Resumo: A partir da obra “Entre Quatro Paredes” busca-se, situando-a no contexto geral da filosofia sartreana, delinear por meio desta uma teoria geral da pena. Parte-se das definições que o filósofo elabora acerca de liberdade e de sofrimento e define-se a pena como sinônimo de sanção moral, ou seja: uma dor impressa à liberdade e como consequência dela. Assim, a pena é vista como um sofrimento interior advindo da má fé, isto é, da incoerência entre o ser e o agir. Em consonância com essa perspectiva, analisa-se também os tipos de penalizações e as suas finalidades, segundo a ótica sartreana.[1]
Palavras-chave: Sanção; Pena; Existencialismo; Sartre.
Sumário: 1- Introdução; 2- A peça “Entre Quatro Paredes”; 3- A peça na totalidade da filosofia sartreana; 4- A teoria sartreana da pena; 4.1- Os tipos de pena; 4.2- O fundamento da pena; 4.3- A finalidade da pena; 5- Conclusão; Referências; Notas.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho busca inferir uma Teoria da Pena na filosofia sartreana a partir da obra Entre Quatro Paredes (Huis Clos), peça de teatro produzida e apresentada no final da Segunda Guerra (maio de 1944), no Théâtre Du Viex Colombier, a pedido de Marc Barbézat. Inicialmente far-se-á uma abordagem das linhas gerais do pensamento de Sartre, através da vida, obra e filosofia desse autor, em seguida procurar-se-á analisar a obra à luz da Teoria da Pena.
A peça possui finalidade estética e, segundo seu autor, pretende a mostrar que o inferno são os outros, ou seja, que as relações humanas são distorcidas, viciadas, de modo que o outro representa o que “há de mais importante em nós para o conhecimento de nós mesmos”[2], de modo que se as relações de um sujeito são más, nocivas, este se coloca na total dependência dos outros.
Jean Paul Sartre (1905-1980) é novelista, teatrólogo e filósofo francês, sendo o maior expoente do Existencialismo. Casado com a filósofa Simone de Beauvoir, foi também próximo de grandes intelectuais como Meleau-Ponty e Raymnond Aron. Estudioso de Husserl, Heidegger, Scheller e Kierkegaard, militou filosoficamente sob a bandeira da fenomenologia e do existencialismo, e politicamente, participou da resistência à invasão alemã e ao nazismo. Escreveu inúmeras obras de grande repercussão, entre elas O Ser e o Nada, O que é literatura, A questão do método, Existencialismo e Marxismo, de natureza filosófica, e A náusea e Entre Quatro Paredes, suas principais peças de teatro. Sua produção está voltada para a reconstrução do humano no pós-guerra, “à luz do real, da história e do engajamento político” (JACOBY; CARLOS, 2005: 49).
2 A PEÇA “ENTRE QUATRO PAREDES”[3]
A obra Entre Quatro Paredes conta a história de três indivíduos que, ao morrer, são condenados ao inferno: Garcin, um homem letrado, com pretensões heróicas, mas covarde. Seu maior tormento é ter desvendada sua condição de covardia, que não pode ser mudada; Estelle é uma fútil burguesa que ascendeu socialmente através do casamento. Em nome de seu conforto, assassinou o próprio filho, e por conta disso, suicidou-se o amante. Tenta redimir-se atribuindo sua culpa ao destino, e procura fugir da realidade por meio da paixão; Inês é homossexual, funcionária dos correios, agressiva, mas admite suas culpas sem delegar responsabilidades. Ela compreende os motivos de estar no inferno: é sádica, o ódio a alimenta.
Esses personagens não foram parar no inferno por acaso: cada um responde por um crime, e um será o carrasco do outro. Estão confinados numa sala, sem espelhos, sem necessidade de se alimentar ou de dormir, por toda eternidade. Nesta sala há apenas sofás para os condenados, e objetos inúteis. São obrigados a se ver através dos olhos dos outros; olhos esses que não teriam sido os escolhidos para se conviver. Tudo isso os incomoda bastante, pois não conseguem enganar uns aos outros por muito tempo e, aos poucos, vão se constrangendo com o passar do tempo.
