Resumo: o presente artigo tenta apresentar, de maneira sucinta, os principais aspectos e discussões que envolvem a sistemática dos recursos repetitivos no âmbito das instancias excepcionais, instituída pela Lei n. 11.672/2008, que acrescentou ao CPC o art. 543-C.
Palavras-chave: processo – civil – recurso – especial – sistemática – repetitivo – processamento.
Sumário: 1 – Considerações iniciais; 2 – Processamento, na origem, do recurso repetitivo até o pronunciamento definitivo do STJ sobre a questão federal selecionada como representativa; 3 – Processamento, na origem, do recurso repetitivo após o pronunciamento definitivo do STJ sobre a questão federal selecionada como representativa; 4 – Conclusões finais.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A Lei n° 11.672, que foi publicada no dia 8 de maio de 2008, e entrou em vigor 90 dias depois (art. 3º)[1], trouxe nova sistemática de processamento dos recursos excepcionais, instituindo mecanismos de julgamento uniforme de recursos “repetitivos” (rectius: fundados em idêntica questão de direito) no âmbito dos Tribunais Superiores.
No que tange ao recurso especial, essa sistemática foi implementada por meio do acréscimo do art. 543-C ao CPC, nos seguintes termos:
“Art. 543-C. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito, o recurso especial será processado nos termos deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.672, de 2008).
§ 1o Caberá ao presidente do tribunal de origem admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, ficando suspensos os demais recursos especiais até o pronunciamento definitivo do Superior Tribunal de Justiça.
§ 2o Não adotada a providência descrita no § 1o deste artigo, o relator no Superior Tribunal de Justiça, ao identificar que sobre a controvérsia já existe jurisprudência dominante ou que a matéria já está afeta ao colegiado, poderá determinar a suspensão, nos tribunais de segunda instância, dos recursos nos quais a controvérsia esteja estabelecida.
§ 3o O relator poderá solicitar informações, a serem prestadas no prazo de quinze dias, aos tribunais federais ou estaduais a respeito da controvérsia.
§ 4o O relator, conforme dispuser o regimento interno do Superior Tribunal de Justiça e considerando a relevância da matéria, poderá admitir manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com interesse na controvérsia.
§ 5o Recebidas as informações e, se for o caso, após cumprido o disposto no § 4o deste artigo, terá vista o Ministério Público pelo prazo de quinze dias.
§ 6o Transcorrido o prazo para o Ministério Público e remetida cópia do relatório aos demais Ministros, o processo será incluído em pauta na seção ou na Corte Especial, devendo ser julgado com preferência sobre os demais feitos, ressalvados os que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus.
§ 7o Publicado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, os recursos especiais sobrestados na origem:
I – terão seguimento denegado na hipótese de o acórdão recorrido coincidir com a orientação do Superior Tribunal de Justiça; ou
II – serão novamente examinados pelo tribunal de origem na hipótese de o acórdão recorrido divergir da orientação do Superior Tribunal de Justiça.
§ 8o Na hipótese prevista no inciso II do § 7o deste artigo, mantida a decisão divergente pelo tribunal de origem, far-se-á o exame de admissibilidade do recurso especial.
§ 9o O Superior Tribunal de Justiça e os tribunais de segunda instância regulamentarão, no âmbito de suas competências, os procedimentos relativos ao processamento e julgamento do recurso especial nos casos previstos neste artigo.[2]
Trata-se, como se vê, de mais uma modificação voltada ao escopo de melhor satisfazer o princípio constitucional da celeridade e da razoável duração do processo (art. 5°, LXXVIII, da CF)[3], uma vez que ajuda a diminuir o acúmulo de processos nos Tribunais Superiores, sem contar que ao oportunizar o julgamento em massa de recursos calcados numa mesma controvérsia (de direito), dá-se maior atenção ao princípio da isonomia e da segurança jurídica.
