INTRODUÇÃO
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana possuiu suas bases no pensamento clássico[1] e no ideário cristão[2]. No pensamento cristão se assenta que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, digno, portanto. Sua Dignidade se associa ao fato da criação divina. No pensamento clássico, por outro lado, mostra-se presente a noção de “natureza individual racional”[3]. Uma racionalidade que se faz potencial e por isto presente até nas hipóteses em que a pessoa passe por privações de sentido.
Independente do referencial de que se parta, resta pacificado que a Dignidade da Pessoa Humana é o elemento fundante da vida. Racionalidade e autonomia estão na base da estrutura humana. Por ser assim, sabendo-se que o Ser Humano é digno e autônomo, a este deve ser conferida a prerrogativa de Ser e Estar no mundo sem sofrer qualquer discriminação. A realidade jus filosófica deve se estruturar para que o Ser Humano se realize em sua plenitude.
Definir Dignidade da Pessoa Humana é complexo. É certo que se pode contar com numerosas reflexões sobre o tema. Não há meios, contudo, para se aferir um conceito definitivo sobre o assunto. Algumas noções, entretanto, são convergentes: a) a felicidade[4] é o fim do Ser Humano; b) o direito surge do homem e para o homem; e, c) a Dignidade está fora do contexto do que pode mensurar na esfera econômica, sendo parcela essencial dos Direitos da Personalidade. Desta forma a Dignidade deve, por estar no núcleo destes direitos, ser preservada no que alude fundamentalmente: integridade física e psíquica.
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: UMA PRERROGATIVA DE TODOS
Dignidade, etimologicamente, vem do latim digna, anunciando o que é merecedor, digno, considerável etc. Significaria, também, cargo ou honraria. É adjetivo derivado da forma verbal decet, de decere, convir[5].
Desenvolvendo a noção que a perspectiva etimológica nos apresenta, temos que Dignidade é pressuposto da idéia de justiça, porque dita a condição superior do homem como ser de razão e sentimento, independentemente de qualquer merecimento pessoal ou social. É inerente à vida. Disto podemos dizer, com clareza, que a Dignidade é direito que precede ao Estado, no exato sentir da lição de Carmem Lúcia Antunes Rocha:
““O sistema normativo de direito não constitui, pois, por óbvio, a Dignidade da Pessoa Humana. O que ele pode é tão-somente reconhecê-la como dado essencial da construção jurídico-normativa, princípio do ordenamento e matriz de toda organização social, protegendo o homem e criando garantias institucionais postas à disposição das pessoas a fim de que elas possam garantir a sua eficácia e o respeito à sua estatuição. A Dignidade é mais um dado jurídico que uma construção acabada no direito, porque firma e se afirma no sentimento de justiça que domina o pensamento e a busca de cada povo em sua busca de realizar as suas vocações e necessidades”[6]. (destacou-se)
Toda Pessoa Humana é digna, porque a Dignidade é pressuposto de sua condição. É a Dignidade, portanto, quem qualifica a pessoa, colocando-a em uma categoria acima de qualquer indagação. Informa, por esta razão, que, mesmo nos casos de peculiaridades pessoais, como os estados de privação, não se poderá falar em exclusão. A partir do regime que a Dignidade orienta, nenhuma pessoa pode ser preterida pelo sistema posto, pois o sectarismo é incompatível consigo.
Falamos, todos, em Dignidade. Este preceito é fundamental, sem qualquer dúvida. Mas em que consiste efetivamente? Qual o sentido e a função da expressão? Qual seu alcance? Que significa dizer que é fundamento da República Federativa brasileira?
Aos questionamentos apresentados, parece-nos producente se trazer à colação a lição do professor Ingo Sarlet, onde lemos que a Dignidade é:
“a qualidade intrínseca e distintiva de cada Ser Humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”[7] (destacou-se)
O destaque feito na definição do professor Sarlet se mostra importante. Com este se retoma o conceito liberal dos primórdios do Constitucionalismo Moderno e sua consideração do indivíduo, apontando para cada Ser Humano. Neste ponto é de se dizer que cada Ser Humano deve ser considerado pelo ordenamento jurídico, sem qualquer possibilidade de exclusão. Dignidade da Pessoa Humana, então, ainda guarda a significância dos primórdios: garantia do indivíduo contra o arbítrio estatal. A um só tempo aponta para respeito. Anuncia que é dever do Estado, e também da comunidade, dispensar a cada Ser Humano igual respeito e consideração, o que impediria atos de natureza degradante e desumana.
Como se percebe, é a Dignidade da Pessoa Humana a qualidade intrínseca e distintiva do Ser Humano, precedendo ao Estado. Nada obstante, uma vez considerada a existência deste, não há dúvidas de que sua função é realizar o complexo de atos que assegurem seu regime. A Dignidade é, então, um modo de poder-dever pelo qual todos são chamados a participar da grande aldeia comunitária. Todos têm prerrogativas contra o Estado e seus cidadãos. Ao mesmo tempo todos possuem deveres em relação aos cidadãos e à organização política estatuída.
A definição do professor Sarlet, anteriormente transcrita, traz elementos essenciais para que se possa considerar o que é Dignidade. Tais elementos são importantes porque fundamentam a tese de que é esta o ponto de partida dos Direitos Humanos. É importante, inclusive, porque permite se concluir que a Dignidade da Pessoa Humana está no núcleo dos Direitos da Personalidade, tornando tais direitos, na parcela nuclear, intransmissíveis, indisponíveis e absolutos.
A suposição trazida à colação é importante. A idéia de respeito permite uma releitura do tripé estrutural da Revolução Francesa. Desta forma, ao se falar em “fraternidade com respeito” se mostra clara a noção de solidariedade. Tolerância assume lugar importante. O respeito aduz a que cada indivíduo seja capaz de ver a perspectiva do outro. Não mais apenas uma prerrogativa de se situar contra o Estado, mas, também, e isto merece destaque, ser respeitado pelos próprios pares. Nisto o direito se faz agregador. Ver a perspectiva do outro, que não implica em se ser o outro, nos impõe a necessidade de respeitar os pontos de vista que são diferentes dos nossos. Impele-nos a entender as aspirações que sejam diferentes das que possuímos.
Ser fraterno, à luz da Dignidade da Pessoa Humana, não se reduz a tratar de forma respeitosa os que nos são iguais. Também, e, principalmente, aponta para a necessidade de respeito do diferente. Neste ponto, é de se ter que a solidariedade é um princípio essencial. É fundamental por estar marcado pelos valores que advêm do regime da Dignidade Humana.
Já se apontou que não se mostra trabalho simples reduzir o alcance do significado da expressão Dignidade da Pessoa Humana a elementos de morfologia e sintaxe. É de se ressaltar, todavia, as referências de maior relevância sobre o preceito.
Por Dignidade da Pessoa Humana pode se entender o substrato ético que consubstancia os valores básicos reconhecidos por uma sociedade. Trata-se da essência do Ser Humano, porque é do cerne da constituição da humanidade autonomia e racionalidade, que marcam o regime em comento. Não se faz necessário, por isto, que o princípio seja levado às minúcias. Através deste se elege o vetor que se quer priorizar, tornando-se possível uma discussão ética do direito, no direito e para o direito. Torna-se possível se entender e compreender suas razões e objetivos.
