Sumário: 1. Introdução. 2. Contenção das despesas com pessoal. 2.1 Conceito de despesa com pessoal. 2.2 O conteúdo do § 1º do art. 18. 2.3 O mecanismo de controle das despesas com pessoal. 3. Contenção da dívida pública. 3.1 O mecanismo de controle da dívida pública. 3.2 Dívida de precatório. 4. Conclusões.[1]
1. Introdução
Pressionado pelo FMI, de um lado, que impunha um modelo de instrumento normativo que pudesse manter o equilíbrio das contas públicas dos países devedores e atendendo ao clamor da sociedade, de outro lado, que exigia o restabelecimento da moralidade pública seriamente atingida pela crise moral que se abateu sobre as nossas instituições políticas na década de noventa, veio à luz, à toque de caixa, a Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF – com a aprovação e sanção da Lei Complementar n° 101, de 4 de maio de 2000.
Essa lei teve por escopo, como o próprio nome está a indicar, a implantação de uma política de gestão fiscal responsável combatendo as duas principais fontes de desperdícios de recursos públicos denunciadas pela população em geral: (a) o gasto excessivo com as despesas com pessoal a partir do advento do chamado “cargo em comissão” introduzido pela Revolução de 1964, porém, limitado ao preenchimento de postos de primeiro escalão e alguns poucos cargos do segundo escalão; (b) despesas excessivas com pagamento do serviço da dívida pública. Somadas as duas despesas pouco restava para as despesas de capital, notadamente para as de investimento.
A Revolução já passou, mas os cargos em comissão e funções de confiança, introduzidos pelos militares por razões plausíveis, na época, continuaram a pleno vapor, alimentados por milhares de nomeações à margem do concurso público de ingresso no serviço público como determina o art. 37, inciso II, da Constituição Federal. São os denominados “trens da alegria” que costumam circular nos finais de cada ano. A dívida pública, tanto interna, como externa, também crescia em proporções, alarmantes gerando despesas enormes com o serviço da dívida.
Procurou-se, desta forma, promover o estreitamento dos dois canais por onde os recursos financeiros, obtidos à dura pena, costumavam escorrer com voracidade e de forma desordenada. Esses desperdícios de verbas eram invariavelmente compensados com a brutal elevação da carga tributária. Foi assim que o nível de tributação passou da ordem de 20,41% do PIB do final da década de noventa para os atuais 37% do PIB.
Para conter a escalada de verbas públicas a LRF instituiu no Capítulo IX (arts. 48 a 59) os mecanismos de transparência, controle e fiscalização da despesa pública privilegiando o princípio da publicidade, com o fito de possibilitar o exercício da cidadania.
Outrossim, regulou a política de pessoal e de crédito público, de forma minudente, dentre outras coisas, e tutelou penalmente as normas da Lei de Responsabilidade Fiscal com a aprovação e sanção da Lei n° 10.028, de 19 de outubro de 2000, criminalizando as condutas que, antes, configuravam muitas delas, simples infrações administrativas.
O objetivo deste estudo é o de verificar se a LRF produziu ou não, nesses dez anos, o resultado almejado.
2. Contenção das despesas com pessoal
A diminuição com os gastos de pessoal, mediante a regulamentação do disposto no art. 169 da Constituição Federal[2], é um dos objetivos da Lei de Responsabilidade Fiscal.
2.1 Conceito de despesa com pessoal
Por ser de aplicação no âmbito nacional a LRF instituiu o conceito de “despesa total com pessoal” de forma bem ampla, conforme prescrição do art. 18 e parágrafos:
“Art. 18. Para os efeitos desta Lei Complementar, entende-se como despesa total com pessoal: o somatório dos gastos do ente da Federação com os ativos, os inativos e os pensionistas, relativos a mandatos eletivos, cargos, funções ou empregos, civis, militares e de membros de Poder, com quaisquer espécies remuneratórias, tais como vencimentos e vantagens, fixas e variáveis, subsídios, proventos da aposentadoria, reformas e pensões, inclusive adicionais, gratificações, horas extras e vantagens pessoais de qualquer natureza, bem como encargos sociais e contribuições recolhidas pelo ente às entidades de previdência.
§ 1o Os valores dos contratos de terceirização de mão-de-obra que se referem à substituição de servidores e empregados públicos serão contabilizados como “Outras Despesas de Pessoal”.