Além disso, tal sistemática contribui sobremaneira para a intensificação das recentes reformas processuais que vêm ocorrendo desde a Emenda Constitucional n° 45, em que se percebe uma nítida preocupação de garantir a uniformidade no trato do direito positivo e o prestígio dos precedentes jurisprudenciais. Isso porque o sobrestamento dos recursos dito “repetitivos” acaba constituindo, por reflexo, um “filtro” das controvérsias submetidas às instâncias excepcionais, evitando que sejam elas reiteradamente instadas a se pronunciar sobre uma questão jurídica já devidamente debatida e pacificada.
Assim como a instituição das “súmulas vinculantes” (art. 103-A da CF)[4] e a exigência da “repercussão geral” das questões constitucionais suscitadas em recurso extraordinário (art. 543-A do CPC)[5], a sistemática de sobrestamento dos recursos repetitivos constitui uma nítida preocupação com o resguardo da função essencial dos Tribunais Superiores: assegurar a correta e uniforme aplicação da legislação posta sob sua vigilância. Afinal, se o papel nuclear desses Tribunais é o de “uniformizar”, já era óbvio e imperativo que o sistema processual devesse buscar meios para que as questões já “uniformizadas” deixem cada vez mais de aportar às Cortes superiores.
2. PROCESSAMENTO, NA ORIGEM, DO RECURSO REPETITIVO ATÉ O PRONUNCIAMENTO DEFINITIVO DO STJ SOBRE A QUESTÃO FEDERAL SELECIONADA COMO REPRESENTATIVA
2.2 SELEÇÃO DOS RECURSOS REPRESENTATIVOS DA CONTROVÉRSIA
Nos termos da lei, quando o Presidente ou Vice-Presidente do Tribunal de origem detectar a existência de vários recursos que versam sobre uma mesma questão de direito, cumprir-lhe-á selecionar um ou alguns recursos representativos – também chamados de recursos “piloto”, “guia”, “paradigmal”, “padrão”, dentre outras denominações – e encaminhá-los ao STJ, antes mesmo de exercer o seu juízo de admissibilidade.
A seleção deverá ser criteriosa, dando-se preferência àqueles recursos que contenham maior diversidade e clareza de argumentos, para que se viabilize a análise mais detalhada possível por parte do Tribunal ad quem (art. 1°, §1°, da Resolução n° 8/2008 do STJ)[6].
Uma vez selecionado, o recurso “piloto” deixa de ser visto apenas sob o ângulo do suposto direito de determinada parte (a recorrente), e passa a representar um instrumento processual de uniformização de uma questão de direito cuja pacificação interessa direta ou indiretamente a todo um plexo de pessoas, agora coletivamente consideradas. Esse foi o motivo por que no final do ano de 2008, mais especificamente no dia 17 de dezembro, a Corte Especial do STJ, em questão de ordem suscitada pela Ministra Nancy Andrighi nos autos do Recurso Especial n° 1.063.343/RS, concluiu, por maioria, que não pode o recorrente desistir de seu especial caso tenha ele sido selecionado como representativo de determinada controvérsia. O fundamento vencedor foi o de que, quando o recurso é submetido ao regime da lei dos recursos repetitivos, o interesse público passa a ditar a necessidade de uma pronta análise da causa representativa, por se ela decisiva para inúmeras outras que estão paralisadas no aguardo de seu desfecho.[7]
2.2 SOBRESTAMENTO DOS DEMAIS RECURSOS QUE VERSAREM SOBRE IDÊNTICA CONTROVÉRSIA
Por outro lado, os que não forem selecionados como “representativos” serão sobrestados após a devida certificação nos autos (art. 1°, §3°, da Resolução n° 8/2008)[8], e aguardarão em cartório o pronunciamento definitivo do STJ sobre a questão federal a ele submetida.
Nada impede, também, que o STJ determine por sponte propria o sobrestamento na origem dos recursos cuja controvérsia já esteja pendente de análise pelo colegiado. Nesse caso, caberá ao Presidente ou Vice-Presidente do Tribunal de origem apenas cumprir a ordem de sobrestamento quanto a todos os recursos relacionados àquela controvérsia.
