Resumo: Trata-se o presente trabalho de uma reflexão crítico-filosófica sobre um advento complexo que ocorre na sociedade brasileira, vivenciado intimamente por grande parte da população em seu cotidiano, porém, muitas vezes, despercebido: o desconhecimento geral das normas jurídicas. Fenômeno tal que acaba dificultando a implementação das relações de cidadania e afasta, cada vez mais, o sonho ideal de um Estado Democrático de Direito, amparado pela justiça social. Neste âmbito, apontam-se alguns dos fatores decisivos para a manifestação da ignorância jurídica, dentre os quais pode se destacar a relação histórica perversa que se estabelece entre o Estado, o Poder e a Ideologia, restringindo o conhecimento jurídico ao acesso de poucos, notadamente das classes elitizadas, que se utilizam da ideologia por ela imposta para manter o status quo e assim garantir, ao longo dos tempos, o seu poder temporal e social. Propõe-se, ao final, uma rediscussão de valores e ensinamentos transmitidos pelas Faculdades de Direito e a revisão de posturas por parte dos operadores jurídicos, sob o fito de se reavaliar o papel dos mesmos como agentes sociais transformadores e a essência da própria ciência jurídica na orientação cidadã.
Palavras-Chave: normas jurídicas, Justiça, Direito, poder, Estado, ideologia, cidadania.
Abstract: It is this work of a critical-philosophical reflection on a rise complex that occurs in Brazilian society experienced intimately for much of the population in their daily lives, but often overlooked: the general ignorance of legal standards. Phenomenon such that makes it difficult to implement the relationships and citizenship withdrawn, increasingly, the dream of an ideal democratic state, supported by social justice. In this context, pointing out some of the decisive factors for the manifestation of legal ignorance, among which can highlight the perverse historical relationship established between the State, Power and Ideology, restricting access to legal knowledge of a few, notably the class elites, who use the ideology imposed by it to maintain the status quo and thus ensure, over time, its temporal power and social. It is proposed that, ultimately, another discussion of values and teachings of the Faculties of Law and the revision of attitudes on the part of legal operators, under the intent to reevaluate the role of social actors themselves as transformers and the essence of science itself in legal guidance citizen.
Keywords: rules of law, justice, law, power, influence Roman state, ideology, citizenship
Sumário: 1. Introdução; 2. A linguagem jurídica; 2.1 A origem do comunicar; 2.2 Linguagem jurídica, discurso ideológico e poder; 2.3 O problema da terminologia jurídica; 2.4 O arcaísmo jurídico como óbice; 3. Conclusão
1. INTRODUÇÃO
Um problema marcante vem se estabelecendo no Brasil, ao longo dos tempos, afetando bastante as relações interindividuais, dificultando a efetivação do exercício de cidadania e, consequentemente, o implemento da tão sonhada justiça social e do tão desejado Estado Democrático de Direito: o desconhecimento das normas jurídicas por grande parte da população brasileira.
Muitas pessoas, às vezes, se questionam “o que”, “como” e “quando” fazer em determinadas situações, estando expostas a tomar decisões que irão afetar direta ou indiretamente as suas vidas, mas, por razões de ignorância parcial ou total se precipitam ou necessitam de ajuda de profissionais ou amigos mais gabaritados, para fazê-lo.
Tal fenômeno pode ser explicado por diversos fatores sociais, econômicos, políticos ou culturais, a exemplo da pobreza, ou até mesmo fatores sobrenaturais como a crença na justiça divina. Todavia, sob o intuito de se tentar construir uma argüição lógica e simples na compreensão das origens e manifestação do tema em comento, qual seja, a incompreensão das normas jurídicas, visando a uma reflexão crítica e filosófica da natureza desse fenômeno, propõe-se este trabalho.
Ressalte-se, primordialmente, não haver aqui qualquer proposta de exaurimento do tema em esboço, até mesmo porque qualquer afirmação neste sentido seria demagógica e inútil, dada a sua complexidade estrutural, conforme já foi assinalado anteriormente. Por isso, conduzindo-se por uma vertente analítica, é apresentado, na presente obra, alguns dos motivos concebidos como o ponto crucial para a manifestação desse fenômeno na sociedade nacional, quais sejam, as relações existentes entre o Direito, o Poder e a Ideologia na formação do conhecimento popular sobre as normas jurídicas que regem o comportamento da sociedade.
As razões para essa percepção se encontram no fato de não haver qualquer advento que ocorra, no universo jurídico, sem uma motivação histórica. Além disso, o Direito – enquanto ciência multidisciplinar (influenciada por várias outras ciências) – deve se relacionar com outras vertentes axiomáticas, a exemplo da Ideologia, do Poder e do Estado, sob o fito de ser explicada a essência do seu papel social e se definirem os seus reais objetivos. Neste contexto, são retratadas as interações entre a ciência jurídica, o Estado, o Poder e as teorias que tentam explicar a ideologia, situando-se, nesse panorama, a realidade histórico-evolutiva do Brasil. Perceber-se-á, aqui, que – embora exista opinião em contrário, defendendo um distanciamento entre o Direito e o Estado – há, em verdade, uma aproximação muito grande entre os dois, à proporção que o primeiro utiliza o segundo como legitimador de sua existência, surgindo, dessa relação, o advento do “poder”, pautado pela relação dominador/dominado. Doravante, são concebidas as formas como tal poder pode se manifestar, de acordo com as concepções crítico-discursivas utilizadas por um pensador ou autor ante a análise da realidade que o circunda e paralelamente aponta-se a influência ideológica no caso particular brasileiro, que envolve todo um apanhado histórico da herança de dominação do país desde o início de sua colonização até os dias atuais.
2. AS RELAÇÕES ESTRUTURAIS DO DIREITO COM OS SEGMENTOS QUE MAIS ACENTUAM A INCOMPREENSÃO DA NORMA JURÍDICA
2.1 DIREITO VERSUS PODER
Ao se analisar a etiologia da palavra “Direito”, consoante o Dicionário Brasileiro Globo, pode-se perceber quão numerosa é a quantidade de significados que a mesma possui, tais como: “aquilo que se segue ou se estende em linha reta, plano aprumado, reto, íntegro, justo, honrado […] o que é conforme a lei, […], faculdade legal de se praticar um ato, conjunto de leis ou preceitos que regulam as relações sociais […] regalia” etc. (FERNANDES, LUFT e GUIMARÃES, 1998). Destarte, desde já, não à toa se nota uma acepção formalista e dogmática de tal termo, porquanto a própria “evolução” natural de sua significância se confunde com a estrutura sócio-político-econômica e cultural vigente em cada época e comunidade por que a ciência jurídica passou, exercendo, de alguma forma, a sua influência.