§ 2o A despesa total com pessoal será apurada somando-se a realizada no mês em referência com as dos onze imediatamente anteriores, adotando-se o regime de competência”.
O rol previsto no caput do artigo 18, na verdade, tem natureza meramente exemplificativa para servir de parâmetro na fixação de limites de despesas com pessoal por diferentes entes da Federação e por Poder de que cuidam os artigos 19 e 20, respectivamente. Na realidade, só não se incluem como despesas de pessoal as verbas de natureza indenizatória, como, por exemplo, as decorrentes do programa de demissão voluntária, que de voluntário só tem o nome.
2.2 O conteúdo do § 1° do art. 18
Trata-se de um dos dispositivos mais criticados pela doutrina especializada. Autores de renome sustentam que não é possível, juridicamente, cogitar de terceirização de serviço que deva ser executado por servidor público, em decorrência do princípio de acesso a cargos e empregos público por meio de concurso público de provas ou de provas e títulos (art. 37, II, da CF).
De fato, se o serviço público deve ser executado por servidor público não se pode cogitar de substituição deles por meio de contrato de terceirização de mão-de-obra.
Terceirização pressupõe a presença de uma empresa intermediária para contratação de pessoas físicas para execução de determinados serviços. Essa empresa se interpõe entre o trabalhador, que executa o serviço, e o ente político destinatário dos serviços. Ao teor da Súmula 252 do TST é ilegal a contratação de trabalhador por meio de interposta empresa, ressalvados os casos de trabalhadores temporários previstos nas Leis ns. 6.019/74 e 7.102/83. Posteriormente, o Enunciado n° 333 do TST passou a permitir a contratação de serviços de vigilância, conservação e limpeza por meio de interposta empresa, desde que não implique vínculo de emprego com os órgãos da administração direta, indireta ou fundacional. Essa proibição de vínculo empregatício equivale a afirmar que no caso está havendo terceirização de serviços de vigilância, conservação e limpeza, nunca terceirização de mão-de-obra. Alguns exemplos contribuirão para aclarar essa questão. Se o poder público contrata uma empresa ou uma cooperativa de trabalho para ceder-lhe mão-de-obra, a fim de substituir os médicos e os paramédicos, em um determinado hospital, em razão de férias ou licenças de seus titulares, a despesa respectiva entrará no limite das despesas de pessoal, pois, é a hipótese visada pelo § 1º, do art. 18 sob comento. É claro que esses médicos e paramédicos não se transformarão em servidores públicos e nem a lei assim determina. Porém, as despesas decorrentes dessa contratação, regular ou irregular, não importa, são computadas no cálculo da despesas total com pessoal. Mas, se o mesmo poder público contratar uma empresa para gerir o hospital público, ficando a cargo dela a contratação de mão-de-obra, as despesas de administração, de equipamentos, de remédios etc. estaremos diante de terceirização de um serviço público. Nessa hipótese, não se aplica o § 1º, do art. 18, mas, a regra transitória do art. 72. Inconfundíveis, pois, a hipótese do § 1º, do art. 18, que se refere às despesas de terceirização de mão-de-obra, com a hipótese do art. 72, que se refere às despesas com a terceirização de serviços. Infelizmente, grande parte da doutrina tem conferido tratamento idêntico a ambas as hipóteses gerando dúvidas e perplexidade.
Por tais razões, o conhecido administrativista, Ivan Barbosa Rigolim sustenta que a despesa com terceirização de mão-de-obra “não pode ser incluída no item de ‘outra despesas de pessoal’ nem aqui, em nosso País, e nem na residência do demônio de sete barbas de Mesopotânea”[3].
De fato, terceirização de mão-de-obra substitutiva de servidor público é inconstitucional por violar o princípio da investidura em cargo ou emprego público por meio de concurso público (art. 37, II da CF). Contudo, não se deve analisar o § 1°, do art. 18 sob o prisma da constitucionalidade ou não. Seu objetivo é diverso. Na realidade, com ou sem proibição legal ou constitucional, existem no âmbito das três administrações públicas servidores não concursados, às vezes, até exercendo funções privativas de servidores efetivos (cargos públicos).
O governante que faz a contratação irregular não pode ficar impune em face da LRF, pois isso seria punir os governantes que cumprem o princípio do acesso de servidor a cargos e empregos públicos por meio de concursos públicos e premiar o governante que escamoteia esse princípio.