A convivência torna-se insuportável: Inês tentará conquistar Estelle, que a repudiará e, buscará a paixão de Garcin, mas este a ignora. Inês jogará seus companheiros um contra o outro, explicitando as faltas deploráveis de ambos; faltas essas que nenhum quer admitir. Estelle quer matar Inês, mas isso já não lhe é possível. Garcin procura convencer esta de que não é um covarde, mas, sem êxito, tenta vingar-se amando Estelle diante dela.
“Sem que possam sequer expiar suas faltas, descobrem o horror da nudez psíquica que os outros lhes evidenciam. Está revelado o verdadeiro inferno: a consciência não pode furtar-se a enfrentar outra consciência que a denuncia, por isso: ‘o inferno são os outros’.” (FÉLIX, 2010)
3 SITUANDO A PEÇA NA TOTALIDADE DA FILOSOFIA SARTREANA
O plano de fundo filosófico sobre o qual se assenta essa produção de finalidades estéticas, ou seja, literárias, como dito, é a Antropologia sartreana, por sua vez baseada em sua Ontologia. Para Sartre, o Ser – na filosofia, o cerne, a essência do real – da consciência pode ser compreendido de duas formas: o Ser Em-si e o Ser Para-si, isto é, o ser enquanto essência, a consciência[4] que é (Em-si), e o ser enquanto projeto de si mesmo, desejo de Ser (Para-si). Nesse sentido, o Ser se confunde com o Nada, porque nada preexiste na consciência (Em-si), ao mesmo tempo que o projeto de si é um não-ser, pois não é ainda, de modo que, para a consciência construir sua realidade, precisa lançar-se para fora (Para-si). Ou seja:
“Esse seria então o ser da consciência humana: um nada que se projeta para se tornar algo: ‘A consciência não é uma entidade ‘espiritual’ pré-concebida, mas uma intencionalidade que não é nada em si mesma, mas que tem de formar-se com o mundo no qual está’. Sartre surpreende, ao afirmar: ‘a existência precede a essência’, ou seja, não há essência humana anterior a existência do homem. Para ele, ‘O homem [existe] primeiro e somente depois ele ‘é’ isto ou aquilo: é lançando-se no mundo, sofrendo nele, lutando nele que aos poucos ele se define, e a definição permanece sempre aberta’.” (FÉLIX, 2010)
Esse lançar-se para fora se constitui de dois elementos fundamentais: o Projeto Existencial e o Olhar do Outro. Já que o homem é falta de ser, sua vida seria uma eterna construção de si mesmo a partir de um projeto, isto é, de um conjunto consciente e deliberado de escolhas segundo as quais o homem procura definir-se. Assim, “o homem é uma totalidade e não uma coleção” (SARTRE, 2001: 696), ou seja, Sartre rejeita a ideia de inconsciente e de fragmentação tópica do homem, como proposto por Freud. Ou seja, o ser do homem é expressão de sua vontade, uma vontade clara e inequívoca, elaborada no interior da própria consciência, único espaço de existência não-material humana.
Isso significa que o homem possui uma liberdade quase absoluta, pois sendo nada, está absolutamente livre para ser, um ser-homem eternamente aberto e em construção. A liberdade humana só possui uma limitação: a impossibilidade de rejeitar a própria liberdade, ou seja, o homem está condenado a ser livre. Nesse momento de reflexão, porém, Sartre insere o segundo elemento da composição da aventura humana extraconsciencial: o Outro. Sartre entende o Outro de maneira muito próxima daquilo que Lacan chama de o “Outro meu semelhante” e de “Grande Outro”, quer dizer: o outro como Outro-Eu, como um ser que a mim se assemelha, mas que se opõe a mim por não ser Eu, tornando-se ao mesmo tempo um espelho e um rival; e o outro como um Alhures, um espaço de idealização e de simbolização, o outro como construção imagética daquilo que não sou Eu, uma representação do desejo e do sonho (QUINET, 2001).
