As áreas de preservação permanente em área urbana: O aparente conflito entre o Código Florestal e a Lei de Parcelamento do Solo

Resumo: O presente estudo teve como principal objetivo analisar o possível conflito verificado entre o art. 2º, da Lei nº 4.771/65 (Código Florestal), e o art. 4º, III da Lei nº 6.766/79 (Lei de Parcelamento do Solo). Chegou-se a conclusão de que o conflito verificado é apenas aparente, pois as Leis tutelam objetos diversos em tais dispositivos, ambas permanecendo em vigor.


Palavras chave: Código Florestal. Áreas de Preservação Permanente. Lei de Parcelamento do Solo.


Sumário: 1. Introdução. 2. As APPs no Código Florestal. 3. A Faixa não-edificável da Lei de Parcelamento do Solo e as APPs do Código Florestal. 4. Conclusão. 5. Referências bibliográficas.


1. Introdução


O presente estudo tem como objetivo analisar o possível conflito verificado entre o art. 2º, da Lei nº 4.771/65 (Código Florestal), e o art. 4º, III da Lei nº 6.766/79 (Lei de Parcelamento do Solo). Para tanto, realizaremos uma breve exposição sobre as áreas de preservação permanente no Código Florestal, inclusive quanto à aplicabilidade de tais normas às áreas urbanas. Após, analisaremos a Lei de Parcelamento do Solo em confronto com o Código Florestal, visando concluir se o possível conflito verificado é real ou apenas aparente, e como deve ser interpretado.


2. As APPs no Código Florestal


Até a alteração do Código Florestal (Lei nº 4.771/65) pela Medida Provisória nº 2166-67/2001, a definição de área de preservação permanente (APP) era apenas doutrinária. Conforme definido no art. 1º, II do Código Florestal, a APP seria a área protegida nos termos dos arts. 2º e 3º, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.


O art. 2º do Código Florestal estabelece as denominadas APPs legais[1], pois são assim consideradas pelo só efeito da Lei, sem depender da prática de qualquer ato administrativo específico para tanto. São elas as florestas e demais formas de vegetação natural situadas: a) ao longo dos rios ou de qualquer curso d´água desde o seu nível mais alto em faixa marginal cuja largura mínima será: 1 – de de 30 (trinta) metros para os cursos d’água de menos de 10 (dez) metros de largura; 2 – de 50 (cinquenta) metros para os cursos d’água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinquenta) metros de largura; 3 – de 100 (cem) metros para os cursos d’água que tenham de 50 (cinquenta) a 200 (duzentos) metros de largura; 4 – de 200 (duzentos) metros para os cursos d’água que tenham de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura;  5 – de 500 (quinhentos) metros para os cursos d’água que tenham largura superior a 600 (seiscentos) metros ao redor de lagoas, lagos ou reservatórios d´água naturais ou artificiais; b)  redor das lagoas, lagos ou reservatórios d’água naturais ou artificiais; c) nas nascentes, ainda que intermitentes e nos chamados “olhos d’água”, qualquer que seja a sua situação topográfica, num raio mínimo de 50 (cinquenta) metros de largura; d) no topo de morros, montes, montanhas e serras; e) nas encostas ou partes destas, com declividade superior a 45°, equivalente a 100% na linha de maior declive; f) nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues; g) nas bordas dos tabuleiros ou chapadas, a partir da linha de ruptura do relevo, em faixa nunca inferior a 100 (cem) metros em projeções horizontais; h) em altitude superior a 1.800 (mil e oitocentos) metros, qualquer  que seja a vegetação.


Dispõe, ainda, o parágrafo único do art. 2º do Código Florestal que, no caso de áreas urbanas, assim entendidas as compreendidas nos perímetros urbanos definidos por lei municipal,  e nas  regiões  metropolitanas e aglomerações urbanas, em todo o território abrangido, observar-se-á o disposto nos respectivos planos diretores e leis de uso do solo, respeitados os princípios e limites a que se refere o artigo.


Como nem todas as dimensões das APPs legais foram estabelecidas no art. 2º do Código Florestal, o Conselho Nacional de Meio Ambiental (CONAMA), com base na competência que lhe é atribuída pelo art. 8º da Lei nº 6.938/81, editou as Resoluções nº 302/2002, que trata dos lagos e reservatórios artificiais, e a de nº 303/2002, dispondo sobre outros casos nos quais a redação do Código Florestal deixava dúvidas, como as restingas, dunas e mangues.