Por isso, afirmamos que o “legislador não se preocupou com o aspecto da licitude ou ilicitude desse tipo de contrato de terceirização de mão-de-obra, mas, tão somente com um dos objetivos principais da LRF, que é o de conter as despesas de pessoal. Procurou-se neutralizar, no âmbito da LRF, os efeitos danosos da velha prática antes referida, consistente em burlar, através de expedientes ilegais, o limite de despesa de pessoal” [4].
Agora, os valores dos contratos a esse título não podem mais ser contabilizados na rubrica “Serviços de Terceiros”, como vinham fazendo as administrações das três esferas políticas. Dentro desse espírito, só se incluem na rubrica “Outras Despesas de Pessoal” as realizadas com a contratação de serviços que deveriam ou poderiam ser executados pelo quadro permanente de servidores, o que exclui os serviços técnicos profissionais especializados, referidos no art. 13 da Lei nº 8.666/93.
Reconhecemos a deficiência e a impropriedade redacional desse § 1º, do art. 18. Contudo, ele vem cumprindo a sua importante missão de promover o enxugamento das despesas com pessoal, diminuindo os efeitos danosos de uma velha prática arraigada no seio da administração em geral, consistente na burla ao princípio de acesso a cargos e empregos públicos por meio de concurso público. É preciso que a norma referida seja interpretada no contexto da ordem jurídica como um todo, privilegiando o seu aspecto teleológico procurando detectar o seu verdadeiro alcance e conteúdo.
Por essas razões, o Plenário do STF, ainda que em apertada votação (6 x 5), posicionou-se pela constitucionalidade do § 1°, do art. 18, assinalando que aquele parágrafo “visa a evitar que a terceirização de mão-de-obra venha a ser utilizada para o fim de ladear o limite de gasto com pessoal. Tem, ainda, o mérito de erguer um dique à contratação indiscriminada de prestadores de serviço, valorizando o servidor público e o concurso”[5].
Como se sabe, o limite global de despesas com pessoal está fixado pelo art. 19 da LRF, com fundamento no art. 169 da CF, em 50% da receita corrente líquida para a União, e, em 60% da mesma receita para os Estados e Municípios. E os limites por Poder e do Órgão Ministerial estão fixados no art. 20 da LRF, nos seguintes termos:
“Art. 20. A repartição dos limites globais do art. 19 não poderá exceder os seguintes percentuais
I – na esfera federal:
a) 2,5% (dois inteiros e cinco décimos por cento) para o Legislativo, incluído o Tribunal de Contas da União;
b) 6% (seis por cento) para o Judiciário;
c) 40,9% (quarenta inteiros e nove décimos por cento) para o Executivo, destacando-se 3% (três por cento) para as despesas com pessoal decorrentes do que dispõem os incisos XIII e XIV do art. 21 da Constituição e o art. 31 da Emenda Constitucional no 19, repartidos de forma proporcional à média das despesas relativas a cada um destes dispositivos, em percentual da receita corrente líquida, verificadas nos três exercícios financeiros imediatamente anteriores ao da publicação desta Lei Complementar;
d) 0,6% (seis décimos por cento) para o Ministério Público da União;
II – na esfera estadual:
a) 3% (três por cento) para o Legislativo, incluído o Tribunal de Contas do Estado;
b) 6% (seis por cento) para o Judiciário;
c) 49% (quarenta e nove por cento) para o Executivo;
d) 2% (dois por cento) para o Ministério Público dos Estados;
III – na esfera municipal:
a) 6% (seis por cento) para o Legislativo, incluído o Tribunal de Contas do Município, quando houver;
b) 54% (cinqüenta e quatro por cento) para o Executivo”.
Esse art. 20 foi alvo de críticas virulentas a pretexto de que interfere no princípio de separação dos Poderes. De fato, não há matriz constitucional expressa para limitação por Poder das despesas com pessoal. Acontece que há expressa previsão constitucional para definição de despesa global com pessoal das entidades políticas. Ora, sem a repartição desse limite global por Poder aquele teto global não teria como ser obedecido. O limite por Poder visa dar efetividade ao limite global de cunho constitucional. Por isso, o Plenário da Corte Suprema instado a se manifestar a respeito, em sede de liminar negou a suspensão dos efeitos do citado art. 20 requerida nos autos da ADI impetrada pelo Partido Comunista do Brasil – PC DO B e outros, sob o fundamento de que “o art. 169 da Carta Magna não veda que se faça uma distribuição entre os Poderes dos limites de despesa com pessoal; ao contrário, para tornar eficaz o limite, há de se dividir internamente as responsabilidades” [6].
