1. Introdução
O presente artigo tem como objetivo demonstrar a possibilidade de ganhos de efetividade de aspectos ambientais previstos nas Políticas Públicas através da integração entre fundamentos e instrumentos do Direito e Gestão Ambientais, por meio da análise do tema Áreas de Preservação Permanente Urbanas. Com esse propósito o trabalho parte da experiência do Grupo Estudos de APP Urbanas formado por pesquisadores de diversas formações, todos ligados ao Laboratório Fluxus, do Departamento de Saneamento e Ambiente da FEC – Unicamp. Os trabalhos desenvolvidos pelo Grupo sempre foram pautados pelo necessário intercâmbio de conceitos e conhecimentos entre diferentes dimensões de pesquisa ligadas pelo tema das APP Urbanas e a dificuldade da sua efetivação quando pautada exclusivamente na legislação. A partir de conceitos do Direito Ambiental, Ordem Pública, em especial a Ambiental, Gestão Ambiental da Paisagem urbana o grupo procurou desenvolver referencial teórico no sentido de propiciar uma aplicação prática do tema que possibilitasse aproximar, através de diferentes áreas do saber e com a integração das dimensões ambientais, urbanísticas, sociais e econômicas através da gestão, a complexidade das áreas de preservação dos cursos d´água urbanos, devido aos seus diversos momentos históricos de ocupação e busca por preservação, com os propósitos da legislação. O artigo apresenta um pouco da experiência de trabalho interdisciplinar para o tema APP urbanas, bem como resultados dessa integração de várias áreas do conhecimento direcionada para tema ainda controverso no âmbito do Direito Ambiental.
2. Do Grupo de Estudos sobre APP Urbanas
O Grupo de APP Urbanas surgiu pelo encontro de interesses em comum de pesquisa de 3 (três) alunos do curso de doutorado em Engenharia Civil da FEC – UNICAMP, área de Saneamento e Ambiente, sob a orientação da Profa. Dra. Emilia W. Rutkowski, todos pesquisadores do Laboratório Fluxus/Unicamp. Os pesquisadores a partir do vinculo do Laboratório Fluxus ao Projeto Temático da FAPESP[1] em Políticas Públicas “Recuperação ambiental, participação e poder público: uma experiência em Campinas” (cujo objeto de estudo era a Bacia do Ribeirão das Anhumas no município de Campinas), decidiram desenvolver trabalho sobre APP Urbanas.
Em função da experiência profissional e da formação acadêmica de cada um dos pesquisadores, a discussão foi baseada nos conceitos da ordem pública, da estrutura e dinâmica da paisagem, Gestão e do Direito Ambiental. Quanto à formação[2] primeira de cada um dos pesquisadores: Elson Roney Servilha fez 2 cursos de Graduação: em Engenharia Civil na na Faculdade de Ciências Tecnológica da PUCC (FCTPUCC) e o Curso de Formação de Oficiais na Academia de Polícia Militar do Barro Branco (APMBB). Graziella Cristina Demantova é formada em arquitetura e urbanismo pela PUCCAMP, Campinas, SP. E o terceiro pesquisador, fez graduação em Direito na Universidade Federal do Paraná, UFPR. O Grupo tem sua efetiva interdisciplinaridade reforçada pelo Profª. Orientadora, Emília Rutkowski, cuja formação primeira é em Biologia. Esse cenário, somado às diversas titulações e experiências profissionais de cada um, possibilitou um desenvolvimento teórico integrador da diversidade de olhares sobre a mesma questão, levando-se em conta estudos sobre a degradação e proposta de recuperação ambiental das APP Urbanas movida pela dinâmica de expansão das cidades, tendo com pano de fundo as dificuldades de entendimento e proteção desses espaços regulados por legislação própria quanto ao uso e ações de conservação e preservação.
Pode-se dizer que a criação do grupo atendeu ao objetivo de estabelecer um espaço de discussão comum no âmbito do desenvolvimento inicial das 3 (três) pesquisas, tendo sempre como objeto as APP Urbanas. Essa discussão foi motivada pela constatação de que não é possível discutir a degradação das APP urbanas sem a compreensão dos aspectos legais e da Gestão da paisagem, que acaba influenciando a manutenção ou não da ordem pública entre outros aspectos também relevantes, mas que entram no contexto individual de cada pesquisa.
O Grupo de Discussão sempre partiu da premissa de trabalho de que há a necessidade de se reconstruir a concepção de APP Urbanas através do diálogo entre diferentes saberes, para que a referência legal do Direito Ambiental passe a incorporar critérios técnicos mais condizentes com a real função social, econômica e ambiental das APP urbanas.
Desse modo, os trabalhos do Grupo temático sobre APP urbanas, sempre foram pautados pelo necessário intercâmbio de conceitos e conhecimentos entre as três diferentes dimensões de pesquisa, que foram iniciadas a partir de conceitos do Direito ambiental, ordem pública e Gestão e dinâmica da paisagem urbana, e que a partir desse necessário diálogo apresentou seu referencial teórico[3] no sentido de propiciar uma aplicação prática do instituto da APP Urbana que possibilitasse aproximar, através de diferentes áreas do saber, a complexidade das áreas de preservação das cidades, devido aos seus diversos momentos históricos de ocupação e busca por preservação, com os propósitos da legislação.
3. Do Referencial Teórico construído, que integra de forma interdisciplinar Direito e Gestão Ambientais: “As Áreas de Preservação Permanente, as Cidades e o Urbano”
Desde as primeiras legislações protetoras, como o Código Florestal, as estruturas espaciais das paisagens nas margens dos rios urbanos vêm sendo alteradas em função da dinâmica de ocupação e uso da terra. Tal fato alterou profundamente os processos ecológicos que ocorrem nas várzeas, fazendo com que a preservação destas, conforme consta nas leis através de restrições específicas, gere conflitos de diversos tipos e intensidades. Pois o que se pretendia proteger e preservar não existe mais em função do alto grau de degradação e alterações realizadas nas margens e nos próprios cursos d’água urbanos.