Na filosofia sartreana, o Outro representa uma limitação e uma intrusão, que se estabelece por meio do olhar. O Outro é tomado como objeto pela consciência humana, assim como são tomadas todas as coisas que estão fora dela, no entanto, assim como tomo o Outro como objeto, também sou tomado como objeto por ele:
“No momento em que o outro me olha, tudo se modifica como se ocorresse um ‘escoamento interno do universo’, uma “hemorragia interna”, pois quando sou visto, não capto os olhos do outro, vou além e capto uma consciência que me olha por detrás desses olhos.” (OLIVEIRA, 2008: 3-4)
A partir dessa constatação, Sartre introduz conceitos complementares a esse Ser Para-Si: o Ser Para-o-Outro e o Ser Aí-Para-o-Outro. Aquele refere-se justamente a esse pôr-se diante do Outro, compartilhando o protagonismo da existência, e perdendo a centralidade da história. Esse Outro é a referência que possuo de mim mesmo fora da minha consciência, objetificando-me, quer dizer, inserindo-me no mundo, revelando o meu Ser no mundo. Já o “Ser Aí-Para-o-Outro” é a assunção do ponto de vista alheio (OLIVEIRA, 1998), da imagem pessoal que se projeta no fundo do olho do Outro.
“Experimentar ser-para-outro ou ser-objeto equivale dizer que o Outro me faz perder a transcendência e me condena à facticidade, já que o Eu-objeto é a estrutura permanente do ser-para-outro. É quando o Outro me converte em objeto e também se apropria do entorno, faz com que meu olhar volte-se para mim mesmo, para minha facticidade.” (JACOBY; CARLOS, 2005: 49)
Ao tomar-me como objeto, o Outro me situa no tempo e no espaço, de modo que Eu me ofereço sem defesa à apreciação alheia, por isso, toda relação humana é conflitiva, e parte da disputa perpétua pela objetivação. Considerando que o Projeto Existencial consiste em o Para-si alcançar a forma estável do Em-si, a completude, o acabamento, sem perder a fluidez e a liberdade, tornando-se o Em-si-Para-si, a síntese perfeita, o Projeto de Ser-Deus, o ato de ser-visto, a forma objetiva do ser que vem de fora, constitui o modo pelo qual a liberdade é escravizada, e a unidade torna-se impossível: aquele que me olha é sempre meu carrasco (OLIVEIRA, 2008: 3-4). Em palavras diversas: o Outro denuncia a minha incapacidade de transformar-me naquilo em que anseio, ao mesmo tempo que afirma a minha pequenez – eu sou apenas um objeto no mundo.
A liberdade cede então para a alienação ao Outro, aquilo que Sartre chama má fé: inconformado com sua impossibilidade de ser-mais, ansioso e angustiado, o homem finge não ser livre, procurando convencer-se de que é do Outro a responsabilidade sobre suas decisões. Assim, o homem finge ser vítima do universo objetivo em que vive, e não assume sua condição de consciência livre, único responsável pela sua própria existência, em termos de escolhas. Como o homem não possui essência alguma que determine a sua existência, cada momento requer uma nova escolha, independente de todo seu passado. Isso o angustia, e o lança numa negação da própria responsabilidade sobre si.
4 A TEORIA SARTREANA DA PENA
É esse conflito inter e intraconsciencial que Sartre representa em Entre Quatro Paredes: as relações humanas são vistas como infernais, e o inferno é a própria convivência. Nesse momento, a filosofia sartreana institui uma Teoria da Pena, sinônima da Teoria da Sanção, porque não se observa uma distinção entre sanção moral e sanção jurídica em Sartre[5]. Para ele, a pena é um sofrimento acometido à consciência; esse sofrimento não é de ordem física, mas moral.
4.1 Os tipos de pena
A obra nos mostra quatro tipos de sanções (SIMÕES, 2005: 1-2):
1) “A vida sem interrupções”. Os prisioneiros são obrigados a não fechar os olhos, estão impedidos de fugir do presente, não é possível dormir, não há espelhos ou janelas, não há aberturas, passagens ou locais de refúgio no quarto, que representa a própria consciência. A consciência é obrigada a encarar a realidade, eis a punição.
2) A claridade eterna. Ao mesmo tempo em que a consciência não pode furtar-se a si mesmo, é obrigada a conviver consigo (claridade interna), e com os outros (claridade externa). A pena aqui é o ver e o ser visto, ou seja, submeter-se ao olhar petrificante do outro – o olhar de Medusa –, o sentimento de vergonha, o julgamento do outro que nos aprisiona, por nos roubar a liberdade absoluta.
3) O cenário e os personagens. Alguns elementos do cenário e o caráter de cada personagem servem para causar e intensificar o sofrimento.