Pautando-se estritamente por sua tradição dogmático-formalista, ao Direito em si foi atribuída uma espécie de “blindagem” semântica, que se enraizou estruturalmente nas sociedades por onde o mesmo percorreu (as ocidentais em especial), sob um enfoque superior, diretivo, afastando-se, talvez, dos objetivos originários de justiça, aos quais foi concebido.
Nesse contexto, faz-se imprescindível um estudo pormenorizado da interação estabelecida entre a ciência jurídica e o seu principal ente articulador e, quiçá, garantidor da sua existência, bem como da sua perpetuação ao longo dos tempos: o Estado. Neste diapasão, far-se-á uma pequena abordagem sobre a manifestação da ciência jurídica no contexto histórico-evolutivo do Brasil, sob o fito de se tentar demonstrar como a mesma adquiriu uma relação de destaque com o aparelho estatal, ajudando assim a traçar-lhe os aspectos peculiares na sociedade atual.
Inicialmente, pode-se afirmar que existe uma relação entre o Direito e o aparelho estatal, a qual ajuda a explicar a essência da epistemologia jurídica. Para Wolkmer, há duas correntes principais que explicam o relacionamento Direito versus Estado: a) o dualismo tradicional – preconizador da separação entre ambos, entendo-se aqui constituírem os mesmos duas “realidades díspares”, nas quais se legitima a prioridade lógica do último em relação ao primeiro (o Estado como criador do Direito), estando as normas jurídicas condicionadas à sanção estatal: o Estado seria a fonte mais importante do Direito, entrando em ação, a fim de dar “aplicação e eficácia ao elemento normativo, garantindo a coesão do imaginário sócio-político; e b) a doutrina monista – cujo representante maior foi Hans Kelsen, o qual inaugurou a dogmática normativista, que apresenta o Estado e o Direito como algo indivisível, donde o primeiro “encarna” o segundo, determinando-lhe o nível de ordenação. (WOLKMER, 1995: 72-79). Neste sentido, o “Estado legitima seu poder pela segurança e pela validade oferecida pelo Direito, que, por sua vez, adquire força no respaldo proporcionado pelo Estado”. (Idem: 74)
Diante dessa relação aparato estatal versus ciência jurídica, em que pesem as controvérsias acerca da sua união ou segregação, torna-se indiscutível a influência que um exerce sobre o outro e vice-versa, a ponto de se estabelecerem, no meio social vigente, fatores de dominação, carisma, controle, como fontes de legitimação do poder do Estado.
José F. de Castro Farias acrescenta, por sua vez, que, na complexidade da vida social, não há uma relação humana sem que, de alguma maneira, não se encontre sob a influência voluntária de um indivíduo ou de um grupo a conduta de outro indivíduo ou grupo. Por isso, o conceito de poder tem sido usado para interpretar as mais variadas relações que se espalham pelo corpo social, desde a família até as relações entre as classes sociais e o poder do Estado. Portanto, não é possível situar-se fora do poder e “escapar às suas relações.” (WOLKMER, 1995: 73).
Infere-se desse panorama, que a situação de poder não só se sustenta na sociedade, como também se pauta na “legitimidade” fundada no consenso, advinda da maior parte de seus integrantes ou, sendo ilegítimo, “quando violar os valores dominantes compartilhados e priorizados numa determinada organização política”. (WOLKMER, 1995: 74).
Por outro lado, a relação entre os indivíduos está sempre marcada por conflitos, vez que – conforme observações de Calmon de Passos – percebe-se que os homens inserem-se perante o meio social, basicamente para estarem “uns com os outros (interação, solidariedade etc.), permanecendo, entretanto, “em meio aos outros”, sentindo-se inéditos e irrepetíveis.” (PASSOS, 2003: 41). Desta feita, frise-se, há impossibilidade de auto-organização ou de vivência sem a presença do próximo para a execução e/ou fiscalização de atos, persecução de sonhos, objetivos, desenvolvimento de ideias, haja vista que, ausente o “reconhecimento tácito dos outros, os seres humanos não seriam capazes, nem mesmo, de ter fé no modo pelo qual apareceriam eles mesmos. (PASSOS, 2003: 42).
Ademais, ao se organizarem, os seres humanos são suscetíveis ao melhor atendimento de suas necessidades (aspecto positivo) ou à hierarquização de interesses, “institucionalizando-se” a desigualdade (aspecto negativo), que reclama coordenação e submissão de vontades, só possível com a implementação de um “certo poder” (Idem: 45).
Cumpre ressaltar que – em se considerando a predominância latente do segundo ponto (aspecto negativo) nas relações interindividuais – a realidade que se afigura é a interferência do poder como diretrizador comportamental, tutelado por uma manifestação de força ou coação, a qual se exprime sob diversos aspectos: a) o poder antropológico – pautado no diferencial de capacidade humano, marcado pelas desigualdades, ligado à teoria das necessidades, psicologia e teoria das atitudes; b) o poder sociológico – poder como princípio motor da instituição, ou seja, adicional que transforma o costume numa instituição impositiva para organizar a sociedade, segundo uma ideia; c) o poder político – elemento diferenciador, caracterizado pela ideia comando/obediência, que move indivíduos e instituições e, aliado ao poder estatal, serve como fundamento para que o Estado consiga atingir seus fins; d) o poder econômico – quando se institucionaliza determinado modelo de divisão do trabalho social e de apropriação do produto desse trabalho, proporcionando pressupostos materiais para o poder político; e) o poder jurídico – como energia criadora do Direito, contendo a promessa da realização da ideia social que o representa; f) o poder ideológico – legitimador do próprio poder em todas as suas manifestações, mediante mecanismos de convencimento. (PASSOS, 2003: 46-47).
Nesse ensejo, o poder se assenta numa vontade da parte dominante, através de certos diferenciais, a saber: 1) psicológicos: o poder dependente da experiência, persuasão, medo, raciocínio, conhecimento etc.; 2) sociológicos: o poder dependente do papel desempenhado pelo agente na sociedade (influência, liderança, laços familiares, autoridades institucionalizadas); 3) econômicos: o poder dependente da capacidade de alguns em obter bens e serviços de outro; e 4) políticos: advêm do poder de decisão sobre o grupo, capacitando alguns a obter coercitivamente determinadas prestações em sujeições alheias.” (Idem: 45).