2.3. O mecanismo de controle das despesas com pessoal
A LRF estabelece os mecanismos de controle das despesas com pessoal ao final de cada quadrimestre, por meio do Relatório de Gestão Fiscal a ser emitido pelos titulares de Poderes e do órgão Ministerial, (Arts. 22, 55 e 55, I, a), o qual, deverá ser publicado até 30 dias após o período a que corresponder, com amplo acesso público, inclusive, por meio eletrônico, sob pena de o ente político responsável ficar impedido de receber transferências voluntárias e sofrer restrições na contratação de operações de crédito (§§ 2° e 3°, do art. 55).
Ultrapassados os limites e fracassados os mecanismos de redução de despesas com pessoal mediante as providências previstas nos incisos I a V, do parágrafo único, do art. 22 e no art. 23, §§ 1° e 2°, o ente político incorrerá nas sanções previstas no § 3°, desse art. 23, ou sejam, proibição de receber transferências voluntárias[7], de obter garantia de outro ente político e de contratar operações de crédito.
Para evitar essas sanções o PLC n° 132/07, em discussão no Parlamento Nacional, confere nova redação ao § 3°, do art. 23, da LRF substituindo a punição do “ente” pela punição do “Poder ou Órgão”, o que na prática acaba com as sanções, pois o Poder Judiciário e o Órgão Ministerial, responsáveis pela extrapolação dos limites com despesas de pessoal, não estão vocacionados para realizar operações de crédito que se insere na competência exclusiva do Poder Executivo, nem são destinatários de transferências voluntárias.
O correto seria estabelecer sanções específicas para o Poder e Órgão Ministerial que ultrapassar os limites, consistentes, por exemplo, na retenção do repasse de recursos previsto no art. 169 da CF na proporção dos valores extrapolados.
3. Contenção da dívida pública
A segunda fonte de desequilíbrio orçamentário, o crédito público, mais conhecido como dívida pública, mereceu rígida disciplinação no Capítulo VII da LRF (arts. 29 a 42).
Para uniformização de linguagem, tendo em vista a sua natureza nacional, a LRF começa por definir, em seu art. 29, o que é dívida pública consolidada ou fundada, dívida pública mobiliária, operação de crédito, concessão de garantia etc.
Por pertinência a este estudo que estamos desenvolvendo reproduzimos as definições dos incisos I e III, do art. 29 como seguem:
“I – dívida pública consolidada ou fundada: montante total, apurado sem duplicidade, das obrigações financeiras do ente da Federação, assumidas em virtude de leis, contratos, convênios ou tratados e da realização de operações de crédito, para amortização em prazo superior a doze meses;
III – operação de crédito: compromisso financeiro assumido em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros”.
O art. 30 dispõe sobre limites da dívida pública e das operações de crédito. Esses limites acham-se regulados nas Resoluções ns. 262/96, 40/01 e 43/01 do Senado Federal.
As operações de crédito são reguladas pelo art. 32 sendo de suma importância a proibição contida no art. 42 que veda que o titula de Poder, “nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, contraia obrigação que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenham parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este feito”. Importante, também, a proibição de contratar operações de crédito por antecipação de receita orçamentária – ARO – no último ano de mandato do Presidente, Governador ou Prefeito (art. 38, IV, b). Ambos os preceitos têm cunho moralizador para coibir costumeiros abusos de governantes que deixavam de “heranças” dívidas fabulosas para os sucessores, até mesmo por razões puramente políticas.
3.1 O mecanismo de controle da dívida pública
O art. 31, a exemplo do que fez em relação às despesas com pessoal, dispôs sobre a recondução da dívida consolidada caso esta ultrapasse o limite respectivo, sob pena de sanções previstas em seus parágrafos. Esse dispositivo introduziu o critério de controle quadrimestral do montante da dívida consolidada, a fim de possibilitar a eliminação de eventuais distorções, objetivando sua conformação aos limites fixados pelo Senado Federal, com prescreve a Carta Magna. Se ao final de um quadrimestre a dívida ultrapassar o limite respectivo, ao término dos três quadrimestres subseqüentes deverá haver recondução da dívida àquele limite, hipótese em que o excedente deverá ser eliminado, em pelo menos 25% no primeiro quadrimestre, e, os restantes 75% até o final dos dois quadrimestres subseqüentes.
