A lei de anistia e a comissão da verdade


Resumo: Trata de artigo que faz uma análise acerca da pretensão veiculada pela OAB, frente ao STF, no intento de ver os indigatados praticantes de tortura do regime militar, excluídos da benesse legal prevista pela lei de Anistia. Tendo tal análise como pano de fundo, faz-se, também, uma analise da jurisprudencia do STF sobre o assunto, bem como, da relação deste para com a Comissão da Verdade, criada pelo governo Federal com o intuito de esclarecer fatos obscuros deste momento tão inglório em história.


Ocorreu nos dias 16, 17 e 18 de agosto de 2010, o 4º Seminário Latino Americano de Anistia e Direitos Humanos, sediado pela Câmara dos Deputados Federais, espaço público de exposições e discussões de temas de grande jaez no cenário nacional, cujo objetivo circunda a observação e avaliação do desenvolvimento da democracia e dos Direitos Humanos pós-ditadura.


Em meio à tão prolífica e democrática seara à discussão das questões Humanas, robustecida pela proficiente presença de autoridades do mais alto escalão do Governo Federal, bem como, de representantes de entidades de reconhecida importância no debate em pauta, um assunto, especificamente, aclamou para si os holofotes da polêmica, qual seja, a recente decisão do STF acerca da lei de anistia e a criação de uma comissão da verdade, responsável pela apuração de fatos ocorridos durante o período em que vigia o regime castrense.


A despeito das conhecidas – e por mais razão, pelas desconhecidas – atrocidades cometidas pelo regime militar aos opositores políticos da época, tem-se que o Brasil, em meio à inédito levante popular jamais visto na história deste país, conquistou, a duras penas e ao custo de muitas vidas e traumas, o direito de viver sob a égide de um Estado Democrático, sendo certo que tal mudança ocorrera, apesar dos pesares, de forma “negociada”, ou seja, sem a tomada abrupta e violenta do poder, sendo visível e palpável a transição paulatina de um regime opressor para um regime libertário.


É nesse particular contexto histórico que, no dia 28 de agosto de 1979, fora publicada a lei 6683, responsável pela concessão de anistia a todos aqueles que no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares, nos exatos termos do artigo 1º de referido diploma.


É de sumo relevo destacar que, dada a feição indulgente de referido instituto, refletindo o sentimento político axiológico vigente à época, cuidou o legislador de promover logo no § 1º do artigo 1º, verdadeira interpretação autêntica, ao considerar conexos “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.


Desta feita, tem-se que, perdoados estavam todos os atos praticados ora por aqueles perseguidos pela mão rígida e repressora do Estado, ora por aqueles que desempenhavam o papel de persecutores, ainda que, para isso, tivessem se valido dos mais repugnantes e ignóbeis meios e métodos que a mente humana fosse capaz de criar.


Sim, estamos falando de perdão ao torturador, ao frívolo estuprador, ao indiferente seqüestrador, ao temido ceifador de vidas humanas, e de todos aqueles que, seja em nome de um regime político, seja motivado pelo sadismo intrínseco às rasas almas, tenham promovido o sofrimento alheio covarde e injustificável.


Contudo, uma ressalva deve ser feita.


Como sabemos, a anistia encontra campo de assento apriorísticamente nos crimes políticos, contudo, nada impede que seja estendida aos crimes comuns, tratando-se, como regra, de verdadeira decisão política capitaneada pelos órgãos responsáveis pela absorção do querer popular e pela sua materialização por meio das leis ou políticas públicas.


A Carta Política de 1969 estabelecia que, tratando-se de crimes políticos, a instauração do processo legislativo concernente à concessão de anistia incluía-se na esfera de iniciativa reservada ao Presidente da República, com prévia audiência do Conselho de Segurança Nacional. Cuidando-se, no entanto, de crimes não políticos, a Carta Constitucional de 1969 conferia legitimidade concernente, em tema de concessão de anistia, também aos membros do Congresso Nacional.


E foi assim se sucedeu.


Ao declarar conexos aos crimes políticos, “todos aqueles, de qualquer natureza, relacionados com crimes políticos ou praticados por motivações políticas”, manifesta estava a vontade do legislador em jogar uma “pá de cal” sobre qualquer revanchismo que pudesse interromper o processo de redemocratização.


A transição de um Estado a outro, ou seja, o rompimento com uma ordem Constitucional posta, para a instauração de uma ordem Constitucional nova, passa necessariamente pela revolução.


É o Poder do povo de constituir, aliado ao seu ainda maior Poder de desconstituir, os quais encontrarão espaço para suas conformações através, ou do golpe, ou do consenso, que implica, insofismavelmente, na prática de concessões recíprocas entre o tomador e o cedente do Poder.


Assim, a lei 6683 de 1979, cuida daquilo que a doutrina convencionou chamar de “anistia bilateral”, cuja legitimidade repousa no exato fato de ser uma manifestação da “vox populi”, da casa legislativa competente para tanto, diferentemente das leis de anistia unilaterais, em que, os agentes do poder se auto-outorgam a clemência, se auto-imunizam, causando verdadeira sensação de perplexidade àqueles que passivamente assistem ao terror e à sua festa de auto-redenção.


Em diversas oportunidades, a Corte Interamericana de Direitos Humanos manifestou-se acerca da incompatibilidade destas normas auto-imunizantes para com os princípios consagrados na Convenção Interamericana de Direitos Humanos, com nos casos contra o Peru (“Barrios Altos”, em 2001, e “Loayza Tamayo”, em 1998) e contra o Chile (“Almonacid Arellano e outros”, em 2006), retirando-lhes a validade e permitindo a persecução penal em face dos antes anistiados.