Da discussão aludida, uma questão se faz remanescente. Por mais que não se possa sedimentar um conceito absoluto sobre a Dignidade da Pessoa Humana, desponta um questionamento que remonta o pensamento clássico grego, presente na lição de Aristóteles: “a felicidade é o fim do homem”[8].
Sendo a felicidade o objetivo crucial do Ser Humano, e reconhecendo-se que este é digno, não há como se ignorar a idéia de autonomia. Partindo-se da noção de felicidade e de autonomia, resta pacificado que é da esfera da pessoa decidir os rumos que dará à sua vida para ser feliz. Tendo isto assente, não há como se pensar um direito que não se volte para o homem. Não há como se reconhecer um direito que não tenha sua base na Pessoa Humana.
A Dignidade está fora do contexto do que se afere no aspecto financeiro. Esta suposição se faz clara, principalmente na lição de Kant. Desta consideração tem-se que “é dever do Estado”[9] realizar, como missão positiva, políticas que vão ao encontro da realização da felicidade. Não basta enunciar[10] direito e dizer que a constituição é cidadã. É preciso se criar mecanismos para que esta cidadania seja realizada.
Como missão negativa tem-se que o Estado não pode criar mecanismos que objetem à realização do “Eu no Mundo”, como parece estar ocorrendo com o Projeto de Lei 6.655-B de 2006. Dizemos isto porque do regime da Dignidade Humana decorre autonomia, ponto de partida para as pessoas realizarem a felicidade. Esta autonomia, reconhecida no plano Constitucional, é negada neste projeto, que taxa o (re)designado[11] em seu registro de nascimento com a alcunha transexual. No plano constitucional existe homem e mulher, mas no projeto, já aprovado na referida comissão, há uma terceira espécie. Com este haverá, então, homem, mulher e transexual.
Esta terceira figura, conquanto fuja ao padrão percebido por Laquer e ao consagrado no corpo constitucional, foi aprovada no controle prévio de constitucionalidade realizado na estrutura legislativa. Neste ponto é de se laurear a possibilidade do judicial review prevista em nosso ordenamento. Fosse na França[12], conquanto a mácula de inconstitucionalidade possa ser aventada, a situação não seria passível de revisão judicial.
A referência encontrada no Projeto de Lei aludido vai de encontro à nossa construção doutrinária e jurisprudencial. Esta assertiva tem por base a consideração que uma parcela essencial da Dignidade restará mitigada. Sendo a Dignidade da Pessoa Humana o postulado que encerra a prerrogativa de todos[13] os humanos de serem respeitados como pessoas, não parece producente se criar um terceiro gênero, que é constrangedor, evidentemente.
Como se percebe, ao menos no plano dogmático, resta claro que a Dignidade da Pessoa Humana importa em respeito a todos. Um respeito que impediria prejuízo à existência das pessoas, tal como a objetificação ocorrida com os escravos[14].
O regime vivenciado no plano constitucional aponta nesta direção. Todos são iguais perante a lei e assim devem ser respeitados. É de se considerar, contudo, que nem sempre foi assim. É importante, por isto mesmo, se buscar a referência histórica da locução.
Todos são iguais perante a lei, no plano constitucional, porque todos são dignos. Sabendo que todos são dignos, não se pode deixar de considerar a importância da construção a partir da qual se sedimenta a locução Dignidade da Pessoa Humana. Uma expressão que começou a ser desenhada na antiguidade, desenvolveu-se na Idade Média com a perspectiva do cristianismo e foi pluralizada na contemporaneidade, sobretudo em razão das Revoluções Burguesas, como se verá no item seguinte.
DIGNIDADE NA ANTIGUIDADE
Na antiguidade, segundo Frei Secondi[15], a Dignidade da Pessoa Humana era nominada hypostasis, significando o que está na base e apontando para o que é fundamental. Com esta se considerava tão-somente o que essencial.
A idéia de fundamento e base de sustentação, vista na antiguidade, é exatamente o que chega até nós com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil. Este Diploma – em seu artigo 1º, III – reconhece à Dignidade da Pessoa Humana a condição de princípio fundamental, situado, por isto mesmo, no vértice do ordenamento jurídico. Em decorrência disto, resta evidente que qualquer subsunção ou integração a ser feita no “sistema jurídico” [16] deve ter em consideração a sua perspectiva.
A hypostasis, percebida por Secondi como essência de base, chegou até nós como Dignidade da Pessoa Humana. Para a consolidação deste conceito, todavia, foram importantes as contribuições de muitos doutrinadores, merecendo destaque a proposição de Boécio[17], para quem Dignidade é a rationalis naturae individua substantia: substância individual de natureza racional.
As lições de Boécio ressoam nas obras de quase todos os autores que se detêm sobre o tema[18]. É de se destacar, todavia, que esta referência se faz própria no mundo judaico-cristão[19], marcado pela individualidade. Em culturas tribais e animistas, todavia, a idéia perde força e a racionalidade individual dá lugar a um sistema que se volta à coletividade.
Embora o Ser Humano seja um ser complexo, a noção percebida por Boécio se mostra producente e encerra de modo sintético o que se tem de mais coeso sobre Dignidade para a referência ocidental. A racionalidade individual se apresenta, neste seguimento, como o traço distintivo da pessoa. É de sua essência e de sua natureza. É o diferencial, também detectado por Comparato[20], que distingue o Ser Humano e justifica os Direitos Humanos e os Direitos da Personalidade.
A referência ocidental de pessoa, ao menos no plano das idéias, se mostra clara nos dias de hoje. Pessoa é todo Ser Humano, aos quais se deve reconhecer a possibilidade de se autodeterminar, exercendo os direitos de que são titulares. Não basta, contudo, a possibilidade de autodeterminação. Sendo o homem “Ser Social”, suas determinações precisam ser encampadas pela ordem jurídico-social, salvo quando o exercício das deliberações vir a contrariar esta ordem de modo objetivo.
A idéia sobre autodeterminação[21], associada ao conjunto de direitos que demandam uma atuação positiva do Estado, aponta para um só fato. Ser “Ser Humano” é ser Pessoa Humana, devendo a atuação estatal primar pelo reconhecimento das questões pertinentes aos Direitos da Personalidade, sobretudo quanto à parcela destes que é indisponível; onde estão situados os valores correlatos à Dignidade da Pessoa Humana.
A correlação entre “Direitos da Personalidade” e “Dignidade da Pessoa Humana”, na quadra de direitos vivenciada, se mostra clara. Assim, até mesmo as características dos Direitos da Personalidade, historicamente sedimentadas, precisam ser lidas à luz da Dignidade Humana, especialmente no que diz respeito à transmissibilidade e disponibilidade. É de se considerar que há Direitos da Personalidade que podem ter o “exercício disposto” (no sentido defendido por Oliveira Ascensão[22]), caso da intimidade. Desta forma, pode o titular autorizar a veiculação de imagens suas, mas isto não implica em renúncia ao Direito de Intimidade. Significa, tão-somente, que o exercício do direito foi disposto.
A correlação aludida é importante. Importante também é entender a referibilidade da locução Dignidade da Pessoa Humana, que, em uma leitura apressada, parece concatenar uma repetição desnecessária e redundante. É preciso, desta forma, se entender a expressão Pessoa Humana.
POR QUE PESSOA HUMANA?
Entender a expressão Pessoa Humana é importante, sobretudo quando se pensa em Direitos da Personalidade, afinal, é a partir da perspectiva da personalidade que se concebe historicamente a pessoa. Pessoa, no ponto de vista que coincide com a aspiração do Direito Positivo, é o Ser Humano a quem a ordem jurídica reconhece personalidade.
