Palavras-chave: norma primária e secundária, poder regulamentar, reserva legal, fator acidentário de prevenção e seguro de acidente do trabalho
Abstract: After a brief outline of the legislation about insurance arising from work accidents (SAT) and the accident insurance factor (FAP) and then the approach of the regulatory power, the present paperwork concludes, based on recent judgments of the Tribunal Regional Federal da 3ª Região and in the RE 343.466, of the Brazilian Supreme Court, that the FAP regulation by a secondary legal norm does not offend the principle of formal legal reserve in tax matter.
Keywords: primary and secondary norm, regulatory power, legal reserve, accident insurance factor and insurance arising from work accidents.
Sumário: 1. Introdução. 2. Do Poder Regulamentar. 3. Do Fator Previdenciário de Prevenção na ótica do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. 4. O julgamento do RE 343.466 pelo STF. 5. Conclusão.
1 – Introdução
A Carta Política de 1988, no título sobre a “ordem social”, tratou da seguridade social, fundada no tripé previdência, saúde e assistência social, prescrevendo suas formas de custeio basicamente no art. 195.
De outro lado, entre os direitos sociais vêm expressos aqueles referentes aos trabalhadores urbanos e rurais, sem prejuízo de outros que visem à melhoria de sua condição social, valendo destacar, para o desenvolvimento do tema, os atinentes ao “seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa”, bem como o relativo à “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (art. 7º, XXVIII e XXII).
A fim de dar concretude a tais comandos foram editadas as Leis n. 8.212/91, que revogou a Lei n. 7.787/89, e 8.213/91, que tratam respectivamente dos planos de custeio e de benefício da seguridade social.
Assim, o art. 22, II, da Lei n. 8.212/91, com a redação alterada pela Lei n. 9.732/98, prescreve que a contribuição que financia os benefícios concedidos em razão de aposentadoria especial (arts. 57 e 58, da Lei n. 8.213/91) e da incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho, será calculada à razão de 1%, 2% ou 3%, dependendo do risco da atividade preponderante da empresa ser leve, médio ou grave, respectivamente, sobre o valor total das remunerações pagas aos segurados empregados ou trabalhadores avulsos no decorrer do mês.
Por sua vez os arts. 19 a 23, da Lei n. 8.213/91, prescrevem regras sobre o acidente de trabalho, o qual deve ser entendido como o que decorre do exercício do trabalho e que provoca “lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho” (art. 19).
Referido arcabouço de normas regula atualmente o denominado Seguro de Acidente do Trabalho (SAT), o qual já rendeu ensejo a acalorada discussão doutrinária e ações judiciais, culminando, neste aspecto, com o julgamento do RE n. 343.446/SC, no qual o Supremo Tribunal Federal manifestou-se, ainda que em sede de controle difuso, sobre a constitucionalidade da delegação para definição de atividade preponderante e grau de risco a norma secundária, posição mantida até hoje.
Ocorre que, com o advento da Lei n. 10.666/03, nova polêmica instaurou-se, agora em função do denominado Fator Previdenciário de Prevenção (FAP), que consiste em multiplicador autorizado a reduzir (em até 50%), ou aumentar (em até 100%), o valor da contribuição a título de Seguro de Acidente do Trabalho (SAT), apurado de acordo com o desempenho da empresa em relação à respectiva atividade, conforme resultados obtidos a partir do índice de frequência, gravidade e custo, segundo metodologia aprovada pelo Conselho Nacional de Previdência Social.
Tendo em vista que a norma secundária que veiculou o FAP passou a surtir efeitos em fevereiro de 2010, a discussão anteriormente travada sob o impacto do SAT renova-se no sentido de se saber se não estaria havendo agora, de fato, uma afronta ao princípio da reserva legal formal em matéria tributária em relação à apuração do referido Fator, de forma a conduzir ao extrapolamento do exercício do poder regulamentar, em desrespeito ao art. 84, IV, da CF/88.
É esta exatamente a questão que o presente trabalho buscará responder, tendo como ponto de partida o posicionamento do E. Tribunal Regional Federal da 3ª Região, à vista de não terem sido encontrados acórdãos especificamente sobre o tema na base de dados dos C. Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.
