INTRODUÇÃO
A caracterização do crime militar enseja várias discussões que a jurisprudência procura sedimentar, mas que uma análise imparcial revela estar longe de acontecer.
De crucial importância se apresenta o art. 9º do Código Penal Militar, ao estabelecer as diversas hipóteses em que ocorrem os crimes militares em tempo de paz.
Percebam que estou a me referir aos diversos critérios de ocorrência de crime militar, portanto, daí decorre o primeiro questionamento: os incisos e suas diversas alíneas do art. 9º do CPM encerram um rol fechado, numerus clausus? Hoje, penso que não.
Sabe-se que a caracterização do que seja crime militar pelo art. 9º do Código aponta para uma tipicidade indireta, que enseja uma reflexão, como no caso dos crimes culposos e também do concurso de agentes. Partindo deste pressuposto, uma vez constatado um fato delituoso, ao qual se imputa, preliminarmente, a pecha de crime militar segue dois passos básicos: 1º) verificar se aquele fato está descrito na Parte Especial do Código Penal Militar e; 2º) se aquele fato se enquadra em uma das várias hipóteses do art. 9º, encerrando aqueles critérios já conhecidos de todos: ratione legis, ratione materiae, ratione personae, ratione loci e ratione temporis.
O Código não define o que seja crime militar. Nem mesmo a Constituição Federal tem essa definição, mas ao se referir aos crimes propriamente militares, excepcionando-os da necessidade de ordem judicial ou situação de flagrância permissivas da prisão[1], sugere a existência de seu correlato, crime impropriamente militar[2].
Cumpridos os dois passos iniciais, outros também devem ser dados, como aquele que verifica a existência de eventual causa excludente de criminalidade, pois o tipo legal indicia a antijuridicidade. Mas Interessa também analisar a efetiva ofensa à instituição militar considerada como elemento determinante da caracterização de crime militar e, para isso, irei considerar fatos delituosos praticados por militares de esferas diversas entre si, e, também aqueles praticados por civis.
MILITAR FEDERAL versus MILITAR ESTADUAL (tutela da instituição militar estadual)
Nas primeiras edições de meu livro Comentários ao Código Penal Militar, sempre me posicionei contra a não aceitação, da parte do Superior Tribunal Militar, da ocorrência de crime militar, na hipótese em que um militar federal da ativa, de folga, cometesse crime tido como militar, contra militar estadual da ativa, estando este último em serviço de policiamento ostensivo[3].
Para mim, àquela época, havia de se considerar o conceito constitucional de militar, inaugurado com a Carta de 1988, ou seja, militar brasileiro passou a ser um gênero com duas espécies distintas, o federal – aquele pertencente às forças armadas – e o estadual ou do Distrito Federal, aquele pertencente à polícia militar ou corpo de bombeiro militar. Enquadrava o fato, portanto, no art. 9º, inciso II, alínea ‘a’, do CPM: simples critério ratione personae, militar da ativa contra militar na mesma situação. Isso porque a lei penal militar não exige a circunstância de o agente ativo (militar federal) estar exercendo sua missão constitucional, situação que poderia estar ocorrendo com o sujeito passivo (militar estadual, ou do DF) na ampla, nobre e difícil missão da preservação da ordem pública (art. 144, § 5º)
Uma reflexão mais detida sobre o tema, a partir da 4ª edição, me fez mudar de entendimento, e aliar-me então à posição do STM, e considerar que fatos daquela natureza seriam da competência da Justiça comum. Além da tipicidade indireta inicial, e também da verificação da existência ou não de alguma excludente de criminalidade, também deveria ser analisado o fator da ofensa à instituição militar envolvida, com reflexo na Justiça Militar competente para processar e julgar o fato.
“Em verdade, não só a condição de os agentes, ativo e passivo, serem militares, e o fato de estar previsto na legislação castrense, são suficientes para firmar a competência da Justiça Militar da União.
Há que se considerar que a Justiça Militar – tanto a estadual quanto a federal – têm em vista a natureza dos bens juridicamente tutelados.