A locução Pessoa Humana é daquelas que alude à redundância. É de se ter, contudo, que esta redundância é aparente. Uma referibilidade anafórica que se justifica quando se pensa na expressão do ponto de vista histórico, onde podemos perceber períodos em que personalidade era atributo reconhecível[23] pelo ordenamento jurídico, e não um atributo inerente à condição humana.
Dignidade é expressão que tem na igualdade[24] – formal em um primeiro momento, e, atualmente também material – sua correlação direta e necessária. Esta correlação se mostra importante porque, em alguns momentos, nem todos os humanos eram considerados sujeitos de direitos. Alguns indivíduos eram tomados por objetos, não sendo Pessoas Humanas. Não eram pessoas, na perspectiva do direito, porque não lhes era reconhecida personalidade jurídica e, assim, aptidão para aquisição de direitos e deveres, confundindo-se com objetos ou coisas.
Coisificação ou objetificação, em si consideradas, caracterizam um fenômeno onde o indivíduo recebia tratamento de coisa-objeto. Este tratamento não mais é possível na quadra de direitos vivenciada, mas foi uma realidade histórica marcante. No caso brasileiro, para se precisar, tivemos a situação de escravidão, legalmente instituída até 13 de maio de 1888[25].
Nos dias de hoje, quando se pensa em Dignidade da Pessoa Humana, resta claro que esta é uma decorrência de se ser “Ser Humano”. Esta correlação, que atualmente se faz lógica, é uma verdade histórica do momento vivenciado. Nem sempre foi assim, como se viu. Exatamente por isto pareceu pertinente se trazer para o corpo do texto este esclarecimento.
A pluralização da Dignidade da Pessoa Humana como inerente ao Ser Humano e o tratamento legislativo do tema se mostram positivos. É de se ter que desde a antiguidade já se fazia referência ao assunto. É de se ter, também, que, conquanto as referências sejam antigas, a realidade sempre foi de negação dos sucedâneos deste preceito.
Desde a antiguidade clássica a idéia acerca da Dignidade da Pessoa Humana já se encontrava presente. Por isto se trouxe à colação a noção de hypostasis. Tendo-se isto em mente, resta clara a negação de preceitos que decorrem do regime da Dignidade. Entre nós, ainda mais, vide as referências, mantidas até a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, como filhos espúrios e ilegítimos. Mais grave ainda se mostra a situação da escravidão, formalmente abolida, mas materialmente vivenciada em alguns pontos do país.
Falar em Dignidade da Pessoa Humana é muito salutar. Não basta, contudo, se ter um discurso bonito e acabado sobre o tema se se pode detectar no plano social e jurídico-legislativo medidas que a contrariam. Negar a condição de Dignidade de forma a priori não se faz possível, já que todos são iguais perante a lei. Há casos, ainda assim, em que a igualdade é negada. Não no plano tributário, uma vez que o dinheiro não cheira. O non olet, com o qual se legitimou a cobrança de tributo pela utilização de banheiros públicos na realidade romana, se faz presente. Por isto mesmo o homossexual contribui para a previdência como o heterossexual e, na hora de deixar dependentes, encontra mais dificuldades. O senhor de 80 anos pode deixar como beneficiária sua companheira de 20 anos, ainda que o casamento tenha durado meses. Se se tratar de uma união homo-afetiva, contudo, mesmo que tenha durado 30 ou 40 anos, as dificuldades se farão presentes.
Na perspectiva tributária a igualdade se faz clara com a contribuição previdenciária, mas isto não se consubstancia no aspecto retributivo do instituto. Como se assinalou, todos são iguais no momento de contribuírem, mas, por ocasião da retributividade, desigualdades de tratamento são detectadas. Além disto, há diferenças na questão da cidadania ao se considerar a superação do clássico conceito eleitoral do instituto: votar e ser votado. Desta forma o transexual, cidadão na perspectiva eleitoral, tem sua intimidade mitigada, como se percebe no Projeto de Lei[26] destinado a cuidar do tema. Cidadão é quem recebe do Estado a base de endereçamento de direitos e garantias fundamentais, sem qualquer exceção. Ao transexual, como se evidencia, nega-se parte desta base.
É certo que houve mudanças no plano social e jurídico que vão de encontro da possibilidade de negação dos correlatos da Dignidade. Estas mudanças precisam ser compreendidas, inclusive do ponto de vista da negação do retrocesso[27], para não se mitigar conquistas que são próprias da humanidade. Para não se negar direitos que são da condição humana, sem qualquer exceção.
A negação do retrocesso, que deve marcar as conquistas da Dignidade da Pessoa Humana, é modo de se conferir eficácia jurídica à norma, no sentido de se limitar a criação de regras que venham a negar direitos consolidados. Aliás, conquanto a doutrina fale em sua maioria da negação na perspectiva legislativa, parece-nos que as conquistas sedimentadas no plano judicial também devem ser respeitadas pelo legislador, porque o aspecto democrático, vivenciado quando da elaboração das leis, não pode ser manto a encobrir arbitrariedades. É preciso se ter clara a noção – já defendida pelo Abade Sieyés em seu Qu’est-ce que le Tiers État? – de que o direito é também, e isto merece ser destacado, um remédio contra majoritário[28].
Em matéria de transexualidade o direito tem evoluído no sentido de maior agregação. Assim a mudança de nome tem sido deferida. De igual modo tem sido deferida a mudança civil de sexo.
A mudança no plano judiciário se reflete na perspectiva legislativa. Infelizmente – em razão da multiplicidade congressista, marcada por grupos que se esquecem da laicização[29] do Estado e se baseiam em dogmas, sobretudo religiosos – temos visto um movimento no sentido de se retroceder. Um movimento que, efetivado, importará na criação de um terceiro gênero.
Ver o direito nas suas múltiplas facetas é importante. O trabalho de interpretação é fundamental para se efetivar e se sistematizar de forma vetorial a Dignidade Humana. Esta compreensão é importante para que, em nome do direito, não se segregue e exclua, como, aliás, já se fez.
Segregar em nome do direito não é novidade. Nesta medida, cabe se colacionar o exemplo do estado nazista, paradoxalmente amparado pelo positivismo de Kelsen. Este teórico, em nome de uma metodologia que dava ao direito a condição de fim em si próprio, pugnou pela legitimidade do 3° Reich. Não que o nazismo o aproveitasse. Pelo contrário. Kelsen era judeu e nada tinha a ganhar com o regime. Nada obstante, por suposto de unidade, coerência e completude de sua teoria se viu compelido a discursar em nome da validade do regime, baseado na estruturação orgânica e fechada em si na tese do ordenamento jurídico.
Hoje resta claro que o direito não é fim em si próprio. Na verdade, o fim do direito é a Pessoa Humana. É o fim deste e o antecede. Este deve se aparelhar, por isto mesmo, para permitir que a pessoa se realize na sua plenitude. É preciso se reconhecer as prerrogativas decorrentes da Dignidade, mas, sobretudo, permitir a realização destes sucedâneos. Do contrário, ter-se-á um Estado vazio em seus propósitos. Um Estado que prevê e admite possibilidades, mas que nada faz para a realização das mesmas.