Por sua vez, no que concerne à relação específica poder versus norma, vale salientar a incidência da efetividade. Esta, se sobrepor, deve ser analisada em sua interação com o elemento volitivo, isto é, depende da vontade do homem que o acolhe em sua vida concreta, ao dotá-la de uma energia social capaz de levá-lo a prevalecer no grupo. (Ibidem, p. 48). Assim sendo, a eficácia normativa (termo “eficácia” utilizado em sentido lato, sem intenção de distingui-lo de “efetividade”) independe muito menos da vontade de qualquer prescrição jurídica, seja ela constitucional ou infraconstitucional, do que do modo como se estabelecem as relações do indivíduo, particular ou socialmente. Seguindo a acepção foucauniana (FOUCAUT, 2007), diz-se que há uma interpenetração de microssistemas de poder, na qual o indivíduo se coloca passivamente diante do seu próximo, tendo em vista o status social ou profissional alcançado e referendado tacitamente em seu meio circundante, a exemplo do respeito social extremo à figura do advogado, do médico, do engenheiro, do político, do papa, do juiz, bem como os privilégios de tratamento obtidos pelos grandes proprietários de terra, grandes empresários, artistas famosos etc.
Destarte, torna-se notório que o fenômeno do poder interfere direta ou indiretamente nas normas constantes do meio social, haja vista o seu processo de formação e difusão estar deveras calcado e legitimado nas relações interpessoais, pelos seus aspectos antropológicos, econômicos, políticos, jurídicos e, principalmente, ideológicos. Como bem explicita Calmon de Passos, inexiste, portanto, convivência humana livre de relações de poder, nem há relação de poder a “salvo dos binômios controlador/controlado, comando/obediência.” (PASSOS, 2003: 47). O problema, consequentemente, não é a eliminação do poder nas relações humanas, nem torná-las o que elas não podem ser, mas sim o de domesticar o poder (Idem: 49).
Uma relação comprovadora dessa relação de domínio existente entre a ciência jurídica e o aparelho estatal foi a que ocorreu no processo de formação do Estado brasileiro, desde o advento da colonização.
Utilizando-se de uma interpretação crítica da história do Direito no país, baseada fundamentalmente na visão combativa de Wolkmer (WOLKMER, 2007), parte-se de uma temática analítica na qual se constata sempre ter havido uma tentativa por parte das classes dominantes de impor a sua hegemonia, através da ciência jurídica, colocada como meio legitimador e encobridor das práticas político-patrimonialistas estatais.
Desde o início da colonização brasileira, sempre predominou o interesse econômico exploratório da metrópole sobre os da colônia, como consequência da política imperialista além-mar, implementada após a insurgência precoce do Estado Nacional lusitano já no século XIV. Neste panorama, com o objetivo de fazer prevalecer a sua hegemonia, Portugal estendeu a implementação no país de leis gerais que comumente eram aplicadas no universo jurídico da sede metropolitana portuguesa, advindas basicamente de três institutos: a) as Ordenações Afonsinas (1466) – compilações de leis esparsas em vigor no reino luso, baseadas em resoluções que vieram do principalmente do Direito Canônico; b) as Ordenações Manuelinas (1521) – reunião de Leis extravagantes promulgadas pelas legislações anteriores; e, em especial, pelas c) Ordenações Filipinas – com longa aplicação e vigência no Brasil-Colônia até o século XVIII (WOLKMER, 2008: 354-355). Existiram, neste ínterim, leis extravagantes pátrias, porém sua função era meramente subsidiária, versando sobre alguns assuntos comerciais, como letras de câmbio, seguros marítimos etc. (WOLKMER, 2007: 60).
Dentro dessa realidade, duradoura do período do Governo-Geral (1479-1763) até meados do século XIX, surgiu um Poder Judiciário colonial marcado pelo controle de certos agentes públicos, os juízes (juízes de fora, os juízes de vintena, os juízes de órfãos etc.), os quais, assumindo papel privilegiado para o julgamento de conflitos locais, receberam ordens expressas da Coroa lusa para aplicar o Direito em conformidade com os interesses desta. Sobre tal processo de controle colonial pelo Estado lusitano, consoante bem afirma Rodrigo de Andrade de Almeida:
“A colonização econômica fez-se acompanhar da colonização intelectual, uma vez que, não possuindo o Brasil autonomia para erigir suas próprias instituições científicas e de ensino, teve ao longo de aproximadamente trezentos anos sua classe letrada “importada” da metrópole e, dessa forma, ligada aos interesses desta. Assim, os magistrados representavam ao mesmo tempo as faces judiciária e administrativa da Coroa Portuguesa na colônia, uma combinação de autoridade intelectual e política personificada em sua figura. Desde o princípio, portanto, do processo de estruturação da sociedade brasileira, a autoridade política e o discurso ideológico trilharam juntos as sendas da dominação patrimonialista e conservadora.” (ALMEIDA, 2005)
Iniciou-se assim um rápido processo de burocratização no cenário nacional, onde os magistrados, à proporção que se aproximavam das elites locais insurgentes, através de casamentos dos seus componentes com as filhas dos senhores de engenho, começavam a estabelecer uma política de favores. Exclui-se assim a maior parte da população, formada em sua maioria por negros escravizados e índios dizimados e espalhados em sua outra parte, por todo o território nacional, sem qualquer perspectiva. Era o início assim do estabelecimento do status quo na sociedade brasileira, cujo aparato estatal exercia papel essencial na sua manutenção.