Não é o caso do Brasil, visto que, conforme anteriormente dito, sua lei de anistia é oriunda de um órgão legitimado para tanto, cuja opção política pela extensão ou restrição do perdão, em tudo lhe compete, tratando-se de verdadeira discricionariedade política, justificável diante dos elevados propósitos propugnados à época.


Diante disso, recentemente, o STF fora instado a se manifestar sobre a validade de referida lei no que tange ao perdão dos crimes de qualquer natureza conexos aos crimes políticos, cuja provocação se dera por meio da ADPF 153/DF, de autoria do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que pretendia fosse declarada a incompatibilidade de referida lei frente aos preceitos fundamentais de nossa Constituição, reconhecendo-se, inclusive, a imprescritibilidade dos crimes de tortura, ainda que praticados antes da promulgação da Constituição de 1988.


Em lapidar e romântica manifestação, como lhe é peculiar, o Eminente Ministro Celso de Mello, antes de enfrentar o mérito da questão que lhe era posta, promoveu uma distinção cartesiana entre o sentimento social e a ordem jurídica, demonstrando com clareza sua repulsa à tortura e à repressão, porém, promovendo verdadeira apostasia entre os dois âmbitos, ao reconhecer a constitucionalidade e legitimidade da lei de anistia, bem como, a impossibilidade de se buscar, atualmente, a apuração dos fatos e suas reverberações na esfera criminal. Com isto, ganha força a chamada comissão da verdade, cujo projeto de lei de iniciativa do Presidente da República encontra-se na Câmara dos Deputados, pendente de aprovação (PL 7376/2010).


Dentre os objetivos de referido projeto de lei, estão o de identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos, suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade; bem como, promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior;


Tal iniciativa merece, sem sobra de dúvidas, aplausos.


Nas intocáveis palavras de Paulo Brossard: “Se mazelas existiram, eufemisticamente denominadas ‘excessos’, o remédio não está em ocultá-las, porque ocultá-las seria protegê-las e protegê-las seria mantê-las, conservando-as em condições de, quiçá, virem um dia a ressurgir e proliferar. O remédio estaria em extirpá-las de modo a no organismo não ficar fibra contaminada que se reproduzisse amanhã. Desgraçado o país que tenha medo de livrar-se dos próprios erros, porque para libertar-se deles tenha de exibi-los. Mil vezes exibi-los, e expondo-os inspirar horror, para que nunca mais voltem a repetir-se, do que envergonhadamente ocultá-los e ocultando-os, protegê-los, com risco de voltarem amanhã, confiados na complacência que enseja, senão estimula os abusos.


Alega-se ter havido anistia e um Ministro, o da Aeronáutica, aludiu ao seu ‘caráter bilateral’ (…).


 Ora nada obsta que a verdade venha a tona, que nossos jovens dela tomem conhecimento, que nossos filhos a estudem em seus livros de história, e que possam, sem sofrer das mesmas miopias que um dia quase que cegaram nossos antepassados, promover e aperfeiçoar nossa democracia, jovem, porém livre e ascendente.


 O mesmo se dizer da atuação do judiciário que, não obstante impossibilitado de impor aos hereges da paz e do consenso a lei penal repressora pelos atos por estes praticados, poderá, ao nosso ver, diante dos trabalhos promovidos pela promissora “comissão da verdade”, promover a responsabilidade civil dos responsáveis por atos de lesa humanidade, declarando-lhes culpados e, de acordo com a demanda que lhe for proposta, a avaliação da extensão destas responsabilidades, como indenizações compensatórias por perdas e danos eventualmente causados a estes cidadãos e suas famílias.


 Contudo, não se perca de vista, tem-se aqui o resultado da luta entre a liberdade e a opressão, a ditadura absolutista e a democracia dos poderes limitados, em que, prevalecendo a segunda, instaura-se um Estado de Direito em que tais limites estejam assegurados em um documento jurídico-político dotado de supremacia e força normativa.


 A constituição representa a vitória do Direito, a vitória da democracia, porém, seu manejo, no intento de fazer atingir aqueles que se encontram por ela próprio amparados, mesmo que déspotas de outrora, significa, em última análise, devolver o mal na mesma moeda, ignorar o Estado de Direito que se pôs e retomar o Estado de exceção que se combateu, ato impensado e motivado por revanchismos, quiçá, hipocrisia de quem outrora se insurgia contra a exceção.


 A anistia é plena, ampla, irrevogável, se ser democrático é ser justo, vivamos ao lado daqueles que um dia nos molestou, pois fomos nós mesmos quem lhes outorgamos a vergonha de caminharem ao nosso lado, de remoerem em suas entranhas nossa liberdade, mas à eles não nos igualemos, vamos apurar a verdade, façamos justiça, mas não nos utilizemos desta como argumento de vinditas, pois a lei que hoje nos serve, amanhã pode nos assolar.


 Pau que bate em Chico, bate em Francisco.



Informações Sobre o Autor

Danilo Marques Borges

Advogado, Ex-Delegado de Polícia Civil do Estado de São Paulo, Professor Universitário Professor de Curso preparatório para concursos na cidade de Araraquara, Especializando em ciências criminais, Especializando em Direito Constitucional


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