Guardadas as devidas proporções, qualquer entendimento do direito que esqueça sua condição de realização do Ser Humano (que o direito surge do homem e para o homem) brindará com valores nazistas. A afirmação, que parece forte, é feita por se considerar que a Dignidade da Pessoa Humana, positivada ou não, deve ser a ótica para se ver o direito. Do contrário, segregar-se-á e se criará tercium genius em nome de um estado de segurança, o que parece ocorrer na experiência legislativa brasileira – em sede projetos[30], diga-se – com relação à transexualidade. Em nome de uma segurança social haverá pessoas relegadas a um plano distante do estado de Dignidade.
CONSTITUCIONALISMO MODERNO: A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A AMPLIAÇÃO DO CONCEITO COM A CRISE DO LIBERALISMO
Embora os preceitos acerca da Dignidade Humana sejam referidos desde a Idade Antiga, o fenômeno legislativo do preceito é uma particularidade do Constitucionalismo Moderno. Um movimento iniciado com a promulgação da Magna Carta[31], na qual já se percebe os elementos essenciais de constituição do Estado: limitação de poder e declaração dos Direitos Fundamentais.
Conquanto iniciado no século XIII, fato é que o Constitucionalismo se consolida nos séculos XVII e XVIII com o advento das Revoluções Burguesas, notadamente a Francesa, cujo marco temporal é a “Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão”[32].
A alusão ao Constitucionalismo Moderno precisa ser bem compreendida. Sua consolidação se dá com as Revoluções Burguesas, de marca liberal. O sucedâneo lógico da elevação deste matiz ideológico, por evidente, foi um período de intenso liberalismo econômico, que marca o início da Idade Contemporânea. Direitos Individuais, nesta quadra, significavam poder fazer tudo. Fazer de tudo e com as bênçãos de um Estado obrigatoriamente omisso.
O Constitucionalismo Moderno, em sua vertente inicial, consagra um modelo individualista. Para proteger os cidadãos dos abusos estatais, os Direitos Individuais são pensados como escudos. Escudos contra o arbítrio do Estado, significando muito pouco em relação aos pares sociais.
Como os Direitos Individuais diziam diretamente com a possibilidade do “deixa fazer, deixa passar, deixa estar”, abusos são percebidos. Por isto mesmo foi preciso, logo no início de nossa era, surgir legislações voltadas para a contenção de abusos. Esta primazia é creditada à Moral and Health Act[33]. Ao limitar a jornada de trabalho dos menores a 12 horas por dia, assenta que o Direito do Trabalho é “fruto da interação do fato econômico com a questão social.”[34]
O marco inicial da Idade Contemporânea, como se sedimenta, foi o liberalismo. Liberdade, que marca o ponto de partida do tripé estrutural da Revolução Francesa, configurou-se em um molde cujo correspondente necessário era a propriedade privada e a omissão estatal, caracterizando os “Direitos Humanos de Primeira Dimensão”[35]. Vivia-se, então, um momento de notória elevação do valor individual[36]. Um momento em cada particular podia fazer praticamente tudo sem que o Estado se opusesse à sua atuação. Uma ocasião em que foi comum a exploração do semelhante pelo semelhante.
No liberalismo inicial a idéia de propriedade privada sobejava. Por conseguinte se vivenciava o afastamento estatal. Uma resposta à formatação absolutista vivida, onde primeiro e segundo estados – clero e nobreza – representavam real empecilho para o exercício das liberdades individuais da população.
Com o constitucionalismo liberal o cidadão passa a ser juridicamente livre para se expressar, locomover e buscar recursos econômicos como quiser. Em essência, busca segurança nas relações jurídicas e proteção do indivíduo contra o Estado, o que se pensou possível pela vivência do liberalismo, enfatizando que as Leis de Mercado – como pretendeu Adam Smith no seu Natureza e Causas da Riqueza das Nações[37] – fossem a base de todos os relacionamentos sociais.
O liberalismo pretendido mostrou não ser tão eficaz como anunciado. Em nome da liberdade abusos foram cometidos. Não se tem como negar sua efetividade no contexto em que o melhor para o indivíduo era o que lhe atendia. É de se reconhecer seu papel em uma sociedade focada nos direitos subjetivos como marca da individualidade. Uma marca que deve ser repensada na quadra da solidariedade, já que o exercício dos Direitos Individuais não pode ser manto a permitir que um indivíduo passe por sobre outro.
O momento atual é propício para se (re)pensar o direito. A noção de sociabilidade é importante. Importante também é a idéia de Direitos Individuais. Destas considerações, é de se ter que o direito precisa assumir sua função conciliatória. As prerrogativas individuais ligadas aos Direitos da Personalidade têm de ser resguardadas a fim de que a pessoa não se perca no tecido social. A um só tempo, este tecido social deve ser preservado. Em meio a esta contradição dialética, o direito precisa se fazer agregador e conciliador.
A Dignidade da Pessoa Humana, cuja possibilidade de encampamento legislativo adveio das Revoluções Burguesas (e da consideração individual que esta propôs), carece ser repensada em um contexto de afirmação de prerrogativas pós-materiais. Não mais interessa um direito que se volte apenas para a garantia de direitos subjetivos como possibilidade de apropriação. Não há dúvidas de que o exercício de direitos, como os da personalidade, permite a apropriação do ter. É de se deixar claro, todavia, que a garantia do ter não é mais o único objetivo do direito.
A noção de Dignidade, que no início da Idade Contemporânea se contentava com a igualdade formal, volta-se hoje em dia para a realização da autonomia e da racionalidade. Por isto não se pode perder de mente que o valor do direito está no fato de este se voltar para o Ser Humano, que é sua razão e fundamento.
O fundamento dos Direitos do Homem não é outro senão o próprio homem, “considerado em sua Dignidade substancial de pessoa”[38]. O homem, “ser cujo valor ético é superior a todos os demais no mundo”[39], deve ter garantido para si um mínimo de direitos, restando evidenciado que a Dignidade deve ser tomada por pilar essencial.
Retomando as noções acerca do Constitucionalismo Moderno, é de se dizer que a partir deste movimento a quase totalidade das Constituições passaram a apresentar a Pessoa Humana como norma fundamental, mesmo que de modo implícito. De modo expresso, é de se dizer, o preceito passou a integrar os textos constitucionais no período posterior à segunda Guerra Mundial[40], influenciados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948[41].
Nos Estados Democráticos de Direito do pós-guerra pode se destacar a Lei Fundamental de Bonn[42], em que já se consagrava ser “a Dignidade do homem intangível”. No seguimento histórico devem ser destacadas as Constituições Portuguesa (1976) e Espanhola (1978).
Com o fim do comunismo no leste europeu, países de diretrizes totalitárias passaram a inserir nos textos magnos a Dignidade da Pessoa Humana como princípio fundamental, exemplo de Croácia, Romênia, Letônia, Estônia, Lituânia, República Tcheca e Rússia.
A partir do segundo pós-guerra, ao menos no plano das leis, a concepção de que o respeito ao Ser Humano deve ocupar o centro de toda e qualquer atividade desenvolvida ganha força. Esta constatação rompe com as fronteiras do Estado Liberal para apresentar um modelo onde os valores essenciais ao Ser Humano são fundamentos da nova soberania. Desta forma os princípios informadores do Estado Democrático (Cidadania e Dignidade da Pessoa Humana) são trazidos para a realidade constitucional e passam a ser exigíveis no plano jurídico.