Quem protege a instituição policial militar, nos casos em que ela é ofendida, é a Justiça Militar estadual, que tem competência restrita, somente julgando policiais e bombeiros militares (CF, art. 125, § 4º).
A Justiça Militar da União, por sua vez, tutela as instituições das Forças Armadas, julgando os crimes contra ela cometidos e dela (Justiça Militar Federal) escapam os crimes contra os valores das Corporações estaduais.
Logo, é a Justiça Comum a competente para julgar militar federal que, de folga, cometa crime contra policial militar em serviço, ou contra a instituição militar estadual, ocasião em que se coloca o agente militar federal na mesma condição do civil “[4].
Curiosamente, o STM, mudando seu entendimento anterior, passou a decidir de modo oposto, em caso em que um sargento do EB da ativa, mas de folga, desacatou policiais militares que estavam de serviço de policiamento ostensivo.
A denúncia ofertada pelo Ministério Público Militar havia sido rejeitada e, ante o recurso ministerial, o Superior Tribunal Militar determinou seu recebimento, ao argumento da prevalência do conceito constitucional de militar e por entender ainda que a Justiça Militar da União tutela os interesses da Federação, como a manutenção da ordem, da disciplina e hierarquia nas corporações militares estaduais e das forças armadas.[5] (destaquei)
Tenho por mim, respeitados entendimentos contrários que a r. decisão do E. STM extrapolou sua competência judicante, pois pretendeu tutelar, também, a instituição policial militar atingida, competência constitucional que não lhe coube.
O Supremo Tribunal Federal foi chamado a se manifestar sobre esse interessante julgado do STM, por meio de julgamento do HC 83.003, sendo relator o Ministro Celso de Mello, e, em julgamento datado de 16.08.2005, por unanimidade, deferiu o pedido de habeas corpus nos termos do voto do relator, invalidando o acórdão proferido pelo E. Superior Tribunal Militar e determinando a imediata extinção do processo penal militar.
Portanto, em que pese o fato delituoso ter sido cometido por militar federal da ativa[6] contra militar estadual da ativa[7], o simples critério ratione personae não prevaleceu, porque a instituição militar ofendida era estadual, tutelada pela Justiça Militar Estadual que tem competência restrita, somente julgando policiais e bombeiros militares, dela escapando além dos civis, os militares federais. Seria impossível o deslocamento de competência para a Justiça Militar da União porque não houve ofensa às instituições militares federais.
O E. STM ainda pontua decisões nesse sentido, de fatos delituosos envolvendo militares de esferas diversas, como no caso em que considerou ser competente a Justiça Militar da União, para processar e julgar Cabo da Polícia Militar que, estando em serviço de polícia ostensiva, agrediu um Soldado Fuzileiro Naval, que se encontrava de folga, em via pública, tendo sido abordado pela guarnição PM, tendo o marinheiro sofrido lesões de natureza leve.[8]
A decisão privilegiou, uma vez mais o critério ratione personae, com base no conceito constitucional de militar, para enquadrar o fato no art. 9º, inciso II, alínea ‘a’, do CPM, tendo novamente ampliado os limites da tutela jurisdicional da Justiça Militar federal para nela incluir os valores das instituições militares estaduais, com o que, peço vênia para discordar, ante o mandamento cristalino do art. 125, § 4º, da Carta Magna.
MILITAR ESTADUAL CONTRA MILITAR FEDERAL (tutela da instituição militar federal)
Inverto agora a posição dos agentes, para prever a hipótese em que o militar estadual da ativa cometa um crime militar contra um militar federal também da ativa.
Novamente, além das duas etapas de análise da tipicidade indireta, da verificação da ocorrência ou não de excludentes, há que se levar em conta a efetividade da ofensa à instituição militar envolvida.
Imaginemos um caso em que um sargento da PM dispara um tiro acidental contra um capitão do Exército. Nos termos do art. 125, § 4º, da CF, pode o intérprete ser levado a responder, de forma apressada, que a competência é da Justiça Militar Estadual, afinal esta tem a competência para processar e julgar PM e BM nos crimes militares definidos em lei, a lesão corporal culposa é prevista no Código, e assim por diante.