Assim temos a estátua de bronze, imagem solene de um herói que faz lembrar Garcin de sua covardia, bem como lembra a todos a fixidez da morte e o aprisionamento dos homens, incapazes de mudar seus destinos. Os canapés substituem as camas que permitiriam aos personagens dormir, estão dispostos triangularmente, representando o conflito, em que cada um “espeta os demais”, e possuem cores que incomodam Estelle, mulher superficial e de gosto refinado. A lareira, o corta-papel e a campainha são inúteis e servem para recordam a existência na terra, reforçando a idéia da morte. O criado, frio e impessoal, uma máquina que nem sequer pisca os olhos, tem a função de criar a ilusão de uma sala de espera de um hotel, cenário familiar e absurdo, pois contraria a ideia de inferno tradicional.
Quanto aos personagens, Inês cometeu crime por seduzir a esposa do primo e provocar a morte do trio, e afirma trazer a condenação “antes de qualquer crime. Estelle é bela e atraente, logo desperta o desejo Inês, mas afasta-a dizendo não gostar de mulheres; narcisista a, precisa se sentir desejada por Garcin, o único homem presente, que,no entanto, não a quer. Garcin, por sua vez, busca aprovação da veraz Inês, crendo que o perdão bastaria para redimi-lo de sua covardia (a violência contra sua frágil mulher e o abandono de seu país durante a guerra). Cada um, portanto, busca apoiar-se no outro, e no outro encontra seu algoz.
4) “O inferno são os outros!” Essa assertiva significa que se dependermos unicamente dos julgamentos e das ações alheias, renunciando nossa liberdade, criamos nosso próprio inferno, inferno de medos, de má-fé e de incapacidade de autonomia. O Outro não é causa do sofrimento, mas o Eu faz do Outro o carrasco de sua tortura. O inferno se constitui de pessoas mortas, cujas existências estão para sempre definidas, congeladas como a estátua de bronze, representando aqueles que, ao negarem sua liberdade, preferem morrer em vida, como se pudessem “coagular o sangue da existência”, e permanecem mortos no meio de vivos. Renunciar à liberdade é condenar-se voluntariamente (quer dizer, livremente) ao inferno, conforme diz o próprio filósofo:
“[…] se minhas relações são más, nocivas, coloco-me na total dependência dos outros. E assim, com efeito, estou no inferno. Há uma quantidade de gente no mundo que está no inferno porque depende em demasia do julgamento do outro. Mas isso não quer absolutamente dizer que não possamos ter um relacionamento diferente com os outros. Isso marca simplesmente a importância de todos os outros para cada um de nós.” (SARTRE, 1965 apud SIMÕES, 2005: 4)
4.2 O fundamento da pena
Logo se percebe que Sartre compreende a pena como um ato simbólico, eminentemente moral, de modo que qualquer penalidade jurídica só terá enfeito enquanto puder se constituir numa penalidade moral. Ou seja, a punição ocorre sempre sobre a consciência e a partir dela, e nunca como algo exterior, como a tortura por exemplo. Penas físicas para Sartre não possuiriam efetividade alguma se não se constituíssem como representação de uma punibilidade de ordem metafísica, ou seja, como uma maneira de expor a consciência, de denunciar seu erro, de imprimir-lhe o reconhecimento de sua falta.
A moral sartreana, porém, não valora a escolha humana, somente a coerência da ação, ou seja, a assunção da responsabilidade. Assim, Sartre não pune – em primeiro plano – o infrator, mas o mentiroso; para compreender sua Teoria da Pena torna-se salutar o conhecimento de sua Teoria do Crime, que na verdade é a Teoria da Má Fé. Agimos com má fé cada vez que não assumimos nossa liberdade, a responsabilidade sobre nossas ações; criminoso é aquele que se recusa a reconhecer a sua existência e assumi-la como tal.
O crime para Sartre, portanto, não é uma conduta humana danosa, mas uma conduta humana que trai a realidade das coisas, refugiando-se numa suposta fragilidade de sua consciência. No entanto, essa negação do real não ocorre por motivo qualquer, mas por alguma causa razoável, algo que torne a realidade insuportável, ou ao menos indesejável, ou seja: negamos nossa responsabilidade quando ela se torna uma carga para nós. Encontramos nesse nível a ilicitude moral e jurídica do crime sartreano: o que negamos nas nossas ações não é o bonum, mas o malum. Em outras palavras, só queremos ocultar a realidade, quando recai sobre nós um dano, algo que desabona a nossa imagem perante o olhar do outro, de modo que procuramos negar a reprovação convencendo-nos de nossa retidão, e creditando ao outro a culpa pelos nossos malefícios.