Nesse contexto, inexistia qualquer preocupação com o desenvolvimento de leis mais favoráveis às classes dominadas, pois predominava, frise-se, o sistema mercantil escravocrata e monocultor, baseado na apropriação das riquezas coloniais, em benefício do Estado português. Destarte, analisando tal realidade, bem explica Wolkmer:
“O país se e edificou como uma sociedade agrária baseada no latifúndio, sobretudo, em função da Metrópole, como economia complementar, em que o monopólio exercido opressivamente era fundamental para o emergente segmento social lusitano. […]
Nessa perspectiva, o Brasil-Colônia só poderia gerar produtos tropicais que a Metrópole pudesse revender com lucro no mercado europeu; além disso, as outras atividades produtivas deveriam limitar-se de modo a não estabelecer concorrência, devendo a colônia adquirir tudo o que a Metrópole tivesse condições de vender. Para Portugal, o Brasil deveria servir seus interesses; existia para ele e em função dele.” (WOLKMER, 2007: 46-47)
Firmou-se assim um sistema centralizador metropolitano na condução do ordenamento jurídico nacional, tão preocupado com o controle das atividades jurisdicionais da nova colônia, que, além da origem social remontar a nobres fidalgos, a própria formação dos profissionais do Direito era realizada fora do Brasil; mais precisamente na Universidade de Coimbra, donde adveio praticamente a maior parte dos intelectuais pensadores que aqui existiam, consoante preleciona Américo Lacombe:
“[…] A Universidade de Coimbra forneceu-nos bacharéis em Direito em número suficiente […] A relação de nossos estadistas, magistrados e professores é toda de bacharéis de Coimbra. Todo o Brasil político e intelectual foi formado em Coimbra, único centro formador do mundo português. Era um ponto básico da orientação da Metrópole essa formação centralizada”. (LACOMBE apud WOLKMER, 2007: 376)
Com o passar dos tempos, mais precisamente após o processo de Independência, são implementados no Brasil dois cursos jurídicos (um em Pernambuco e outro em São Paulo), os quais, sob influência de ideias liberal-científicas, oriundas principalmente da Revolução Francesa, têm por objetivo principal manter os privilégios e o poder agora entendidos à nova Elite Imperial insurgente, composta por bacharéis liberais burocráticos. O objetivo de tais instituições de ensino superior reprodutoras da legalidade oficial positivista (Positivismo como ciência dominante) era essencialmente responder aos interesses estatais em detrimento dos anseios sociais. “Na verdade, sua finalidade básica não era formar advogados, mas, isto sim, atender às prioridades burocráticas.” (WOLKMER, 2007: 100)
Monta-se, doravante, um Poder Judiciário baseado na Constituição outorgada de 1824 e em vários códigos, especialmente o Código Penal Imperial (1840), sendo composto por juízes que simbolizavam “uma expressão significativa do poder do Estado, ungindo para interpretar a legalidade estatal, garantir a segurança do sistema e resolver os conflitos de interesses das elites dominantes.” (WOLKMER, 2007, p. 115). Tais magistrados assumiam assim papéis políticos e profissionais na sociedade, enquanto classe privilegiada, sem qualquer compromisso social, a não ser com a burocracia. Consoante apregoa José Murilo de Carvalho, a magistratura tornou-se o mais destacável setor, dentre os advindos de Portugal, pois o mesmo:
“[…] era o que dispunha de melhor organização profissional com estrutura e coesão internas superiores a todos os outros segmentos, o que a legitimava como força para a negociação. Tratava-se de uma camada privilegiada “treinada nas tradições do mercantilismo e absolutismo portugueses”, unida ideologicamente por valores, crenças e práticas que em nada se identificava à cultura da população do país. Entretanto, por sua educação e orientação os magistrados estavam preparados para exercer papel de relevância nas tarefas de governo. Daí que, marcados por um sentido mais ou menos político, sua homogeneidade social e ocupação projetava-os não só como os primeiros funcionários modernos do Estado nascente, mas sobretudo como os principais agentes de articulação da unidade e da consolidação nacional.” (CARVALHO apud WOLKMER, 2007: 117)
Conquanto estivessem diretamente ligados ao poder central da Coroa lusa, os juízes não deixavam de ser interdependentes das lideranças locais, mediante apadrinhamentos, o que frequentemente favorecia o ingresso de tais magistrados, na carreira política, em cargos de deputados.
A partir do sec. XIX, o domínio do funcionalismo público foi suplantado pela hegemonia dos profissionais liberais, os bacharéis (advogados), que assumiram papel duplo: representar os interesses individuais ou coletivos e tornarem-se porta-vozes tanto do poder público quanto das oposições. (WOLKMER, 2007: 124). Com o aparecimento, no cenário brasileiro, dos cursos jurídicos nas Escolas do Recife e de São Paulo, e consequente difusão dos ideais liberais, em real confronto com os costumes patrimonialistas e conservadores, passou o bacharel da lei a ganhar espaço destacável na sociedade. Tais profissionais não só possuíam cargos a administrativos, mas, sobretudo, representavam um ideal de vida com reais possibilidades de segurança profissional e ascensão a um status social superior. Isto acabou se revestindo em significado muito grande “numa sociedade escravocrata em que o trabalho manual era desprezado em função de letrados urbanos que se iam ajustando e ocupando as crescentes e múltiplas atividades públicas.” (VENANCIO apud WOLKMER, 2007: 125)
Do século XIX até o século XX, a função advocatícia assumiu uma identidade política bastante acentuada na administração nacional, possuindo os dirigentes políticos do Brasil, via de regra, formação bacharelesca em Direito. Com os bacharéis da lei, herdou-se a cultura contraditória do saber formal-consevador, situado numa sociedade burguesa de característica liberal-patrimonial, regada à “adesão ao conhecimento ornamental e ao cultivo da erudição lingüística.” (ADORNO apud WOLKMER, 2007: 126-127). Neste sentido, são preciosas as lições de Gizlene Neder:
“A compreensão desses profissionais da lei e sua inserção no processo histórico-social possibilita descortinar a singularidade das relações reais entre o fenômeno jurídico e a formação social brasileira na virada do século XIX para o XX. Não resta dúvida de que, na construção da ordem burguesa nacional, tais implicações definem um imaginário jurídico complexo, desdobrado em duas atuações ideológicas muito claras e distintas: a personalidade do “bacharel strictu sensu” e a notoriedade “respeitável” do jurista”. (NEDER apud WOLKMER, 2007: 127)
Doravante, infere-se que a atividade de tais operadores jurídicos indubitavelmente foi responsável pelo processo “de ideologização do saber hegemônico instituído” (WOLKMER, 2007: 127), o qual acabou se difundindou pelos tempos, perdurando até hoje.
2.2 DIREITO VERSUS IDEOLOGIA
Muito se pode questionar da razão de ser da norma jurídica no universo humano, indagando-se sobre seu papel na sociedade, se seria eficaz ante os conflitos vivenciados e o alcance cognoscente dos preceitos legais; sua origem ou mesmo o momento de sua aplicação.
Sob o intuito de se tentar, ao menos, responder a essas e outras eventuais questões que possam surgir com a reflexão pessoal, faz-se necessária uma abordagem lógica sobre o papel da própria ciência jurídica no âmbito social, em razão de as relações interpessoais serem conduzidas por uma força maior que dá guarida ao sistema político-econômico-cultural vigente. Tal força tem o poder de diretrizar comportamentos, direcionar hábitos e/ou costumes, fiscalizar atos, traçar opções a serem seguidas, enfim, conduzir destinos, e está tão arraigada junto aos indivíduos que – muitas vezes – não remanescem quaisquer indícios de críticas ou questionamentos em torno do modelo vivido.