Ainda, complementam os autores, que os principais conflitos que envolvem a preservação das APPs Urbanas, são motivados pela atribuição de novos valores às áreas das margens dos rios, pela perda da função ecológica das APPs e pela devastação das florestas protegidas por interesses econômicos específicos. Os conflitos ocorrem em função das novas funções recriadas para estes espaços, que não atendem mais o objetivo das legislações que instituíram as áreas de preservação permanente num momento histórico diferente do presente.
3.1 As APPs: a legislação, o planejamento e a qualidade de vida
A proteção das APPs para Servilha et. Al (2007: 98-99) é a questão que tem gerado grande polêmica na atualidade do Direito ambiental brasileiro, face sua previsão legal, Código Florestal (Lei nº 4.771/65 e suas alterações), e as regulamentações decorrentes: Resoluções CONAMA 302 e 303,[4] de 20.03.2002 e a pela Resolução CONAMA 369, de 28.03.2006.
Salientam que as APPs, na forma como foram criadas, são consideradas como instrumentos utilizados pelo Poder Público para proteger uma parte do território, segundo objetivos específicos de preservação ambiental.
Para Servilha (2003, p. 31), as noções legais das áreas de preservação permanente vieram com o Código Florestal de 1934, que cuidou de criar a conservação perene das florestas protetoras e as remanescentes, que com a Lei nº 4.771, de 15.09.1965 tornar-se-iam as florestas de preservação permanente. Estas áreas alteraram-se com as edições das Leis nº 6.535/78, nº 7.754/89, nº 7.511/86, nº 7.803/89 e Medida Provisória nº 2.166, de 24.08.2001, sendo que esta última trouxe o conceito legal atual para as APP:
“[…] área protegida nos termos dos artigos 2.° e 3.° desta Lei, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.”
No que diz respeito às concepções originais das APPs, os objetivos de proteção esperados foram delineados usando metragens sem base científica, excluindo a existência do homem e sua influência na dinâmica da paisagem na qual as APPs estão inseridas. Em decorrência, a manutenção das APPs urbanas tem sido objeto de conflito desde a revisão de 1986 do Código Florestal (Lei nº 4.771/65).[5] Agravando os conflitos, a lei sobre parcelamento do solo urbano – Lei Lehman (Lei nº 6.766/79)[6] – determina que os loteamentos devem reservar (sem edificações) uma faixa de 15 metros de cada lado ao longo de cursos d’água, enquanto o Código Florestal reforça a medida de 30 metros ao longo dos corpos d’água urbanos[7] com largura de até 10 (dez) metros. Colocada esta síntese do histórico e das principais previsões legais referentes às áreas de preservação permanentes, resta a necessidade de se discutir e de se repensar a função e o real valor das APPs, principalmente no contexto urbano.
3.2 As APPs inseridas em contexto urbano
A degradação ambiental das APPs, segundo Servilha et al. (2007: 100) é mais intensa nas áreas urbanas do que nas rurais, onde a grande maioria dos cursos d’água se encontram canalizados com as respectivas margens transformadas em vias expressas ou ocupadas de forma ilegal, quando não servem de depósito clandestino de lixo.
Sobre o mesmo assunto, Servilha (2003, p. 105) considera que
“[…] As áreas de preservação permanente – as APP, reguladas pelas Resoluções CONAMA, com suas metragens definidas, encontrarão, principalmente nos perímetros urbanos das cidades, suas áreas e a maioria dos leitos dos cursos d’águas cimentados, sua vegetação praticamente destruída e desconsiderada pelas autoridades municipais e pela comunidade, que assim como os primeiros colonizadores, as consideram como local insalubre, devendo ser destruídas. Aliás, não são outras as intervenções realizadas nas APP pelo Poder Público (são sempre no sentido da destruição, através de obras, planos, atividades ou projetos de utilidade pública ou interesses sociais, dentro da ‘lógica da salubridade’).”
A importância de se ter áreas de preservação permanente está ligada à função ambiental das APP que engloba a preservação dos recursos hídricos, da paisagem, da estabilidade geológica, da biodiversidade, do fluxo gênico de fauna e flora, para a proteção do solo e para a promoção do bem estar das populações humanas (BRANDÃO; LIMA, 2002, p. 46).
Ainda esclarecem que, no meio urbano, as APP têm o potencial de funcionar como amenizadores de temperatura (controle climático), diminuir os ruídos e os níveis de gás carbônico (melhoria da qualidade do ar), promover equilíbrio de distúrbios do meio (proteção contra enchentes e secas), proteger as bacias hidrográficas para o abastecimento de águas limpas (controle e suprimento de águas), proporcionar abrigo para a fauna silvestre (controle biológico e refúgio da fauna), promover a melhoria da saúde mental e física da população que as freqüenta (função recreacional e cultural), e contribuir para o melhoramento estético da paisagem. Servilha (2003, p. 99) argumenta que nas áreas urbanas as APP são mais que um ecossistema natural, na realidade elas são
“[…] um sistema sócio-ambiental aonde as pessoas podem encontrar, no convívio social, tranqüilidade pública, fundamento da Ordem Pública. Nessa perspectiva, a proteção e/ou recuperação das APP podem permitir também a recuperação das relações sociais desde que sejam estabelecidas a integração entre as várias Políticas públicas que interferem com a constituição do lugar.”
Neste mesmo sentido afirma Milaré (2005, p. 309)
“[…] a preservação de áreas de preservação permanente no perímetro urbano dos Municípios tem o objetivo de ordenar a ocupação espacial, visando a contribuir para o equilíbrio do meio em que mais intensamente vive e trabalha o homem.”
Porém, para Servilha et al. (2007:100-101), as APPs Urbanas continuam a ser degradadas mesmo protegidas por lei, em função dos diversos conflitos relativos aos usos e tipos de ocupação existentes nestes espaços, apontando para um descompasso entre as previsões da legislação ambiental e a realidade factual do espaço urbano.