A Resolução CONAMA nº 302/2002, estabelece que constitui APP a área com largura mínima, em projeção horizontal, no entorno dos reservatórios artificiais, medida a partir do nível máximo normal de: a) trinta metros para os reservatórios artificiais situados em áreas urbanas consolidadas e cem metros para áreas rurais; b) quinze metros, no mínimo, para os reservatórios artificiais de geração de energia elétrica com até dez hectares, sem prejuízo da compensação ambiental; e c) quinze metros, no mínimo, para reservatórios artificiais não utilizados em abastecimento público ou geração de energia elétrica, com até vinte hectares de superfície e localizados em área rural. Prevê, ainda, a possibilidade de redução ou aumento de tais limites em casos específicos.


A Resolução CONAMA nº 303/2002, por sua vez, dispôs, entre outros que constituem APP as áreas situadas: a) nas restingas, em faixa mínima de trezentos metros, medidos a partir da linha de preamar máxima ou em qualquer localização ou extensão, quando recoberta por vegetação com função fixadora de dunas ou estabilizadora de mangues; b) em manguezal, em toda a sua extensão; e c) em duna.


Em que pese a legalidade de tais Resoluções venha sendo questionada, na realidade não extrapolaram a norma legal que visaram regulamentar, pois apenas explicitaram o que já se tinha implicitamente contido na Lei[2].


As denominadas APPs administrativas, que dependem de ato do poder público para que possam ser consideradas como tal, encontram-se previstas no art. 3º do Código Florestal, sendo caracterizadas como as florestas e demais formas de vegetação natural destinadas a: a) atenuar a erosão das terras; b) fixar as dunas; c) auxiliar a defesa do território nacional a critério das autoridades militares; d) proteger sítios de excepcional beleza ou de valor científico ou histórico; e) asilar exemplares da fauna ou flora ameaçados de extinção; f) manter o ambiente necessário à vida das populações silvícolas; g) assegurar condições de bem-estar público.


Como se depreende, existem dois grandes grupos de APPs: as que são assim consideradas pelo só efeito do Código Florestal, conforme disposto no art. 2º (APPs legais), e as que dependem de declaração do poder público para serem consideradas como tal (art. 3º) (APPs administrativas). Além disso, o § 2º do art. 3º determina que as florestas que integram o Patrimônio Indígena ficam sujeitas ao regime de preservação permanente também pelo só efeito da Lei.


Seja qual for a espécie de APP, o Código Florestal estabelece que a supressão total ou parcial de florestas de preservação permanente só será admitida com prévia autorização do Poder Executivo Federal, quando tal medida for necessária à execução de obras, planos, atividades ou projetos de utilidade pública ou interesse social (§ 1º do art. 3º). Já a supressão da vegetação em APP somente pode ser autorizada em casos de utilidade pública ou de interesse social, devidamente caracterizados e motivados em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto, indicando-se as medidas compensatórias e mitigadoras que deverão ser adotadas (art. 4º).


Deste modo, a limitação administrativa estabelecida na propriedade pela instituição de APP consiste, em regra, na sua imodificabilidade, não podendo sofrer corte raso ou utilização direta dos recursos naturais. Apenas nos termos do § 1º do art. 3º, ou do art. 4º, do Código Florestal, é que pode ser suprimida total ou parcialmente a vegetação da APP, o que se dá mediante prévia autorização do órgão ambiental competente.


Neste ponto, cabe destacar que destruir ou danificar floresta considerada de preservação permanente, mesmo que em formação, ou utilizá-la com infringência às normas de proteção, constitui o crime tipificado no art. 38 da Lei nº 9.605/98, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.


Para a compreensão da questão posta, interessa-nos analisar mais detidamente o constante do parágrafo único do art. 2º do Código Florestal já citado, qual seja, o de que no caso de áreas urbanas, assim entendidas as compreendidas nos perímetros urbanos definidos por lei municipal, e nas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, deverá ser observado o disposto nos respectivos planos diretores e leis de uso do solo, respeitados, porém, os princípios e limites estabelecidos no próprio artigo. A discussão que se apresenta é se o art. 2º do Código Florestal, por força do seu parágrafo único, teria ou não aplicação nos perímetros urbanos dos municípios.