Estar-se assim falando do Direito como ciência dogmática, que, mediante características bastante peculiares, consegue se aliar ao contexto social vigorante, moldando-o conforme os objetivos de quem o conduz. À guisa de tais peculiaridades, utilizando-se das lições de Ana Lúcia Sabadell, define-se ciência jurídica como uma “forma específica de controle social nas sociedades complexas”, tratando-se de um “controle formal, determinado por normas de conduta, que apresentam três características, a saber: a) explícita, indicando aos cidadãos, de forma exata e clara, aquilo que não devem fazer; b) protegida pelo uso de sanções e c) interpretada e aplicada por agentes sociais. (SABADELL, 2000: 126).
Nesse contexto, surge a interação da ciência jurídica com a Ideologia, porquanto esta tem papel decisivo na definição das relações humanas e, assim, consequentemente, acaba legitimando a situação de dominação do Direito em favor de poucos.
Respaldando-se nas ideias da Cárcova, embora o fenômeno ideológico possua ampla representação, perpassando desde a sua relação com um simples credo político ou uma consciência falsa até a formação de um discurso legitimador, é válido insistir em tal advento, vez que este desempenhe um papel de destaque na formação do Direito moderno, possuindo uma notável projeção no âmbito da teoria jurídica. (CÁRCOVA, 1998).
Nesse ínterim, cumpre salientar que a doutrina geralmente costuma dividir as concepções ideológicas em duas partes: a primeira corresponde à concepção clássica e ocorre no período napoleônico. A segunda representa a concepção moderna da vertente ideológica.
Utilizando-se dos ensinamentos de Wolkmer (CÁRCOVA, 1998: 42), permite-se afirmar que a origem do termo “ideologia” vem do grego eidas = ideia mais logos = estudo. Neste ínterim, ao se fazer um apanhado histórico-evolutivo do fenômeno ideológico, nota-se que a sua origem moderna remonta à Teoria dos Ídolas de Francis Bacon (séc. XVI), quando se consideraram alguns personagens como a primeira fonte de erro que afetou o entendimento humano perturbando o seu conhecimento. São eles: a) os ídola tribus – ídolos tribais que correspondem modernamente à natureza humana, simbolizando o entendimento do homem e seus sentidos através de um espelho curvo propagador dos objetivos exteriores, o qual desfigura seus contornos; b) os ídola spectus – ídolos da caverna que representam o esqueleto humano, a sua envoltura, penetrada pela luz limitada e empobrecida advinda do exterior; c) os ídola fori – ídolos da praça pública, os quais significam as perturbações do conhecimento humano, advindas da interação social, medida pela linguagem, a qual serve como instrumento deficitário da comunicação, que frequentemente distorce o sentido das mensagens; e d) os ídola theatri – os ídolos dos espetáculos, os quais surgem como estereótipos e representações oriundas da “tradição, da autoridade e dos erros do passado, que, estabelecidos como dogmas, constituem vigorosos obstáculos para a correção do conhecimento.” (Idem: 128). Já a partir dessa época, alguns ensinamentos obrigatórios para a noção ideológica como as falsas representações e a determinação social do desconhecimento foram apreendidos.
Por seu turno, um século após, mereceram destaque as lições de De Tracy, de que, devido a uma inimizade política com o Imperador Napoleão, o termo ideologia ganhou alcance pejorativo de “fuga da realidade”, confusão, subversão, entre outros.
Nessa toada, pode-se delimitar o fenômeno da ideologia em dois tipos gerais: a) o seu significado positivo: ideologia como sistema de atitudes de um grupo social (ideias, valores, maneiras de pensar, sentir, ordenação de crenças que, integradas entre si, funcionam como critérios idôneos para justificar o exercício de poder, explicar e julgar os acontecimentos históricos, as conexões entre as atividades políticas e outras formas de atividade; e b) o seu significado negativo: ideologia entendida como falsa consciência entre as classes (ilusão, mistificação, distorção, oposição ao conhecimento verdadeiro, ideias erradas, distorcidas, incompletas, dissimulações, entre outros), tendo como principais defensores Marilena Chauí, Karl Marx, Hegel, Mannheim, Lukácks e Poulantzas.
Todavia, em Cárcova (CÁRCOVA, 1998: 130-169), vêem-se basicamente cinco escolas ou períodos que abordam, de forma mais próxima, a relação entre a problemática: norma versus ideologia:
1) a ideologia conforme Marx – baseada na concepção clássica dos ideólogos, representa a discussão sobre a evolução histórico-econômico e política de cada sociedade, na qual a produção de ideias é determinada pelo processo de produção e reprodução da vida e das condições de subsistência, sendo discutido também o processo de divisão social do trabalho (trabalho manual e intelectual) e principalmente o ideal de imposição da classe dominante, a satisfação de interesses, sendo que – para isso – os apresenta com interesse comum de todos os membros da sociedade, representando seus pensamentos de forma generalizada, como se fossem os únicos universalmente válidos. Surge então a ideologia como obstáculo para a apreensão científica, no que tange o processo de coisificação das atividades humanas (alienação, mais-valia, fetichismo de mercadoria etc.). Deste modo, em síntese, predomina aqui o sentido napoleônico do termo “ideologia”, qual seja, o de ilusões, falsas representações, que expressam os interesses das classes dominantes, destinados a legitimar e reproduzir a ordem imperante, só podendo ser dissolvidas e desmascaradas tais concepções a partir da crítica científica. (WOLKMER, 1995: 95-97).
2) A ideologia na sociologia do conhecimento – prevalece aqui o despojamento da carga negativa do termo ideológico marxista, passando a operar com uma visão do mundo; deixando também de representar as ideias particulares das “classes em luta”. Dentre seus seguidores, destaca-se Mannheim, que se peculiarizou por tentar apregoar uma ideologia mais neutra, embora mantendo o conceito marxista, além de tentar construir um novo tipo de objetividade que permitisse uma orientação científica para a vida política. Entende tal autor haver duas concepções ideológicas: uma particular que se expressa como “equívoco deliberado”, mentira consciente, e outra total, como estrutura mental global de uma época ou de um grupo; concebendo assim a importância do papel do conhecimento sociológico, como condição histórica. Admite tal pensador ser o conhecimento humano parcial e vinculado à perspectiva em que cada indivíduo se coloca, porém sendo possível integrar dinamicamente as distintas perspectivas dos diferentes observadores, numa síntese abrangente. Destarte, podem-se resumir as ideias de tal autor em dois pontos fundamentais: “um sistema de pensamentos e modos de experiência, compartilhado por grupos de pessoas socialmente condicionadas e outra como resultado da diferença entre ideologia (praticamente inconcretizável) e utopia passível de concretização, transformando parcialmente a realidade.” (Idem).