Muitas vezes os conflitos são conseqüências também de ações de planejamento e urbanismo realizadas antes da elaboração do Código Florestal e das Resoluções CONAMA, quando as funções das áreas nas margens dos rios e dos próprios cursos d’água atendiam outros objetivos.
Podemos citar como exemplo da edição da Lei Municipal nº 1.786, de 13.07.1957, do município de Campinas, que, segundo Servilha (2003, p. 44),
“[…] traz um grave comprometimento à preservação das matas ciliares ao exigir, dos interessados na abertura de novos arruamentos e loteamentos, a canalização dos cursos d’água e deixa transparecer conflitos jurídicos de domínio das áreas verdes, entre outras […].”
Esclarecem que nesta época não havia a preocupação em se preservar as margens dos rios, que poderiam sofrer ações de acordo com interesses específicos, não necessariamente de utilidade pública ou de interesse social:
“Art. 1.º. Os interessados na abertura de novos arruamentos e loteamentos neste Município, deverão realizar às suas custas, sem qualquer ônus para a Prefeitura, os seguintes serviços:
a) redes de água;
b) canalização de cursos d’água;
c) galerias de águas pluviais;
d) demarcações com marcos de concretos, e
e) terraplenagem das ruas que se tornares necessárias à completa execução do projeto aprovado.”
Ainda que, nesta época, vigoravam na grande maioria dos municípios brasileiros em expansão, os preceitos do urbanismo modernista. Tais preceitos (habitação, trabalho, lazer e circulação) acabaram influenciando, segundo Weintgartner (2001, p. 20), “alguns códigos de obras de parcelamento do solo na década de 60, que acabaram por canalizar cursos d’água e construir grandes vias de circulação nas margens dos rios, com conseqüente adensamento populacional no entorno”.
A influência deste tipo de prática na configuração do território brasileiro, em conjunto com as regulamentações de uso das APP, contribuiu para o não desenvolvimento de projetos e ações diferenciadas que valorizem as margens dos rios enquanto um espaço público, que pode ser utilizado pelo homem, que seja projetado para o homem juntamente com projetos de conservação, de acordo com os novos valores atribuídos a este espaço urbano.
A grande maioria das ações desenvolvidas nas margens dos rios são, segundo Afonso (2000, p. 5), as seguintes:
“[…] os corpos d’água têm sido transformados em avenidas e construções, sem nenhum aproveitamento paisagístico do vale e do rio. Atualmente estas linhas de drenagem estão sendo taponadas, aterradas, ou simplesmente servem para a disposição de dejetos líquidos e sólidos, contra qualquer recomendação paisagística e ambiental. O ideal seria que estas faixas de preservação integrassem um sistema de parques, sendo estas áreas arborizadas para que se efetivasse sua proteção contra as inundações. Os esgotos, separados das águas fluvio e pluviais, deveriam ser coletados e tratados para aproveitamento na lavação de ruas e rega de jardins.”
Para Servilha et al (2007: 102), fato é que o Código Florestal e as resoluções subseqüentes, não conseguiram atingir parte dos seus objetivos preservacionistas e os municípios continuam a ocupar as margens dos cursos d’água em seus processos de expansão da malha urbana. O excesso de restrições impostas na legislação ambiental que regulamenta a proteção das APPs mostrou-se ineficaz no controle do uso da terra, principalmente em contextos urbanos, nos quais a dinâmica da paisagem é constante e provoca alterações diariamente em sua estrutura.
Concluem que, por tudo isso, não faz mais sentido pensar em APP como natureza intocada tendo em vista a já alterada configuração espacial das margens dos rios pela dinâmica de expansão urbana.
Ainda, a hipótese que pode justificar esse tipo de pensamento no Brasil está baseada nas origens da preservação da natureza no território brasileiro. Carvalho (2002, p. 40) argumenta que o objetivo de preservação surgiu, principalmente, no “[…] campo, em áreas pouco urbanizadas e em ecossistemas notáveis e quase únicos como a Amazônia e o Pantanal, devido a atividades extensivas agrícolas e mineradoras […]” que, segundo ela, vinham causando uma destruição cada vez mais acelerada e crescente. Neste período o pensamento agronômico vigente era o de conservação de solo.
Seguindo este raciocínio, Santos (2002, p. 62) nos conta que “No começo da história do homem, a configuração territorial é simplesmente o conjunto dos complexos naturais”, como no caso aqui explicitado, o sistema ecológico das APP. Continuando, o autor (SANTOS, 2002, p. 62) argumenta que
“[…} À medida que a história vai fazendo-se a configuração territorial é dada pelas obras dos homens: estradas, plantações, casas, depósitos, portos, fábricas, cidades, etc., verdadeiras próteses. Cria-se uma configuração territorial que é cada vez mais o resultado de uma produção histórica e tende a uma negação da natureza natural, substituindo-a por uma natureza inteiramente humanizada.”
3.3 As APPs e a qualidade ambiental e de vida
Para Servilha et al (2007: 102), a manutenção da qualidade ambiental das APP, objetivo da legislação ambiental, não deve estar ligada apenas à preservação de recursos naturais e manutenção de processos ecológicos, devendo incorporar também os anseios dos indivíduos que habitam a paisagem na qual estão inseridas as APPs.
Esta reflexão é primordial nesta discussão porque está atrelada ao conceito de qualidade ambiental, muito associado à manutenção das faixas de preservação pré-estabelecidas (variando de acordo com a largura do curso d’água) de cada lado do rio. Imposição que tem encontrado dificuldades e limitações de ser cumprida.
Segundo Weingartner, (2001, p. 4), a definição de qualidade ambiental “abrange o universo de valores que se diversificou, e por vezes, a necessidade de se estabelecer um senso comum, torna-se uma tarefa difícil de se realizar”. De acordo com o autor, a qualidade ambiental deve ser entendida não somente como um meio físico ecologicamente equilibrado, mas também como “um meio ambiente humano onde os anseios e desejos dos indivíduos, respeitando a diversidade e a individualidade, ultrapassam o meio físico em si” (p. 4). Essa colocação é primordial quando se discute a função das APPs no contexto urbano, ambiente no qual a presença do homem é marcante e influencia diariamente a dinâmica da paisagem.
