Resumo: Neste trabalho buscou-se fazer uma exposição acerca do Direito de Superfície. Sua origem romana, previsão, extinção e retorno ao ordenamento jurídico brasileiro, que se operou pela implementação do Estatuto da Cidade. Viu-se que a superfície assumiu caráter de Direito Real, opondo-se às suas origens negociais. Traçaram-se linhas nesse sentido visando a demonstrar como se operou tal transformação. Na mesma esteira falou-se de como o instituto caminhou para ostentar status de autônomo. Especial atenção se dedicou ao Direito de Superfície no Estatuto da Cidade, já que coube a este diploma trazer de volta tal instituto ao ordenamento brasileiro. Falando em trazer de volta se consignou o fato de ter sido ignorada a superfície por 137 anos. A partir do inscrito no Estatuto da Cidade chegou-se ao conceito e à natureza jurídica do Direito de Superfície. Neste mesmo diploma se embasou a discussão sobre os direitos e deveres oriundos do instituto em tela. Demonstrou-se que o instituto em exame tem muito para acrescer à realidade de ocupação do solo urbano caso seja efetivado. Por isso se destinou um tópico para referenciar como outro instituto de política citadina – o IPTU Progressivo Extrafiscal – pode somar com as possibilidades erigidas da superfície. Foi ainda preocupação do trabalho a questão da temporalidade do Direito de Superfície. Neste ponto buscou-se na legislação alienígena dispositivos para elucidar tal discussão, onde se destacou as vivências mexicana e portuguesa. No terceiro objetivou-se cuidar da Função Social da Propriedade, já que o Direito de Superfície é instrumento que visa ao seu atendimento. Por isso se discutiu sobre os meios de que dispõe o Poder Público Municipal para fazer com que o Direito em tela seja realmente implementado em nosso país. De um modo geral se socorreu na feitura deste trabalho dos enunciados históricos e ponderações doutrinárias, marcas do estudo encerrado. Não se valeu por ocasião da redação das dicções da jurisprudência em razão de o tema ser muito novo e não ter havido tempo hábil para a manifestação de nossos tribunais.
Sumário: Introdução 1. Direito de superfície: breve histórico. 2. O direito de superfície no estatuto da cidade. 2.1. Conceito e natureza jurídica. 2.2. Dos direitos e deveres. 2.3. Constituição e transmissão do direito de superfície 2.3.1. Contrato 2.3.2. Testamento. 2.3.3. Usucapião. 2.4. Temporalidade do direito de superfície. 2.5. Proteção do direito de superfície .2.6. Extinção do direito de superfície: causas e efeitos. 3. Função social da propriedade 3.1. Propriedade e capitalismo 3.2. A função social no ordenamento jurídico brasileiro. 3.3. A propriedade urbana e sua função social. Conclusão. Bibliografia.
INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas as condições de vida nas cidades brasileiras apresentam-se de forma absolutamente degradada, refletindo mazelas do intenso processo de urbanização desordenado pelo qual passou o país. Nesse contexto emerge o Direito Urbanístico, consolidado com a promulgação da Constituição Federal de 1988. A cargo desta surge o Estatuto da Cidade – Lei n. 10257/01 –, trazendo de volta[1] ao ordenamento jurídico brasileiro o Direito de Superfície.
Com o Estatuto da Cidade visa-se à ordenação do solo urbano, por conseguinte, a arrumação da própria propriedade imobiliária nas cidades. Tal fenômeno é possível por meio da sua conformação a uma Função Social, garantindo desta feita o pleno exercício do Direito à cidade para todos os habitantes.
A questão da propriedade urbana é tema central do presente trabalho. Por isso não se tratará desta a luz do novo Código Civil – cujos artigos referentes ao Direito de Superfície se transcreveu em anexo –, já que em relação à lei de 2001 a primazia deste código consiste em aventar o Direito em estudo também no trato da propriedade rural, que pelas limitações do trabalho não será debatida. Ademais, com fundamento na obra do professor André Franco Montoro[2], entendemos vigente o Estatuto da Cidade no que diz respeito às locuções sobre o Direito de Superfície, já que sua sistemática é convergente com a encontrada no novo Código Civil.
Falar de propriedade nos dias de hoje implica necessariamente em se dirigir o foco para a Função Social da Propriedade, em oposição ao absolutismo liberal vigente até então. No estágio atual da sociedade não mais se justifica a propriedade de per si, posto estarmos insertos no que se chama Estado Social de Direito.
No panorama jurídico-político atual, permeado por desigualdades sociais, justifica-se a idéia de preocupação com a eficácia social da propriedade. Assim mostra-se relevante o estudo do Estatuto da Cidade, marco legislativo de um novo regime jurídico para a propriedade imobiliária.
Para que enfrentemos o panorama vislumbrado dividimos a presente monografia em três capítulos. Em todos estes se procurará apontar como o instituto da superfície tem elementos para acrescer a realidade social. A linha de abordagem do trabalho consistirá, pois, no trato deste Direito, sua natureza jurídica e confrontação com a Função Social, bem como sobre as formas para sua implementação.
Para que se alcance o objetivo propugnado falar-se-á no primeiro capítulo da história do Direito de Superfície. No segundo será preocupação do trabalho a inserção deste no Estatuto da Cidade, seu conceito e natureza jurídica. Cuidar-se-á também dos direitos e deveres referentes a cedente e cessionário e dos modos de transmissão do direito em comento.
Ainda apresentando o trabalho referenciamos que será também objeto do presente a temporalidade do direto em estudo, bem como a proteção conferida a este por nosso ordenamento. Na linha de tutela do instituto chegamos, por fim, à extinção do Direito de Superfície.
No terceiro capítulo o enfoque do trabalho será a Função Social da Propriedade. Sendo certo que a propriedade é mais bem afinada ao capitalismo, esta será cuidada sob a perspectiva deste sistema político. Falar-se-á também desta no ordenamento jurídico brasileiro, inclusive sobre os meios de que dispõe o Poder Público para que a Função Social se torne algo efetivo.
1 DIREITO DE SUPERFÍCIE: BREVE HISTÓRICO
O Direito de propriedade é o mais amplo dos Direitos Reais e pode ser conceituado, consoante lição do mestre Orlando Gomes, como “um Direito complexo, se bem que unitário, consistindo num feixe de Direitos consubstanciados nas faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa que lhe serve de objeto”[3].
Uma das especializações que a abstração jurídica concebeu ao se estudar a propriedade foi o Direito de Superfície, integrante do ordenamento brasileiro pela recepção de sua previsão no Direito português com a “Lei de 20 de outubro”[4], datada de 1823. Assim vigeu esse instituto até 1864, quando, ao ser ignorado na Lei n. 1257[5] deixa de fazer parte da ordem jurídica nacional.