Vale destacar que num ou noutro caso o STJ tem admitido o sobrestamento não só dos processos que estiverem em fase de recurso especial, como também os que estiverem em fase apelação, também enquanto não dirimida a idêntica controvérsia submetida à sistemática dos repetitivos. É o que se infere do seguinte julgado da lavra da Corte Especial daquele Sodalício:
“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ART. 105, III, A E C, DA CF/1988. SOBRESTAMENTO DO JULGAMENTO DA APELAÇÃO, POR FORÇA DE SUBMISSÃO DA QUAESTIO IURIS CONTROVERTIDA AO RITO PREVISTO NO ART. 543-C, DO CPC – RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. POSSIBILIDADE. INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICO-SISTÊMICA. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DOS PROCESSOS (ART. 5.º LXXVIII, DA CRFB/1988). 1. A submissão de matéria jurídica sob o rito prescrito no artigo 543-C, do Código de Processo Civil, inserido pela Lei n.º 11.672, de 8 de maio de 2008, justifica a suspensão do julgamento de recursos de apelação interpostos nos Tribunais. 2. A suspensão dos julgamentos das apelações que versam sobre a mesma questão jurídica submetida ao regime dos recursos repetitivos atende a exegese teleológico-sistêmica prevista, uma vez que decidida a irresignação paradigmática, a tese fixada retorna à Instância a quo para que os recursos sobrestados se adequem à tese firmada no STJ (art. 543-C, § 7.º, I e II, do CPC). 3. É que o novel instituto tem como ratio essendi evitar o confronto das decisões emanadas dos Tribunais da Federação com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, mercê de a um só tempo privilegiar os princípios da isonomia e da segurança jurídica. 4. A ponderação de valores, técnica hoje prevalecente no pós-positivismo, impõe a duração razoável dos processos ao mesmo tempo em que consagra, sob essa ótica, a promessa calcada no princípio da isonomia, por isso que para causas com idênticas questões jurídicas, as soluções judiciais devem ser iguais. 5. Ubi eadem ratio ibi eadem dispositio, na uniformização de jurisprudência, a cisão funcional impõe que a tese fixada no incidente seja de adoção obrigatória no julgado cindido, por isso que a tese repetitiva adotada pelo Tribunal competente para conferir a última exegese à legislação infraconstitucional também é, com maior razão, de adoção obrigatória pelos Tribunais locais. 6. A doutrina do tema assenta que: Outro é, pois, o fenômeno que se tem em vista quando se alude à conveniência de adotar medidas tendentes à uniformização dos pronunciamentos judiciais. Liga-se ele ao fato da existência, no aparelho estatal, de uma pluralidade de órgãos judicantes que podem ter (e com freqüência têm) de enfrentar iguais questões de direito e, portanto, de enunciar teses jurídicas em idêntica matéria. Nasce daí a possibilidade de que, num mesmo instante histórico – sem variação das condições culturais, políticas, sociais, econômicas, que possa justificar a discrepância -, a mesma regra de direito seja diferentemente entendida, e a espécies semelhantes se apliquem teses jurídicas divergentes ou até opostas. Assim se compromete a unidade do direito – que não seria posta em xeque, muito ao contrário, pela evolução homogênea da jurisprudência dos vários tribunais – e não raro se semeiam, entre os membros da comunidade, o descrédito e o cepticismo quanto à efetividade da garantia jurisdicional. (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil, Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, vol. V: Arts. 476 a 565. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, págs. 4 e 5) 7. Deveras, a estratégia político-jurisdicional do precedente, mercê de timbrar a interpenetração dos sistemas do civil law e do common law, consubstancia técnica de aprimoramento da aplicação isonômica do Direito, por isso que para “casos iguais”, “soluções iguais”. 8. Recurso especial conhecido e desprovido.” (REsp 1111743/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro LUIZ FUX, CORTE ESPECIAL, julgado em 25/02/2010, DJe 21/06/2010)
Questão interessante consiste em saber se deve ser sobrestado o recurso especial que, além de versar sobre a controvérsia submetida à sistemática da representatividade, versa também sobre outras questões de direito. Quando isso ocorrer, a prudência recomenda que esse recurso não deva ficar sobrestado na origem, na medida em que o julgamento isolado da questão jurídica selecionada pode não ser suficiente para definir a sorte do recurso, e, por isso, eventual medida de suspensão só teria o condão de retardar o deslinde do feito. Ademais, pode haver multiplicidade de pretensões que não guardem entre si relação direta: é o que acontece, por exemplo, quando são ventiladas questões federais lastreadas em suposto error in judicando juntamente com questões relacionadas a suposto error in procedendo; nesses casos, mesmo que o Superior Tribunal não acolha, por exemplo, a pretensão de anulação da decisão recorrida, pode acolher outra questão que conduza à sua reforma. Advirta-se, no entanto, que essa posição toma por premissa a existência de diversas questões autônomas, pois se as demais questões que não a selecionada forem a ela subordinadas, não há dúvidas de que o sobrestamento se impõe (art. 1°, §2°, da Resolução n° 8/2008)[9].
Outro questionamento também bastante interessante diz respeito ao sobrestamento ou não de recurso manifestamente inadmissível. É dizer: se um recurso especial que verse sobre a questão de direito selecionada for deserto ou intempestivo, por exemplo, deve ele mesmo assim se sujeitar ao procedimento da repetitividade?
Sinceramente, essa é uma questão que ainda não recebeu uma resposta segura, ao menos por parte dos Tribunais superiores.
E, não bastasse, a questão é deveras polêmica.
De um lado, posicionando-se pelo processamento do recurso independentemente de se encontrarem ou não preenchidas as exigências para a sua admissão, poderíamos criar uma flagrante contradição jurídica, quando não uma violação mesma ao princípio da igualdade no que respeita aos critérios exigidos ao aproveitamento do recurso: a análise do mérito (com o reexame da decisão recorrida) dos recursos que não se sujeitarem à sistemática de sobrestamento continuaria condicionada ao preenchimento de rígidos pressupostos de admissibilidade, ao passo que o mérito dos recursos sujeitos à sistemática de sobrestamento poderia ser reexaminado pelo juízo recorrido mesmo na hipótese de sua flagrante inadmissibilidade.
De outro lado, posicionando-se pelo não processamento do recurso com a sua inadmissão de plano pela instância recorrida, acabaríamos indo de encontro à disposição expressa do §8° do art. 543-C do CPC, que é clara no sentido de que a admissibilidade do recurso extremo só será exercida depois do pronunciamento definitivo da questão selecionada, somente se o tribunal de origem entender pela manutenção da decisão recorrida, mantendo a divergência com a orientação do Superior Tribunal.