A influência do homem na configuração da paisagem não pode ser excluída da análise e das reflexões sobre os tipos de intervenções, já que o homem estabelece relação direta com o espaço físico e com os elementos que configuram as APPs. Além disso, o fato de incluir os anseios e desejos do indivíduo, coloca em xeque o objetivo preservacionista das leis protetoras das APPs, que excluíram quase que totalmente a influência das ações humanas nestes espaços.
A promoção da qualidade de vida urbana depende muito, de acordo com Rogers e Gumuchdjian (2001, p. 32), do entendimento de que as questões ambientais não diferem das questões sociais, porque na realidade “as soluções ecológicas e sociais se reforçam mutuamente e garantem cidades mais saudáveis, cheias de vida e multifuncionais.” De acordo com Forman e Godron (1986, p. 515), “[…] quando uma paisagem é excessivamente modificada ou artificializada, os mecanismos naturais de regulação dos sistemas ecológicos ficam distantes de serem eficientes para restaurar a qualidade e o equilíbrio ecológico.” Por isso não faz sentido impor total restrição de uso nas APPs urbanas, tendo em vista que a grande maioria está degradada ou já foi alterada pelo homem. Deve-se ao contrário seguir o exemplo de outros países europeus, por exemplo, que desenvolvem a renaturalização dos cursos d’água, projeto de alteração das margens e da própria calha dos rios para promoção do equilíbrio ecológico e valorização dos rios e de suas margens.
3.4 APPs como áreas de preservação
Outro aspecto relevante nesta discussão diz respeito à inadequação da nomenclatura utilizada para as áreas de preservação permanente, principalmente em contextos urbanos: “Área de preservação permanente”.
Segundo Corte (1997, p. 21),
“[…] Passmore (1974) define preservação como sendo […] a tentativa de manter em sua condição presente, áreas da superfície da terra ainda não afetadas pela atuação humana e proteger do risco de extinção aquelas espécies ou recursos ainda não destruídos pelo homem.”
Seguindo esta mesma linha, a autora coloca outra definição da Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (FEEMA, 1990, p. 164), em Vocabulário Básico de Meio Ambiente, que define preservação como
“[…] a ação de proteger, contra a destruição e qualquer forma de dano ou degradação, um ecossistema, uma área geográfica definida ou espécies animais e vegetais ameaçadas de extinção, adotando-se as medidas preventivas legalmente necessárias e as medidas de vigilância adequadas.”
Por outro lado, Passmore (1974 apud CORTE, 1997, p. 21) restringe a palavra conservação à idéia de “[…] poupar recursos naturais para consumo posterior.” Isto significa que o conceito de conservação aplica-se à utilização racional de um recurso qualquer, de modo a se obter um rendimento considerado bom, garantindo-se, entretanto, sua renovação ou sua auto-sustentação. “A conservação ambiental quer dizer o uso apropriado do meio ambiente dentro dos limites capazes de manter sua qualidade e seu equilíbrio” (FEEMA, 1990, p. 60).
Portanto, ações de preservação ambiental, que envolvem a máxima restrição de uso, permitindo apenas o manejo controlado dos recursos naturais segundo objetivos específicos (pesquisa científica, atividades educativas e recreativas), não fazem sentido dentro de uma contexto urbano. Porém ações de conservação ambiental, que envolvem o uso racional dos recursos naturais, que buscam o equilíbrio entre os objetivos econômicos e ecológicos, conciliando as demandas sócio-econômicas com as ações de proteção ambiental possuem maior possibilidade de terem êxito nos contextos urbanos.
No caso da Resolução CONAMA 369/2006, publicada em 29.03.2006, que regulamenta o uso das APPs, o objetivo de preservação acaba, de certa forma, por dar alguns sinais da possibilidade de inclusão da dinâmica da vida humana dentro dos espaços das APPs.
Em outras palavras a Resolução CONAMA 369/2006, busca regulamentar de forma adequada os conceitos abstratos de utilidade pública, interesse social e baixo impacto ambiental, como situações passíveis de intervenção em área de APPs, cujos conceitos são definidos da seguinte forma pela nova Resolução:
Utilidade pública – compreende:
a) as atividades de segurança nacional e proteção sanitária;
b) as obras essenciais de infra-estrutura destinadas aos serviços públicos de transporte, saneamento e energia;
c) as atividades de pesquisa e extração de substâncias minerais, outorgadas pela autoridade competente, exceto areia, argila, saibro e cascalho;
d) a implantação de área verde pública em área urbana;
e) pesquisa arqueológica;
f) obras públicas para implantação de instalações necessárias à captação e condução de água e de efluentes tratados; e
g) implantação de instalações necessárias à captação e condução de água e de efluentes tratados para projetos privados de aqüicultura, obedecidos aos critérios e requisitos previstos nos §§ 1.º e 2.º do art. 11, desta Resolução.