2 – Do Poder Regulamentar
A Constituição, como ato normativo inicial, inaugura a ordem jurídica de um Estado, retirando os demais atos, hierarquicamente organizados, seu fundamento de validade dela e dos que lhe são imediatamente superiores.[1]
Nessa ordem de ideias, tais atos podem ser classificados em primários e secundários, os quais se subdividem em gerais e particulares.[2]
No atual sistema constitucional brasileiro, são atos normativos primários gerais, no sentido proposto por Manoel Gonçalves Ferreira Filho de poderem impor obrigação ou restringir liberdades, a lei (ordinária ou complementar), a medida provisória e a lei delegada.[3]
Por sua vez, são normativos secundários, os regulamentos, que são atos gerais, e os atos administrativos e jurisdicionais stricto sensu, que são particulares.[4]
Os regulamentos, por seu conteúdo, identificam-se com as leis, delas diferindo basicamente em razão de sua procedência, já que estas são atos típicos do legislador; e aqueles, atos administrativos.[5]
Na lição de Carlos Mário Velloso,[6]
“por ato normativo [geral], pois, pode-se conceber o ato legislativo, formalmente e/ou materialmente considerado, ou o ato administrativo com o sentido de lei material, isto é, que enuncia uma norma jurídica (regra jurídica), ou de um preceito de direito, ou que explica o sentido do seu conteúdo marcado de imperatividade e generalidade, assim estabelecendo forma de conduta a pessoas indiscriminadas ou discriminadas.”
Com relação aos regulamentos, a doutrina vem classificando-os em (i) autônomos ou independentes; (ii) executivos ou de execução e (iii) autorizados ou delegados.[7]
Esclareça-se que os regulamentos autônomos ou independentes, encontrados na Franca, por exemplo, conferem ao Executivo a faculdade de regular matérias não reservadas constitucionalmente à lei em sentido formal. São, pois, atos normativos primários. Vê-se logo que não são admitidos pelo ordenamento jurídico brasileiro (art. 84, IV, CF/88).[8]
Já os regulamentos autorizados ou delegados, são editados pelo Executivo em função de habilitação conferida pelo Legislativo, dentro do âmbito previamente delimitado por este para desenvolver os preceitos da lei de habilitação.[9]
Manoel Gonçalves Ferreira Filho utiliza o termo autorizado para se referir a uma espécie de regulamento de execução, após discorrer sobre outra espécie deste – os regulamentos espontâneos, que independem de previsão legal, estando incluídos na missão geral a cargo do Poder Executivo de fazer cumprir as leis. Só por aí já se vê que é tênue a linha que separa os regulamentos delegados ou autorizados dos regulamentos executivos ou de execução.[10]
Pois bem. Embora os regulamentos delegados estejam em sintonia com tendência atual do constitucionalismo, em razão da necessidade de decisões cada vez mais urgentes e dotadas de tecnicalidade para o atendimento de prestações positivas a cargo do Estado, a Constituição de 1988 não os inclui expressamente no rol das formas de delegação legislativa, entre as quais devem ser ressaltadas (i) a participação do Executivo no processo legislativo, com a possibilidade de iniciativa de lei; (ii) a fixação de prazos dentro dos quais os projetos de lei de iniciativa do Presidente da República devem ser votados; (iii) o poder de veto do Chefe do Executivo e (iv) a competência do Presidente da República para editar medidas provisórias e leis delegadas, nos limites traçados pela Constituição.[11]
A despeito disso, tem sido admitido entre nós, além do regulamento executivo ou de execução, o regulamento autorizado ou delegado, desde que intra legem.[12]
Neste sentido, confira-se a lição de Velloso:[13]
“Delegação legislativa não deve ser confundida, no sistema constitucional brasileiro, com poder regulamentar. A delegação legislativa propicia a prática de ato normativo primário, de ato com força de lei, enquanto poder regulamentar, na Constituição brasileira, é ato administrativo, assim ato secundário, porque, na ordem jurídica brasileira, o regulamento é puramente de execução (CF, art. 84, IV). Quer dizer: o regulamento brasileiro não inova na ordem jurídica. Quando muito, pode-se falar, no nosso sistema constitucional, no regulamento delegado ou autorizado, intra legem, que não pode, entretanto ser elaborado praeter legem. Se a lei fixa, por exemplo, exigências taxativas, é exorbitante o regulamento que estabelece outras, como é exorbitante o regulamento que faz exigência que não se contém nas condições da lei, podendo esta estabelecer que o regulamento poderá fixar condições além das que ela estatuir.” (destaques nossos.)