A má fé, portanto, é o crime por excelência, como um crime de consciência, mas sua razão é na verdade um crime moral e/ou jurídico, ou seja, um crime de ação. Estelle e Garcin cometem, portanto, um duplo crime: a conduta danosa e a negação dessa conduta. Garcin[6] afirma que, em vida, foi redator de um jornal pacifista no Rio de Janeiro, recusou-se a lutar na guerra, fugiu, foi interceptado na fronteira e fuzilado; confessa ter maltratado sua mulher, e procura se identificar como um homem viril e corajoso, um herói injustiçado. Não obstante, sua biografia real é a seguinte: preso numa cela, teve tanto medo que morreu de um “mal súbito” (ataque cardíaco), é um fraco e covarde, tido como sujo e imoral pelos colegas de trabalho, donde a expressão “covarde como Garcin”.
Estelle, por seu turno, diz que é foi órfã e pobre, teria aceitado casar-se com um homem mais velho, rico e bondoso, como uma forma de proteger o irmão doente. Encontrando, certo dia, seu verdadeiro amor, decidiu renunciar a ele em nome da família. Morreu de “desgosto amoroso” (pneumonia). Ela se coloca como uma santa, uma pessoa que se sacrifica para o bem dos outros, mas na verdade, traía o marido com freqüência, teve um filho com um amante (Roger) e, na presença deste, matou a criança jogando-a em um lago suíço. O amante, em desespero, suicidou-se. Teve novos amantes; é narcisista, considera-se superior, bela, atraente. Ama o luxo, é arrogante e superficial.
Mas a Teoria da Má Fé, como fundamento da pena, possui um limite essencial: quando o criminoso confessa seu crime, como caracterizar a punição? Sartre não toma essa questão entre aquelas em que se debruçou ao longo de sua vida filosófica, mas podemos delinear uma resposta a partir de seu pensamento. Ele considera que o ser humano – a consciência humana, em última análise – é uma totalidade, portanto é impossível ao homem ser em parte coerente, e em parte mentiroso. Sendo a pena um efeito existencial do crime fático (não um imperativo categórico, pois Sartre desconsidera qualquer idéia de essência definitiva e preexistente, sendo assim, é impossível vincular ontologicamente pena e crime), confessar o crime e rejeitar a pena é não assumir a responsabilidade sobre suas escolhas, pois o que resulta das escolhas é parte da assunção da mesma, confessar o crime e rejeitar a pena, é por isso, má fé, pois o que assumiu foi o fato, não a responsabilidade sobre o mesmo, em seu sentido pleno, ou seja: o homem, em sua inteireza ainda procura renunciar à sua liberdade, e a confissão é um mero subterfúgio, uma manobra da consciência para assumir a realidade somente até o limite do que é desejável, suportável pelo Projeto Existencial.
Situação absolutamente diversa desta é o caso de Inês que não apenas assume o crime, mas também a pena. Será que podemos falar aqui em uma sanção no sentido sartreano, como um sofrimento infligido à consciência por sua má fé? Ora, Inês é a única dos três personagens a encarar a realidade de frente, com lucidez e coragem, assumindo todas as suas culpas, nada escondendo. É decidida e direta, diz em princípio ter morrido devido ao gás, mas logo reconhece sua própria maldade e o merecimento (justeza) da punição no inferno. Era empregada dos correios, e seduziu Florence, a esposa de seu primo, convencendo-a a morarem juntas. Seu primo morre em um acidente de bonde (talvez tenha sido suicídio) e Florence mata a si e a Inês, abrindo o gás do apartamento. Seu crime é o sadismo, a própria negação do ser bom, pois lançar mão do mal não lhe é uma ferramenta de ação – um “mal necessário” – a própria essência e finalidade de seus desejos: “Mas eu sou má: isso quer dizer que eu preciso do sofrimento dos outros pra existir” (SARTRE, 2007: 72).