Interesse social – compreende:
a) as atividades imprescindíveis à proteção da integridade da vegetação nativa, tais como prevenção, combate e controle do fogo, controle da erosão, erradicação de invasoras e proteção de plantios com espécies nativas, de acordo com o estabelecido pelo órgão ambiental competente;
b) o manejo agroflorestal, ambientalmente sustentável, praticado na pequena propriedade ou posse rural familiar, que não descaracterize a cobertura vegetal nativa, ou impeça sua recuperação, e não prejudique a função ecológica da área;
c) a regularização fundiária sustentável de área urbana;
d) as atividades de pesquisa e extração de areia, argila, saibro e cascalho, outorgadas pela autoridade competente;
Baixo impacto ambiental – compreende:
I – abertura de pequenas vias de acesso interno e suas pontes e pontilhões, quando necessárias à travessia de um curso de água, ou à retirada de produtos oriundos das atividades de manejo agroflorestal sustentável praticado na pequena propriedade ou posse rural familiar;
II – implantação de instalações necessárias à captação e condução de água e efluentes tratados, desde que comprovada a outorga do Direito de uso da água, quando couber;
III – implantação de corredor de acesso de pessoas e animais para obtenção de água;
IV – implantação de trilhas para desenvolvimento de ecoturismo;
V – construção de rampa de lançamento de barcos e pequeno ancoradouro;
VI – construção de moradia de agricultores familiares, remanescentes de comunidades quilombolas e outras populações extrativistas e tradicionais em áreas rurais da região amazônica ou do Pantanal, onde o abastecimento de água se de pelo esforço próprio dos moradores;
VII – construção e manutenção de cercas de divisa de propriedades;
VIII – pesquisa científica, desde que não interfira com as condições ecológicas da área, nem enseje qualquer tipo de exploração econômica direta, respeitados outros requisitos previstos na legislação aplicável;
IX – coleta de produtos não madeireiros para fins de subsistência e produção de mudas, como sementes, castanhas e frutos, desde que eventual e respeitada a legislação específica a respeito do acesso a recursos genéticos;
X – plantio de espécies nativas produtoras de frutos, sementes, castanhas e outros produtos vegetais em áreas alteradas, plantados junto ou de modo misto;
XI – outras ações ou atividades similares, reconhecidas como eventual e de baixo impacto ambiental pelo conselho estadual de meio ambiente.
Esta regulamentação traz, de certa forma, indicativos no sentido da aproximação das previsões do Direito ambiental no tocante às APPs com a realidade factual do espaço urbano. Neste sentido, Frischembruder (2001, p. 60-61) afirma que na elaboração de Políticas protetoras de recursos naturais deve-se
“[…] resgatar a dimensão propriamente natural do ambiente, sem que deixe considerar os aspectos e implicações dos processos sociais e das atividades das populações humanas sobre este, ao contrário, procurando precisar as relações complexas e aspectos relativamente independentes das dinâmicas envolvidas.”
Em consonância com tais afirmações, Rutkowski (1999, p. 133-134) defende a necessidade de se “[…] compreender o espaço não só como o meio ecológico mas também como o locus onde ocorrem as relações sociais de ordem cultural, Política e econômica.” Tais relações, de acordo com a autora, são “[…] um conjunto de inter-relações entre o ambiente físico-químico-geológico e o meio biótico, organizadores do desenho natural da paisagem, ditadas pelas ações antrópicas, circunscrevendo, em seus limites, as drenagens naturais e/ou antropizadas pelas ações, neste caso, do saneamento.” Ela acrescenta que esse espaço é um “[…] espaço territorial de conformação dinâmica, cujos limites são estabelecidos pelas relações ambientais de sustentabilidade de ordens ecológica e social.”
Não temos como desconsiderar a mudança de função das APP ao longo dos anos nos espaços urbanos. Santos (1997, p. 72-73) traz outra contribuição para a configuração do espaço em formas-objetos[8] que mudam de função ao longo do tempo:
“[…] Cada paisagem se caracteriza por uma dada distribuição de formas-objetos, providas de um conteúdo técnico-científico. Já o espaço resulta da intrusão da sociedade nessas formas-objetos. Por isso, esses objetos não mudam de lugar, mas mudam de função, isto é, de significação, de valor sistêmico. A paisagem é pois, um sistema material e, nessas condições, relativamente imutável, o espaço é um sistema de valores, que se transforma permanentemente.”
Durante o processo de mudança das funções e dos valores atribuídos às formas-objeto, citadas por Santos, aspectos ligados à relação afetiva entre o homem e o locus, acabam sendo alterados com essa mudança de função e conseqüente utilização destes objetos. Santana (2006, p. 4) argumenta que alguns espaços acabam sendo mais “[…] valorizados em detrimento de outros, e por isso, são mais consumidos, mais visitados e mais apreciados, seja por usuários, seja pelo capital imobiliário e seus atores envolvidos, seja pela esfera Pública.” Segundo esta autora, “[…] espaços pouco utilizados e entornos ociosos, são propícios ao aparecimento da violência e de ações nocivas aos usuários e, por conseguinte, a qualidade de vida urbana.” Por esse motivo deve-se repensar algumas restrições de uso impostas pelas legislações protetoras das APPs, na tentativa de reverter o quadro de abandono e degradação das margens dos cursos d’água da grande maioria dos municípios brasileiros, levando-se em conta a preservação e/ou manutenção da ordem pública.
3.5 Alternativas de usos para as APPs no planejamento urbano
Na tentativa de se reverter o quadro de degradação e abandono das APPs devem ser repensados novos usos para estes espaços de modo a adequá-los às demandas e anseios dos habitantes, em conformidade com princípios de conservação ambiental, promovendo ganhos socioambientais.
Uma alternativa de uso nas áreas das APP é a implantação de greenways,[9] definidas como:
“[…] áreas lineares destinadas tanto à conservação como à preservação dos recursos naturais, tendo como principal característica a capacidade de interligar fragmentos florestais e outros elementos encontrados em uma paisagem, assim como os corredores ecológicos (GIORDANO, 2004, p. 19).”
O diferencial deste tipo de projeto está relacionado à possibilidade de agregar funções de uso humano nestes espaços, referentes principalmente, conforme explicação do autor, por atividades de lazer e como rotas de locomoção humana não motorizada, compondo desta forma princípios do desenvolvimento sustentável, sem excluir a dinâmica da vida humana em uma prática de conservação, diferentemente da preservação restrita.
Servilha (2003, p. 101) propõe a criação de Parques Ciliares, que leva em consideração, em sua concepção, fundamentos da Ordem Pública que estão se consagrando pela jurisprudência, quais sejam, a segurança, a salubridade e a tranqüilidade pública, ainda propondo “[…] que ao acompanhar os desenhos originais das várzeas, traduziriam as necessidades e anseios da população na recuperação da biocomplexidade da mata ciliar original.”