3) Ideologia conforme Hans Kelsen – a definição sociológica aqui assume importância ímpar, não sendo tratada sob um aspecto insuficiente e redutivo, mas sim como “mentira consciente, engano premeditado, descrição não objetiva da realidade ou do objeto de conhecimento, influenciada por juízos subjetivos de valor, com intenção de se ocultar tal objeto, de transfigurá-lo ou desfigurá-lo.” (KELSEN apud CÁRCOVA, 1998: 141). Acrescenta-se a ideia de que todas as ideologias vêm da vontade, e não do conhecimento, estando “sua existência ligada a certos interesses ou, mais exatamente, a interesses diversos do da verdade, quaisquer que sejam sua importância e seu valor.” (KELSEN apud CÁRCOVA, 1998: 141). Doravante, cabe ao conhecimento “rasgar os véus com os quais a vontade envolve as coisas.” (Idem).
Sendo assim, ante a adulteração intencional de uma determinada descrição do mundo, insurge-se a Teoria Pura do Direito como anti-ideológica e denunciadora dos falsos dualismos das teorias tradicionais. Doravante, surge uma concepção monista da norma jurídica, que tem por pressuposto o afastamento da ciência jurídica dos campos da moral e da ética, na qual, consoante leciona Eduardo C. Bittar, se tenta “expurgar do interior da teoria jurídica a preocupação com o que é justo e o que é injusto […] mesmo porque, o valor justiça é relativo, e não há concordância entre os teóricos e entre os povos e civilizações de qual o definitivo conceito de justiça” (BITTAR, 2005). Discutir sobre a justiça, para Kelsen, relembra tal autor, é “tarefa da Ética, ciência que se ocupa de estudar não normas jurídicas, mas sim normas morais, e que, portanto, se incumbe da missão de detectar o certo e o errado, o justo e o injusto. E muitas são as formas com as quais se concebem o justo e o injusto, o que aproxima este estudo do terreno das investigações inconclusivas. Deste modo, o raciocínio jurídico “não deverá versar sobre o que é certo ou errado, sobre o que é virtuoso ou vicioso, sobre o que é bom ou mau, mas sim sobre o lícito e o ilícito, sobre o legal (constitucional) ou ilegal (inconstitucional), sobre o válido e o inválido” (Idem).
Enfim, pode-se inferir da concepção kelseniana da Teoria Pura do Direito que qualquer cidadão deve apenas se ater e compreender o Direito na sua forma positiva, relevando-se como objeto de preocupação somente os seus modos hierárquico-estruturais, eliminando-se dela os elementos fáticos e axiológicos e tratando exclusivamente do elemento normativo. Não se deve, por isso, contestar a ordem vigente, mesmo que esta exclua o indivíduo de sua participação efetiva no processo de cidadania, não oferecendo ao mesmo mecanismos de participação social. Apenas deve-se segui-la e pronto.
d) Ideologia conforme Carlos Cóssio – a concepção egológica sobre as relações entre o advento ideológico e o Direito indica que o problema da incompreensão normativa jurídica se revela através dos métodos de interpretação da lei como critérios que emanam de requisitos políticos, epistêmicos, associados às estratégias históricas da burguesia nascente, implementadas para consolidar seu poder como classe hegemônica. Adepto das teses marxistas sobre o fenômeno ideológico, Cóssio depura os erros do pensador alemão (Kelsen) e aproveita seus ensinamentos, salientando a necessidade de se obter com outros autores mais conhecimentos jurídicos, uma vez que a história das teorias jurídicas não tem autonomia suficiente para se explicar por si mesma. (CÁRCOVA, 1998: 150-151).
Dessa forma, o filósofo argentino reivindica a ideologia em sua tradição napoleônico-marxista, sustentando que tanta “polissemia” (processo de múltiplos fatores para a explicação ideológica) esconde a questão da origem de tal fenômeno, colocando-a então sob quatro aspectos fundamentais, caracterizadores da mesma: a) não ter origem numa carência ontológica, embora a dita carência a condicione (o ser pode ser explicitado em qualquer discurso); b) radica-se num vazio ontológico que permite muitas possibilidades, a exemplo da ocultação ao admitir uma discrepância temática e uma concordância funcional/temática: temática porque a ideologia não fala o que expressa e funcional porque o que expressa se associa ao que deve ser ocultado; c) a ideologia se origina nos interesses de dominação de algum grupo de poder e são estes interesses que as promovem e, ao mesmo tempo, são mascarados por aquilo do que fala a ideologia (a defesa do status quo); e d) a necessidade de divulgação da ideologia para alcançar eficácia. (Idem: 152-153).
Em suma, Cossio propõe uma reinterpretação do marxismo, segundo três concepções egológicas centrais: 1) visualizar situacionalmente a ideologia além da sua realização pelo trabalho; 2) perceber que o conhecimento é pensamento abstrato intelectual e também concreto (teoria posta em prática); e 3) entender o papel monopolizado pelos juristas com referência à criação e circulação do Direito (a ciência jurídica não como um saber linear, mas sim polêmico, no sentido de expor a ideologia, removendo assim os obstáculos sociais existentes) (Ibidem: 154-155).
e) Da ideologia em Gramsci à teoria do discurso – aqui, faz-se necessária uma análise da relevância conquistada pelo tema “ideologia” a partir dos anos 60, destacando-se três autores: Gramsci, Althusser e Thompson.
O primeiro acredita no equilíbrio do poder estatal advindo da sua relação complexa com a sociedade civil, no interior da qual se produz e reproduz a hegemonia de grupos dominantes. (CÁRCOVA, 1998: 157).
