Como é de conhecimento público, em 19 de junho de 2008 foi publicada a Lei n. 11.705/08, vulgarmente chamada de “Lei Seca”, visando à cessação definitiva do uso de álcool e de substâncias psicoativas análogas em combinação à direção automobilística, tornando-a irresponsável e imprudente. Essa Lei alterou o Código de Trânsito Brasileiro – CTB (Lei n. 9.503/97), modificando a redação originária do seu artigo 306, o qual trata do Crime de Embriaguez ao Volante.
Anteriormente era previsto que conduzir veículo automotor, em via pública, sob a influência de álcool ou de substâncias de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem, caracterizava esse delito de trânsito. Nesse viés, dirigir veículo automotor na “influência” de álcool, independentemente de demonstração técnica e científica precisa da concentração deste no sangue, já consubstanciava a figura criminosa, mas desde que expusesse a dano potencial a coletividade próxima, haja vista ser, à época, um crime de perigo concreto, a ser demonstrado nas circunstâncias fáticas do acontecimento, o que também foi objeto de modificação, passando a ser considerado crime abstrato, pois a mera condução veicular somada à prevista concentração de álcool já caracterizará o crime do artigo 306 do CTB, sendo irrelevante considerar o perigo causado concretamente.
Pressionado pela sociedade e pelas exigências do trânsito brasileiro, o Legislador alterou a redação do dispositivo legal. Entrementes, apresentou falhas técnicas e estruturais criticáveis. Ao retirar da redação a expressão “sob a influência de” para o álcool, fez constar uma novidade: “concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas”. Qual o problema que aparentemente o texto legal fez emergir? O confronto ao Princípio Constitucional da Inexigibilidade de Autoincriminação, ou também denominado de “Não Culpabilidade”, ou na expressão latina “nemo tenetur se detegere”, decorrente do Direito Constitucional ao Silêncio (art. 5.°, inciso LXIII, da Constituição da República de 1988 e art. 186, parágrafo único, do Código de Processo Penal). Esse princípio prevê que ninguém será obrigado e constrangido a produzir, de maneira ativa, prova contra si mesmo, como forma de se incriminar (direito à autodefesa passiva).
O Legislador “esqueceu-se” de que havendo recusa por parte dos condutores seria impossível provar a existência da exata concentração de álcool no sangue, diferentemente de como ocorria no passado, quando simples constatação da direção sob a influência alcoólica já bastaria a caracterizar o delito. Há, agora, uma delimitação da prova à quantificação etílica. Não podem os agentes de trânsito e policiais (em sentido amplo) constranger e forçar os condutores a realizarem o exame de alcoolemia a fim de provar sua conduta criminosa, sob pena de caracterização do crime de abuso de autoridade dos agentes públicos (artigo 4.°, “b”, da Lei n. 4.898/65), pois aqueles estão salvaguardados por força de princípio constitucional supradescrito.
Denota-se que, em virtude do erro técnico dos Congressistas, tornar-se-á sem qualquer efeito o Crime de Embriaguez ao Volante, já que os condutores poderão legitimamente se negar ao exame técnico, regulamentado atualmente no Decreto n. 6.488/08 (exame de sangue e etilômetro ou “bafômetro” – teste em aparelho de ar alveolar pulmonar), sem maiores repercussões no âmbito criminal, uma vez que o fato criminoso jamais poderá ser presumido, tampouco poderá ser demonstrado por meio de Exame de Corpo de Delito Indireto ou Supletivo, como, por exemplo, prova testemunhal, exame clínico, prova da “linha reta” aplicada pelo agente policial. Ressalte-se que essa recusa terá, no entanto, consequências no âmbito administrativo, podendo ser caracterizado infração de trânsito no caso da negativa do condutor em realizar os exames, nos termos dos artigos 277, § 3.°, e 165 do CTB, já que, nesta seara, não se aplica o Princípio da Não-Autoincriminação, reservado à esfera criminal. De fato, os consectários previstos por esta norma administrativa já são um estímulo negativo bastante, como penalidade de multa e suspensão do direito de dirigir, bem como retenção do veículo e recolhimento do documento de habilitação.
Desta feita, a expressão utilizada na atual redação do artigo 306, do CTB, é considerada como elementar do crime, exigindo, pois, a exata demonstração da quantidade de álcool no sangue pelos órgãos acusadores (ônus probatório incumbe ao Sujeito Acusador), sob pena de não se conseguir provar o delito de trânsito, conforme decidiu recentemente o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Habeas Corpus n. 166.377/SP (2010/0050942-8), pondo cobro às discussões jurídicas.
A decisão informa que não pode o Poder Judiciário se furtar das garantias constitucionais e legais conferidas aos cidadãos de um Estado Democrático de Direito, corrigindo as falhas estruturais da lei com o objetivo de conferir-lhe efetividade, desobedecendo, portanto, aos princípios máximos da estrita legalidade e tipicidade. Deve o Legislador, sim, conhecendo a impossibilidade de aplicação do dispositivo legal, ressalvada a hipótese de manifestação positiva de vontade do condutor em realizar os testes, atentar-se ao equívoco cometido, retificando a norma penal incriminadora e atendendo aos reclamos sociais da falta de segurança no trânsito brasileiro, trazendo à baila, talvez, os conceitos de fiscalização e punição efetivas das infrações e crimes de trânsito.
Informações Sobre o Autor
Ígor Araújo de Arruda
Defensor Público na Defensoria Pública do Estado de Pernambuco DPE/PE desde outubro de 2015. Foi Defensor Público no Estado do Maranhão DPE/MA entre 23/04/2012 e 30/09/2015. Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp/LFG. Aprovado Defensor Público no 1. concurso público da Defensoria Pública do Estado da Paraíba DPE/PB 2014/5. Professor-orientador de curso preparatório para concursos públicos das Carreiras Jurídicas. Criador-moderador da página social “Defensoria Pública Modo de fazer”