Outras alternativas que possibilitam ampliar a preservação das APPs, são explicitadas por Afonso (2000), através da leitura de alguns autores que trabalham com a temática. Para Laurie (1983, p. 162-164 apud AFONSO, 2000, p. 7),
“[…] o uso privado qualificado e de baixa densidade é a opção mais recente e bem sucedida para a conservação destes terrenos em seus aspectos geotécnicos, paisagísticos e ambientais; além de permitir a multiplicação da vida silvestre.”
Outro autor, Steinitz (1996, p. 31) é da mesma opinião, ambos defendem esta estratégia como alternativa “para evitar que o desenvolvimento excessivo fragmente o habitat de espécies ameaçadas em uma região.” Mesmo parecendo contraditória, esta alternativa de uso em APPs pode ter resultados satisfatórios, permitindo, segundo Laurie (1983, p. 162-164 apud AFONSO, 2000, p. 7), a
“[…] recomposição vegetal e controle contra invasões, quando variam de 1 domicílio por 12.000 metros quadrados até 1 domicílio por 1.250 metros quadrados, dependendo das declividades dos terrenos e dos projetos adotados.”
Araújo (2002, p. 10) reconhece que respeitar as metragens relativas às
“[…] faixas de proteção entre 30 e 500 metros fixadas pela lei não têm aplicação fácil quando se analisa a realidade de uma cidade. O estabelecimento de limite mínimo menos rigoroso para as áreas urbanas, proposta constante de alguns dos projetos de lei em tramitação, é desaconselhável do ponto de vista do meio ambiente, mas não é totalmente desprovido de justificativa.”
Além disso, a autora complementa a discussão sugerindo a alternativa de se flexibilizar os usos das APP Urbanas, no caso de implantação de infra-estrutura para dar suporte a atividades de lazer e recreação desde que sejam garantidas a preservação da cobertura vegetal para o cumprimento da função das APPs.
O fato é que tais alternativas ainda vêm sendo timidamente utilizadas por municípios brasileiros, e mesmo protegidas pela legislação federal, as APP, continuam a ser degradadas, de um modo geral, por três ações antrópicas distintas, porém correlatas: “[…] a conversão de espaços naturais para usos urbanos, a extração e deterioração dos recursos naturais e o despejo dos resíduos urbanos, industriais e domésticos” (ROCHA, 1999, p. 9).
“[…] Bononi (2004) afirma que atualmente pelo menos um milhão de pessoas vive nas áreas das APP, na maioria população de baixa renda que não consegue ter acesso à moradia nas áreas urbanas legais, com infra-estrutura adequada e preço acessível (VILLA, 2004, p. 60).”
As administrações municipais têm enfrentado sérios problemas relativos a ocupações nas áreas das APPs, em função dos impactos sócio-ambientais que comprometem drasticamente todo o ecossistema do qual ela é parte integrante.
As APPs urbanas, principalmente as dos cursos dágua, declividades acima de 45º, as das encostas e as dos topos de morros, reconhecidas como áreas de risco, devem ter uma atenção especial, principalmente quanto aos assentamentos humanos nelas existentes. O reconhecimento desses assentamentos informais não podem ser ignorados e sua remoção representa uma nova direção na Política Pública, visto o processo que configurou a sua organização socioespacial. Daí, fazer-se necessário que os planejadores e órgãos governamentais, envolvidos com o planejamentos e com a construção de cidades, considerem também “[…] os aspectos relativos ao desenho, partindo sempre do princípio fundamental de que as cidades devem ser desenhadas para as pessoas” (MAGALHÃES, 2005, p. 2-3). E, durante esse processo, deve-se buscar integrar práticas de preservação e conservação com alternativas de uso para as áreas de APP em função das especificidades de cada espaço.
Tradicionalmente têm-se fragmentado o território nas ações de planejamento, considerando nos estudos preliminares e nos diagnósticos do território, aspectos isolados da cidade, ou da região objeto do planejamento.
São necessárias mudanças de abordagem, e para isso não se pode mais pensar e desenvolver ações e projetos para uma paisagem considerada como um cenário, um pano de fundo, um jardim construído sem função e estático. De acordo com Frischembruder (2001), esta nova abordagem deve incorporar dimensão territorial desses processos constituintes da paisagem e o interesse que isso tem para a Gestão pública.
Servilha (2003, p. 99) argumenta que:
“[…] As APP, ao serem consideradas como um dos componentes estruturais do lugar, transformam seus elementos em intervenientes das qualidades ambiental e de vida. Passam a ser, nas áreas urbanas, mais que um ecossistema, um sistema sócio-ambiental aonde as pessoas podem encontrar, no convívio social, tranqüilidade pública, fundamento da Ordem Pública. Nessa perspectiva, a proteção e/ou recuperação das APP podem permitir também a recuperação das relações sociais desde que sejam estabelecidas a integração entre as várias Políticas públicas que interferem com a constituição do lugar.”
Nesse sentido, as matas ciliares degradadas das APP Urbanas, submetidas a projetos de reabilitação ambiental, devem ser consideradas como um
“[…] espaço de reprodução de um grupo humano, uma possibilidade de uso social com um dado potencial produtivo, o qual permite uma abordagem vocacional que desvendaria suas vantagens e desvantagens (face a cada uso) em comparação a outros lugares” (MORAES, 1996, p. 57).”
Assim, os processos de reabilitação ambiental de APPs urbanas precisam integrar Planos de controle ambiental, de organização visual da paisagem e de “[…] usos compatíveis com a função ambiental que lhes deu origem” (CAMPINAS, 1996, p. 105), considerando o desenho urbano, os fluxos de atividades passadas, presentes e futuras, bem como as necessidades e anseios da população local e do entorno. A incorporação das questões da Ordem Pública[10] altera não só o espaço físico, mas também a relação da comunidade com a sua APP, garantindo sua reabilitação e preservação. Afinal, como apontam Rogers e Gumuchdjian (2001, p. 15-16), “a beleza cívica é o resultado do compromisso social e cultural das comunidades de uma sociedade urbana”, pois o sucesso das cidades sustentáveis é garantido pelos habitantes da cidade e o poder público em razão da prioridade dada à criação e manutenção do meio.