Já Althusser constrói seu pensamento a partir da análise anti-humanista e anti-histórica, que rejeita qualquer ideia sublinhadora do individualismo histórico, independentemente da consciência de classe. Para ele, a ideologia pode ser resumida como uma representação das relações imaginárias dos indivíduos em suas verdadeiras condições de existência; nesse contexto, o indivíduo real ingressa num estereótipo que lhe atribui os direitos de estereótipo e, ao mesmo tempo, o limita, representado assim um duplo papel: o reconhecimento/desconhecimento ou alusão/ilusão. Sua concepção, destarte, deu uma nova dimensão ao ideológico, visto que não se trata só de falsa consciência, de reflexo distorcido, de um manto que se interpõe entre os homens e a realidade, escondendo-a; não é um efeito automático da produção de mercadoria. É um meio indispensável para a produção de sujeitos humanos, para a produção social de formas próprias de subjetividade.
Em Thompson, contudo, há uma preocupação em se estudar as maneiras mais habituais nas quais as formas simbólicas se cruzam com as relações de poder, distinguindo-se diferentes modos gerais de operação ideológica (estratégias de construção simbólica): 1) legitimação: estratégias de racionalização, universalização e narratização; 2) unificação: estratégias à padronização e unificação simbólica; 3) fragmentação: estratégias da diferenciação e exclusão do outro; 4) reificação: estratégia desmaterialização, naturalização e eternização. (CÁRCOVA, 1998: 161-163).
Alude-se ainda a um segundo modo de se operar a ideologia, consistindo este na dissimulação ocorrida através da ressemantização de um termo tirado do seu contexto habitual e colocado em outro, para transferir suas conotações positivas ou negativas a um objeto ou a uma pessoa diversa, apontando-se para isso três maneiras fundamentais: 1) descrição laudatória (valoração positiva de uma instituição ou ação pública – Ex: campo de concentração como “centro de reabilitação”); 2) o uso de tropos (emprego figurado da linguagem para dissimular certas relações sociais, invertendo papéis. (Idem). Ex: A época do “milagre econômico” no Brasil).
f) A ideologia na concepção crítica do direito – retrata-se aqui a concepção ideológica junto com as relações que aquela mantém com o poder a partir de uma visão crítica do Direito, ressaltando-se a especificação geral, abstrata e formal alcançada pela ciência jurídica nas sociedades industrializadas, sendo os indivíduos considerados como sujeitos jurídico-políticos, propondo-os como livres e iguais, presumindo legalmente suas diferenças efetivas num contexto de heterogeneidade:
“O poder, assentado no conhecimento do modo de operar do direito, se exerce, parcialmente, pelo desconhecimento generalizado desses modos de operar. A preservação desse poder é assim fatalmente ligada à reprodução do efeito do desconhecimento”. (Ibidem: 165)
Trata-se então de um saber social diferenciado, resultante da divisão do trabalho em geral e da divisão do trabalho intelectual e trabalho manual, e exercício por um certo conjunto de indivíduos, diga-se, genericamente, os juristas: funcionários, juízes advogados, legisladores etc. Eles se ocupam em pensar e implantar as formas de administração burocratizada, os procedimentos de controle e regulamentação das condutas, os modos de surgimento e gozo dos direitos e se tornam, em conseqüência, depositários de uma forma de poder social específica, que se assenta não só no conhecimento técnico que possuem, mas também do correlato desconhecimento do leigo. O poder assentado no conhecimento do modo de operar o direito se exerce, parcialmente, pelo desconhecimento generalizado desse modo de operar. A preservação desse poder é assim fatalmente ligada à reprodução do efeito do desconhecimento.
Segue daí o que Cárcova denomina a “opacidade do direito” (CÁRCOVA, 1998; 165). Dada a falta de transparência, a circunstância de não ser a norma jurídica cabalmente compreendida, pelo menos no contexto das formações sociais contemporâneas, longe de ser um acidente ou acaso, mas deveras um problema instrumental suscetível de soluções com reformas oportunas alinhadas a uma demanda objetiva de funcionamento do sistema. Deste modo, tal fenômeno se expressa como um requisito que tende a escamotear – assim como a ideologia em geral – o sentido das relações estruturais estabelecidas entre os sujeitos, com a finalidade de legitimar/reproduzir as dadas formas de dominação social, consoante comenta oportunamente Legendre:
“[…] o direito enquanto ocupado na manutenção da ordem deve permanecer inacessível. O direito nunca mente, uma vez que ele existe precisamente com a finalidade de obscurecer a verdade social.” (LEGENDRE apud CÁRCOVA, 1998: 166)
Ou ainda, como bem chama a atenção o pensador polonês Nico Poulantzas:
“[…] o que temos chamado de função paradoxal do direito que, ao mesmo tempo, reproduz as condições de existência de um sistema social e coadjuva sua transformação progressiva”. (POULANTZAS apud CÁRCOVA, 1998: 166)
Ademais, nesse contexto, sendo a esfera política do Estado coercitiva e a social ideológica, não se poderão produzir transformações sociais bem sucedidas, profundas, se não houver uma batalha exitosa pela hegemonia social, e esta deve pressupor, como primeira etapa, a autoconsciência individual, ou seja, os homens tomarem consciência dos conflitos de estrutura, no terreno das ideologias. Ocorrendo tal hegemonia, subsistirá a passagem da ideologia como um sistema de ideias para uma ideologia marcada pela prática social vivida e cotidiana, não só abrangendo o funcionamento das instituições, mas presumivelmente as dimensões inconscientes e desarticuladas da experiência social.
2.2.1 A Ideologia versus o Direito: o caso particular do Brasil
A formação da nação brasileira, conforme já foi visto no subtópico anterior, teve características muito particulares, à medida que houve um processo de dominação exercido por Portugal. Neste contexto, verificou-se que o Estado lusitano, a fim de promover a garantia de seus interesses econômicos exploratórios, baseados numa realidade escravocrata, determinou o estabelecimento, no Brasil, de um corpo burocrático de agentes públicos, os magistrados, para julgamentos de conflitos interindividuais.
Tal classe de juízes exerceu grande poder no território nacional até o fim do século XIX, sob a aplicação inicial (primeiros séculos de colonização) de concepções jusnaturalistas, graças à grande influência de diretrizes ético-religiosas da Igreja Católica, utilizando-se assim noções de punições vinculadas à ocorrência de pecado. Neste âmbito, surgia a ideia do “homem sem alma” atribuída principalmente aos negros escravos, cujo teor era utilizado para legitimar os interesses econômicos da Metrópole, colocando aqueles indivíduos como seres objetos. Aliada a essa ideia, predomina nessa época também o movimento filosófico denominado ecletismo, que representava, em síntese, o mito da imparcialidade.