Tais ensinamentos são extraídos da experiência norte-americana. Ocorre que o Congresso norte-americano, já no início do século XIX, em razão das necessidades cada vez mais urgentes e típicas do Estado intervencionista, havia cedido poder legislativo ao Presidente, por meio de delegações. As leis assim promulgadas, bem como os regulamentos editados em razão delas, foram impugnados por inconstitucionalidade, levando a Suprema Corte a se manifestar sobre o ponto diversas vezes.[14]
Destarte, firmou-se, notadamente na época do New Deal, o seguinte entendimento: serão constitucionais as delegações de editar normas ao Executivo, desde que (i) os poderes delegados possam ser recuperados pelo Legislativo sem o consentimento do Executivo e (ii) tais atos de delegação contenham um padrão (standard), no sentido de limite ou orientação estabelecido de forma inteligível e razoável no tocante ao poder que se delega.[15]
Feitas essas considerações, passa-se à análise de julgado do E. Tribunal Regional Federal da 3ª Região sobre o FAP, objeto específico deste trabalho.
3 – Do Fator Previdenciário de Prevenção na ótica do Tribunal Regional Federal da 3ª Região
Por uma questão de coerência metodológica, deve-se partir da própria leitura do art. 10, da Lei n. 10.666/03, que dispõe sobre a concessão de aposentadoria especial ao cooperado de cooperativa de trabalho ou de produção e dá outras providências:
“Art. 10. A alíquota de contribuição de um, dois ou três por cento, destinada ao financiamento do benefício de aposentadoria especial ou daqueles concedidos em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho, poderá ser reduzida, em até cinquenta por cento, ou aumentada, em até cem por cento, conforme dispuser o regulamento, em razão do desempenho da empresa em relação à respectiva atividade econômica, apurado em conformidade com os resultados obtidos a partir dos índices de frequência, gravidade e custo, calculados segundo metodologia aprovada pelo Conselho Nacional de Previdência Social.” (destaques nossos.)
Para regulamentar tal dispositivo foi editado o Decreto n. 6.042/07, o qual incluiu o art. 202-A, no Regulamento da Previdência Social, aprovado pelo Decreto n. 3.048/99, posteriormente alterado pelo Decreto n. 6.957/09. Prescreve referido dispositivo:
“Art. 202-A. As alíquotas constantes nos incisos I a III do art. 202 serão reduzidas em até cinquenta por cento ou aumentadas em até cem por cento, em razão do desempenho da empresa em relação à sua respectiva atividade, aferido pelo Fator Acidentário de Prevenção – FAP. (Incluído pelo Decreto nº 6.042, de 2007).
§ 1o O FAP consiste num multiplicador variável num intervalo contínuo de cinco décimos (0,5000) a dois inteiros (2,0000), aplicado com quatro casas decimais, considerado o critério de arredondamento na quarta casa decimal, a ser aplicado à respectiva alíquota. (Redação dada pelo Decreto nº 6.957, de 2009).
§ 2o Para fins da redução ou majoração a que se refere o caput, proceder-se-á à discriminação do desempenho da empresa, dentro da respectiva atividade econômica, a partir da criação de um índice composto pelos índices de gravidade, de frequência e de custo que pondera os respectivos percentis com pesos de cinquenta por cento, de trinta e cinco por cento e de quinze por cento, respectivamente. (Redação dada pelo Decreto nº 6.957, de 2009).
§ 4o Os índices de frequência, gravidade e custo serão calculados segundo metodologia aprovada pelo Conselho Nacional de Previdência Social, levando-se em conta: (Incluído pelo Decreto nº 6.042, de 2007).