Nos dias de hoje temos claro que a Dignidade da Pessoa Humana é base da ordem jurídica, sendo elo a unir regras, princípios e valores que informam a atividade jurisdicional, legislativa e executiva. Esta fundamentalidade se apresenta importante e confere ao direito um objeto. Um elemento a que deve se voltar e reportar, sempre.
Não há qualquer dúvida sobre a importância da Dignidade da Pessoa Humana para a ordem jurídica de todos os países democráticos nos dias de hoje. Os valores atinentes a si foram percebidos e encampados pelas ordens jurídicas mundo afora. Esta percepção é um fato, pelo menos no plano legislativo-constitucional. Na realidade do Judiciário, contudo, há casos de negação da própria tutela jurisdicional, marco mínimo do Estado de Direito, como ocorreu no caso do jogador Richarlyson, sobre o qual assim se manifestou o magistrado: “quem é ou foi boleiro sabe muito bem que estas infelizes colocações exigem réplica imediata, instantânea, mas diretamente entre o ofensor e o ofendido, num tête-à-tête”[43].
Do que se expôs, e da consideração de que o fenômeno legislativo sobre a Dignidade da Pessoa Humana aponta para apreensão do conceito, e não criação, lição esposada pela professora Carmem Lúcia[44], mostra-se importante que entendamos as linhas de pensamento que apresentam uma estruturação para o princípio, destacando-se os pensamentos cristão e kantiano.
DIGNIDADE HUMANA NA PERSPECTIVA CRISTÃ
A noção de Dignidade da Pessoa Humana, para o cristianismo, parte da origem divina do homem, quando lhe teria sido atribuída destinação superior. Esta destinação decorreria de sua criação à imagem e semelhança de Deus[45] e do dever de dominar[46] a terra e os animais, anúncios inscritos no livro de Gêneses, que abre as Sagradas Escrituras.
Na perspectiva tracejada, a Dignidade se apresenta como um sucedâneo da vontade divina, manifestada no fato de o homem ter corpo e alma. Por ter corpo e alma seria reflexo do divino. Uma reflexidade que, entre outras coisas, dita a condição de dignidade e de superioridade do homem em relação a toda ordem de animais e coisas.
A noção de criação nos apresenta uma dimensão qualitativa. Em relação aos demais seres uma superioridade patente, daí o dever de dominação. Em relação aos seres humanos, contudo, uma igualdade substancial. Assim, “nenhum indivíduo possuiria maior ou menor grau de Dignidade”[47]. Todo homem é criado à imagem e semelhança de Deus, não se justificando diferenciações de nenhuma ordem.
A questão da Dignidade da Pessoa Humana na perspectiva Cristã se apresenta como um paradoxo, afinal, se todos são frutos da criação divina, como pode ter sido legitimada por anos a fio a escravidão? Mais paradoxal ainda foi a situação da escravidão no Brasil, já que o registro dos escravos, assim como qualquer registro público, era feito dentro das paróquias, fato mantido na sua integralidade até a década de 1870[48].
Feita a digressão em razão do contratempo histórico da escravidão no caminho da consolidação da Dignidade da Pessoa Humana, não se pode deixar de considerar que a proposição religiosa implica na aceitação da idéia do criacionismo e de noções metafísicas. A par da questão que envolve dogmas, contudo, parece producente a aceitação racional de que todos são iguais nas questões fundamentais.
A racionalidade aventada é referida também na perspectiva de Kant. A perspectiva Cristã, contudo, consoante o professor Cleber Francisco Alves, aponta que o Ser Humano não pode ser reduzido à sua dimensão material, econômica ou social, devendo se considerar a dimensão psíquica e espiritual:
“não se pode olvidar que a noção de Dignidade humana está visceralmente fundada numa autêntica compreensão do que é o homem, e a respeito do verdadeiro sentido de sua vida, sentido esse que não pode ser encontrado apenas numa perspectiva reduzida à sua dimensão material, econômica ou social, mas deve ser respondido também quanto à dimensão psíquica e espiritual, voltada para o transcendente, indissociável em sua natureza.”[49] (destacou-se)
Na lição colacionada a idéia de transcendência é apontada como basilar. Um suposto para a compreensão do que é o homem e do sentido de sua vida. É uma explicação razoável para os que se afinam ideologicamente com os ensinamentos da Igreja de Roma. Por apontar fundamentos que transpassam à noção física da existência, todavia, poderá ser rejeitada, como, aliás, procede Nietzsche:
“nem a moralidade e nem a religião têm qualquer ponto de contato com a realidade. O Cristianismo oferece causas puramente imaginárias (“Deus”, “alma”, “ego”, “espírito”, “livre-arbítrio” – ou mesmo “não livre”) e efeitos puramente imaginários (“pecado”, “salvação”, “graça”, “castigo”, “perdão dos pecados”).[50]. (destacou-se)
Ainda que se rejeite a idéia da Dignidade Humana a partir da referência Cristã, não restam dúvidas de que temos nos dias de hoje um momento histórico singular para a recolocação do direito como protetor e mantenedor da pessoa. Um momento em que se pode dizer que a pessoa é razão e objetivo do Direito.
A perspectiva Cristã foi tracejada. Não se pretendeu esgotar o tema por razões metodológicas e instrumentais evidentes. O que se quis foi trazer apontamentos sobre a influência do cristianismo para o desenvolvimento do conceito da Dignidade da Pessoa Humana. Por isto, idéias sobre a criação (elevação de Dignidade que decorreria do fato da semelhança com o criador e da destinação de dominador), a necessária transcendência, proposta pelo professor Cleber Alves, e a racional proposição de que o cristianismo não teria criado, mas concatenado a partir da reflexão, lições que engrandecem a condição humana.
Feitos os comentários sobre a lição do cristianismo para a doutrina da Dignidade da Pessoa Humana, tem-se que o matiz kantiano é importante para o estudo do tema. Por isto mesmo, passa-se neste momento ao enfrentamento deste preceito sob o enfoque de Kant.
A PERSPECTIVA KANTIANA DA DIGNIDADE
A leitura cristã do Ser Humano, atribuindo-lhe personalidade, foi fundamental para a filosofia e o direito desenvolverem a proteção da Dignidade da Pessoa Humana e dos Direitos da Personalidade. Diz-se isto porque, antes da doutrina Cristã, nada havia no plano das idéias que limitasse a priori as medidas de caráter excludente.
Os conceitos cristãos sobre a pessoa foram secularizados de modo característico a partir da Idade Moderna, quando a filosofia incorpora elementos desta vertente de pensamento às suas bases, especialmente no Iluminismo. Este movimento, conquanto visasse à racionalidade, partia da consideração do indivíduo, no que pôde contar com as reflexões do cristianismo.
Esta incorporação, associada ao discurso laico[51], aponta no sentido de que os fundamentos da tutela da pessoa devem ser seculares, ainda que a base seja metafísica nos primórdios. Esta fundamentação laica se faz necessária em razão da lógica do pluralismo social contemporâneo, que aponta no sentido da aceitação da diversidade.
Vista a necessidade de um discurso secular acerca da Dignidade da Pessoa Humana, mostra-se basilar se trazer à colação a contribuição de Kant, para quem são fundamentos da Dignidade a igualdade e a racionalidade[52]. A todos se confere igualdade perante a lei. A racionalidade[53], de igual modo, integra o patrimônio ético de todos. Mesmo que se pense em igualdade formal, não se pode negar que a igualdade é um componente necessário da fórmula da Dignidade.