Em que pesem as situações problemáticas que invariavelmente adviriam da adoção de uma ou outra posição, temos a impressão de que a segunda posição tende a prevalecer, em virtude principalmente da crescente preocupação com a necessidade de se perquirir uma tutela jurisdicional efetiva e sobretudo justa. Afinal, será que se deve tolerar uma injustiça da decisão em nome de requisitos formais? Será que se pode aceitar que a forma se sobreponha ao fundo? Será que se deve obrigar a parte recorrente a ajuizar uma ação rescisória (se é que ela será cabível) para ver afirmado um direito seu já abstratamente reconhecido pelo Judiciário? Parece-nos que o instituto não pode ser interpretado e manipulado apenas sob o prisma processual, enfocando unicamente os benefícios trazidos ao STJ; como toda mudança legislativa, deve ela ser vista em seu aspecto global, atingindo também – e de forma direta – os anseios da sociedade. Com isso, acreditamos que a finalidade do instituto também tem a ver com a necessidade de maximizar a autoridade e o alcance das decisões dos Tribunais Superiores, e de potencializar a concreção do princípio da isonomia, permitindo que um maior número de relações jurídicas recebam o mesmo tratamento jurídico, sem que fiquem ao alvedrio de questões processuais que, levadas às últimas conseqüências, acabam representando nefastos “formalismos”. [1] A Professora Tereza Arruda Alvim Wambier parece chegar à mesma conclusão, porém por outros fundamentos, senão vejamos:
“esta orientação [a de que a tramitação do recurso especial fica integralmente sobrestada no Tribunal a quo] poderia, sob certo ponto de vista, conduzir a um resultado indesejado: o de que a solução adotada pelo STJ em recursos especiais selecionados venha a beneficiar a parte que interpôs recurso inadmissível, mas cuja inadmissibilidade ainda não tenha sido constatada, no juízo a quo(…). Parece, no entanto, que esta opinião condiz com a finalidade do instituto, na medida em que permite que uma mesma solução fixada pelo STJ, que diga respeito a situações repetidas em vários casos, seja aplicada à maior quantidade possível de esferas jurídicas, o que é mais consentâneo com o princípio da isonomia. Se assim não fosse, haveria o risco de serem ajuizadas tantas ações rescisórias quantos fossem os casos de recursos especiais não admitidos.” (WAMBIER, Tereza Arruda Alvim. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e Ação Rescisória, p. 310)
No entanto, em 22/10/2008, a Segunda Seção do STJ, ao julgar o recurso especial n° 1.061.530/RS, posicionou-se com muita propriedade em sentido oposto ao concluir que o procedimento para o julgamento de recursos especiais repetitivos não afasta a exigência de se aferir no caso concreto a existência de seus pressupostos de admissibilidade, até porque muitos deles encontram-se previstos na própria Constituição da República. Entendeu-se, na oportunidade que “é inaplicável o regime disposto no art. 543-C do CPC, estabelecido pela Lei 11.672/2008, aos recursos que não preencherem os requisitos de admissibilidade do recurso especial, sob pena de violar a Constituição Federal e transformar o STJ em terceira instância revisora”[10]. Essa posição foi recentemente reiterada pela Segunda Turma do mesmo Tribunal:
“PROCESSUAL CIVIL – MANDADO DE SEGURANÇA – RECURSO ESPECIAL – PROFESSORA ESTADUAL – READAPTAÇÃO – PRÊMIO EDUCAR (LEI 14.406/08) – EXAME DE LEI LOCAL: SÚMULA 280/STF – IMPOSSIBILIDADE – DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO CONFIGURADA – INAPLICABILIDADE DO RITO PREVISTO NO ART. 543-C DO CPC – RECURSO QUE NÃO PREENCHEU OS REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE. 1. Em recurso especial, não pode o STJ examinar a pretensão da parte recorrente, se o Tribunal de origem decidiu a lide com base em normas de lei local. Incidência da Súmula 280/STF. 2. A ausência de demonstração do dissídio jurisprudencial, na forma exigida pelos arts. 255 do RISTJ e 541, parágrafo único, do CPC, impede o conhecimento do recurso especial pela alínea “c” do permissivo constitucional. 3. É inaplicável o regime disposto no art. 543-C do CPC, estabelecido pela Lei 11.672/2008, aos recursos que não preenchem os requisitos de admissibilidade do especial, sob pena de violar a Constituição Federal e transformar o STJ em terceira instância revisora. 4. Recurso especial não conhecido.” (REsp 1189922/SC, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/06/2010, DJe 01/07/2010)
Por fim, urge indagar o seguinte: enquanto o STJ não se pronunciar sobre a questão federal selecionada, a quem compete apreciar os incidentes e as medidas urgentes referidas ao especial que fica sobrestado na origem? Ao Tribunal a quo ou ao próprio STJ?