Quanto ao tema, a doutrina ambientalista brasileira, majoritariamente, entende pela aplicação do art. 2º do Código Florestal em perímetro urbano[3]. Nesse sentido, vale a transcrição da opinião do professor Paulo Affonso Leme Machado, de que:


Desnecessário seria este artigo, diante da obrigação que têm os Municípios de respeitar as normas gerais ambientais da União. Contudo, ao introduzir-se esse parágrafo único no art. 2º do Código Florestal, quis o legislador deixar claro que os planos e leis de uso do solo do Município têm que estar em consonância com as normas do mencionado art. 2º.”[4]


Também José Afonso da Silva, ao concluir que a política dos espaços verdes “há de ser estabelecida pelos Planos Diretores e leis de uso do solo”, entende que “no que se refere às florestas de preservação permanente aí existentes terão que observar os princípios e limites previstos no art. 2º, parágrafo único, do Código Florestal, conforme determinação de seu parágrafo único, acrescentado pela Lei nº 7.803, de 1989.[5]


Assim, adotamos como pressuposto de análise do problema proposto a aplicação do art. 2º do Código Florestal aos perímetros urbanos dos municípios. Passemos, agora, a analisar a Lei de Parcelamento do Solo, a fim de possibilitar a posterior verificação da possível colidência entre ela e o Código Florestal quanto ao tema das APPs.


3. A Faixa não-edificável da Lei de Parcelamento do Solo e as APPs do Código Florestal


Conforme indicado na seção anterior, acolhemos o entendimento de que o disposto no art. 2º do Código Florestal aplica-se aos perímetros urbanos dos municípios. Tal norma, por sua vez, parece colidir com a constante do art. 4º, III da Lei nº 6.766/79, na redação dada pela Lei nº 10.932/2004, que dispõe que os loteamentos urbanos devem, dentre outros requisitos, reservar uma faixa não-edificável de 15 (quinze) metros de cada lado ao longo das águas correntes e dormentes[6] e das faixas de domínio público das rodovias e ferrovias, salvo maiores exigências da legislação específica. Como vimos, os limites das APPs definidos pelo Código Florestal na mesma situação, ou seja, ao redor de lagos e represas, seria muito superior aos quinze metros da Lei de Parcelamento do Solo, restando nessa constatação o possível conflito entre as normas.


O conflito verificado poderia, em tese, ser solucionado pela análise das leis no tempo, em não existindo ordem hierárquica entre elas. Com esse entendimento, poderíamos chegar à conclusão de que o inciso III, do art. 4º, da Lei nº 6.766/79, teria, neste ponto, sido revogado pela Lei nº 7.803/89, que deu nova redação à alínea “a” do art. 2º, do Código Florestal, pois a sua redação era de 1979, e lei posterior teria tratado da mesma matéria de forma incompatível. Essa conclusão, contudo, não explica o fato do inciso em questão ter sido alterado em 2004, com a edição da Lei nº 10.932, sem qualquer discussão quanto à sua eventual revogação tácita. Além disso, a redação original do art. 2º, “a”, do Código Florestal, que é de 1971, estabelecia uma faixa mínima de apenas cinco metros, enquanto a Lei nº 6.766/79 sempre previu os quinze metros.


Com relação à alteração da redação do inciso III, do art. 4º, da Lei nº 6.766/79 pela Lei nº 10.932/2004, cabe esclarecermos que o dispositivo anterior previa também as faixas ao longo dos dutos, enquanto a referida Lei os retirou da regra geral e incluiu o § 3º estabelecendo que “se necessária, a reserva de faixa não-edificável vinculada a dutovias será exigida no âmbito do respectivo licenciamento ambiental, observados critérios e parâmetros que garantam a segurança da população e a proteção do meio ambiente, conforme estabelecido nas normas técnicas pertinentes.” (grifo nosso). As redações do inciso III, do art. 4º, da Lei nº 6.766/79, antes de depois da Lei nº 10.932/2004, são, assim, muito próximas.


Na realidade, o aparente conflito entre as normas em questão somente pode ser solucionado em se levando em consideração o objeto tutelado por cada uma, pois se não é o mesmo, ambas estariam tratando de algo diverso ao estabelecer as limitações em questão, e, com isso, não teriam como se derrogar mutuamente.


Constata-se, assim, que a Lei nº 6.766/79 dispõe sobre o parcelamento do solo urbano, não tendo como objetivo promover a proteção da biodiversidade ao estabelecer, no inciso III, do art. 4º, faixas non aedificandi, e sim a segurança da população[7]. Se dúvidas podem existir quanto às faixas ao longo das águas correntes ou dormentes, esse objeto tutelado fica claro com relação às faixas de domínio público ao longo das rodovias e ferrovias, bem como no que pertine aos dutos, em que o próprio § 3º do art. 4º esclarece expressamente essa finalidade legal.