Não reconduzida a dívida a seu limite regular, no prazo de 12 meses, conforme prescrição do caput do art. 31, o ente político infrator passará a sofrer as seguintes sanções: (a) estará proibido de realizar operações de crédito, interna ou externa, inclusive ARO; (b) ficará impedido de receber as transferências voluntárias (§§ 1º e 2º, do art. 31).
3.2 Dívida de precatório
O legislador, constatando a crescente dívida de precatório que até ensejou a primeira moratória prevista no art. 33 do ADCT da Constituição de 1988, não teve dúvida em acrescentar o § 7° ao art. 30, nos seguintes termos:
“§ 7°. Os precatórios judiciais não pagos durante a execução do orçamento em que houverem sido incluídos integram a dívida consolidada, para fins de aplicação dos limites”.
Como se depreende dos incisos I e III, do art. 29, da LRF retrotranscritos, a dívida de precatório, por resultar de condenação judicial, não se enquadra no conceito de operação de crédito, decorrente de ato de vontade, nem no conceito de montante de dívida consolidada ou dívida fundada.
Entretanto, com essa providência preconizada pelo § 7º, do art. 30 da LRF, o ente político que descumprir os precatórios passa a sofrer limitações para a realização de operações de crédito. Por isso, nos primeiros anos de vigência da LRF o crescimento da dívida de precatório foi menor do que em relação ao período anterior, quando se deu a primeira moratória do art. 33 do ADCT.
Porém, logo essa dívida retomou o seu crescimento, por conta da leniência de órgãos e autoridades responsáveis que não aplicaram os preceitos constitucionais e legais pertinentes, que estabelecem sanções políticas, administrativas e criminais contra os governantes e entes políticos que descumprem a ordem judicial, representada por precatório entregue no período requisitorial, isto é, até 1° de julho de cada ano para ser incluído no orçamento do ano seguinte e pago até o final desse ano.
Em razão dessa omissão dos órgãos e autoridades competentes formou-se entre os governantes aquilo que chamamos de “cultura do calote”. Os governantes regionais e locais acham absolutamente normal a programação de desvio sistemático das verbas para pagamento de precatórios, que pertencem ao Poder Judiciário (art. 100, § 6° da CF), para atender outras prioridades que trazem projeções na mídia. Pagar precatório não dá IBOPE como as despesas de propaganda que não param de crescer. Estas, na verdade, na classificação doutrinária, incluem-se entre as despesas inúteis ou improdutivas, pois, em nada contribuem para crescimento da capacidade produtiva, nem tem qualquer utilidade para a sociedade em geral, exceto para o próprio governante que se serve de verba pública para se projetar perante a opinião pública leiga.
Daí, o segundo calote de precatórios pela EC n° 30/2000 e, agora, o terceiro calote pela EC n° 62/09[8]. A cada versão do calote acentuam-se as violações aos direitos e garantias fundamentais e aos princípios federativos e àqueles que regem a administração pública, notadamente, ao princípio maior da moralidade pública. O último calote sequer fixou prazo certo para pagamento dos débitos de precatórios. Surtiu efeito para o passado, para o presente e projetou efeitos para o futuro, isto é, o ente político que estiver sob o regime especial para pagamento de precatórios não precisará de promover a inclusão orçamentária dos débitos requisitados, bastando ir depositando mensalmente um percentual de sua receita corrente líquida (art. 97 do ADCT introduzido pela EC n° 62/2009). E com isso desapareceu a figura do precatório vencido. Vai-se pagando, aos poucos, a critério da discrição do governante, sem prévia inclusão orçamentária e sem prévia fixação de despesas a esse título. Nunca se viu tamanho atentado contra as normas orçamentárias. Por isso, não se trata de moratória, que exige um termo certo, mas de autêntico calote.
Essas Emendas espúrias anistiam os governantes inadimplentes e fortalecem a cultura do calote promovendo a política do endividamento irresponsável, exatamente na contramão da Lei de Responsabilidade Fiscal que objetiva, dentre outras coisas, a redução da dívida pública e seu controle e fiscalização.