Esta é uma questão visivelmente intrincada. Porém, entendemos que ela pode ser resolvida com base na mesma premissa referente à abertura da instância excepcional[11]. É que se a competência do Tribunal de origem só se exaure com a emissão do juízo precário de admissibilidade do recurso especial, e se esse juízo fica suspenso até o pronunciamento do Superior Tribunal sobre a questão selecionada, é de se supor que a instância a quo deve permanecer incumbida de apreciar todos os feitos e incidentes relacionados ao recurso, inclusive aqueles em que se pleiteia o imediato processamento do feito[12]. Fosse o contrário e se iria na contramão da razão de ser da mudança, que é a de justamente desafogar as pautas dos Tribunais Superiores, permitindo que eles se concentrem nas causas efetivamente pendentes de uniformização.
O mesmo, contudo, não deve acontecer com os recursos representativos da controvérsia, pois, embora ainda não tenha sido exercido o seu juízo de admissibilidade, eles já se encontram sob o crivo do Superior Tribunal, e seria contraditório que a instância recorrida emitisse uma ordem a uma instância superior, determinando a sustação dos efeitos de uma decisão cujo controle definitivo sequer lhe compete.
3. PROCESSAMENTO, NA ORIGEM, DO RECURSO REPETITIVO APÓS O PRONUNCIAMENTO DO STJ SOBRE A QUESTÃO FEDERAL SELECIONADA COMO REPRESENTATIVA
Publicado o acórdão do STJ acerca da controvérsia representativa, a coordenadoria do órgão julgador expede ofício ao Tribunal de origem, comunicando o resultado do julgamento, instruindo-o inclusive com cópia do acórdão (art. 6° da Resolução n° 8/2008)[13]. Ao tomar ciência da aludida comunicação, caberá ao Presidente ou Vice-Presidente do Tribunal de origem adotar uma das seguintes providências com relação aos recursos que ficaram sobrestados:
Se o STJ tiver chegado, no julgamento dos recursos representativos, à mesma conclusão encampada no acórdão recorrido, deverá o Presidente ou Vice-Presidente do Tribunal de origem denegar seguimento aos recursos especiais sobrestados. Uma pergunta que logo aparece é a de que se cabe algum recurso contra essa decisão. Apesar do silêncio da lei, é de se supor que sim, pois, sendo o STJ a instância à qual o recurso verdadeiramente se dirige, deve ele exercer o controle último sobre o processamento do recurso especial. Assim, por analogia ao art. 544 do CPC, tal decisão desafia, em princípio, o recurso de agravo de instrumento, não cabendo qualquer recurso no âmbito do próprio Tribunal local, pelos mesmos motivos anteriormente alinhavados.
Se o STJ tiver chegado à conclusão diferente da encampada no acórdão recorrido, deverá o Presidente ou Vice-Presidente do Tribunal de origem encaminhar os autos ao órgão fracionário que prolatou o acórdão recorrido para que os feitos sobrestados sejam reapreciados[14]. Daí que caso o órgão julgador reconsidere a sua decisão, adequando-a à orientação firmada pelo STJ, fica prejudicado o recurso especial sobrestado, abrindo-se, é claro, novo prazo recursal à parte sucumbente, que pode perfeitamente querer devolver a demanda às instâncias excepcionais. Diferentemente, caso o órgão julgador não reconsidere a sua decisão, mantendo a divergência com a orientação firmada pelo STJ, os autos deverão ser novamente encaminhados ao Presidente ou Vice-Presidente do Tribunal de origem, que aí sim exercerá o juízo de admissibilidade do recurso especial sobrestado, para que se oportunize a análise de sua pretensão diretamente pelo juízo ad quem.
Ressalte-se que, quanto a esta última hipótese, há quem entenda em sentido contrário, defendendo que “se o acórdão recorrido divergir da orientação do Superior Tribunal de Justiça, poderá o Tribunal de origem, pelo órgão encarregado da admissibilidade do recurso especial, reconsiderar a decisão exarada, conformando-se à orientação do Superior Tribunal de Justiça”[15].
Data venia, discordamos de semelhante entendimento por vários entendimentos.
