Do ônus da prova
Já tradicional é a definição, em sedes doutrinária e jurisprudencial, acerca do conceito de ônus da prova nos processos comum e do trabalho, tendo por base dois artigos: o artigo 818 da CLT, que estipula que incumbe a quem alega o fato realizar a prova do mesmo, e o artigo 333 do CPC, que exige, da parte do autor, a prova do fato constitutivo do seu direito, e do réu, a prova do fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
Esta definição tradicional, que transmite uma ideia perene de justiça, por muito tempo viu-se aplicar sem maiores dificuldades, sendo comum se verificar, nos julgados, menção expressa à mesma, especialmente no que concerne à divisão do ônus da prova contida no artigo 333 do CPC.
Sucede que este reinado inconteste da tradicional partilha do ônus da prova passou a ser, recentemente, questionado, sendo, com cada vez mais freqüência, posto em xeque por vozes abalizadas da doutrina e da jurisprudência.
DO CDC
Elemento essencial para o surgimento desta corrente, questionando a aplicação da partilha tradicional do ônus da prova, foi a promulgação do Código de Defesa do Consumidor, a Lei 8078/90, que previu, no seu artigo 6°, VIII, a possibilidade de inversão do ônus da prova.
Era o início de uma nova era do ônus da prova.
É bem verdade que, de início, como ocorre com qualquer mudança de parâmetros, houve notável resistência a esta regra do CDC, inclusive no âmbito da relação de consumo, não tendo sido raras as vozes contrárias a esta inversão de valores já sedimentados no universo jurídico nacional.
Pouco a pouco, contudo, as resistências foram cedendo, passando a ser quase unânime a aplicação desta inversão do ônus da prova na relação de consumo, tendo por base a hipossuficiência do consumidor, o que findou por estender os efeitos a outros ramos do direito.
DA APLICAÇÃO ANALÓGICA
Sedimentada no âmbito da relação de consumo, esta inversão do ônus da prova passou a ser evocada por autores e operadores do direito de outros ramos do Direito, que passaram a postular a aplicação analógica da regra contida no artigo 6°, VIII do CDC para estas outras áreas.
Nota-se, nesse sentido, com especial relevo a área trabalhista, na qual foi natural a comparação da hipossuficiência do consumidor com a do trabalhador, fato que reforçou os argumentos dos que sustentavam a inversão do ônus da prova no processo do trabalho, desde que difícil a produção da prova pelo trabalhador.
Novamente tendo de passar por forte resistência das alas mais conservadoras da doutrina e jurisprudência, esta aplicação analógica viu-se, com o tempo, ser cada vez mais evocada para resolver problemas concretos do processo trabalhista.
DA FLEXIBILIZAÇÃO DO ÔNUS DA PROVA
Chegou-se, então, após este início de aplicação analógica da inversão do ônus da prova, a uma tendência mais moderna que abandona os laços originais com o ônus da prova do CDC, passando a sustentar, no próprio processo do trabalho ou mesmo no processo comum, a flexibilização do ônus da prova.
Trata-se da tese que vem sendo denominada pela doutrina especializada de Teoria da Carga Dinâmica da Prova, segundo a qual, tendo em vista os princípios fundamentais da nossa República do acesso à Justiça[1], da efetividade do processo[2] e da isonomia processual[3], o ônus da prova possui como regra geral a tradicional partilha supra mencionada, mas, em casos de notória desigualdade entre as partes na produção da prova, pode-se inverter o ônus da prova para determinados fatos, reequilibrando uma relação desequilibrada na origem.
Em vez de se aplicar a regra tradicional, o que se realiza, no caso concreto de desigualdade, é atribuir-se à parte mais forte na relação o ônus de comprovar o fato que lhe garantiria o seu direito, retirando este ônus da parte mais frágil, menos capaz de produzir esta prova.
DOS PEDIDOS DE ADICIONAL DE INSALUBRIDADE E PERICULOSIDADE E DOS HONORÁRIOS PERICIAIS
Interessante exemplo desta situação é o dos pedidos de adicional de insalubridade ou de periculosidade na Justiça do Trabalho.
Seguindo os parâmetros tradicionais de partilha do ônus da prova, por se tratar de fato constitutivo do direito autoral, o texto consolidado estipulou, no seu artigo 195, a necessidade da prova das condições insalubres ou perigosas por meio de prova pericial.