No caso em questão, verídico, o sargento PM estava realizando um curso de técnicas militares, em uma organização militar do Exército – o 28º Batalhão de Infantaria Leve, sendo que o capitão era seu instrutor. Portanto, a instituição militar Exército ainda que não houvesse organizado e ministrado o curso, deu autorização para sua realização, sob a coordenação de seus oficiais, e o evento danoso ocorreu em área sob administração militar (aliás, uma das hipóteses do referido art. 9º do CPM)[9].
Foi dessa forma que o Superior Tribunal de Justiça decidiu em sede de conflito de competência entre a Justiça Militar estadual e a Justiça Militar da União, declarando a competência em favor da Justiça Militar federal, em face de terem os fatos ocorridos em uma unidade militar da Força Terrestre, e a vítima foi um oficial do Exército, havendo, portanto, ainda que de forma indireta, lesão a interesses da União. A decisão considerou, ainda que as Forças Armadas, como instituições destinadas à garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem estão, em última ratio, em posição de supremacia às polícias militares dos estados[10].
Por outro lado, considerado o mesmo fato nas mesmas circunstâncias, caso o curso fosse organizado pela Polícia Militar e ministrado em uma de suas organizações, a competência seria da Justiça Militar Estadual, pois em que pese a vítima ser militar federal, a instituição militar ofendida seria a Polícia Militar. Novamente se levaria em conta a natureza do bem jurídico tutelado e sua relação com a justiça militar competente.
MILITAR CONTRA MILITAR (a consciência da condição de militar da vítima)
Outro aspecto importante no exercício da análise da tipicidade do crime militar – e aqui incidindo diretamente sobre o art. 9º, inciso II, alínea ‘a’ (critério ratione personae)– é a possibilidade de que possa ocorrer fato delituoso tido em tese como crime militar, praticado por militar da ativa contra militar na mesma situação, sem que os envolvidos soubessem da condição profissional um do outro.
Tome-se, por exemplo, o fato em que, um cabo e um soldado, ambos do Exército, os dois da ativa, desentenderam-se à saída de um baile, ocasião em que o cabo desfechou um soco na cabeça do soldado, que chegou a desmaiar por alguns instantes, resultando lesões de natureza leve.
Uma análise fria do fato delituoso enquadraria o mesmo no já conhecido dispositivo da alínea ‘a’, do inciso II, do art. 9º, do CPM, sob o fundamento de que a lei penal castrense não exige o conhecimento prévio da qualidade de militar para a fixação da competência da Justiça especializada.
Se os envolvidos desconheciam a condição de militar um do outro, se houve crime este será comum, não podendo prevalecer, tão-somente, o critério ratione personae.[11]
Não se trata, é bom que se diga, de afastar a tipicidade penal, mas apenas a tipicidade do crime militar[12].
CRIMES MILITARES PRATICADOS POR CIVIS
Finalmente, por envolver, ainda, a análise do art. 9º do CPM, tecerei algumas considerações sobre os crimes militares cometidos por civis.
Ainda que na Justiça Militar estadual não haja julgamento de civis, por expressa vedação constitucional, na Justiça Militar da União esta possibilidade é freqüente, pois como se sabe, a Justiça Militar federal processa e julga os crimes militares definidos em lei, sem se importar com quem seja o seu autor, que pode inclusive ser o civil.
Pela letra do Código, o civil para cometer crime militar terá, necessariamente, que ofender as instituições militares[13], é o que diz o inciso III de nosso art. 9º. Essa ofensa, no entanto, terá que ser efetivamente demonstrada, sob pena da competência de julgamento deslocar-se para a Justiça comum.