Pelo que se observou até aqui, a idéia de isonomia é recorrente quando se quer resguardar a Dignidade da Pessoa Humana. Na lição kantiana, todavia, a nuança metafísica não subsiste. A igualdade aventada se resolve no plano material e decorre da racionalidade que é própria do Ser Humano. Dignidade diz com igualdade, racionalidade e autonomia, não importando para a consolidação do conceito eventual vida além do plano terreno, reclamada na perspectiva cristã ao construir seu conceito sobre o tema.
Além de igualdade, racionalidade e autonomia, Kant avança na discussão sobre a Dignidade da Pessoa Humana oferecendo um elemento distintivo: a blindagem à pecúnia. A não-monetarização é um diferencial destacado na lição kantiana. Um traço a afirmar que a Dignidade está fora do que pode ser mensurado financeiramente. O que tem preço está fora do campo da Dignidade e o que tem Dignidade não tem preço[54].
Dignidade é, desta forma, o valor que reveste o que não se aprecia. O que não é passível de ser substituído está no campo da Dignidade, enquanto qualidade inerente aos seres humanos, entes morais. É ligada de forma indissociável, então, à autonomia para o exercício da razão. Exatamente por isto apenas os seres humanos são revestidos deste traço distintivo.
A noção de apreciabilidade – no sentido de se aferir preço – é repetida pelo professor Rabenhorst ao enfrentar o tema Dignidade da Pessoa Humana. Sua lição é precisa em afirmar que, no reino das finalidades humanas, tudo[55], ou tem preço, ou tem Dignidade.
O que tem preço pode ser comparado, comprado e trocado. O que tem Dignidade não. A Dignidade funciona, desta forma, como um atributo daquilo que não é passível de substituição, comparação ou compra. Seria o elemento a impedir a “objetificação” do homem, à medida que é o único racional e dotado de autonomia.
Por ser dotado de autonomia, o Ser Humano é capaz de fazer escolhas. Fazer escolhas diz com o exercício da Dignidade. Sendo assim, considerando que o regime da Dignidade da Pessoa Humana está no vértice do ordenamento jurídico, todas as questões precisam ser pensadas a partir desta referência. As liberdades individuais devem ser respeitadas. Não apenas a liberdade oriunda do pensamento burguês liberal que brinda com a mercancia, mas a liberdade de se “ser quem é”, na perspectiva essencialista, e de “ser quem se quer ser”, numa perspectiva antropológica.
Retomando a lição do professor Rabenhorst, tem-se que “a Dignidade Humana se funda no lugar que o homem ocupa na escala dos seres.”[56] Assim como na perspectiva Cristã há para o homem uma situação de precedência em relação aos demais seres. A precedência é comum, mas parte de fundamentos próprios. Em Kant da noção de racionalidade. Na lição do cristianismo da criação e do dever de dominação.
Dignidade, na linha percorrida, é um atributo do homem. É algo que do homem faz parte e o torna merecedor de um mínimo de direitos. Um valor que não pode ser trocado por nenhum outro porque não possui equivalentes. Um valor absoluto e interior.
Sendo os valores afeitos à Dignidade da Pessoa Humana absolutos, já que inseridos no plano interior do indivíduo, é de se inferir que tudo mais na realidade dos seres pode ser relativizado. Como tudo mais pode ser relativizado, tem-se que a Dignidade da Pessoa Humana possui lócus próprio, associado ao exercício das liberdades fundamentais a partir da autonomia e racionalidade.
A Dignidade da Pessoa Humana, como se vê, aduz para o que não pode ser mensurado no plano pecuniário. Disto se tem que o ser se realiza em si e no contato com o outro. Ter é, sim, importante. É importante e necessário enquanto elemento que corrobora para que a pessoa tenha sua existência plena. Com o ter o ser pode estar mais bem abrigado, com a intimidade preservada, mas o ser precede a propriedade. Desta forma, tudo o que é monetarizável se mostra importante e valorado por ressaltar o que não é. De per si o ter é substituível, trocável e perecível.
Na linha tracejada se mostra producente se trazer à colação a lição de Alino Lorenzon no seu Atualidade do Pensamento de Emmanuel Mounier. A noção de Dignidade nele debatida cuida do enfrentamento do ter e do ser a partir da perspectiva da propriedade. Verbis:
“A dupla função da propriedade mostra que o Ser Humano precisa, primeiramente, dum necessário vital, indispensável à subsistência física, e, em seguida, dum necessário pessoal, isto é, dum conjunto de condições e de bens destinados à pessoa em comunidade.”[57]
Não se pode perder de vista, portanto, que o ter é importante enquanto elemento de fomento do ser. Não se pode esquecer que é a Dignidade, e não o que gravita em torno dela, que sustenta o ser. Nesta linha, e como já se disse, a propriedade possui importância essencial, mas decorre do regime da Dignidade, e não o contrário. Não se pode perder de vista que há Dignidade sem propriedade.
Como qualidade intrínseca do homem de se determinar, a Dignidade “é irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o Ser Humano como tal e dele não pode ser destacado.”[58]
A proposição colacionada deve ser entendida de forma potencial: a potencialidade que todo Ser Humano tem de se autodeterminar. Esta potencialidade não requer, todavia, efetivação. Todo Ser Humano nasce com essa propensão e a efetivação é conjuntura. Não é na efetivação que se reconhece ao Ser Humano a condição de Dignidade, mas na potencialidade de efetivação.
A Dignidade da Pessoa Humana é, nesta medida, uma propriedade natural que assegura idêntico valor a todos os seres humanos. Disto decorre a lição de Rabenhorst no sentido de que até mesmo os homens privados de razão não podem ser esbulhados da condição de dotados de Dignidade. Nestes casos a solução consistiria em dizer que “a racionalidade permaneceria em estágio potencial.”[59]
O reconhecimento da Dignidade em abstrato, tal como proposto, aponta em uma direção dúplice: de um lado assinala o poder de fazer escolhas e exercitar a autonomia; do outro o direito de ser respeitado pelo Estado e pela comunidade[60]. Não mais apenas como uma garantia dos Direitos Humanos de Primeira Dimensão, que diziam como a abstenção do Estado. O que se quer agora não é a omissão estatal, mas sim o respeito por parte deste para que pessoas se realizem. Um respeito que pode ser cobrado do Estado e de toda a comunidade humana.
Independente da referência de que se parta, a Dignidade implicará em uma situação de isonomia frente à ordem social e jurídica. Uma situação de igualdade que advém do reconhecimento fático de que, na essência, o Ser Humano é, antes de tudo, Pessoa Humana.
No sentido do que se colacionou e como todo Ser Humano é Pessoa Humana, resta impossibilitada a negação da Dignidade de quem quer que seja. Neste ponto o direito retoma uma direção que para nós é essencial. A direção do reconhecimento de que este só faz sentido quando se volta para a realização do Ser Humano. Um reconhecimento de que a pessoa é seu começo, meio e fim e que este deve se aparelhar para que suas disposições não seja apenas “papel pintado com tinta”[61], consoante Eros Grau.
A PESSOA COMO COMEÇO, MEIO E FIM DO DIREITO. PARA ALÉM DO POSITIVISMO JURÍDICO
Pensar a pessoa como princípio, meio e fim do direito é uma questão importante. É importante porque, como se anotou, a pessoa precede ao direito e este deve se voltar para ela. Quando há esta correlação, o direito se justifica e se faz razoável. Por outro lado, a se admitir qualquer outro ponto de partida, ter-se-á um ordenamento em crise.