Afora a vivência brasileira do instituto em comento, mostra-se necessário se tratar do Direito de Superfície sob a perspectiva da história mundial. Vejamos, pois.
O instituto da Superfície, originado nos arrendamentos de longo prazo, apareceu no Direito Romano quando se passou a admitir a possibilidade de coexistirem separadamente a propriedade do solo e a propriedade das construções e plantações, o que ocorreu, de acordo à professora Roseane Pinto, no período chamado romano-helênico[6].
O referido fenômeno teria sido possível com o reconhecimento jurídico de coisas incorpóreas que ensejam a limitação do domínio, como as servidões, o usufruto e o uso. Admitiu-se assim a existência de iura in re aliena, expressão que pode ser bem traduzida como “Direito em coisa alheia”.
Um elemento fático que contribuiu para o desenvolvimento da abstração jurídica romana foi a extensão deste império, o maior que a história relata. Tal crescimento permitiu o surgimento de grandes propriedades, que, para se justificarem, demandavam o cultivo. Do contrário seriam propriedades sem nenhuma serventia.
A necessidade do cultivo, associada à impossibilidade de sua feitura direta pelos proprietários, fez com que se desenvolvesse o mecanismo do contrato de locação. A princípio esse era limitado no que dizia pertinência ao tempo de vigência, precisamente ao lapso de cinco anos.
A baliza referida no parágrafo anterior acabou demonstrando não ser o contrato de locação, nesses termos, eficaz o bastante para a realização de todo o trabalho necessário, pois não resguardava adequadamente os Direitos do locatário[7], que, quando fosse começar a ter benefícios com o pactuado se viria obrigado a abandonar o principal – o terreno – bem como o que nele edificara, construíra ou plantara.
Além dos problemas quanto às terras agrárias os romanos enfrentavam também problemas urbanos, muitos desses oriundos do crescimento citadino desordenado. Tal crescimento começou a demandar o aumento do numero de construções urbanas.
A referida demanda – associada ao desenvolvimento da arquitetura e da engenharia, em boa parte trazidas dos povos dominados – permitiu o surgimento das construções verticais, fomentando a existência de edifícios de vários andares e compartimentos. Ocupados por várias famílias acabaram por gerar um tipo comum de moradia chamada insulae[8], precursora do que hoje costumamos chamar de condomínios verticais.
A existência fática dos “condomínios verticais” em Roma, gerou um problema de ordem prática, já que vigia entre os romanos a premissa de que o acessório seguiria ao principal. Assim tudo o que fosse acrescentado ao solo sob forma de plantações ou construções pertenceriam ao proprietário deste, não podendo ser objeto de transferência, salvo junto do terreno[9].
Essa premissa era uma tradição costumeira. Tivera origem e se arraigara na vivência popular. A essa altura, contudo, mostrava-se ser verdadeiro entrave ao desenvolvimento urbano, pois quem construísse em solo alheio, mais dia menos dia, ficaria sem sua construção, que deveria seguir sempre ao principal: o terreno!
A vivência dessa premissa, uma das tradições mais antigas do povo romano, de certa forma, dificultava a solução dos problemas[10] relativos ao cultivo e a moradia. Começou-se a perceber assim que esse conceito tradicional na verdade era antieconômico[11], e que por isso devia se ajustar às transformações, como pressuposto inclusive de desenvolvimento e manutenção do próprio império.
Para usar uma linguagem atual pode-se dizer que o império romano foi muito estatizante. Por isso, na medida em que foi se desenvolvendo, “o número de propriedades particulares se rarefez”[12].
Neste contexto surgiu a idéia de concessão “do Direito de edificar em solo público e gozar da construção, perpetuamente ou não”[13], que se operacionalizava mediante ao pagamento do solariun, uma espécie de locação, que, a luz do Direito Administrativo atual chamar-se-ia concessão, nos moldes do que se faz com as estradas de rodagens. Havia ainda a possibilidade de que esse pagamento fosse feito em uma quota única, onde se identifica semelhança com o instituto da privatização. Com essa vivência romana nasceu a modalidade especial de locação tendo por objeto o solo.
Vê-se o nascer de um novo tipo de locação: a da superfície. É de se destacar que essa apresenta conotações próprias, visto que o locatário passa a ser visto como superficiário. Essa mudança ensejou os primeiros movimentos no sentido de se afastar o que viria a ser o “Direito de Superfície” da noção obrigacional da locação, passando a haver uma aproximação desse com os chamados Direitos Reais, representando verdadeira mudança de paradigma. Percebe-se com facilidade que o Direito de Superfície foi inspirado no Direito romano, associando em razão do próprio decurso da história as adaptações que o tempo o permitiu agregar.
Rony Dreger, comentando a evolução histórica do instituto, consigna que o mesmo “não foi recepcionado pelo Código Napoleônico”[14]. Aponta, porém, ter havido recepção do mesmo em muitos países da Europa, como ora se destaca: “na Alemanha (§§ 1012 e 1017, alterados pela Lei de 04/03/1919), Holanda, Bélgica, Itália (art. 952 a 956 do CC), Portugal (arts. 1524 e 1542 do CC), Espanha (Dec. Legislativo nº 1/1992 que alterou a Lei do Solo de 1956 estabelecendo o artigo 287 nº 1) e Suíça.”[15]
Podemos apontar assim que o Direito de Superfície é instituto bastante antigo, fruto direto da necessidade de acomodação de um número crescente de pessoas em espaços limitados. Exatamente por isso se mostra absolutamente contemporâneo, já que, tal como os romanos, vive-se nos dias de hoje a necessidade de se conjugar uma população urbana crescente a um número limitado de moradias.
2 O DIREITO DE SUPERFÍCIE NO ESTATUTO DA CIDADE
A Constituição Federal em vigor, no artigo 5º, cláusula pétrea que é, assegura ser a propriedade Direito Fundamental. Sua primazia consistiu em introduzir o imperativo da Função Social. Além disso, se preocupou com os problemas das cidades, destinando a estas um capítulo específico intitulado “Da Política Urbana”, que acabou refletindo na feitura do Estatuto da Cidade.
Consoante lição de Miguel Gómez[16] a política urbana deve, para estar de acordo aos ditames constitucionais, observar aos seguintes liames:
“a) a subordinação da propriedade urbana ao cumprimento de sua Função Social, impondo inclusive o parcelamento e a edificação compulsória dos terrenos urbanos não edificados; b) a definição e concretização legal pela União das diretrizes gerais da política urbana; c) a previsão de utilização geral da desapropriação com fins urbanísticos; d) a atribuição ao Poder Público municipal a competência básica para definir a política de desenvolvimento urbano de cada cidade, com a finalidade de alcançar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes; e) a utilização do planejamento urbanístico, particularmente do plano diretor, como instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana; e, f) a instituição da usucapião especial no solo urbano para fins de moradia”.[17] (destacou-se)
A fim de dar efetividade ao programado na Constituição é que surgiu o Estatuto da Cidade. O Congresso Nacional elaborou tal lei visando sempre à regulação da execução de políticas urbanas através do estabelecimento de “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”, como anuncia o artigo primeiro da lei em comento.