De fato, aqui não se caracteriza o crime de consciência, a ma fé, mas um crime de ação, uma conduta danosa. O sofrimento de Inês não é a reprovação do olhar alheio sobre sua conduta – característico na má fé – e sim uma reprovação interior, devido à inadequação entre o Em-si e o Para-si: o Projeto existencial é sempre o projeto de Ser Um-com-o-Outro, outra seja atingir uma perfeição no modus essendi, perfeição esta que não pode nunca se efetivar se eu não consigo integrar consciência (intus) e mundo (foris), e assim, causar dano ao mundo, quer dizer ao Outro – que é justamente o liame entre o Eu e o Mundo – é sempre um ferir o próprio projeto de deificação de si (o Projeto do Ser).
A pena subsiste devido à duplicidade do construto de crime, já delineado: há um crime de natureza ontológico, como um ferir a própria natureza existencial, aqui chamado crime consciencial, porque só há ontologia – essência – no interior da própria consciência. O segundo tipo de crime é teleológico, um crime de conduta (ação), o crime jurídico propriamente dito, mas aqui considerado em sua estrutura material e moral – como um dano, um injusto acometido na existência intersubjetiva, independente de qualquer positivação moral e social (ou seja, o Direito) – que se carateriza por ser uma traição ao Projeto Existencial, um Projeto do Optimal[7], ou seja, do Ser-Deus.
Ao crime, corresponde a pena, uma pena sobre a consciência, portanto uma pena que possui natureza moral. Para Sartre nenhuma pena pode ter efeito se não atingir a consciência do indivíduo, por isso toda pena é moral, independente de sua origem e de seu modo de aplicação. Tomando os tipos de sanção delineados por Bobbio (2001), podemos afirmar que a sanção moral se dá no âmbito do Ser Para-Si, por ser uma sanção interior, enquanto, as sanções sociais e jurídicas se fazem no Ser Aí-Para-o-Outro, por serem exteriores à consciência, mas só se constituem penalidades à medida que se tornam conscientes, ou seja, atingem o indivíduo, em sua autorrepresentação. Disso advém que toda penalização, seja ela moral, social ou jurídica só atingem o indivíduo moralmente, de modo que só os efeitos morais podem ser penais, todos os demais elementos são simples instrumentos, tentativas de penalizar, donde, toda pena ser moral.
Entendemos aqui o construto de sanção segundo a perspectiva de Bobbio (2001), assim sintetizada por Ribeiro (2002):
“A sanção moral, puramente interior, é caracterizada pelo arrependimento e remorso e possui pouca eficácia, porque apenas os sujeitos que respeitam a norma moral podem sentir qualquer insatisfação ao desrespeitá-la. A sanção social, caracterizada como externa – pois quem a aplica é o grupo social e pode ser, de acordo com a gravidade, reprovação, eliminação, isolamento, expulsão ou até mesmo linchamento – padece da falta de proporção entre violação e resposta, o que significa que um mesmo ato pode ter punição diferente conforme a circunstância ou humor do grupo social; sofre também de incerteza e inconstância da aplicação dessa sanção, pois se é o grupo social quem pune, por vezes em razão de comportamentos hipócritas, pode não querer aplicar sanção a determinado indivíduo e/ou violação – dito de outro modo, a sanção social não é institucionalizada, sua aplicação é variável. A sanção jurídica, por sua vez, é externa e institucionalizada, ou seja, distingue-se respectivamente das sanções morais e sociais. Além disso, ela é regulamentada, tanto em sua medida quanto em sua forma de aplicação, e está a cargo de órgãos institucionalizados da sociedade.” (pp. 172-173)
É preciso visualizar que Sartre, embora não tenha diretamente concebido uma Teoria da Pena com todo o rigor metodológico que exige essa tarefa intelectual – mas esta se encontra subjacente em sua Filosofia. Ele não concebe a dor e o sofrimento causados pelo dano e pela má fé como imperativos categóricos, à maneira kantiana, mas como efeitos, como uma reação que se dá entres as subjetividades coexistentes: quando desrespeito o direito do outro, ele me repreende, e eu mesmo me repreendo por saber que agi de maneira contrária ao Ótimo (o Para-Si).