O Supremo Tribunal Federal vem estabelecendo contornos para o enquadramento de civis nos seguintes casos: Se o militar federal estiver em serviço externo de policiamento de trânsito (isso é comum de se visualizar nas grandes cidades), havendo desacato praticado por civil contra militar empenhado nesse tipo de serviço, a competência será da Justiça comum, porque tal tipo de atividade não se enquadra como serviço de natureza militar.[14] Não há, portanto, ofensa às instituições militares.
Este entendimento do STF fica mais bem evidenciado, se verificarmos o caso em que um civil atropelou soldado do Exército que exercia a função de balizamento de trânsito nas proximidades do Quartel General do Exército e restou processado pela Justiça Militar da União. Ao decidir a questão em sede de habeas corpus, entendeu a Corte Suprema, com base no parecer da Procuradoria-Geral da República, que, por crime contra as instituições militares deve-se tomar aquele crime cujo dolo esteja exatamente em ferir tais instituições, ou seja, em que pese existir a previsão da alínea ‘d’, do inciso III do art. 9º do CPM, a competência da Justiça Militar é de caráter excepcional, e sobre o mencionado artigo deve recair interpretação mais criteriosa e restrita do que a desenvolvida pelo Superior Tribunal Militar, ainda que o crime houvesse sido praticado por civil, fora de lugar sob administração militar, mas contra militar no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, em obediência à determinação legal de superior, o que, a princípio, ensejaria a incidência do dispositivo já mencionado. [15]
Em recente decisão, e no mesmo sentido, a Excelsa Corte, por meio de sua 2ª Turma, extinguiu por unanimidade, em julgamento ocorrido em 19.10.2010, processo penal militar em que um civil respondia por crime de dano a patrimônio público, acusado de colidir veiculo particular contra uma viatura militar.
“Na concreta situação dos autos, não se extrai, minimamente que seja a vontade do paciente [o civil] de se voltar contra as Forças Armadas e tampouco querer obstaculizar e impedir a continuidade de qualquer operação militar” ressaltou o ministro Carlos Ayres Britto, relator do processo. Ao votar, ele declarou a “absoluta incompetência da Justiça militar para conhecer dessa causa”.
Na mesma linha se posicionaram os demais ministros da Corte. “O que eu acho grave é que se instaure, em tempo de paz, inquérito policial militar contra civil. E que seja ele submetido a julgamento perante a Justiça militar, perante uma auditoria militar, em tempo de paz”, ponderou o ministro Celso de Mello, decano do Supremo.[16]
CONCLUSÃO
A classificação dos fatos tidos como delituosos em crime militar encerra um exercício de reflexão própria da tipicidade indireta.
Esta tipicidade indireta admite um iter e sugere as seguintes observações:
Verificação se o fato tido como delituoso encontra-se previsto como crime militar na Parte Especial do Código;
Não havendo identidade, de crime militar não se trata. Em sendo positiva a identificação, há que se verificar, então, se o fato delituoso foi praticado em uma das várias hipóteses previstas nos incisos e nas alíneas do art. 9º do CPM;
Ultrapassadas as duas primeiras fases, deve-se verificar, ainda, se o fato tido por delituoso encontra-se ou não acobertado por alguma excludente de criminalidade. Nos crimes ocorridos entre militares da ativa, é essencial determinar se o agente tinha consciência da condição de militar da vítima;
Finalmente, deve ser analisado se ocorreu efetiva ofensa à instituição militar considerada, lembrando que a Justiça Militar – tanto a federal quanto a estadual – tem em vista a natureza dos bens juridicamente tutelados como fator determinante de sua competência;
Por crimes contra as instituições militares praticados por civis, deve ser considerado aquele crime cujo dolo esteja exatamente em ferir tais instituições, situação extremamente difícil de ocorrer nos crimes culposos, em especial os decorrentes de acidente de trânsito.
Informações Sobre o Autor
Jorge César de Assis
Membro do Ministério Público da União. Promotor da Justiça Militar lotado em Santa Maria – RS. Sócio Fundador da Associação Internacional das Justiças Militares – AIJM. Membro Correspondente da Academia Mineira de Direito Militar. Coordenador da Biblioteca de Estudos de Direito Militar da Editora Juruá.