Por tudo isso, a reabilitação ambiental das APP urbanas deve ter como princípio fundamental a criação de um sentido de lugar, de um espaço onde é possível exercer a cidadania, privilegiando projetos e desenhos urbanos que estejam interrelacionados aos processos naturais dos rios e dos sistemas de áreas verdes. Assim é possível conciliar a promoção da qualidade de vida à conservação dos recursos naturais. Isso porque o ambiente urbano, segundo Scalise (2001, p. 27), “se constrói não só da massa edificada, mas da relação entre áreas edificadas e áreas livres (de comunicação e de encontro, nas mais variadas concepções, funções, formas e escalas) e da relação de contigüidade dos espaços livres entre si”, bem como torna possível não só a recuperação de áreas degradadas, como também a regeneração, a reutilização e preservação do território como um todo.
3.6. Considerações sobre as APPs Urbanas: a necessidade do Direito Ambiental se integrar com outros Saberes
Afinal, qual é o objetivo de se preservar as APPs Urbanas? A APPs não é vista como um corredor ecológico de interações com o meio natural, mesmo porque a configuração espacial e os recursos naturais atuais não possibilitam desempenhar tal função, mas sim como um foco de problemas que altera a vida das pessoas que vivem ao seu entorno. Atualmente, os usos e costumes da população relacionados aos recursos hídricos são excludentes, tornando o córrego muitas vezes indesejável no meio urbano.
A comunidade governamental e científica recria e conserva legalmente as APPs Urbana, quase somente com conhecimentos fitossociológico e biogeográfico, não privilegiando estudos interdisciplinares que contextualizam a paisagem e seus atributos naturais e conhecimentos das áreas acadêmicas, em especial, das ciências sociais. Estes últimos têm relevância no entendimento da interferência e influência do homem na configuração espacial da paisagem. Até então, os estudos que forneceram subsídios à elaboração das Políticas Públicas Ambientais de preservação foram realizados em pequenas escalas de modo apenas a permitir a melhor compreensão dos fenômenos e processos ecológicos que seriam objeto de preservação.
Talvez a dificuldade existente para a elaboração de Políticas públicas eficazes de preservação das APP Urbanas esteja ocorrendo em função da dificuldade em se associar informações coletadas em pequenas escalas, neste caso, na escala do sistema ecológico da APP, para elaboração de Planos, Programas e Projetos em escalas maiores quando outras variáveis devem ser consideradas. Vogt e outros (2002) afirmam que as variáveis críticas que controlam a saúde e o funcionamento de um ecossistema apenas podem ser determinadas integrando informações das ciências naturais e sociais.
Dentro desse contexto as APPs não podem ser consideradas como ecossistemas intocáveis, já que estão inseridas em um espaço social, criado originalmente pela natureza e transformado continuamente pelas relações sociais. Porém, as metragens definidas pela lei para proteção das APPs urbanas insistem em considerar os limites do sistema biológico das APPs como entidades fixas, inseridas em um contexto não dinâmico, o que não é real em áreas urbanas. Nestas a dinâmica da paisagem é movida, entre outras, pelas relações sociais, que devem ser consideradas na elaboração de Políticas e Planos de preservação e recuperação já que influenciam constantemente a saúde e o funcionamento do sistema biológico das APPs.
Após a discussão exposta, ficam alguns questionamentos para reflexão: Qual é o limite físico adequado da unidade de gerenciamento da APP? É possível definir um padrão? A partir de quais indicadores? Através de qual escala espacial de análise é possível identificar as variáveis críticas que influenciam o funcionamento do sistema biológico da APP? Como promover uma integração entre escalas e dados sociais e naturais? Os limites fixos determinados na lei fazem sentido, se cada paisagem, cada contexto é heterogêneo?
O Direito ambiental precisa, necessariamente, se comunicar com outros saberes para definir o alcance das suas previsões legais, evitando assim abusos, limitações e conflitos, e possibilitando, através de estudos técnicos adequados, a ocorrência, em cada situação, de ganhos ambientais, sociais e econômicos.
As APPs Urbana caminham para compor-se como uma paisagem neutral,[11] com uma estrutura neutra, ou seja, sujeita a uma preservação/conservação e/ou recuperação sem serventia para o homem, nem para a flora e para a fauna. Uma realidade que precisa ser reconstruída, caso a caso, como responsabilidade socioambiental, sendo o passo importante nessa jornada integrar as previsões legais do Direito Ambiental com os conhecimentos técnicos da Gestão capazes de aproximar a letra fria da Lei de uma realidade altamente complexa.
4. APP Urbanas: da Decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Entende-se que a abordagem teórica das APP Urbanas mencionada acima, desenvolvida de forma interdisciplinar, é justificadora de se pensar novos papéis para a dimensão ambiental do Direito, no sentido de integração com os conhecimentos envolvidos pela Gestão Ambiental, como condição para a maior efetividade das Políticas Ambientais.
Em outros termos, a faixa de área de preservação projetada em função da largura dos cursos d’água, quase sempre não tem a dimensão de preservação ideal (enquanto dever ser), conforme previsto na legislação ambiental (Lei Federal nº. 4771/65 e alterações e regulamentações posteriores[12]). Essa falta de conformidade manifestada na maior parte dos cursos d’água das cidades brasileiras, refletem-se no regime de uso e ocupação do território, advindo de diversas fases históricas de ocupação, sobretudo são reflexos de períodos em que imperou a falta da aplicação das premissas da Gestão Ambiental (com ênfase na sua dimensão do Planejamento Ambiental).