I – para o índice de frequência, os registros de acidentes e doenças do trabalho informados ao INSS por meio de Comunicação de Acidente do Trabalho – CAT e de benefícios acidentários estabelecidos por nexos técnicos pela perícia médica do INSS, ainda que sem CAT a eles vinculados; (Redação dada pelo Decreto nº 6.957, de 2009)
II – para o índice de gravidade, todos os casos de auxílio-doença, auxílio-acidente, aposentadoria por invalidez e pensão por morte, todos de natureza acidentária, aos quais são atribuídos pesos diferentes em razão da gravidade da ocorrência, como segue: (Redação dada pelo Decreto nº 6.957, de 2009)
a) pensão por morte: peso de cinquenta por cento; (Incluído pelo Decreto nº 6.957, de 2009)
b) aposentadoria por invalidez: peso de trinta por cento; e (Incluído pelo Decreto nº 6.957, de 2009)
c) auxílio-doença e auxílio-acidente: peso de dez por cento para cada um; e (Incluído pelo Decreto nº 6.957, de 2009)
III – para o índice de custo, os valores dos benefícios de natureza acidentária pagos ou devidos pela Previdência Social, apurados da seguinte forma: (Redação dada pelo Decreto nº 6.957, de 2009)
a) nos casos de auxílio-doença, com base no tempo de afastamento do trabalhador, em meses e fração de mês; e (Incluído pelo Decreto nº 6.957, de 2009)
b) nos casos de morte ou de invalidez, parcial ou total, mediante projeção da expectativa de sobrevida do segurado, na data de início do benefício, a partir da tábua de mortalidade construída pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE para toda a população brasileira, considerando-se a média nacional única para ambos os sexos. (Incluído pelo Decreto nº 6.957, de 2009)
§ 5o O Ministério da Previdência Social publicará anualmente, sempre no mesmo mês, no Diário Oficial da União, os róis dos percentis de frequência, gravidade e custo por Subclasse da Classificação Nacional de Atividades Econômicas – CNAE e divulgará na rede mundial de computadores o FAP de cada empresa, com as respectivas ordens de freqüência, gravidade, custo e demais elementos que possibilitem a esta verificar o respectivo desempenho dentro da sua CNAE-Subclasse. (Redação dada pelo Decreto nº 6.957, de 2009).
§ 6o O FAP produzirá efeitos tributários a partir do primeiro dia do quarto mês subseqüente ao de sua divulgação. (Incluído pelo Decreto nº 6.042, de 2007).
§ 7o Para o cálculo anual do FAP, serão utilizados os dados de janeiro a dezembro de cada ano, até completar o período de dois anos, a partir do qual os dados do ano inicial serão substituídos pelos novos dados anuais incorporados. (Redação dada pelo Decreto nº 6.957, de 2009)
§ 8o Para a empresa constituída após janeiro de 2007, o FAP será calculado a partir de 1o de janeiro do ano ano seguinte ao que completar dois anos de constituição. (Redação dada pelo Decreto nº 6.957, de 2009)
§ 9o Excepcionalmente, no primeiro processamento do FAP serão utilizados os dados de abril de 2007 a dezembro de 2008. (Redação dada pelo Decreto nº 6.957, de 2009)
§ 10. A metodologia aprovada pelo Conselho Nacional de Previdência Social indicará a sistemática de cálculo e a forma de aplicação de índices e critérios acessórios à composição do índice composto do FAP. (Incluído pelo Decreto nº 6.957, de 2009)” (Destaques nossos.)