Primeiro motivo: entendimento incompatível com a natureza das atribuições inerentes à Vice-Presidência. Ao exercer o juízo precário (provisório) da admissibilidade de determinado recurso excepcional, o Desembargador Vice-Presidente atua na condição de mero “delegado” do Tribunal ad quem[16], tratando apenas de viabilizar o regular processamento do recurso (bem como de seus eventuais incidentes), não sendo investido de qualquer poder de ingerência ou mesmo de influência sobre o mérito decisão recorrida, sendo-lhe, pelo contrário, terminantemente vedado exercer qualquer espécie de juízo decisório até com relação ao mérito do excepcional – e ipso facto da demanda -, a não ser em hipóteses excepcionalíssimas de devida e motivada viabilidade de invocação da Súmula n° 83 do STJ[17], e ainda assim no âmbito exclusivo do juízo de admissibilidade, tão-somente com o intuito de obstar a subida daqueles recursos que não reúnem a menor possibilidade de êxito.
Segundo motivo: entendimento temerário sob a ótica do princípio do juiz natural. A interpretação defendida pelo culto Relator parece afrontar o princípio/garantia constitucional do juiz natural, porquanto, ainda que reflexamente, acaba atribuindo à norma do art. 543-C do CPC a roupagem de “regra de competência”, de modo a emprestar à sistemática da repetitividade um mecanismo processual de modificação superveniente de competência recursal no âmbito da segunda instância, e, de modo ao menos questionável, incumbindo a um órgão ISOLADO (Vice-Presidente) a função de exercer o CONTROLE sobre uma decisão emanada de um órgão COLEGIADO, e, o que me causa ainda mais espécie, sem sequer que exista entre eles alguma relação de hierarquia, quer do ponto de vista jurisdicional, quer do ponto de vista funcional.
Com todo o respeito, esse não parece ser o espírito e o propósito das alterações perpetradas pela Lei n° 11.672/2008, as quais, ao que tudo indica, se impuseram apenas no intuito de agilizar o julgamento dos recursos excepcionais, e, consequentemente, de desafogar as pautas dos Tribunais Superiores, sem qualquer pretensão de interferir na sistemática de competência recursal dos Tribunais de origem.
A propósito, prevendo eventuais indagações nesse sentido, já me adianto que a preconizada interpretação não comporta, a pretexto de argumentação sistêmica, qualquer comparação ou mesmo simples paralelo com a sistemática prevista no art. 557 do CPC, eis que não subsiste qualquer similitude entre ambas: enquanto a possibilidade de “reexame” de um recurso pelo Desembargador Vice-Presidente enseja, por tudo e em tudo, uma modificação de competência, porquanto transfere a um órgão (Vice-Presidente) a competência para o (re)julgamento de determinado recurso originariamente atribuída a outro órgão do mesmo Tribunal (Câmara), a sistemática prevista no art. 557 do CPC se opera sempre dentro de uma mesma estrutura orgânica (afinal, o Relator nada mais é do que um dos componentes de seu respectivo colegiado), e, embora faculte ao Relator julgar monocraticamente um recurso, deixa in totum resguardado, pela via do agravo interno, o controle definitivo pelo órgão colegiado originariamente competente.
Terceiro motivo: entendimento discrepante com o que se depreende de uma interpretação sistemática do art. 543-C do CPC. Confesso que toda a controvérsia aqui suscitada tem a sua razão de ser, não ocorrendo por mero acaso. Ela se dá não só em razão da ausência da norma regulamentadora a que se refere o §9° do art. 543-C do CPC, mas também – e principalmente – em decorrência de certa nebulosidade na redação do §7° do art. 543-C, cuja literalidade deixa espaço a ambas interpretações, sobretudo ao atribuir genericamente ao “tribunal de origem” o reexame da decisão recorrida na hipótese de divergência com a orientação firmada pelo STJ em sede do recurso representativo, atribuição essa que, pelo fato de a lei não tecer maiores especificações, poderia perfeitamente recair sobre qualquer órgão jurisdicional pertencente àquele “tribunal de origem”.