Assim, muitas vezes a metragem exata e intocável prevista pelo Direito Ambiental para as APPs, terá que ser relativizada para que o objetivo da Política Ambiental seja atendido nas cidades, no ente federativo municipal, através da integração de conhecimentos técnicos capazes de, a partir da situação ideal prevista na Lei, apontar qual é a situação possível e realizável para o caso concreto, sem que isso agrave o quadro socioambiental em questão. Não é uma “equação” de fácil solução, mas faz com que aqueles operadores das Políticas Públicas, que estão envolvidas nessas situações, devam ter um conhecimento que ultrapassa os limites da lei aplicável ao caso, para se poder buscar a melhor solução para os atores e aspectos ambientais envolvidos.
Entendemos que foi nesse sentido e com base no artigo mencionado sobre APPs Urbanas, que o Tribunal de Justiça de São Paulo, na sua Câmara Reservada ao Meio Ambiente, em Acórdão redigido pelo Desembargador José Geraldo de Jacobina Rabello que julgou Apelação Cível 4478015400, se manifestou.
Tratava-se de Ação Civil Pública, proposta pelo Ministério Público com pedidos para condenação do Município de São Paulo a cadastrar as famílias e desocupar casas irregularmente introduzidos às margens de curso d’água (Córrego Guaraú, na Zona Norte), em área urbana, sob alegação de omissão do Poder Público em relação às ocupações.
O recurso de Apelação foi julgado improcedente. Entendeu o Tribunal, em síntese, que não teria sido caracterizada a omissão do Poder Público local. Expos que, à época das ocupações, o contexto ambiental era outro e que nos últimos tempos o Poder Público local havia demonstrado várias medidas, dentro daquilo que seria possível e realizável para a recuperação ambiental da área, retirada das ocupações de risco e regularização de algumas ocupações em APP que não ofereciam riscos. Manteve um tratamento diferenciado para as APPs no âmbito das cidades, no sentido da busca da melhor relação do homem com esses espaços protegidos, que por vezes implica na possibilidade de ocupação dessas áreas, levando-se sempre em conta aspectos históreas, levando-se em conta aspectos histcupaularizacaivas ao nosso meio ambiente, justificando tamb corretas. ricos, sociais, urbanísticos, ambientais e de segurança.
Segundo os próprios termos da Decisão do Tribunal (que utiliza o mencionado artigo como fundamento), materializando um caso de aplicação prática do Direito Ambiental integrada com a Gestão Ambiental, na solução de um conflito:
“[…] E, bem ou mal, se terá de dar razão àqueles estudiosos que concluíram, ao escrever sobre elas nos centros urbanos, que “não faz mais sentido pensar em APP como natureza intocada mas sim como parte integrante e importante na qualificação do espaço no qual vive o homem” (cf Elson Roney Servilha e outros, da Universidade Estadual de Campinas, em “Conflitos na Proteção Legal das Áreas de Preservação Permanentes Urbanas”)[13]”
A situação acima reflete uma aplicação do Direito Ambiental, na sua via tradicional (Decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo) que, de certa forma, recebe e incorpora a influência dos conhecimentos técnicos que integram a Gestão do Meio Ambiente. Essa influência processa-se, como visto alhures, através de saberes interdisciplinares associados ao tema, que cumpre a finalidade de aproximar o texto legal, em especial, o das áreas de preservação permanente, à realidade dos municípios.
5. Considerações Finais
A perspectiva ora apresentada procura integrar o olhar do Direito Ambiental com o olhar da Gestão Ambiental na busca de soluções, com vistas a considerar as circunstâncias históricas, jurídicas, ambientais, sociais, econômicas, relacionadas com a forma com que o homem se relacionou e se relaciona com o território que acompanha os cursos d’água das cidades. Busca-se, com isso, as ações e medidas mais adequadas para atender aos interesses públicos em jogo, que integram os objetivos da Política Pública Ambiental, em especial, a Municipal. Dessa forma, a integração dos objetivos da Política Nacional de Meio Ambiente com os da Política Urbana, deve buscar a compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico (art. 4˚, I, da Lei Federal nº. 6.938/81). Nesta busca, ter-se-á a garantia do direito a uma cidade sustentável, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações (art. 2˚, I, da Lei Federal nº. 10.257/2001). Uma integração e atenção de temas e dimensões que fazem parte da busca pela efetivação da proposta de um desenvolvimento sustentável.
Informações Sobre os Autores
Rafael Costa Freiria
possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR 2000; mestrado em Direitos Difusos e Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP 2005; doutorado em Saneamento e Ambiente pela UNICAMP 2010; pós-doutorado no Programa de Direito Ambiental e Sustentabilidade da Universidade de Alicante – Espanha 2013. Atualmente é Professor da Faculdade de Tecnologia da Unicamp. Atua principalmente nos seguintes temas: direito e legislação ambiental avaliação de impactos ambientais políticas públicas ambientais planejamento e gestão ambiental e direito agrário
Emilia Wanda Rutkowski
Professora Doutora do Departamento Saneamento e Ambiente da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (DSA/FEC/UNICAMP). Coordenadora do Laboratório FLUXUS (FEC/UNICAMP) e da Coordenadoria de Assuntos Comunitários (PREAC/UNICAMP). Doutora em Arquitetura e Urbanismo – FAU/USP. Mestre em Limnologia – University of Sterling, Escócia. Bióloga – UFMG
Graziella Cristina Demantova
Doutora – FEC/UNICAMP. Pesquisadora do Laboratório FLUXUS (Grupo de APP Urbanas) – FEC/UNICAMP. Mestre em Engenharia Agrícola – FEAGRI/UNICAMP. Arquiteta e Urbanista – PUC-Camp
Elson Roney Servilha
Doutorando em Engenheira Civil (Saneamento e Ambiente). Engenheiro de Segurança do Trabalho. Tenente Coronel da Reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Pesquisador-aluno Laboratório FLUXUS/FEC/UNICAMP