O E. Tribunal Regional da Terceira Região, através de decisão da lavra do i. Desembargador Federal Henrique Herkenhoff, teve oportunidade de se debruçar sobre o tema ao negar seguimento ao agravo de instrumento n. 399.144 em sede de mandado de segurança, assim ementada:
Analisando o inteiro teor do voto do i. Desembargador, podem ser destacados os seguintes pontos:[16]
1) a fonte de custeio para a cobertura de eventos advindos dos riscos ambientais do trabalho baseia-se na tarifação coletiva das empresas, às alíquotas de 1%, 2% e 3%, segundo o enquadramento das atividades econômicas preponderantes (CNAE), estando prevista no art. 22, da Lei n. 8.212/91. Seus percentuais agora podem ser reduzidos ou majorados, nos termos do art. 10 da Lei n. 10.666/03, devidamente regulamentado;
2) a nova metodologia para flexibilização das alíquotas foi aprovada pelo Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS), instância quadripartite, que conta com a representação de trabalhadores, empregadores, associações de aposentados e pensionistas e do Governo;
3) de acordo com esta, é possível a redução da taxa para as empresas que registrarem queda no índice de acidentalidade e doenças ocupacionais e, em contrapartida, elevação para as que tiverem aumento nesse mesmo índice, tudo com o objetivo de ampliar a cultura da prevenção de acidentes e doenças do trabalho;
4) o valor social do trabalho é um dos princípios do Estado de Direito brasileiro (art. 1º, CF/88), devendo ser ressaltados os direitos sociais insculpidos no art. 6º, da CF/88, especialmente os direitos à saúde, segurança, previdência social e trabalho, bem como a obrigação do empregador pelo custeio do seguro de acidente do trabalho (art. 7º, CF/88);
5) não há ofensa aos princípios da legalidade genérica e estrita (art. 5º, II, e 150, I, da CF/88), porque o Decreto n. 6.957/09 não inovou em relação ao disposto nas Leis n. 8.212/91 e 10.666/03, mas apenas explicitou as condições concretas para aplicação de tais normas;
6) no que diz respeito à instituição de tributos, o legislador esgota sua função constitucional ao descrever o fato gerador, estabelecendo a alíquota, a base de cálculo e o responsável pelo recolhimento, o quê foi feito no caso em questão;
7) a avaliação das diversas situações concretas que influenciam a ocorrência da hipótese de incidência ou o cálculo do montante devido é ato de execução da norma, podendo ser citados exemplos que corroboram tal entendimento, como a atribuição de valor venal aos imóveis urbanos, os quais são fixados através de decretos municipais;
8) as Leis n. 8.212/91 e 10.666/03, longe de delegarem função legislativa ao Poder Executivo, restringiram-lhe a atividade executiva em sentido estrito, ao exigir que as classificações quanto ao risco decorressem de tabelas incluídas no Regulamento, quando poderiam ter deixado tal tarefa ao administrador;
9) não é razoável exigir que a lei, caracterizada pela generalidade, desça a minúcias para elencar todas as atividades e respectivos graus de risco. Tal tarefa é atribuição do decreto regulamentar, cuja função é afastar eventuais conflitos surgidos a partir de interpretações diversas tanto dos contribuintes, como dos agentes tributários, de modo que não há violação ao art. 84, IV, da CF/88.
Tal entendimento vem sendo confirmado por aquela E. Corte, conforme se pode verificar pelo teor da ementa de julgado ainda mais recente:
“PROCESSUAL CIVIL. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. FATOR ACIDENTÁRIO DE PREVENÇÃO. LEI N. 10.666/03, ART. 10. DECRETO N. 6.957/09. NOVA REDAÇÃO AO ART. 202-A DO DECRETO N. 3.048/99. RESOLUÇÃO N. 1.308/09. ISONOMIA. LEGALIDADE TRIBUTÁRIA. CONSTITUCIONALIDADE.
1. O Fator Acidentário de Prevenção – FAP é um multiplicador sobre a alíquota de 1%, 2% ou 3%, correspondente ao enquadramento da empresa segundo a Classificação Nacional de Atividades Econômicas preponderante, nos termos do Decreto n. 3.048/99, que deve variar em um intervalo de 0,5 a 2,0.
2. Assentada a constitucionalidade das alíquotas do SAT, sobre as quais incide o multiplicador, daí resulta a consideração da atividade econômica preponderante, a obviar a alegação de ofensa ao princípio da isonomia por não considerar, o multiplicador, os critérios estabelecidos pelo § 9º do art. 195 da Constituição da República. Além disso, esta dispõe sobre a cobertura do “risco” (CR, art. 201, § 10), sendo incontornável a consideração da recorrência de acidentes e sua gravidade, sob pena de não se cumprir a equidade na participação do custeio (CR, art. 194, parágrafo único, V).
3. Não é tarefa específica da lei a matematização dos elementos de fato que compõem o risco propiciado pelo exercício da atividade econômica preponderante e os riscos em particular gerados pelo sujeito passivo, de modo que as normas regulamentares, ao cuidarem desse aspecto, não exorbitam o seu âmbito de validade e eficácia (Decreto n. 6957/09, Res. MPS/CNPS n. 1.308/09).
