en el juicio moral por aquello que es[29]”.
Por este viés, a teoria garantista traz a lume o princípio da secularização que, embora não esteja explicitado dentre seus axiomas, traduz-se no postulado fundamental de uma sociedade pluralista, na qual as leis devem ser elaboradas e aplicadas sob os prismas da tolerância, da igualdade substancial e da dignidade da pessoa humana, sendo inadmitida a punição de “[…] meros estados de ânimo pervertido, condições pessoais ou comportamentos imorais, perigosos ou hostis […][30]”, eis que esses quesitos internos não integram as cláusulas do pacto social.
Desse modo, depreende-se que a essência secularizadora teve seu berço no ideal iluminista, no qual os dogmas religiosos e o ranço inquisitorial deram espaço à laicização do Estado que se comprometeu a perseguir somente ações ou omissões proibidas em busca da racionalização do controle.
Cumpre ressaltar que na Declaração Universal dos Direitos Humanos o princípio da secularização é ratificado, quando dispõe sobre o gozo de direitos e liberdades “[…] sem distinção de qualquer espécie […] ou qualquer outra condição[31]”.
Por fim, relembra Carvalho[32] que tal princípio também está contemplado na Carta Magna vigente através da combinação dos direitos fundamentais da liberdade de expressão e da manifestação do pensamento, da liberdade de consciência e de crença, da inviolabilidade do direito à intimidade e da vida privada, bem como da liberdade à convicção política ou filosófica[33], configurando-se como mecanismo crucial na limitação do arbítrio punitivo estatal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por todo o exposto, pode-se depreender que, quando o assunto é reincidência, o fiel atendimento às diretivas garantistas parece não encontrar guarida na prática, pois o que se vê é um amontoado de decisões judiciais extremamente calcadas no legalismo infraconstitucional, de modo a cristalizar uma verdadeira aberração aos valores contidos no texto fundamental. Com efeito, Schier comenta que esse é um dos grandes problemas do Judiciário atual que insiste em “[…] aplicar leis do século passado com a cabeça do século passado[34]” negando a força normativa da Constituição.
Diante desse quadro, resta-nos tão-somente inferir que a desastrosa manutenção e aplicação do instituto da reincidência é, à luz da Teoria do Garantismo Penal de Luigi Ferrajoli, uma tortuosa e notadamente antigarantista “[…] homenaje a la equivalencia premoderna entre delito y pecado […][35]”…
Informações Sobre o Autor
Débora de Souza de Almeida
Mestranda em Ciências Criminais e Especializanda em Ciências Penais pela PUCRS. Advogada