Conseqüência lógica desta previsão legal, em caso de ausência de prova deste trabalho insalubre ou perigoso, presume-se a ausência dos referidos agentes nocivos.
Ocorre que, apesar de aparentemente legítima, esta regra revela-se, em muitos casos concretos, extremamente injusta, pois inviabiliza o pedido de adicional de insalubridade ou periculosidade por parte de trabalhadores sem meios financeiros para pagar a perícia.
É bem verdade que se argui, com freqüência, em sentido oposto a esta alegação, que o trabalhador beneficiário da justiça gratuita faz jus ao pagamento dos honorários periciais através de verba da União destinada para este fim.
Ocorre que esta verba, efetivamente existente, normalmente é limitada pelos tribunais do trabalho a valores muito abaixo do mercado, o que afasta a grande maioria dos peritos deste tipo de perícia, custeada com recursos da União, tornando difícil ou mesmo impossível a prova a ser produzida pelo trabalhador.
Deve ser ressaltado, ademais, o fato de que o juiz do trabalho não pode determinar, segundo entendimento majoritário, a antecipação dos honorários periciais pela empresa, decisão considerada como passível de ataque por meio de mandado de segurança[4].
A situação concreta que se apresenta para este juiz do trabalho, portanto, é a seguinte: há um pedido de adicional de insalubridade ou de periculosidade, a empresa se recusa a custear os honorários periciais, pois entende como não configurada a hipótese devida do adicional, e o juiz não pode determinar a antecipação destes honorários pela empresa, pois esta decisão pode e provavelmente será anulada pelo TRT, em sede de mandado de segurança. Inviável, igualmente, a determinação da realização da perícia a ser custeada pela verba da União, pois os peritos sabem que esta verba, alem de reduzida, tarda muito a ser paga, recusando-se a assumir o encargo que se lhes oferece.
Poucas alternativas restam, desse modo, a este juiz do trabalho, ao menos pelas regras tradicionais de partilha do ônus da prova.
DA CARGA DINÂMICA DA PROVA COMO SOLUÇÃO
Há, todavia, uma solução possível e bastante eficaz para este problema concreto: a aplicação da teoria da carga dinâmica da prova, por meio da qual o juiz inverte o ônus da prova do referido pedido de adicional, atribuindo à empresa o ônus de comprovar que o trabalho do empregado não era insalubre ou perigoso, sob pena de presunção da existência deste agente nocivo.
Note-se que, dessa forma, o juiz do trabalho resolve a situação sem prejudicar qualquer das partes: a prova se torna possível para o trabalhador, pois a empresa terá interesse em realizar e custear os honorários periciais, sob pena de ver configurado o trabalho insalubre ou perigoso, não sendo o empregador prejudicado, pois permanece com o seu legítimo direito de produzir a prova de que o trabalho do seu empregado não era insalubre ou perigoso.
Trata-se, portanto, de um exemplo típico de aplicação adequada e eficaz da teoria da carga dinâmica da prova, solucionando um problema concreto e frequente da realidade do processo do trabalho. Solução que não pode ser buscada, repise-se, pela teoria tradicional do ônus da prova, que enseja, como mencionado, um impasse no caso concreto.
Insta destacar, ademais, que a aplicação desta teoria não representaria uma inversão completa de valores, pois a regra tradicional de partilha do ônus da prova restaria aplicável à maioria dos casos, justificando-se a aplicação da teoria da carga dinâmica da prova somente nos casos em que a teoria tradicional se revele inadequada ou insuficiente para a justa solução da lide.
CONCLUSÃO
Conclui-se do supra exposto que a teoria tradicional da partilha do ônus da prova, apesar de justa e adequada na maioria dos casos, revela-se ineficaz em algumas situações concretas, como a de pedidos de adicional de insalubridade ou de periculosidade, nas quais se justifica, em sua inteireza, a aplicação de uma nova teoria: a da carga dinâmica da prova, por meio da qual se pode solucionar aquele problema e garantir ao jurisdicionado o que a Constituição Federal lhe assegura, uma justa composição da lide[5].
Informações Sobre o Autor
Xerxes Gusmão
Mestre e Doutor pela Université de Paris 1 – Panthéon-Sorbonne, Juiz Federal do Trabalho da 8ª Região