A pessoa, vista como ponto de partida e chegada do ordenamento jurídico, oferece-lhe uma oportunidade singular de se fazer coeso e coerente. Coesão e coerência, em si consideradas, permitem a superação de certas contradições, cada vez mais comuns na realidade plural que a contemporaneidade apresenta.
A problemática do transexual é destes temas cada vez mais recorrentes na sociedade múltipla que vivenciamos. A maior permissividade e tolerância têm encorajado os transexuais a externarem o sentimento de pertença ao gênero diferente do que aponta o sexo genitálico, gonadal ou cromossômico. Este sentimento de pertença vem suscitando grande interesse. Por isto mesmo integra a pauta de discussões de médicos, psicólogos e juristas.
Que há discussões acaloradas sobre a transexualidade não há qualquer dúvida. Por isto mesmo o terceiro capítulo trará em seu cerne esta discussão. Ao momento, todavia, considerando que se está a discutir a situação topográfica da pessoa no plano jurídico, importa dizer que a estrutura nuclear do direito não se afina com qualquer tipo de idéia sectarista. Ao contrário. É a noção de inclusão que deve sobressair.
A consideração acerca da inclusão é relevante porque permite a que se discuta o direito em um plano além do positivista, portanto, preocupado com a moral e a ética. O direito, nesta quadra, se volta para a teleologia e para a axiologia que o informa. O valor é a pessoa, e isto resume as questões axiológicas. O objetivo também é a pessoa, fato que consolida sua aspiração teleológica.
A Dignidade da Pessoa Humana é o cerne do direito. Resta claro, por isto mesmo, que é seu dever se organizar para que a Dignidade seja exercida na sua plenitude. Assim – como a Dignidade aponta para racionalidade e autonomia, essencialmente – o direito deve fornecer meios para que as deliberações, tomadas racionalmente por pessoas, possam ser efetivadas dentro do aspecto autônomo de que todas gozam.
A necessidade de instrumentalização do direito para permitir o exercício das prerrogativas correlatas à Dignidade é uma das questões que devem ser pensadas para além do positivismo jurídico, modelo de organização do ordenamento jurídico que peca ao pretender formalizar de modo antecedente todo o funcionamento da sociedade.
Não há dúvida de que a norma deve ser abstrata e genérica, assertiva que decorre da consagração do Estado de Direito. Por outro lado, abstração e generalidade não podem implicar em negação do que a norma não previu. Nestes casos uma integração sistêmica deve ser feita. Não pode o ordenamento ignorar as demandas advindas da sociedade. O Poder Judiciário, ao atender o que não foi previsto no plano Legislativo, não pode proceder de modo a negar Direitos Fundamentais e Direitos da Personalidade. Além disto, não poderá negar o que foi consagrado em outros ramos dos saberes, embora sua atuação seja autônoma.
É de se dizer, na perspectiva tracejada, que o atendimento das demandas sociais ignoradas pelo direito posto é uma das mais nobres funções do direito e sua função social agregadora, surgida na elevação da Pessoa Humana[62]. Assim, mesmo que exista uma regra estabelecendo determinada prestação, esta pode ser dispensada se foi elaborada sem a consideração do valor Dignidade Humana.
No plano atual a consideração da Dignidade da Pessoa Humana é uma realidade doutrinária. A um só tempo o Direito Positivo[63] – e a idéia de segurança que a este se associa – tem seu lugar no ordenamento jurídico. Exatamente por isto há que se fomentar uma compreensão sobre o tema.
A noção de Direito Positivo se confunde com a história ocidental. Desde Platão e Aristóteles[64] já se falava nestes conceitos. Uma alusão que é recorrente na história, vide as idéias que cercam o Positivismo Filosófico de Comte[65].
A noção de Direito Positivo e Natural, vista na quadra helênica, também é encontrada na Roma Antiga. Nesta o Direito Positivo se encontrava referido no jus civile e, representando o Direito Natural havia o jus gentium.
A queda do Império Romano do ocidente com a tomada de Roma fez nascer nova era: A Medieval. Neste período os pensadores se atêm a discorrer sobre a lex naturalis e a lex humana. Apontam, basicamente, que esta é produto da razão e que aquela é decorrência da natureza, acessível à compreensão humana no plano descritivo.
Superado o Medievo chega-se à Idade Moderna, marcada pela chegada de Colombo à América, a conquista de Granada pelos espanhóis e o fim do domínio mouro, a Reforma Religiosa[66], a consolidação da Inglaterra como grande potência naval, a Revolução Gloriosa, o Tratado de Paris e a Declaração de Independência das treze colônias inglesas da América do Norte, eventos importantes que configuraram a base para a mudança paradigmática da contemporaneidade: a Revolução Francesa.
O movimento revolucionário francês trouxe consigo uma mudança de paradigma. Uma alteração de rumo que aponta em várias direções, mas, sobretudo, na linha da liberdade e da igualdade, reclamos da burguesia. Estas aspirações, tal como idealizadas, serviriam para garantir a segurança jurídica negada ao Terceiro Estado pela vivência da discricionariedade abusiva de que gozavam nobreza e clero.
Na quadra relatada o Positivismo Jurídico se apresenta como o grande modelo de organização do direito. Em nome da segurança é alçado à condição de diretor da dinâmica comunitária, devendo, de forma a priori, descrever os comportamentos que importam à realidade social.
No momento vivenciado a pessoa não está fórmula jurídica. O ter[67], representante do novo regime, é que deve ser preservado. Assim, conquanto o direito seja visto como meio de se satisfazer as necessidades advindas das relações sociais, sua função precípua é a preservação do status quo. Nesta direção o direito oriundo das revoluções é um organismo que se estrutura conjugando normas positivas e que pretende ser completo. Uma pretensão, a princípio, alimentada pelo medo da volta do antigo regime.
Não-obstante a importância histórica do positivismo, não se pode perder de horizonte que o direito, desde as mais rudimentares manifestações, existe para servir[68] ao humano. Deve, portanto, ser visto como instrumento, pois, do contrário, este perde sua razão de ser.
A finalidade do direito e sua razão de ser é o Ser Humano. O direito surge como instrumento de pacificação social, voltado ao bem das pessoas para que manifestem (em particular e em sociedade) a Dignidade que lhes é inerente. O que se quer é a plenitude de vida para cada pessoa no conjunto social. Desta forma não pode a pessoa se sobrepor ao coletivo, como quiseram os liberais. Ao mesmo tempo não se pode impor à pessoa viver o coletivo em detrimento de suas aspirações mais íntimas, como ocorre com os transexuais ao verem negada a possibilidade de assumir fisicamente o gênero inscrito na psique.
Do que se diz, a questão se mostra paradoxal. Há uma perspectiva dialética da primazia do eu e do todos, não se podendo prescindir teoricamente de um ou do outro. O que se busca é o bem de cada um, e, ao mesmo tempo, de todos. O eu deve ser realizado, a não ser que contrarie de forma estrutural a perspectiva coletiva. O coletivo também carece ser realizado, mas isto não pode implicar em negação das perspectivas do indivíduo.