4.3 A finalidade da pena
Quanto à finalidade da pena, essa se confunde com a intencionalidade de sua aplicação. Se considerarmos a origem da pena, podemos visualizar uma possível finalidade retributiva – punitiva no sentido estreito, ou seja, vingativa – pois o outro me repreende para causar-me vergonha, constrangimento, para obrigar-me à confissão da culpa, uma exposição da consciência que procura esquivar-se. No entanto, a pena não se dá no momento em que o outro me olha, mas naquele em que percebo o seu olhar, nesse sentido, a punição só me atinge quando eu me sinto moralmente constrangido. A pena torna-se um fato então que se dá no interior da consciência, como apreensão do olhar externo – ou simplesmente como punição interior, no caso de uma sanção moral no sentido estrito[8] – e quando ela se forma, nada a tensiona, ou seja, não é um acontecimento dirigido, direcionado parta algum lugar, nesse sentido, a pena não possui finalidade alguma.
No interior da consciência, a pena possui apenas efeitos, que podem dar-se em dois sentido: enquanto aflição, retribuição pelo mal cometido, pois causa dor e sofrimento diante da incoerência do ser (enquanto consciência e/ou ação) – esse é um efeito intrínseco, inexorável, pois constitui o próprio acontecimento da pena; e como instrução, aprendizado da consciência a partir de seus próprios atos, um tomar a pena como um entrave à plenificação do Ser que precisa ser superado para que se concretize o Projeto Existencial. Essa última conseqüência, no entanto, é extrínseca, pois depende de uma atitude da consciência perante o seu próprio sofrimento, e não advém do sofrimento em si.
Considerando as finalidades clássicas das penas no Direito Penal, isto é, retribuir, prevenir e reabilitar, podemos visualizar a presença de duas delas na obra sartreana: a aflição retributiva, e a instrução reabilitativa. A prevenção, por sua vez, está fora das possibilidades efetivas da penalidade sartreana, isso porque, sendo que toda pena é moral e se realiza no interior da consciência, nada se pode inferir como efeito dela para os demais sujeitos, nem mesmo a exposição à vergonha, e o constrangimento que se pode observar na pessoa do Outro, porque não há na filosofia existencialista desse autor um relação de implicação entre o que acontece com o outro, e o efeito educativo disso na consciência dos demais. De outra maneira: a instrução a que nos referimos é pessoal e intransferível, circunscrita à própria consciência penalizada, de modo que, se os outros aprendem comigo, com a minha pena, isso se dá de maneira acidental e totalmente alheia ao acontecimento da pena em si mesmo.
Aflição, porém, não se confunde com retribuição, nem instrução com reabilitação, porque os efeitos conscienciais da pena são processos intrassubjetivos, enquanto a as definições clássicas do Direito Penal referem-se a processos sociais: a vontade social do castigo pelo mal causado, e o aprendizado social da indesejabilidade da pena e, como conseqüência, do crime. O que se considera aqui é a face interior, intrapessoal, dos processos sociais, não o processo como um todo, porque está muito além da pena moral de que fala Sartre. Assim como a penalização material (pelo cerceamento da liberdade e de outros direitos, pela repreensão social, pelo prejuízo econômico, etc.) só poder constitui-se pena, de pleno sentido, quando atingem a consciência do sujeito a que se dirigem, o efeito da pena só se realiza no quantum e no modus de incidência sobre a consciência, de forma que qualquer efeito externo se realiza por meio de fatos e processos que extrapolam os limites da penalidade, instaurando-se em outras dimensões da coexistência humana.
5 CONCLUSÃO
A obra de Sartre, portanto, insere o conceito de penalidade no interior do Ser, ou seja, como um fato que se dá na consciência, cuja origem remonta à prática social e à efetivação do Projeto Existencial. Ele distingue o crime por excelência – a rejeição da liberdade – e o crime advindo do mau uso da liberdade – a rejeição da perfeição. Quanto à pena, esta é caracterizada como um suplício da consciência por ela mesmo acometido, mas mediado pelo olhar do Outro, reprovador da essência e revelador da incoerência humana. A pena, por isso mesmo, não possui fim, mas efeito: é conseqüência da transgressão moral (hybris), que gera, no jogo de subjetividades, a repreensão, a vergonha, a dor e o sofrimento.
Informações Sobre o Autor
Marcos Paulo Santa Rosa Matos
Acadêmico de Letras e Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Ages