Esse idealismo jusnaturalista permaneceu até o final do sec. XIX, quando aquele começou a incorporar o racionalismo iluminista e o individualismo liberal, os quais significavam a necessidade de existência das liberdades individuais, o que representava um maior distanciamento do homem dos ideais religiosos de repressão, buscando a sua liberdade de conduta. Todavia, no caso brasileiro, apesar de tal acepção ter sido utilizada para alcançar o processo de Independência, permaneceram as desigualdades estabelecidas pela manutenção das classes dominantes, agora formadas por elites locais, isto é, não oriundas de Portugal.
Nesse panorama, o projeto liberal que se impôs no Brasil foi complexo e ambíguo, pois conciliou interesses liberais e patrimoniais, permitindo-se “o favor, o clientelismo e a cooptação, ao passo que introduzia uma cultura jurídico-institucional marcadamente formalista, retórica e ornamental e […] além de seus aspectos conservadores, individualistas, antipopulares e antidemocráticos […] deve ser visto igualmente por seus profundos traços “jurisdicista”. (WOLKMER, 2007: 98).
Cumpre ressaltar que esse foi o período em que se formou no território brasileiro, o chamado “Bacharelismo Liberal”, representando assim a insurgência dos profissionais da advocacia, os quais passaram a exercer posições de destaque junto à Administração Pública.
Nessa época de transição (sec. XIX/XX), houve a implantação dos Cursos Jurídicos da Escola de São Paulo e de Recife, cujos doutrinadores (Tobias Barreto, Clóvis Beviláqua, Pontes de Miranda etc.) tiveram papel essencial na concepção dos ideais positivistas e evolucionistas, os quais visavam à elevação e transformação do Direito ao patamar de Ciência e, como tal, deveria pautar as suas abordagens teórico-normativas em ideias de ordem, progresso e transformação. Tais acepções implicariam “o influxo de uma relativa urbanização e modernização da vida social, que, em pouco tempo, repercutiria com abolição da escravatura e a proclamação da República.” (WOLKMER, 2007: 165). Além disso, “[…] o apelo cientificista do positivismo surgia como discurso hegemônico e uniforme, identificados com os interesses emergentes da burguesia urbana liberal e com as novas aspirações normativas da formação sócio-econômica brasileira.” (Idem: 168). Impende salientar que, diferentemente da concepção de Kelsen, a visão Comteana (positivista), buscava a interdisciplinaridade das ciências em prol do estudo do Direito. Assim, contribuiriam para o estudo jurídico ramos como Psicologia, Sociologia, Criminologia, Hermenêutica etc. a fim de se tentar verificar os atos e fatos que caracterizam que compõem o fenômeno do Direito, não podendo este verificar-se por si mesmo.
Na primeira metade do século XX, o positivismo-evolucionista foi praticamente superado por novas ideias críticas, especialmente o Culturalismo Jurisfilosófico, o qual buscava “reorientar as diversas tradições filosóficas nacionais rumo a uma interlocução centrada nos valores, na pluralidade e no mundo da cultura. (Ibidem: 175). Dentro desse novo movimento, se destacou a Teoria Tridimensional do Direito, de Miguel Reale, na qual se sobrepunha uma nova compreensão do fenômeno jurídico, entendido em uma sistemática básica dividida em três vertentes: “fato (sociologismo), valor (idealismo) e norma (formalismo).” (Ibidem: 176); os quais são interdependentes entre si, não devendo se segregar jamais, sob pena de inexistência ou dificuldade no apreço das relações em Direito.
Doravante, surgem novas propostas paradigmáticas de compreensão do universo jurídico, com a necessidade de um pensamento crítico do Direito, rompedor das dimensões político-ideológicas que sustentam a racionalidade do dogmatismo juspositivista contemporâneo, com finalidades diversas, tais como a “denunciar as abstrações técnico-formalistas dos discursos legais […] recolocando o Direito, por fim, no conjunto das práticas sociais que o determinam.” (WARAT apud WOLKMER, 2007: 181).
3. CONCLUSÃO
Portanto, a partir das acepções vistas e cabalmente demonstradas, pode-se inferir a influência da Ideologia na compreensão da norma jurídica como fenômeno social. Percebe-se, nesse contexto, que há, por trás das relações humanas, um interesse escuso estabelecido pelas classes dominantes na diretrização dos comportamentos individuais, sob o intuito primordial de manutenção da imobilidade social (status quo), para legitimação do poder, fazendo-se pressupor que existe uma ordem imutável, aceitável e incontestável, por meio de aparatos coercitivos e punitivos, aplicados pelo Direito, enquanto ciência regulamentadora do então comportamernto em sociedade. Tal influência revela-se tão impregnada no seio populacional, que, muitas vezes, os indivíduos não a percebem, sendo “vítimas” desse processo.
Por isso, é de importância ímpar, neste momento de defesa e concretização das garantias fundamentais preconizadas pelo movimento constitucionalista, propor-se a rediscussão crítica dos valores trabalhados, ensinados e transmitidos nas Universidades aos alunos e profissionais dos cursos jurídicos, pois tais indivíduos, devido à significativa complexidade de situações conflitivas vivenciadas neste país em processo intenso de globalização, são/serão utilizados, consequentemente, como agentes transformadores da sociedade. Ademais, seus conhecimentos e posturas adquiridos na Academia, afetarão, direta ou indiretamente, a vida das pessoas, haja vista que esses iminentes operadores jurídicos julgarão casos como juízes; defenderão interesses coletivos, sociais e particulares na condição de promotores, procuradores, advogados ou mesmo apaziguarão conflitos, promovendo entendimentos interpessoais, na qualidade de conciliadores, árbitros etc.
Nesse âmbito, estarão à prova, sobretudo, a humanidade/sensibilidade dos referidos profissionais na filtragem reflexiva do conhecimento por eles apreendido e sua posterior divulgação sensata junto à população, em detrimento de quaisquer vaidades ou vantagens individuais, sob pena de sucumbir o protagonismo da atuação ideal do Direito, enquanto ciência voltada à construção do Estado Democrático cidadão, a concepções mesquinhas de subversão do seu papel de orientação e difusão de conhecimento a quem dele de fato precisa. Só assim, será possível legitimar o “contrato social”, manter o equílibrio simbólico dos pratos da balança e assegurar a lisura da venda da imparcialidade, contra tudo e contra todos, em busca da sonhada justiça social.
Informações Sobre o Autor
Alexandre Magno Lins Ramos
Advogado Pós-Graduando em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes / RJ