4. A faculdade de contestar o percentil (Port. Interm. MPS/MF n. 329/09, arts. 1º e 2º, parágrafo único) não altera a natureza jurídica da exação nem converte o lançamento por homologação em por notificação. O Decreto n. 7.126, de 03.03.10, em seu art. 2º, deu nova redação ao § 3º do art. 202-B do Decreto n. 3.048/99, para dispor que o processo administrativo de que trata o artigo tem efeito suspensivo. 5. Agravo regimental prejudicado. Agravo de instrumento provido.
Além dos argumentos sobre os quais já se discorreu, expostos no julgamento do AI 399.144, cuja ementa foi acima transcrita, vale enfatizar os seguintes aduzidos pelo i. Desembargador-relator:[17]
1) a própria Constituição prescreve que as contribuições sociais elencadas no art. 195, I, poderão ter suas alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas em razão de vários fatores, entre eles a atividade econômica (art. 195, § 9º);
2) do mesmo modo, prescreve a Carta Magna que a lei disciplinará a cobertura do risco de acidente do trabalho, que deve ser atendido concorrentemente pelo regime geral de previdência social e pelo setor privado (art. 201, § 10);
3) ambos os comandos auxiliam na concreção de um dos objetivos em que se assenta a seguridade social: a equidade na forma de participação no custeio (art. 194, parágrafo único, V).
4 – O julgamento do RE 343.466 pelo STF
Em outro giro, como já dito, o tema ainda não chegou ao C. Supremo Tribunal Federal.
Não obstante isso, também conforme já referido, aquela C. Corte já se manifestou sobre a constitucionalidade da contribuição social destinada ao custeio do Seguro de Acidente do Trabalho (SAT) (Lei n. 7.787/89, arts. 3º e 4º; Lei n. 8.212/91, art. 22, na redação conferida pela Lei n. 9.732/98), sobre o total da remuneração, abordando, ainda que de forma reflexa, sua regulamentação, àquela época, pelo Decreto n. 612/92 e posteriores alterações (Decretos 2.173/97 e 3.048/99), em caso em tudo bastante semelhante ao aqui em discussão, no julgamento do RE n. 343.446/SC, cuja ementa abaixo se transcreve:
“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO: SEGURO DE ACIDENTE DO TRABALHO – SAT. Lei 7.787/89, arts. 3º e 4º; Lei 8.212/91, art. 22, II, redação da Lei 9.732/98. Decretos 612/92, 2.173/97 e 3.048/99. C.F., artigo 195, § 4º; art. 154, II; art. 5º, II; art. 150, I.
I. – Contribuição para o custeio do Seguro de Acidente do Trabalho – SAT: Lei 7.787/89, art. 3º, II; Lei 8.212/91, art. 22, II: alegação no sentido de que são ofensivos ao art. 195, § 4º, c/c art. 154, I, da Constituição Federal: improcedência. Desnecessidade de observância da técnica da competência residual da União, C.F., art. 154, I. Desnecessidade de lei complementar para a instituição da contribuição para o SAT.
II. – O art. 3º, II, da Lei 7.787/89, não é ofensivo ao princípio da igualdade, por isso que o art. 4º da mencionada Lei 7.787/89 cuidou de tratar desigualmente aos desiguais.
III. – As Leis 7.787/89, art. 3º, II, e 8.212/91, art. 22, II, definem, satisfatoriamente, todos os elementos capazes de fazer nascer a obrigação tributária válida. O fato de a lei deixar para o regulamento a complementação dos conceitos de “atividade preponderante” e “grau de risco leve, médio e grave”, não implica ofensa ao princípio da legalidade genérica, C.F., art. 5º, II, e da legalidade tributária, C.F., art. 150, I.
IV. – Se o regulamento vai além do conteúdo da lei, a questão não é de inconstitucionalidade, mas de ilegalidade, matéria que não integra o contencioso constitucional. V. – Recurso extraordinário não conhecido.
(STF, RE 343.446-2/SC, T.P., v.u., j. em 20/03/03, rel. Min. Carlos Velloso. DJ 04-04-2003 PP-00040. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=261045. Acesso em 30/07/10)”. (Destaques nossos.)