No artigo segundo da mesma lei se declara que “a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana”. Para que esse objetivo seja alcançado determina quais instrumentos jurídicos serão utilizados, como o instituto da desapropriação, das servidões e limitações administrativas; da concessão de uso especial para fins de moradia. Aventa ainda a usucapião especial de imóvel urbano, o Direito de preempção e o Direito de Superfície.
O Estatuto da Cidade é uma lei especial que consagra um micro sistema a que a doutrina se acostumou denominar de Direito social, já que envolve de um lado o Direito público e do outro o Direito privado, predominando aquele, mas com a preocupação de estabelecer entre eles relação harmônica.
Surge o estatuto examinado em meio à necessidade de se enfrentar as novas realidades e problemas jurídicos de grandes complexidades social, econômica e política da vida contemporânea. Por isso mesmo traduz mudanças valorativas e princípios que caracterizam a atual organização social, reflexos do atual Estado democrático de Direito.
Para se alcançar melhor desenvolvimento e ordenação na expansão urbana, o diploma em comento determina os instrumentos de política urbanística de que se pode valer o Poder Público. Com estes, certamente, poderá se assegurar adequada utilização do solo urbano.
2.1 CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA
No artigo 21, § 1º, a lei sob exame explicita ser o Direito de Superfície a faculdade de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato respectivo, atendida a legislação urbanística. Nesse contexto poder-se-ia tecer uma crítica à utilização da nomenclatura superfície, já que o legislador deu a essa uma acepção muito mais lata do que indica o senso comum.
Doutrinariamente apontamos com Ricardo Lira o conceito segundo o qual é o Direito de Superfície “real autônomo, temporário ou perpétuo, de fazer e manter construção ou plantação sobre ou sob terreno alheio”[18]. Seria a propriedade da construção ou plantação, considerada em separado do solo. Existiriam duas propriedades: a propriedade do solo de um lado e a propriedade das construções ou plantações de outro.
Em Clóvis Beviláqua lê-se que o Direito de Superfície é “Direito Real de construir, assentar qualquer obra, ou plantar em solo de outrem.”[19] Orlando Gomes, a seu turno, o define como “Direito Real de ter uma construção ou plantação em solo alheio”[20]. Por fim Carlos Maximiliano o concebe como um “Direito Real, consistente em ter edifício próprio ou plantações sobre terreno alheio.”[21]
Conceituar Direito de Superfície é trabalho árduo, uma vez que sua definição e extensão variam de acordo com a legislação a se analisar. Assim, há países que só o admitem em se tratando de edificações, ao passo que outros tão-somente sobre plantações, sendo de se destacar que a maioria o aceita em ambos os casos. Da mesma forma há discussões sobre a possibilidade deste abranger o subsolo, o que nos parece pouco técnico em se considerando o vocábulo superfície em sua exata acepção.
Na linguagem coloquial superfície seria a camada superficial do solo. No sentido jurídico tradicional, todavia, é tudo o que está acima[22] do solo, conforme a lição esposada por Messineo, onde se destaca que “superfície não é o solo que está em contato com o espaço atmosférico, um extrato finíssimo e, em rigor, sem espessura, mas o que emerge do solo.”[23]
Para a perfeita compreensão da extensão do instituto em tela faz-se mister a análise das definições extraídas de diplomas legais alienígenas a adotar o Direito de Superfície. Assim cumpre trazer à colação o disposto no Código Civil português em seu artigo 1524, onde se afirma que “o Direito de Superfície consiste na faculdade de ter ou manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio, ou de nele fazer ou manter plantações”[24].
Ainda na legislação alienígena mostra-se salutar o trazimento à baila do conceito encontrado no diploma civil mexicano, precisamente no artigo 55, onde assim se o define como “o Direito Real de natureza temporal que o proprietário de um imóvel constitui em favor de outra pessoa denominada superficiário, em forma onerosa ou gratuita, para que este o use e goze com fins de edificação”[25]. Acrescenta ainda que este “se reverterá ao término do prazo estabelecido ao proprietário sem nenhuma obrigação para este.”[26]
Vê-se que entre o diploma mexicano e o português há divergências a serem relacionadas. Destaque se dá à questão da temporalidade, necessária à luz dos ditames mexicanos. Dentre os portugueses, ao contrário, admite-se o Direito de Superfície em sua modalidade perpétua.
Embora não se pretenda consolidar, com esse trabalho, conceito definitivo do que vem a ser o Direito de Superfície, parece-nos que este não pode ser entendido fora da sistemática dos Direitos Reais, sendo, sem dúvida espécie destes. Este Direito se consubstancia pela possibilidade de se manter, temporária ou indefinidamente, edificação ou plantação em terreno alheio, mediante exercício do Direito a edificar ou plantar.
2.2 DOS DIREITOS E DEVERES
Nesse tópico convém esclarecer as incumbências que cabem ao proprietário do solo e ao superficiário, personagens indissociáveis do estudo do Direito de Superfície.
No que concerne ao proprietário do solo a esse é facultado utilizar a parte do imóvel que não constitui objeto do Direito de Superfície. Além disso, tem a faculdade de exercer o Direito de preferência na aquisição da superfície e receber o pagamento pela cessão, caso assim tenha sido ajustado, uma vez que essa pode ser gratuita ou onerosa.
No caso de ser a superfície temporária, caso o superficiario não edifique ou plante no tempo aprazado – ou o faça em desacordo com o avençado –, pode o cedente proceder à resolução da superfície antes do advento do termo, consolidando assim a propriedade.
Pode ainda o proprietário do solo dispor deste, devendo, contudo, respeitar a preferência do superficiário no caso de ter sido constituída a superfície onerosamente. No mesmo sentir de possibilidade tem a prerrogativa de gravames reais sobre o solo.
No campo dos deveres do cedente deve se destacar a imposição de se abster à prática de atos que impeçam ou prejudiquem a concretização ou o exercício do objeto do Direito que fora constituído.
Falando dos Direitos do superficiário devemos ressaltar, sobretudo, a possibilidade de utilização da superfície. Para tanto pode, nos limites do pacto, usar, gozar e dispor da construção ou da plantação superficiária como coisa sua, fato que justifica diante da reconhecida autonomia do instituto. Na mesma linha pode onerar com ônus reais a construção ou a plantação, os quais se extinguirão com o termo final da concessão da superfície.
Tendo sido a avença pactuada pela via onerosa, apresenta-se como dever “número um” do cessionário o de pagar a remuneração ajustada. Neste ponto o Direito de Superfície apresenta verdadeiro diferencial quando comparado a outro Direito Real; a enfiteuse. Enquanto nesta o “fato gerador” do laudêmio será sempre a transferência do domínio – que nem sempre ocorre, já que vivemos em uma realidade muita vezes mais de fato do que de Direito –, em relação ao Direito de Superfície existe a possibilidade de que no contrato se estabeleça periodicidade de pagamento da parte que cabe ao cedente.
Em relação às obrigações tributárias que a propriedade imobiliária enseja, destacamos que no caso de estabelecimento do Direito de Superfície a obrigação pelo pagamento dos tributos é do cessionário. Fazemos tal ponderação pela lógica do dia a dia, já que a existência de uma construção em um certo terreno faz com que o pagamento do IPTU subsista apenas na porção predial. Esta engloba a obrigação em sua faceta territorial.
No atual estágio de desenvolvimento do Direito Tributário a propriedade superficiária enseja o pagamento de tributos. Aduzimos inclusive que a obrigação que antes era de responsabilidade do cedente passa a estar contida na obrigação do cessionário/superficiário. Assim, no caso de o cedente vir a assumir tais ônus poderá intentar ação de regresso visando a recuperar o que despendeu, já que sua atuação ocorrerá dentro dos limites da sub-rogação, inerente à sistemática onde se encontra o terceiro interessado.
A existência de “prédio” sobrepõe-se ao fato do “terreno”. É de se destacar que uma vez edificado deixa de existir o IPTU dizendo pertinência ao fato da propriedade de terras urbanas, pois como se sabe, a existência de construção leva o IPTU para um estágio que passa a interessar ao Poder Público o recebimento da porção predial.
Convém destacar que a responsabilidade pelo pagamento do IPTU, uma vez edificado o local, passa a ser do dono da construção, salvo disposição contratual em contrário. Desta forma fica isento de cobrança o cedente e, caso pague por dívidas tributárias propter rem, se sub-roga no Direito de credor, como, aliás, foi aventado anteriormente.
É bem verdade que no caso de omissão do cessionário a coisa se paga, dado a sistemática propter rem atinentes aos Direitos Reais, mas nesse caso o cedente passa a ser terceiro interessado. Frise-se, caso de assuma tais ônus, se sub-rogará nos Direitos de credor, podendo para tanto demandar ação nesse sentido.
Ainda que em tenhamos tecido as ponderações acima reconhecemos que, por ser a constituição da superfície ato eminentemente negocial, nada obsta o estabelecimento dessa em sentido contrário. Contudo, no caso de omissão do contrato quanto às obrigações tributárias nos parece claro que estas serão do cessionário.
2.3 CONSTITUIÇÃO E TRANSMISSÃO DO DIREITO DE SUPERFÍCIE
A opção do legislador brasileiro, nesse particular, foi muito nítida no sentido de restringir constituição dessa modalidade de Direito Real à forma contratual. Quanto às outras formas de constituição restou silente o legislador.
Nesse diapasão destacamos o papel da doutrina, já que esta vem admitindo seja constituído esse Direito também através de vias outras que o contrato enquanto negócio jurídico, espécie do ato jurídico lato senso.
É assim que se tem sustentado a possibilidade de constituição do Direito de Superfície através de testamento. Tal posicionamento não nos parece afrontar ao querido pelo legislador, mesmo porque o testamento é ato de vontade. Certamente, por estar limitado a certos liames, como o quantum que se pode dispor, diz-se ser este ato jurídico, ao passo que os contratos em geral são meros negócios jurídicos. É pacifico, contudo, que ambos são espécies do ato jurídico lato senso.
Entre os atos jurídicos em sentido estrito e o negócio jurídico há um ponto de similitude que é essencial a qualquer ato sinalagmático: a comunhão de vontades. Assim, considerando ser a aceitação da herança Direito potestativo, a constituição do Direito de Superfície via testamento não desnatura a necessidade de sua constituição através do contrato. A diferença nesse caso dirá pertinência ao momento da manifestação de vontade, que no caso do recebimento do testado será dada a posteriori. Há, pois, distinção apenas quanto à ocasião de manifestação do anseio.
No que concerne à possibilidade de constituição do Direito de Superfície através da usucapião resta também silente o legislador. Partindo, contudo, do postulado de que o Direito de Superfície é transmissível e é nuança do domínio – e a usucapião é forma originária de aquisição da propriedade –, a inteligência jurídica tem sustentado ser possível a criação do Direito sob exame pelo decurso do tempo através de seu exercício com animus domini.
2.3.1 Contrato
Em razão da natureza de Direito Real, a constituição da superfície demanda forma solene, atendida apenas com a utilização da escritura pública. Sem essa, cumpre destacar, não se pode admitir o produzimento dos efeitos jurídicos erga omnes, uma das benesses decorrentes do uso da via solene.
A necessidade da forma solene é da essência da constituição dos Direitos Reais. Assim é que se estabeleceu que a concessão de tal Direito opera através de escritura pública registrada em Cartório de Registro de Imóveis, conforme anúncio contido no artigo 21 do Estatuto da Cidade.
É evidente que a forma solene é a via que maior garantia pode assegurar aos contratantes. Frisamos, contudo, que, é muito comum o avençamento de questões atinentes a Direitos que por dicção legal demandam a forma pública, através de instrumentos particulares. Nesse ponto ponderamos que o instrumento particular não teria o condão de dar a garantia oponível a terceiros do instrumento público, mas seguramente, em relação aos contratantes, produziria efeitos, dado o caráter sinalagmático do Direito em estudo. Além disso, destacamos a necessidade de se dar estabilidade às relações, ainda mais sob a vigência do princípio da eticidade, que pode ser depreendido da leitura do artigo 422 do novo Código Civil, onde se impõe o princípio da Boa-Fé objetiva como valorador dos contratos.
2.3.2 Testamento
Como já dito restou silente o legislador sobre a possibilidade de o proprietário conceder, mortis causa, o Direito em análise. Parece-nos, contudo, que nada obsta a que o proprietário, em seu testamento, venha deixar a superfície de imóvel seu para um legatário. Complexo seria aventar a hipótese de se deixar esse Direito a herdeiros por causa da problemática da legítima, eis que poderia ser dado ensejo a discussões sobre o exato valor do quinhão do herdeiro que também fosse legatário, bem como se o recebimento do legado implicaria em perda de parte da fração a ser recebida via herança.
Tal hipótese, conquanto não expressamente admitida, deve, a nosso sentir, ser tida por plenamente válida em nosso ordenamento. Tal afirmativa se funda em uma leitura sistemática do instituto à luz do ordenamento jurídico pátrio que permite, em regra, o estabelecimento de Direitos Reais através de testamento, pois este, em análise última, tem natureza de contrato. Discute-se ser este ato ou negócio jurídico em razão das normas de ordem pública inafastáveis atinentes a si, como a necessidade de preservação da legítima, mas não há duvida que sua natureza aponta sempre no sentido contratual.
2.3.3 Usucapião
O decurso do tempo, aliado à posse mansa e pacífica, é também pressuposto para a aquisição da propriedade, com o plus de se dar à aquisição o caráter de “originária”. Por isso parece-nos que a usucapião se presta à constituição do Direito em comento. O decurso do tempo, aliada à posse mansa e pacífica, pode ensejar a sua aquisição originária desse Direito!
Embora à primeira vista não se tenha resposta para a afirmação do Professor Roberto Lira de que não se pode “vislumbrar como possa o Direito de Superfície constituir-se pela via do usucapião”[27], em face da dificuldade de se conceber um domínio adstrito à construção ou à plantação considerados em separado do solo, parece ser possível que o usucapiente possa assumir sim tal domínio, sem que tenha animus domini em relação ao solo propriamente dito.
A ponderação em tela decorre da necessidade de se reconhecer o Direito de Superfície como instituto autônomo. Data vênia, em que pese o posicionamento do referido professor, sustentar a impossibilidade de aquisição do Direito de Superfície de per si implica em se voltar ao mais primário entendimento romano de que o acessório segue sempre ao principal, e vimos que isso já foi superado.
Corroborando com a idéia que vai ao encontro do reconhecimento da autonomia do Direito de Superfície cabe registro o exemplo trazido pelo professor Mota Pinto, onde lemos que “pode perfeitamente um indivíduo exercer atos de posse sobre uma casa que está construída, e exerce-los com um animus, não de pleno proprietário, mas de superficiário porque, p.ex., lhe foi vendida por ato nulo a casa separada do solo.”[28]
Nesse ponto voltamos à questão da forma de constituição da superfície. Certamente a forma solene é a indicada, já que o Direito em análise é real. Contudo, como bem disse o professor Mota Pinto, o indivíduo pode exercer atos de posse tão somente sobre a aquisição que “pensou ter feito”. As aspas se justificam, pois como anunciam os delegatários dos Registros de Imóveis, dono mesmo é quem registra.
2.4 TEMPORALIDADE DO DIREITO DE SUPERFÍCIE
Admitir possa o Direito de Superfície ser instituído para durar indefinidamente, embora possa parecer à primeira vista um retrocesso, sobretudo no contexto das duras críticas que se faz à enfiteuse, assim não nos parece, já que esta se faz via negócio jurídico.
Informamos que não nos parece retrocesso porque, conquanto essa possa assumir caráter perpétuo, o ato de transmissão do domínio da superfície não representa ônus para o superficiário como acontece com a enfiteuse. O cedente tem sim a prerrogativa de adquirir a propriedade superficiária, mas caso assim não o faça não terá Direito à percepção de quinhão na venda. O “fato”[29] que enseja rendimento para o cedente não é, nem poderia ser, a transferência do domínio, como ocorre no regime da enfiteuse. Admitir isso é estabelecer um regime de enfiteuse pela via oblíqua, o que não nos parece ser a vontade do legislador.
Portando, para nós não há qualquer inconveniente em que se constitua sem prazo certo o Direito de Superfície para que outrem plante ou construa em terreno alheio por ser forma de garantir a utilização econômica do bem. Ademais o pacto no sentido de que possa o cedente receber pagamento periódico pela cessão do terreno nos parece justa, uma vez que a cessão implica em não poder esse utilizar o terreno cedido.
A perpetuidade do Direito sob comento é desta forma meio de garantir ao cedente um rendimento pelo fato do domínio do terreno. Do outro é forma de garantir ao cessionário a utilização do mesmo terreno sem que gaste valor auto na aquisição deste. Na prática o cessionário será o responsável pelo atendimento à função social do imóvel, já que esse é quem utilizará o bem. Para o cedente o fato da cessão traz as benesses da possibilidade de um recebimento periódico, além de deixar de ser o responsável pelas obrigações tributárias.
2.5 PROTEÇÃO DO DIREITO DE SUPERFÍCIE
O superficiário – titular de um Direito Real que é –, goza, desde a aquisição da superfície da proteção dispensada à posse em geral, já que esse se torna possuidor Direito do solo. Exatamente por isso cabem-lhe as espécies de manutenção e de reintegração de posse, dada a oponibilidade erga omnes que integra o Direito Real.
Por reunir o superficiário a posse do solo e a propriedade da superfície, poderá ainda se socorrer do embargos de terceiro, da nunciação de obra nova e de dano infecto.
2.6 EXTINÇÃO DO DIREITO DE SUPERFÍCIE: CAUSAS E EFEITOS
Seguindo orientação das diversas legislações que consagram o Direito de Superfície, a Lei n. 10257 dispôs em seu artigo 23 que o mesmo se extingue pelo advento do termo e/ou pelo descumprimento das obrigações contratuais assumidas pelo superficiário.
No artigo 24 consignou a citada lei que “antes do termo final do contrato, extinguir-se-á o Direito de Superfície se o superficiário der ao terreno destinação diversa daquela para a qual for concedida.” Tais ponderações foram tracejadas quando vimos os Direitos e obrigações do cedente e do cessionário, por isso não se irá alongar nessa seara.
Pode ser extinto o Direito de Superfície pela aquisição desse pelo cedente do solo. Da mesma forma esse se extinguirá em sendo o solo adquirido pelo cessionário/superficiário. No mesmo sentido se operará a extinção em sendo o solo e a superfície adquiridos por terceira pessoa, pois em todos os casos se confundirão em uma mesma pessoa todas as possibilidades da propriedade.
Havendo o perecimento do objeto, no caso a superfície, cumpre informar que também não faz sentido se pugnar pela continuidade desse Direito. Daí se pondera que nesse caso se operará a extinção do Direito de Superfície.
A extinção pode ocorrer ainda por causa diversa da vontade das partes, como a desapropriação, em verdade um “fato do príncipe”[30]. Nessa hipótese a extinção opera não só em face da propriedade do solo, mas também do Direito de Superfície. Certamente um ato como este por parte da administração implica em que seja situação resolvida, em alguns casos via perdas e danos, já que não mais vivemos sob a égide do absolutismo.
No que tange aos efeitos da extinção do Direito de Superfície cumpre a nós informar que os mesmos estão regulados no artigo 24 do diploma legal sob exame. Neste encontra consignado que uma vez extinto o Direito de Superfície, o proprietário recuperará o pleno domínio do terreno, bem como das acessões e benfeitorias introduzidas no imóvel, independentemente de indenização, se as partes não houverem estipulado o contrário no respectivo contrato.
Extinto o Direito de Superfície pelas causas mencionadas anteriormente, salvo o perecimento do solo ou a desapropriação, a extinção da superfície implica no término da suspensão do efeito aquisitivo da acessão, que ressurge revigorado, passando a construção ou a plantação a pertencer ao senhor do solo, salvo estipulação em contrário no contrato.
3 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
O advento da Revolução Industrial foi o ápice de um processo de mutação social para o modelo capitalista. Desde então a civilização ocidental vem presenciando profundas transformações econômicas, sociais e políticas sem precedentes.
Essa revolução implicou primeiramente na mudança no modo de produção: do agrícola para o industrial. Com isso, um grande número de transformações ocorreu, sendo de se destacar um novo arranjo populacional. As pessoas deixaram o campo, passando a viver nas proximidades dos aglomerados industriais em busca de oportunidades de trabalho. Assim são formadas as grandes cidades da Idade Contemporânea, que trouxeram consigo problemas igualmente grandes.
O adensamento populacional em áreas urbanas ocorreu de forma desordenada, provocando o surgimento de problemas estruturais como falta de saneamento básico, ausência de vias de acesso pavimentadas, transporte ineficaz e uma ocupação irregular do solo. Via de conseqüência se experimenta nos dias de hoje uma situação de déficit habitacional.
Na tentativa de disciplinar o planejamento urbano – o uso e ocupação do solo e a ordenação urbanística da atividade edilícia – desenvolveu-se o Direito Urbanístico, “ramo do Direito público que tem por objeto expor, interpretar e sistematizar as normas e princípios reguladores da atividade urbanística”[31]. Visando a dar efetividade à atividade urbanística, ao Poder Público municipal foi conferida a utilização de certos mecanismos jurídicos.
Em sede constitucional podemos destacar a possibilidade do IPTU progressivo e o mais estremado dos mecanismos: a desapropriação. Ao presente trabalho, contudo, interessa precipuamente a questão do Direito de Superfície, previsto apenas em lei ordinária, e, como meio de se a implementar o IPTU progressivo em sua modalidade extrafiscal, que por sua sistemática pode tornar inviável economicamente a propriedade que não atende à sua finalidade; sua Função Social.
Embora o Direito de Superfície seja um ramo do Direito urbanístico que tem muitos méritos, visto as particularidades que apresenta, podendo trazer benefícios para o cedente e para o cessionário, infelizmente, ainda faz parte do senso comum uma noção de propriedade contaminada pelo absolutismo, onde o proprietário poderia fazer de seu bem o que pretendesse.
Entendemos pelo exposto que para o presente estudo é importante traçarmos linhas sobre o IPTU progressivo, não o previsto no artigo 156, § 1º, I, da CF/88, que possui caráter eminentemente fiscal, mas o aventado no artigo 182, § 4º, II, do Texto Constitucional, o qual se liga estavelmente – para utilizar uma linguagem da química – ao Direito Urbanístico.
É importante a diferenciação entre as duas modalidades de IPTU progressivo, pois o primeiro surge em um contexto de política fiscal de capacidade contributiva[32]. Assim a autorização para o aumento das alíquotas surge em função de aumento na base de cálculo do tributo, o que convencionamos chamar progressividade fiscal. Na segunda modalidade, todavia, a idéia de progressividade “em função do tempo” é uma sanção pelo descumprimento da Função Social da Propriedade urbana, apresentando, portanto, caráter extrafiscal.
Interessa ao trabalho que ora se desenvolve o IPTU progressivo em sua nuança extrafiscal, já que é através dele que se torna possível a efetivação de políticas públicas urbanas. Não que o Direito de Superfície não tenha capacidade para isso de per si. Na verdade este traz muitas benesses ao proprietário do solo, como o recebimento do valor que se pode avençar e o Direito a imputar[33] a responsabilidade pelo pagamento dos tributos decorrentes da propriedade ao superficiário.
A ponderação que ora fazemos decorre da observação de que o IPTU progressivo, enquanto “medida acautelatória”, será capaz de fazer os proprietários urbanos pensar muitas vezes antes de dar destinação qualquer a seus bens imóveis. Assim terrenos baldios rapidamente deixarão de ser mecanismos de especulação e criadouros de pestes urbanas para acomodar pessoas, a vocação natural de a propriedade urbana.
O IPTU progressivo extrafiscal, por óbvio, não é meio[34] tendente ao atendimento da Função Social, mesmo porque o proprietário pode se resignar e pagar tudo que o Poder Público municipal lhe impuser. Não parece muito inteligente que seja feito isso, mas nada impede que assim seja. Vemos assim que esta medida tem caráter de assegurar medidas públicas urbanas, não sendo uma política por si só. Através do IPTU progressivo o Poder Público poderá dar efetividade às políticas urbanas sem que tenha de tomar a medida da desapropriação. Além disso, poderá com esse auferir receitas, ao contrário da desapropriação, que em regra demanda dispêndio de valores, valores ou mesmo títulos públicos.
A vantagem do Direito de Superfície quando comparado com a desapropriação encontra-se no fato de não implicar em perda de domínio pelo cedente do solo, que será utilizado pelo cessionário e desta forma cumprirá sua Função Social. Em razão de tal utilização, conseqüentemente, se cumpre a Função Social da Propriedade. Desta forma fica a salvo da medida tributária extrafiscal, de caráter real, a propriedade na qual se institui Direito de Superfície.
A propriedade não mais detém o caráter absoluto de outrora. Ao contrário, se lhe atribui uma função; uma finalidade.
Dentre as finalidades que deve ter a propriedade destacamos a produção de riquezas, que, em análise última, vem a corroborar com o desenvolvimento da coletividade. Assim é que se concebeu não mais se poder utilizar a propriedade ao bel prazer, incluindo aí a sua inutilização ou ainda a atividade meramente especulatória.
Ponderamos ainda que a propriedade de imóvel, incluído aí o urbano, deve fazer parte de um projeto maior, qual seja, adequar-se aos interesses meta-individuais do bem-estar e do interesse coletivo.
3.1 PROPRIEDADE E CAPITALISMO
Em uma sociedade capitalista como a que vivenciamos a questão da propriedade é indissociável do próprio sistema.
O Direito de propriedade, como anuncia José Carlos Salles, “tem sido entendido de maneira diversa pelos povos, no tempo e no espaço, em razão das diferenças existentes entre os sistemas econômicos, políticos e jurídicos que adotaram”[35]. Assim a propriedade privada ora “é tida como condição indispensável ao progresso social; noutra (…) passa o Direito de propriedade a ser limitado ou até suprimido, encarado como obstáculo que emperra a produção e impede a justa distribuição da riqueza.”[36]
Em nosso sistema o Direito de propriedade é resguardado, e, uma vez cumprida sua função tende a ser respeitado, a não ser que haja um interesse público maior que justifique uma medida que o contrarie. O absolutismo que já caracterizou a propriedade não mais existe em nossa sociedade.
Na Idade Antiga, precisamente em Roma, a propriedade possuía caráter absoluto[37]. Aquele que possuía o domínio do solo poderia usar, gozar, dispor e reaver a coisa, assim como não usar, não gozar e não dispor dela. Podia inclusive a abandonar à inutilidade sem que nada pudesse ser feito contra si.
Na Idade Média, “devido à acentuada intervenção do Estado na esfera patrimonial do indivíduo, o exercício do Direito de propriedade passou por profundas restrições quanto aos caracteres de exclusividade e extensão.”[38] É de se destacar que as limitações vivenciadas na Idade Média em nada se assemelham ao regime da Função Social. Na verdade nessa época a propriedade privada ficava subjugada aos interesses das elites, principalmente da monarquia.
Tal realidade também foi comum na Idade Moderna. Podemos destacar que na França de Luís XIV a manutenção da nobreza era onerosa demais, pois apenas o povo, 3º estado, arcava com a manutenção da máquina real. Nesse contexto a propriedade apresentava-se cerceada em razão dos abusos da realeza, e não por uma justa ponderação de interesses e confrontamento de primazias.
Representando uma mudança radical no modelo intervencionista podemos destacar o surgimento da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789, como se pode ler em seu 17: “… a propriedade é um Direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob condição de justa e prévia indenização”. Mais que isso, a propriedade foi alçada à condição de Direito Natural, como anuncia a dicção do artigo segundo da declaração em tela, onde lemos que “o fim de toda a associação política é a conservação dos Direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses Direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”.
No período que sucedeu à Revolução Francesa a caracterização da propriedade como Direito absoluto foi lugar comum, “talhada para garantir um modelo econômico e uma conseqüente necessidade prática: a de proteger o indivíduo contra o excessivo poder do Estado, permitindo-lhe o desempenho, totalmente autônomo, de sua atividade”[39].
Ocorre, todavia, que essa posição começou a não mais atender às novas demandas sociais, onde, não raras vezes, faz-se necessário ponderar os Direitos Individuais frente aos Direitos Sociais. Em muitos casos o bem jurídico a se tutelar só é definido diante do confronto de necessidades. Não que o preterimento de um em um momento o leve para uma situação de preterimento constante, mas não mais se pode falar de princípios absolutos, salvo o princípio da dignidade da pessoa humana, como se pode concluir da leitura da obra do professor Daniel Sarmento[40].
Persiste sim o Direito individual de propriedade, mas é fato que esse deve apresentar uma Função Social, por conseguinte, contribuir para a diminuição das desigualdades sociais e regionais. Essa função delimita o Direito de propriedade, condicionando-o ao atendimento dos interesses da sociedade como parte integrante do próprio conceito.
3.2 A FUNCÃO SOCIAL NO ORDENAMENTO JURIDICO BRASILEIRO
Mesmo que pela via indireta a idéia da Função Social da Propriedade passou a fazer parte da realidade legislativa brasileira com o advento da carta magna de 1934, posto que nessa se estabeleceu que a utilização da propriedade não poderia ir de encontro ao interesse social ou coletivo[41]. Na Constituição de 1946 também podemos destacar traços que remetem à idéia da Função Social, por exemplo, ao se criar a modalidade de desapropriação por interesse social.
Ainda que pudéssemos aventar a existência da Função Social nas cartas de 1934 e 46, verdade é que a Função Social, enquanto instituto autônomo, desatrelado do instituto da desapropriação, só foi mencionada expressamente pela Constituição de 1967, da qual nos parece producente colacionar a dicção do artigo 157, III, onde lemos que: “A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: III – Função Social da Propriedade.” Tal como o artigo 170[42] da carta em vigor, a de 1967 faz expressa alusão ao fato de que a propriedade deve estar ligada à idéia de Função Social, não mais se justificando de per si como quiseram os liberais revolucionários e os romanos em certas passagens.
Com a Constituição de 1988, contudo, é que se definiu o conteúdo da Função Social da Propriedade, tanto em relação à propriedade rural[43] quanto à urbana[44], esta última preocupação constante do Estatuto da Cidade.
3.3 A PROPRIEDADE URBANA E SUA FUNÇÃO SOCIAL
A necessidade de organizar o desenvolvimento urbano e diminuir o déficit habitacional é que deu azo à criação de políticas públicas. Surgiram assim normas de planejamento urbanístico, direcionadas às áreas consideradas prioritárias. Nessas áreas são impostas aos proprietários de imóveis certas obrigações, as quais acabam por imprimir um ar de significação pública.
É no diapasão descrito que a Função Social da Propriedade urbana se vincula ao conteúdo das políticas de planejamento e ordenação urbana. Algumas como fim em si mesmas, como ocorre com o regime da superfície. Noutro giro outras têm o fito de assegurar destinação legítima à propriedade, mas através de outras medidas. Funcionam na prática como medidas assecuratórias, exemplo do IPTU progressivo previsto no artigo 182, de caráter eminentemente extrafiscal.
No Brasil o problema da superlotação citadina é uma realidade. A escassez de moradia e a favelização constituem alguns dos maiores problemas enfrentados, refletindo diretamente as mazelas da miséria, agravada com o êxodo rural desordenado, sobretudo na década de 1970. Por ser este um fenômeno relativamente recente, realmente intenso há cerda de 30 anos, a questão da política urbana[45] só foi preocupação constitucional na carta de 1988. Podemos consignar assim que nesta carta se dedicou um capítulo inteiro a cuidar das pertinências urbanas, o que se justifica, já que essa constituição surgiu em um momento onde o Brasil já tinha a maior parte de sua população a morar em cidades.
Em relação ao Direito urbanístico, o Constituinte de 1988 atribuiu competências às três instâncias da Federação, o que foi bastante salutar porque a todas elas interessa obter a adequada ordenação do espaço urbano. Reservou à União Federal competência para a edição de normas gerais[46] e das diretrizes para o desenvolvimento urbano[47]. Aos Estados – incluído aí o Distrito Federal – resguardou o constituinte originário competência suplementar, conforme anuncia o artigo 24, §§ 1º e 2º.
Aos Municípios, entes da federação mais próximos da realidade dos cidadãos, a Constituição assegurou a competência legislativa urbanística, nos termos do art. 30, I. Cabe assim a estes “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”, transcrição literal do que dispõe o artigo 30, VIII, da Constituição Federal.
Para a implantação da política instituída pelos dispositivos citados, o Constituinte conferiu ao Município instrumentos coercitivos para compelir o proprietário do solo urbano – não edificado, sub ou não utilizado – a promover o seu adequado aproveitamento. Dentre as possibilidades coercitivas podemos destacar a imposição do parcelamento ou edificação compulsórios e o IPTU progressivo. Neste último é que identificamos reais possibilidades de que o Direito de Superfície seja uma possibilidade efetiva, pois com a utilização deste deixa de ser economicamente interessante a manutenção de áreas improdutivas.
O Estatuto da Cidade “nasce em meio a grande polêmica, própria dos textos que introduzem limitações ao exercício de Direitos individuais, ensejando questionamentos acerca da constitucionalidade de vários de seus dispositivos.”[48] Não se restringe a regulamentar os instrumentos instituídos pela Carta Magna, como o parcelamento e edificação compulsórios, o IPTU progressivo e a desapropriação. Dispõe também acerca do Direito de Superfície, de preempção[49] e de outorga onerosa do Direito de construir, que consiste na possibilidade de o município estabelecer determinado coeficiente de aproveitamento dos terrenos a partir do qual o Direito de construir excedente deve ser adquirido do Poder Público.
No que concerne ao IPTU progressivo de caráter extrafiscal podemos destacar que, após o estabelecimento de termos e os prazos para que o proprietário promova sua adequação à Função Social, mantendo-se este inerte, assistirá ao Poder Público Municipal prerrogativa de imposição de sanções administrativas, escalonadas e sucessivas no tempo.
Com essa medida o Poder Público tem a possibilidade de tornar economicamente inviável a propriedade urbana desviada de sua finalidade. Assim os proprietários pensarão mais vezes antes de adquirir imóveis apenas para fazer o jogo especulatório, ou mesmo deixar os bens adquiridos, no mais das vezes terrenos baldios, como verdadeiros criadouros de pragas urbanas, algo bastante comum em nossas cidades.
A progressividade do IPTU, nesse caso, far-se-á mediante a majoração anual de sua alíquota, cujo valor será fixado por lei municipal e não excederá a duas vezes o valor referente ao ano anterior, respeitada a alíquota máxima de 15% (art. 7º, § 1º). Assim o quantum da alíquota poderá ser dobrado até que atinja ao teto legal: 15% do valor do imóvel.
O mesmo artigo do Estatuto da Cidade determina que a progressividade poderá ser mantida por um período de cinco anos. Ainda que esse artigo fale de uma limitação, por ser o IPTU progressivo medida com natureza jurídica acautelatória, há discussão na doutrina a respeito da observância desse período.
Podemos assim destacar posicionamentos no sentido de que a exação máxima possa ser mantida até que se adimplida a obrigação, ou seja, se dê à propriedade destinação útil. Que se atenda ao postulado da propalada Função Social. Nesse sentir é o entendimento encontrado na obra de Odete Medauar e Fernando Almeida[50], que, fundamentando-se no caráter sancionatório e na função extrafiscal deste IPTU, entendem a manutenção da alíquota majorada pelo tempo do produzimeto dos efeitos pretendidos perfeitamente constitucional.
Noutro sentir é o entendimento de Maria Helena Costa[51], que, tratando dos dispositivos contidos nos §§ 1º e 2º do art. 7º, sustenta ser verdadeiramente confiscatória uma alíquota de 15%, bem como a manutenção desta por prazo superior a cinco anos.
CONCLUSÃO
Vimos ao longo do trabalho a volta de um instituto há muito esquecido pelo legislador brasileiro: o Direito de Superfície. Não se trata, como a expressão volta denota, de inovação, mas de restabelecimento de um regime que muito tem a somar com as políticas urbanas.
O Direito de Superfície assume lugar na cena urbanística nacional no seguinte contexto: da Função Social, de desordenado agrupamento populacional nas cidades e da existência de terrenos, imóveis em geral, em total dissonância com a ordem vigente.
Ainda que falemos na existência de crescimento desordenado nas cidades, muitas vezes em razão da limitação física, é bem verdade que em muitos casos o crescimento desordenado é determinado pela existência de propriedades em sua faceta absolutista. Em muitos casos até existem locais que poderiam bem atender à demanda do crescimento, mas estes se encontram nas mãos de uns poucos que mantém a propriedade com a simples função especulativa. Por isso é que encontramos terrenos baldios em locais já desenvolvidos, quando na verdade poderiam estar ocupados, atendendo assim sua finalidade precípua.
Visando a impedir que existam locais vazios, que poderiam estar ocupados, é de bom alvitre se conjugar com o Direito de Superfície o IPTU progressivo com função extrafiscal. Com este se “convence” o proprietário do solo que não é legitima a propriedade pelo simples fato desta, mas sim pelo cumprimento de seu papel social na sociedade. Vemos no advento desse a possibilidade de que o Direito de Superfície seja realmente efetivo em nossa sociedade, que infelizmente só atende aos reclamos da pecúnia.
Certamente, se a idéia da Função Social já estivesse arraigada entre a população brasileira desnecessário seria o tomamento de medidas com caráter coercitivo, com natureza jurídica verdadeiramente acautelatória. Como não está, as medidas extrafiscais tem tudo para fazer o trabalho de “conscientização”.
O regime da superfície, uma vez introjetado em nossa sociedade tem tudo para fomentar o desenvolvimento urbano, já que levará a um melhor aproveitamento da propriedade imobiliária urbana.
Trará certamente benefícios para os dois lados do negócio, já que o proprietário do solo, o cedente, se verá livre do pagamento de tributos como o IPTU e, sendo a superfície onerosa retirará um quantum da cessão.
Para o cessionário também será interessante o regime, já que poderá ocupar uma região melhor dentro do plano citadino sem ter de arcar um valor muito alto para isso. Com isso se atenderá ao preceito fundamental da Função Social. Assegurar-se-á certamente ao atendimento do princípio da dignidade da pessoa humana que não mais terá de ocupar regiões inóspitas.
Por fim inferimos que o Poder Público tem muito a fazer nessa fase de volta do Direito de Superfície. Como este tem em mãos instrumentos de coerção, terá a prerrogativa de fazer o trabalho “pedagógico” com o proprietários urbanos que vêem na propriedade apenas esse fato. A contrapartida disso refletirá inclusive na esfera da estética urbana, que se verá livre de locais vazios e terrenos baldios.
Tem o poder municipal, como visto, importantes instrumentos. Basta agora que os utilize, mesmo incorrendo no risco de se adotar políticas pouco populares. Este mostra ser o preço da vida em sociedade: o cedimento dos Direitos individuais frente aos Direitos sociais.
Notas
Informações Sobre o Autor
Joana Sarmento de Matos
Juíza de Direito em Roraima. Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pela UMSA. Professora licenciada de Direito Penal da FACSUM. Pós-Graduada em Direito Público pela UNIGRANRIO. Associada ao CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Bacharel em Direito pelo Instituto Vianna Júnior.