Não se nega, todavia, a importância que possam eventualmente ter as faixas non aedificandi da Lei nº 6.776/79 para a proteção da biodiversidade, pois é possível que desempenhem funções ambientais relevantes quando a vegetação das mesmas se encontrar preservada, como funcionar como corredores ecológicos por exemplo. O que se afirma é que não é esse o objetivo primordial da Lei, até porque, grande parte dessas áreas, especialmente ao longo das rodovias, não detém valor ambiental de maior significado que necessite de tutela legal específica.


Já os dispositivos sobre APP do Código Florestal objetivam, reconhecidamente, a tutela ambiental das matas ciliares, a preservação de recursos hídricos, a estabilidade geológica, o fluxo gênico da fauna e flora, etc. Não há em tais dispositivos a preocupação com a segurança das populações urbanas, como se dá com a Lei nº 6.766/79, ainda que indiretamente possam assegurar o bem-estar das populações humanas[8].


É razoável concluirmos, assim, que as duas Leis permanecem em vigor, sendo o conflito entre as duas apenas aparente[9]. Nem se diga que seria, então, a faixa non aedificandi da Lei nº 6.766/79 inócua, pois menor que o mínimo previsto no Código Florestal para as APPs nas margens de rios. Isso porque, no caso de APPs, como visto, é possível a concessão de autorização para a supressão da vegetação, o que não afasta a aplicação do inciso III, do art. 4º, da Lei nº 6.766/79, ou seja, ainda que se possa suprimir a vegetação da APP nos trinta metros ou mais, a faixa de quinze metros permanece como non aedificandi por força da Lei nº 6.766/79.


Ressalte-se, por fim, que a Lei nº 6.766/79 sempre previu os quinze metros, enquanto o Código Florestal, de 1971, estabelecia inicialmente uma faixa mínima de cinco metros, somente tendo aumentado para trinta metros com as alterações promovidas pela Lei nº 7.803, em 1989. Constata-se, deste modo, que as faixas das duas Leis não só nunca tiveram correspondência, como também não objetivaram revogar uma à outra, já que tutelavam objetos diversos.


4. Conclusão


Da análise realizada, concluímos que o conflito verificado entre o art. 2º do Código Florestal, e o art. 4º, III, da Lei nº 6.766/79, é apenas aparente, pois as Leis tutelam objetos diversos em tais dispositivos, ambas permanecendo em vigor. Assim, ainda que concedida a autorização para a supressão da vegetação das áreas de APP, conforme permitido pelo Código Florestal, a faixa de quinze metros permaneceria como non aedificandi por força da Lei nº 6.766/79.


 


Referências Bibliográficas

FIGUEIREDO, Guilherme Purvin de. A propriedade no direito ambiental. Rio de Janeiro: Esplanada, 2004.

__________________________. Curso de direito ambiental. 2ª ed. Curitiba: Arte & Letra, 2008.

LEUZINGER, Márcia Dieguez e CUREAU, Sandra. Direito ambiental. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.

MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 11ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

 

Notas:

[1] LEUZINGER, Márcia Dieguez e CUREAU, Sandra. Direito ambiental. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 115. 

[2] LEUZINGER, Márcia Dieguez e CUREAU, Sandra. Op. Cit. p. 116.

[3] FIGUEIREDO, Guilherme Purvin de. A propriedade no direito ambiental. Rio de Janeiro: Esplanada, 2004, p. 226.

[4] MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 11ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 385.

[5] SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 175.

[6] Lagos, represas, etc.

[7] FIGUEIREDO, Guilherme Purvin de. Op. cit., 2004, p. 229.

[8] FIGUEIREDO, Guilherme Purvin de. Op. cit., 2004, p. 230.

[9] FIGUEIREDO, Guilherme Purvin de. Op. cit., 2004, p. 231.


Informações Sobre o Autor

Marcela Albuquerque Maciel

Procuradora Federal junto à PFE/IBAMA. Ex-Consultora Jurídica do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Especialista em Direito Público pelo Centro Universitário do Distrito Federal – UDF. Especialista em Desenvolvimento Sustentável e Direito Ambiental pela Universidade de Brasília – UnB. Mestranda em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB. Associada ao Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP


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