Do voto do i. Relator e no ponto que interessa ao deslinde da questão, colhe-se que o regulamento, no caso, era delegado, intra legem, e, portanto, não afrontava o art. 84, IV, da CF/88.[18]
Aduziu o Ministro-Relator, referindo-se ao voto proferido pela então Juíza Federal do E. Tribunal Regional Federal da 4ª Região Ellen Gracie, que “o fato de a lei deixar para o regulamento a complementação dos conceitos de ‘atividade preponderante’ e ‘grau de risco leve, médio ou grave’, não implica ofensa ao princípio da legalidade tributária”.[19]
Reafirmou seu entendimento no sentido de que é possível deixar por conta do Executivo o estabelecimento de normas em regulamento, desde que os standards ou padrões estejam previamente definidos em lei stricto sensu, a fim de que se possa atender às necessidades da administração pública na realização do interesse coletivo.[20]
Arrematou com a seguinte conclusão, perfeitamente aplicável à questão aqui em discussão:[21]
“No caso, o § 3º do art. 22 da Lei n. 8.221/91, estabeleceu que o Ministério do Trabalho e da Prev. Social “poderá alterar, com base nas estatísticas de acidentes do trabalho, apuradas em inspeção, o enquadramento de empresas para efeito da contribuição a que se refere o inciso II deste artigo, a fim de estimular investimentos em prevenção de acidentes”. Da leitura conjugada do inc. II, alíneas a, b e c, do art. 22, com o § 3º, do mesmo artigo, vê-se que a norma primária, fixando a alíquota, delegou ao regulamento alterar, com base em estatística, o enquadramento referido nas mencionadas alíneas. A norma primária, pois, fixou os padrões e, para a sua boa aplicação em concreto, cometeu ao regulamento as atribuições mencionadas”. (Destaques nossos.)
5 – Conclusão
De todo o exposto, verifica-se que não merece prosperar o argumento da inconstitucionalidade do art. 10, da Lei n. 10.666/03 e, por arrastamento, dos Decretos que o regulamentaram, porque não há ofensa ao princípio da reserva legal formal.
E assim é, porque no campo da instituição de tributos, a função da lei stricto sensu se esgota com a previsão dos aspectos material, pessoal, quantitativo, temporal e espacial da hipótese de incidência.
No mais, apenas fixou a norma primária os standards, de forma inteligível e razoável, em cuja delimitação atuou o art. 202-A, do regulamento introduzido pelo Decreto n. 3.048/99, com alterações que lhe deram os diplomas posteriores, de forma a dar concretude aos princípios da isonomia tributária, da eficiência da Administração Pública, do valor social do trabalho e demais direitos sociais constitucionalmente assegurados, bem como ao da equidade na participação do custeio da previdência social.
Enfatize-se que o regulamento aqui é do tipo delegado ou autorizado, segundo posicionamento de Manoel Gonçalves Ferreira Filho e de Carlos Mário da Silva Velloso, intra legem, ou seja, complementa os comandos da lei, a qual se caracteriza pelos predicados da generalidade, imperatividade e abstração, de acordo com as condições que ela mesma estatui.
Não vai além, não inova o ordenamento jurídico, não ofende o comando do art. 84, IV, da Carta Magna, mas apenas e tão-somente, dentro do campo de atuação que lhe foi prescrito pela norma primária, apresenta variáveis impossíveis de serem mensuradas pelo legislador, porque extraídas de elementos de fato (frequência, gravidade e custo), relacionados ao risco da atividade econômica preponderante das empresas, obtidos através de estudo analítico e estatístico do comportamento destas ao longo dos anos.
Ademais, num juízo de proporcionalidade, é bastante razoável que quem zela pela segurança e saúde de seus empregados recolha menos contribuição do que quem nada faz. É, sem dúvida, forma de se dar concretude ao princípio da dignidade da pessoa humana como o mais basilar do Estado Brasileiro.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Lucília Isabel Candini Bastos
Mestra em Direito Público pela Universidade de Franca, Pós-graduanda em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Procuradora da Fazenda Nacional, Ex-Auditora da Receita Federal do Estado de Minas Gerais