Com as facilidades que essas Emendas propiciam salta aos olhos dos governantes que é muito mais vantajoso programar desvios dos recursos para pagamento de precatórios do que efetuar operações de crédito, sujeitas à observância de inúmeros requisitos legais e complementares, agravadas, ainda, com pagamento de juros elevados.
Dessa forma, a programação sistemática das verbas para pagamento de precatórios vem sendo operada como sucedâneo de operações creditícias que encontram óbices nos apontados arts. 38, IV e 42 da LRF. A utilização de verbas do precatório para atender outras despesas nada custa ao governo: nem juros, nem correção monetária. Quando o estoque de dívidas de precatórios atingir um patamar dito “impagável” é só acenar com a necessidade de novo calote e tudo estará resolvido para os governantes, repita-se, regionais e locais. O governo federal vem cumprindo os precatórios disponibilizando ao Poder Judiciário as verbas que lhe cabe consoante a determinação do art. 100, § 6º, da CF.
O desvio de verbas não encontra óbice algum. O Judiciário pela sua cúpula vem impedindo a punição de governantes e do ente político inadimplente enquanto não sobrevier Emenda Constitucional passando uma esponja nas irregularidades do passado.
Dentro desse quadro é possível vislumbrar um quarto calote constitucional em período não muito longo. Considerando a progressiva elevação do nível de violações a cada calote, pode-se antever que a futura Emenda a respeito decretará, no mínimo a remissão parcial, senão a remissão total da dívida de precatórios. Aliás, o leilão de precatórios pelo critério do maior deságio, previsto na EC nº 62/09, já significa remissão parcial da dívida decorrente de condenação judicial.
A LRF deve ser urgentemente emendada para inverter essa política de endividamento irresponsável.
É necessário que o desvio de verba de precatório seja apenado com as sanções dos §§ 1° e 2°, do art. 31 da LRF (proibição de efetuar operações de crédito e proibição de receber transferências voluntárias[9]), independentemente, de ter ou não incluído os valores de precatórios inadimplidos no montante da dívida pública consolidada.
É preciso, também, que se torne inelegível o governante que tenha promovido o desvio de verbas de precatórios, facilmente constatável, tanto pelo Presidente do Tribunal, responsável pelo pagamento dos precatórios (art. 100, § 7° da CF) mediante simples exame do MOC, Mapa Orçamentário, como pelo relatório do Tribunal de Contas competente, que aprecia as contas do Chefe do Executivo, onde constam as verbas requisitadas, as verbas consignadas e as verbas pagas.
4 Conclusões
Apesar do rigor com que a LRF trata as despesas com pessoal e o crédito público não houve a esperada diminuição dessas despesas. À supressão de cada cargo efetivo seguiu-se a criação de mais de quinhentos cargos em comissão, nos últimos anos. Da mesma forma, o limite de endividamento em relação ao PIB vem crescendo aos olhos vistos. É que a lei não tem o condão de tornar probos os ímprobos, nem de tornar honestas as pessoas desonestas. Dizia Montesquieu que os homens de bem guiam-se pela ética; os demais pela lei.
Poder-se-ia argumentar que sem a LRF o quadro teria evoluído para o pior. É bem possível, como também, provável. Muito provavelmente a Lei de Responsabilidade Fiscal, nesses dez anos de vigência, bem ou mal, cumpriu o seu papel principal de promover o equilíbrio das contas públicas, apesar da Emendas espúrias concernentes a dívidas de precatórios que minaram seus alicerces.
Afinal, se o legislador constituinte derivado e o legislador ordinário é o mesmo deveria agir com mais coerência e harmonia. De um lado, lei de natureza permanente no plano genérico e abstrato com vocação de perenidade prescrevendo regras severas para contenção de despesas, de outro lado, Emendas Constitucionais de caráter concreto e temporário torpedeando as normas permanentes da LRF. Essa anomalia não tem explicação no princípio da hierarquia vertical das leis.
É preciso o exercício contínuo da cidadania, exigindo dos legisladores e dos aplicadores da lei a observância do princípio da razoabilidade que se coloca como um limite à ação do próprio legislador, bem como o respeito aos direitos e garantias fundamentais que derivam diretamente da soberania popular (art. 1°, parágrafo único da CF) e que por isso mesmo se acham acima do poder político do Estado.
Informações Sobre o Autor
Kiyoshi Harada
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.