Falar da pessoa como princípio e fim do Direito. Basear-se no princípio da Dignidade da Pessoa Humana é afirmar a história. É abrir espaço para uma convivência que sempre deveria ter sido praticada entre nós. Neste ponto é de se questionar os porquês da negação do princípio em exame até os dias de hoje.
Quando se diz que ao transexual se negou a adequação de nome e de sexo, quem conta a história é um juiz ou desembargador. Dificilmente teremos a oportunidade de ouvir ou ler a perspectiva de quem teve a aspiração negada pelo ordenamento jurídico. Por ser assim, dificilmente será possível se saber o que de fato se passa. A pessoa, perdida em pensamentos e aspirações, sairá perdedora, já que sua orientação não será reconhecida pelo sistema.
Ora, se o fim do direito são pessoas, não pode um instrumento do direito, o juiz, se arvorar na condição de negador de realidades. Quando o mundo todo se abre para uma nova possibilidade o direito também deve fazê-lo, sob pena de este se perder. O direito, definitivamente, não pode pretender ser fim, porque enquanto assim foi – positivado, garantido na sua própria estrutura e sem se ligar a valores – se tornou veículo de barbáries. Se afastar do mundo é um modo de se viver uma estrutura ideológica. Nada mais é do que “a visão distorcida ou mistificada da realidade”[69].
Quando se critica os julgamentos a priori, pretende-se que os operadores do direito se vejam como meios de realização de pessoas. Empatia aqui (referente à tolerância na quadra da solidariedade) implica em que se possa ver além da própria vida pessoal para se enxergar que pessoas possam ter aspirações diferentes. Para ver o outro não é preciso sê-lo, mas é necessário o exercício de se colocar em seu lugar. Assim o direito poderá ser instrumento de gente.
Uma vez considerado que o direito não pode ser fim em si próprio, faz sentido a colocação da pessoa no centro do sistema jurídico, sobretudo se for considerado que a Constituição brasileira apresenta em seu artigo primeiro a Dignidade Humana como fundamento explícito.
A elevação da pessoa como relatada traz alguns nós epistemológicos, sobretudo porque não mais podemos ler a Constituição com olhos meramente positivistas. Positivismos Filosófico e Jurídico (ainda arraigados como parte do inconsciente coletivo jurídico) não podem ser fundamento para se esvaziar o alcance da pessoa em nome de uma pseudo-segurança jurídica. É preciso se lembrar, sempre, que vivemos em um Estado Democrático de Direito e este tem uma função, antes de tudo, transformadora. Não mais podemos nos contentar com Estado de Direito (regulador) e Social, voltado para a promoção. É preciso que aspiremos e vivenciemos um Estado que seja, em essência, transformador. Uma transformação que deve ser feita a partir do pilar fundamental que é Pessoa Humana.
Visto o Direito na perspectiva transformadora, um problema subjacente aparece. O Positivismo, tanto o Filosófico quanto o Jurídico, é, em essência, de cunho materialista. É preciso lembrar que desde Comte toda e qualquer dimensão espiritual foi banida em nome da ciência. Que foram ultrapassadas as fases teológica e metafísica da civilização humana. Que o direto se fez positivo e pretensamente absoluto e sem lacunas.
A Constituição mudou. O espírito positivo, contudo, continua vigorando de modo expressivo. Vive-se em um Estado Democrático de Direito[70], mas isto significa pouco para a grande maioria da população. Por isto tantas dificuldades da maioria da população em conseguir educação pública de qualidade, atendimento adequado nos hospitais e, até mesmo, alimentos. Um cenário que a uma reconsideração de soberania popular, capaz de superar a noção de sufrágio universal. Com isto, ou se permite uma participação (in)fluente[71] do maior número de atores sociais, apta à realização de valores afetos à Pessoa Humana[72], ou se assume que Estado Democrático de Direito é um construção retórica no Brasil.
A sociedade brasileira tem por base a Dignidade da Pessoa Humana. Deste modo o direito tem de estar baseado a este princípio. O que se constata, todavia, é que este ainda não foi incorporado de fato à realidade jurídica e social. Há distorções das mais variadas. Fala-se de uma virada paradigmática, mas esta virada, faticamente, é formal.
A base filosófica adequada ao Direito, que o coloque no tempo e espaço com a devida eficácia, livrando-o de anacronismos e paradoxos, deve levar em conta a totalidade da pessoa. A ciência jurídica tem um motivo e um fim. Para tanto deve levar em conta a Dignidade da Pessoa como modo de se superar a leitura estreita que se faz da tese do ordenamento jurídico. É preciso se fomentar uma leitura valorativa para que se possa ter, de fato, um ordenamento unitário, coerente e completo.
APONTAMENTOS FINAIS
Partindo-se do postulado de que a pessoa, individualmente considerada, é o valor supremo da ordem jurídica e que a garantia de sua Dignidade é um princípio fundamental da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, não há como se negar a ninguém as prerrogativas afetas aos Direitos da Personalidade.
Ubi homini, ibi societas; ubi societas, ibi jus. Onde há homem há sociedade; onde há sociedade há direito. Há direito porque há sociedade. Há sociedade porque existem homens. Nesta linha se tem assente que o fim do direito é proteger os valores supremos que garantam a Dignidade do homem. O direito surge do homem, com o homem e para o homem e assim, deve ser visto para que a pessoa tenha preservado o local especial que sua existência lhe confere no ordenamento jurídico. Um local que se faz habitável ao se considerar que à pessoa se deve reconhecer a condição de começo, meio e fim do direito.
A Constituição da República, ao estabelecer como seu fundamento a Dignidade da Pessoa Humana, a elegeu núcleo irradiador do ordenamento. Trouxe, desta forma, uma nova possibilidade de se ver e de se interpretar o sistema jurídico. Uma visão que deve se voltar, certamente, para uma maior consideração das situações existenciais.
A consideração das situações existências é um dado que se mostra essencial para a preservação do sistema. Dizemos isto porque, do momento que a Dignidade da Pessoa Humana é alçada à condição de vetor do ordenamento, este não pode ser pensado sem este viés. Do contrário, ter-se-á um ordenamento em crise e marcado por paradoxos, onde o discurso é um e a prática outra.
Quando se diz que à Pessoa Humana se reconhece um local especial, diz-se também que este local só se faz habitável quando esta pode desfrutar das prerrogativas que lhe são inerentes, notadamente autonomia e racionalidade. Estes caracteres despontam como meios únicos para o exercício efetivo dos atributos que identificam e particularizam o Ser Humano na construção que o cristianismo e a filosofia apreenderam.
A noção de Dignidade da Pessoa Humana deve muito à doutrina cristã, já que foi a partir desta que se pôde pensar o homem sob a ótica da igualdade. Um homem criado à imagem e semelhança de Deus e que, portanto, tem valor especial na escala dos seres.
Da igualdade germinal do cristianismo, filtrada no discurso do racionalismo humanista e seu viés laico, chega-se à Dignidade da Pessoa Humana na perspectiva de Kant. Uma possibilidade de enxergar o Ser Humano que parte de sua racionalidade e autonomia para lhe reconhecer a condição de especial na escala dos seres. Uma condição que subsiste até mesmo nos casos de privação de sentidos, hipóteses em que a Dignidade se manifestaria de modo potencial ou realizável.
Informações Sobre o Autor
Alessandro Marques de Siqueira
Mestrando em Direito Constitucional pela UNESA. Conferencista do CONPEDI. Professor da Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis. Concursado da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro.