Resumo: abordará a natureza de institutos tributários, na aplicação do IPVA, assim como a origem histórica desse imposto, a fim de questionar a constitucionalidade da apreensão de veículo automotor, por inadimplemento de obrigação tributária, por mera fiscalização administrativa, sem o devido processo legal.
Palavras-chave: IPVA; sanção tributária; apreensão; proibição de confisco; liberdade de locomoção;
Abstract: This paper will approach the nature of tax institutions, in light of the application of IPVA – Automobile Property Tax, with means of questioning the unconstitutionality of the apprehension of automobiles, for the non payment of taxes, by mere administrative inspection, not following the due process of law.
keywords; IPVA; tax sanction; apprehension; no forfeiture clause; freedom of locomotion;
Sumário: Introdução; 1. Tributo; 1.1 Histórico do IPVA – Imposto Sobre Propriedade de Veículos Automotores; 1.2 Critério Material da Regra Matriz De Incidência no IPVA; 1.3 Sanções Pelo Inadimplemento do IPVA; 2. Direitos fundamentais à liberdade de locomoção e ao devido processo legal; 2.1 Direito À Locomoção; 2.2 Direito Ao Devido Processo Legal 3. Princípio constitucional do não confisco; 3.1 Repartição Constitucional de Competências; 3.2 Previsão Constitucional do Princípio do Não Confisco; 3.3 Inconstitucionalidade do Art. 230, III do Código de Trânsito Brasileiro; Conclusão;
INTRODUÇÃO
A ordem constitucional brasileira consagra direitos como os de propriedade, liberdade de locomoção e do devido processo legal. À contramão desses valores encartados na Carta Magna, o Código de Trânsito Brasileiro, assim como particularmente a legislação paranaense sobre o IPVA, autorizam a apreensão e remoção de veículo automotor, no caso de, em fiscalização estatal, se verifique que há débitos tributários sobre a propriedade o veículo.
Busca-se uma visão positivista, teleológica e sistêmica da questão, a qual demonstra a inconstitucionalidade no procedimento dispensado pelo aparato policial do Estado.
1 TRIBUTO
Segundo Carrazza[1], tributo “é a relação jurídica que se estabelece entre o Fisco e o contribuinte (pessoa colhida pelo direito positivo), tendo por base a lei, em moeda, igualitária e decorrente de um fato lícito qualquer”.
Dentre o gênero tributo, encontra-se a espécie imposto. Para Geraldo Ataliba[2], imposto “é uma modalidade de tributo que tem por hipótese de incidência um fato qualquer, não consistente numa atuação estatal”.
Não se atendo a essas definições, que nos fornecem grande substrato, deve-se operar essa relação jurídica com o olhar voltado a princípios do direito tributário. Como exemplos, temos o princípio republicano, que nos remete à igualdade material dos indivíduos, e seus reflexos tributários, e o princípio federativo, que nos apresenta a forma de nosso Estado, e destinado a dar corpo à distribuição da atuação do Fisco.
Outros princípios, não de menor importância, como o princípio do não-confisco, compõem o rol delineado pela doutrina tributária, e que se mostrarão de grande relevância ao tema abordado.
1.1. HISTÓRICO DO IPVA – IMPOSTO SOBRE A PROPRIEDADE DE VEÍCULOS AUTOMOTORES
No decorrer do tempo, o IPVA surgiu como imposto, ou seja, desvinculado de atividade estatal específica. Outra opinião salutar, ainda que não acolhida pelo STF, é a de que a expressão veículo automotor abrange embarcações e aeronaves. O Estado Social e Republicano prima pela igualdade material e o bem estar de seus contribuintes, e desonerar quem possui maior capacidade contributiva é ignorar todo um sistema jurídico, infelizmente.
Relacionada a essa questão, a história dos tributos que antecederam o IPVA explica essa celeuma.
Ainda sob a égide constitucional de 1967, existiam taxas em nível federal, estadual e municipal, destinadas à conservação das estradas de rodagem, cobradas exclusivamente sobre automóveis. Posteriormente, dada à cobrança cumulativa dos dois entes do pacto federativo e do município, a União, em substituição àquelas, criou a Taxa Rodoviária Única.
Deve-se notar que o legislador errou ao definir esses tributos como taxas. Tal espécie de tributo é destinada à prestação de serviço público ou ao exercício do poder de polícia do Estado.
No entanto, anota Roque Carraza[3], que, “(…) no Brasil, ao contrário do que se dá em outros países, a utilização de bens de domínio público não é uma das hipóteses de incidência possíveis das taxas.”
Assim, as estradas de rodagens deveriam ser objeto de outra modalidade de tributo. Sob a atual ordem constitucional, a espécie de tributo que mais se aproxima é a de contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas. No entanto, o incremento imobiliário, constante do texto constitucional de 1967[4], e implícito no de 1988, não se coaduna com a cobrança dos proprietários de veículos automotores. Assim, a coadunação existente é da cobrança da contribuição em virtude de obra pública.
A título de esclarecimento, voltando à decisão pela não incidência de IPVA sobre embarcações e aeronaves, o STF dispensou de interpretação histórica ao embasamento de sua tese. Ou seja, infelizmente, baseou-se em tributo definido erroneamente e que em verdade não relegou a atribuída herança ao novo tributo, insculpido constitucionalmente.
1.2. CRITÉRIO MATERIAL
A conduta ou ação inserida na órbita de incidência do imposto, representada pela junção de um verbo e seu complemento, é a representação do critério material da hipótese de incidência tributária.
Carvalho[5] explica acerca do critério material: “[…] há referências a um comportamento de pessoas físicas ou jurídicas, condicionado por circunstâncias de espaço e de tempo.”
Dentre o vasto número de critérios materiais insertos no ordenamento jurídico brasileiro, o atinente ao IPVA finda dessa maneira: ser proprietário de veículo automotor.[6]
1.3. SANÇÕES PELO INADIMPLEMENTO DO IPVA
Delineado o critério material, cabe aos estados-membros da federação e ao Distrito Federal esmiuçarem a matéria, através de sua competência legislativa, atribuída constitucionalmente.
Dentre os comandos legais dispostos, estão os de caráter sancionador. Ou seja, a lei deve prever punição a quem não cumpra com os deveres decorrentes da constituição do critério material de hipótese tributária. No caso do IPVA, o contribuinte deve estar atento às obrigações documentais e de segurança que o Estado institui, para que possa se locomover com o seu veículo automotor de maneira regular pelas vias públicas.
As punições vão das de caráter pecuniário e administrativo, às de viés restritivo de circulação, não do contribuinte, mas sim do veículo que o mesmo possui.
Uma delas é a proibição de licenciamento ou transferência de propriedade de veículos automotores, em caso de pendência de quitação integral do imposto devido nos exercícios anteriores e do exercício corrente[7].
Assim, a falta de pagamento do IPVA impede que o proprietário do veículo, ainda que novo, em decorrência de transferência de propriedade de outrem, realize o registro do veículo em seu nome. O reflexo prático é o de que, no banco de dados do DETRAN, o antigo dono irá permanecer como proprietário do veículo até que sejam pagos todos os impostos e demais obrigações tributárias pendentes.
Outra punição ao proprietário de veículo automotor que não cumpra com os deveres instrumentais a ele ligados, ou seja, que não cumpra os procedimentos administrativos previstos à regulamentação da propriedade desse bem, é a da apreensão do veículo.
O Código de Trânsito Brasileiro considera falta gravíssima do proprietário, conduzir ou deixar que conduzam seu veículo automotor sem o devido registro e licenciamento. A natureza da falta se revela nas suas punições: imposição multa de 180 UFIR(s), sete pontos na carteira nacional de habilitação, apreensão e remoção do veículo para o DETRAN, ou outro órgão competente.[8]
2 DIREITOS FUNDAMENTAIS À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO E AO DEVIDO PROCESSO LEGAL
Este tópico visa conceituar os direitos fundamentais à liberdade locomoção e ao devido processo legal, analisando sua pertinência no presente feito.
2.1 DIREITO À LOCOMOÇÃO
É consagrada constitucionalmente no art. 5º, XV, a liberdade de locomoção, o direito de ir e vir, com a previsão de que todo cidadão, poderia se locomover, entrar, sair e permanecer no país com seus próprios bens.
Pimenta Bueno[9] (apud MORAES. 2006, p. 112), grande constitucionalista, comenta, acerca da liberdade de locomoção:
“posto que o homem seja membro de uma nacionalidade, ele não renuncia por isso suas condições de liberdade, nem os meios racionais de satisfazer a suas necessidades ou gozos. Não se obriga ou reduz à vida vegetativa, não tem raízes, nem se prende à terra como escravo do solo. A faculdade de levar consigo seus bens é um respeito devido ao direito de propriedade.”
José Afonso da Silva[10] (2004) o considera o centro gravitacional da liberdade da pessoa física no ordenamento jurídico. Alexandre de Moraes[11] (2006, p.112) divide em quatro vertentes o citado direito:
“a) direito de acesso e ingresso no território nacional
b) direito de saída do território nacional
c) direito de permanência no território nacional
d) direito de deslocamento dentro do território nacional”
Para os fins do presente estudo, considera-se que a,b e c não são de interesse para o deslinde da questão abordada, restando então a análise do direito de deslocamento dentro do território nacional, que para José Afonso da Silva de trata da liberdade de circulação[12].
Acerca do direito à livre circulação dentro de um território cabe aqui citar o renomado autor espanhol Pedro Collado[13]:
“[…] independentemente do meio através do qual se circula por uma via pública, o transeunte terá um direito de passagem e de deslocamento por ela, por constituir esta forma de deslocamento a manifestação primária e elementar do direito de uso de uma via.”
Ou seja, pode-se inferir do apresentado até aqui que o direito à livre locomoção e conseqüentemente sua espécie, o direito à livre circulação, são garantias fundamentais do cidadão, oponíveis erga omnes.
Cabe aqui, também, lembrar o entendimento abarcado pelo Superior Tribunal de Justiça[14] de que a liberdade é indisponível no Estado de Direito Democrático.
Também neste diapasão, vale lembrar que a via correta para proteção ao direito de locomoção do cidadão jurisdicionado é a via do habeas corpus, o chamado remédio heróico, que agora é constitucionalmente tutelado, dentro do art. 5º, LXVIII.
Não se olvide também, que o inc. constitucional citado, trata-se de norma de eficácia contida, uma vez que prevê uma lei infraconstitucional para regular a matéria, de maneira mais extensa. Frise-se que o fato do mandamento constitucional ter eficácia contida o permite ter aplicabilidade imediata, apenas abrindo espaço para que a lei ordinária estabeleça os regulamentos necessários.
2.2 DIREITO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL
O direito ao devido processo legal é consagrado pela Constituição Federal em seu art. 5º, LIV e LV, que dispõem que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal e ao garantir a qualquer acusado em processo judicial o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Todas estas garantias estão estabelecidas taxativamente no texto constitucional, algumas com ressalvas, evidentemente.
Assim, sob a égide constitucional o devido processo legal pressupõe o contraditório (paridade de armas, inafastabilidade do controle jurisidicional, etc), a garantia da ampla defesa (defesa técnica e autodefesa), o duplo grau de jurisdição, a proibição das provas ilícitas, etc.,
3 PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO NÃO CONFISCO
Antes de adentrar o tópico supra cabe análise sobre a quem compete legislar e tributar nas questões observadas no presente estudo.
3.1 REPARTIÇÃO CONSTITUCIONAL DE COMPETÊNCIAS
A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988 remontou o Estado Federal, como se lê no art. 18, abaixo transcrito:
“Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.”
No sistema federativo, como o brasileiro, por não existir um Estado central, que detém todos os poderes da nação, torna-se necessária a repartição de competências, para fins de melhor administrar a coisa pública.
Na problemática apresentada (que será atacada adiante) exsurge a questão da divisão das competências legislativas e tributárias. Conforme o art. 22 da Carta Magna, que estabelece as competências legislativas privativas[15] da União, esta será competente para legislar sobre as diretrizes da política nacional de transportes, nos termos do inc. IX. Em virtude de ter recebido esta competência, a União editou a norma 9.503/97 – Código de Trânsito Brasileiro.
A competência para instituição do tributo sobre a propriedade de veículos automotores também nasce da Constituição. Em seu art. 155, III a Lei Maior estabelece que caberá aos Estados Federados e ao Distrito Federal a instituição de imposto sobre a propriedade de veículos automotores
Trocando em miúdos a competência legislativa sobre o trânsito será privativa da União, podendo ser delegada aos Estados e a competência tributária em relação à propriedade de veículos automotores será dos Estados ou do Distrito Federal.
3.2 PREVISÃO CONSTITUCIONAL DO PRINCÍPIO DO NÃO CONFISCO
A proibição ao Estado de utilizar-se dos tributos como efeito de confisco contra seus súditos, é no ordenamento jurídico pátrio considerada como verdadeiro princípio que rege o sistema constitucional tributário, estando positivado em nossa Carta Magna:
“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
IV – utilizar tributo com efeito de confisco;”
Portanto, o legislador constituinte originário, com o fim de evitar arbítrio do Estado em relação ao cidadão, decidiu limitar o poder de tributar do Estado. O constitucionalista José Afonso da Silva[16] chama este corolário de princípio da proporcionalidade razoável, salientando que o Estado não pode retirar do contribuinte mais do que o razoável, ou de seu patrimônio, ou de sua renda.
Roque Carrazza[17], de maneira díspare porém complementar, associa o princípio do impedimento da tributação para efeito de confisco com o princípio da capacidade contributiva, salientando que tal princípio exige do legislador equilíbrio quando da edição de norma tributária, com vias de evitar injustiças. Cabe aqui pinçar trecho do renomado tributarista:
“[…] os recursos econômicos indispensáveis à satisfação das necessidades básicas das pessoas (mínimo vital), garantidas pela Constituição, especialmente nos seus arts. 6º e 7º (alimentação, vestuário, lazer, cultura, saúde, educação, transporte etc), não podem ser alcançados pelos impostos.”
Hugo Brito Machado[18] (2004), estudioso do tema tributário, assevera que cabe ao Poder Judiciário verificar, quando provocado, a ocorrência de confisco ou não, frisando ainda que o princípio não deveria ser aplicado no caso das multas por inadimplemento.
Paulo de Barros Carvalho (2004, p. 162), com seu já tradicional ceticismo, observa que há extrema dificuldade na identificação dos casos onde o tributo tem efeito de confisco. Sua observação colacionada a seguir ilustra um pouco essa posição adotada:
“Intricado e embaraçoso, o objeto da regulação do referido art. 150, IV, da CF, acaba por oferecer unicamente um rumo axiológico, tênue e confuso, cuja nota principal repousa na simples advertência ao legislador dos tributos, no sentido de comunicar-lhes que existe limite para carga tributária.”
Fica então o questionamento: como, quando e de que maneira ocorre o confisco como efeito da tributação? Difícil dizer. Todavia, como pudemos ver anteriormente, o Código de Trânsito Brasileiro, em seu art. 230[19], dita que a condução do veículo sem este estar devidamente licenciado acarreta apreensão do veículo. Pois bem, o que isso teria a ver com nossa discussão presente aqui?
O professor da Universidade Federal de Minas Gerais, Gladston Mamede[20], em sua obra sobre o IPVA – Imposto Sobre a Propriedade de Veículos Automotores, pode ajudar na resolução da questão:
“A rigor, portanto, o tráfego pelas vias terrestres depende de licença anual, e essa, por seu turno, está vinculada ao recolhimento do IPVA – Imposto Sobre Propriedade De Veículos Automotores. […] as disposições anotadas no Código de Trânsito Brasileiro possuem fins tributários. Afinal, para além da inspeção veicular, disposta no art. 104 do Código de Trânsito Brasileiro, não há na renovação do licenciamento mais do que uma conseqüência do recolhimento do IPVA – Imposto Sobre Propriedade de Veículos Automotores. Questionável, portanto, a disposição, na medida em que revela a intenção do legislador de forçar o recolhimento do imposto por vias outras que não as próprias e permitidas.”
Começa a delinear-se a inconstitucionalidade da norma que ordena apreensão do veículo não licenciado, questão esta que será analisada mais à frente.
3.3 INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 230, III DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO
A punição de apreensão do veículo, dentre as indicadas pela lei no caso de inadimplemento do licenciamento e registro do veículo automotor, a priori, é um erro, no que se refere à correspondência da infração e da pena.
Isso por que, a infração possui natureza tributária. Assim sendo, a medida cabível é a cobrança do débito tributário, pelos meios legais de execução fiscal, respeitando o devido processo legal.
Essa distorção constritiva desrespeita de forma flagrante princípios constitucionais, como o da razoabilidade, do devido processo legal, propriedade [21], e comandos da Carta Maior, tais quais, os insertos nos arts. 150, IV e V [22], que regem a atuação fiscal do Estado.
De modo que essa apreensão, procedida em seara administrativa, sem o devido processo legal garantido a todo indivíduo e seus bens, é inconstitucional.
A respeito de eventual justificativa do Estado, de que a apreensão do veículo é necessária, pois ele estaria sem o devido licenciamento, e portanto sem a respectiva vistoria de segurança, tornando-se perigo aos demais condutores de veículos, há que se observar a seguinte realidade: o licenciamento de qualquer veículo automotor somente se dá com o devido pagamento do IPVA do mesmo. No entanto, a feitura daquele se dá em data diferente do pagamento desse. Assim, caso o licenciamento não haja vencido, e o IPVA sim, essa justificativa cairia por terra, demonstrando o excesso do aparato fiscal do Estado.
Em questão com algumas similaridades, pôde o Supremo Tribunal Federal se manifestar. Em síntese, tratava-se de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN 1.654-7 AP) que questionava inconstitucionalidade, por falta de competência legislativa estadual sobre trânsito, de norma do Código Tributário do Amapá que impedia a apreensão do veículo por falta de pagamento do IPVA, apenas não autorizando o licenciamento.
Sendo relator o Ministro Maurício Corrêa, este aduziu que a norma estadual não invadiu a competência privativa da União de legislar sobre trânsito, sendo a votação unânime. O trecho a seguir é de muita utilidade para deslinde da problemática.
“Inaceitável, como visto, que o simples débito tributário implique apreensão do bem, em clara atuação coercitiva para obrigar o proprietário do veículo a saldar o débito. O ordenamento positivo disciplina as formas em que se procede à execução fiscal, não prevendo, para isso, a possibilidade de retenção forçada do bem. Correta a lei, portanto, ao obstar a ação estatal que claramente seria abusiva, ilimitando a sanção ao não licenciamento, tema afeto à regularidade do veículo para fins de circulação e regulado por lei federal.”
Pois bem, nota-se que o próprio Supremo Tribunal Federal observa que é inaceitável que o débito tributário implique na apreensão do bem. Entretanto, mesmo com este entendimento, segue-se ocorrendo o confisco do veículo automotor devido à existência de débito tributário (de maneira indireta[23]).
Trata-se do mais óbvio abuso estatal. O art. 230, III fere, letalmente, o princípio constitucional do não confisco e também do devido processo legal, uma vez que condiciona um direito (direito à livre circulação) à quitação de um tributo, possibilitando, para piorar ainda mais, a apreensão da propriedade caso o citado tributo não se encontre em dia.
A sanção para o contribuinte deveria consistir apenas na impossibilidade da Administração Pública expedir a Certidão Negativa de Débitos e a inscrição em dívida ativa do montante devido, com a posterior execução fiscal por título executivo extrajudicial, ficando claro que qualquer forma diferente dessa implica em arbítrio estatal, violando os preceitos constitucionais,
CONCLUSÃO
Conforme exposto, o IPVA é tributo previsto constitucionalmente, cabendo a competência tributária aos Estados-membros da Federação e ao Distrito Federal. Foi precedido pela TRU no ordenamento pátrio. Após tal breve explanação, foi abordado, tangencialmente, o critério material da regra-matriz de incidência do IPVA e as sanções previstas no caso de inadimplemento.
Buscando já a solução da problemática, foram apresentados dois direitos fundamentais previstos na Carta Magna, o direito à livre locomoção e o direito ao devido processo legal. Com isto, viu-se o princípio do não confisco.
Conforme o exposto pôde-se notar que o art. 230, III do Código de Trânsito Brasileiro está eivado de inconstitucionalidade, uma vez que força o contribuinte a pagar o tributo, sob pena de confisco do bem tributado, ferindo assim diversos princípios constitucionais.
[1] CARRAZA, Antonio Roque. Curso de Direito Constitucional Tributário. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 407.
Informações Sobre os Autores
Leandro Pires de Araújo
Advogado em São Paulo, bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina – UEL
Rafael de Souza Borelli
Advogado no Paraná; bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina – UEL; Pós-graduando em Direito Penal pela Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná – FEMPAR
Ricardo Melchiori Pereira
Advogado no Paraná, bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina – UEL