No entanto, esse “espaço hermenêutico” sucumbe a uma análise sistemática da norma, ou mesmo a uma simples análise combinada de seus §§7° e 8°. Explico:
Dispõe o §7° do art. 543-C que, uma vez publicada a decisão do Superior Tribunal de Justiça, os recursos especiais que estiverem sobrestados na origem serão novamente examinados pelo tribunal na hipótese de o acórdão recorrido divergir da orientação superior. O §8°, por sua vez, dispõe que, caso seja mantida a decisão pelo tribunal de origem, far-se-á o exame de admissibilidade do recurso especial.
Ora, se a lei, em parágrafos distintos, prevê o exercício de dois juízos decisórios distintos pelo “tribunal de origem, impõe-se convir que seria um manifesto contra-senso outorgar ao Vice-Presidente a competência para, a um só tempo, manter a decisão recorrida e em seguida exercer o juízo de admissibilidade do recurso interposto contra essa mesma decisão. Ao que me parece, as atribuições aqui confrontadas são inclusive incompatíveis: ou se atribui a determinado órgão a competência para examinar uma decisão, ou se lhe atribui a competência para processar os recursos contra ela eventualmente interpostos. Essa é a essência mesma da dinâmica e da teoria da admissibilidade dos recursos, e repousa na necessidade de se resguardar a imparcialidade e o controle efetivo dos atos jurisdicionais típicos. Não é por acaso que, ao assumir a função de Vice-Presidente de um Tribunal, o Desembargador imediatamente se desliga da Câmara de que antes fazia parte, passando a compor um órgão próprio e autônomo, por sua vez dotado de atribuições específicas.
Por conta de todos esses fatores, me parece que a sistemática da repetitividade manteve incólume a estrutura competencial dos recursos no âmbito da segunda instância, nos mesmos moldes de outrora: o mérito da demanda (e/ou recurso), em segunda instância, continua sob o controle dos órgãos colegiados preventos, e a admissibilidade precária dos excepcionais contras as decisões desses colegiados continua sob um controle inicial da Vice-Presidência. O que ocorreu foi apenas uma protraição de cada qual no tempo, tudo a depender da sorte do recurso eleito como representativo da controvérsia.
Caso o legislador realmente quisesse atribuir alguma competência a mais ao órgão incumbido da admissibilidade do recurso especial sobrestado na origem, assim o teria feito discriminadamente, tal como o fez no §1° do dispositivo em epígrafe, enunciativa da regra de que “caberá ao presidente do tribunal de origem admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, ficando suspensos os demais recursos especiais até o pronunciamento definitivo do Superior Tribunal de Justiça”.
Quarto e último motivo. Contra disposição expressa da Resolução n° 7, de 14 de julho de 2008, do STJ. Como arremate, trago à baila as principais disposições da Resolução n° 7, de 14 de julho de 2008, que também “estabelece os procedimentos relativos ao processamento e julgamento de recursos especiais repetitivos”, e cujo teor parece espancar quaisquer dúvidas ainda eventualmente existentes sobre praticamente tudo o que se disse. Vejamos:
“Art. 7º Publicado o acórdão do recurso especial afetado, os Ministros que tenham determinado a suspensão de recursos fundados em idêntica controvérsia poderão:
I – julgá-los nos termos do artigo 557 do Código de Processo Civil;
II – caso tenham adotado o procedimento a que se refere o § 2º do artigo 5º desta Resolução, autorizar por ofício a substituição da decisão por certidão de julgamento, a ser expedida pela coordenadoria do órgão julgador.
§ 1º Adotado o procedimento descrito no inciso II deste artigo, o prazo para interposição de recurso, nos processos suspensos, terá início 3 (três) dias após a publicação do acórdão referente ao recurso especial afetado.
§ 2º Os agravos de instrumento, distribuídos ou não, poderão ser julgados na forma estabelecida neste artigo.
(…)
Art. 9º Após o julgamento definitivo do recurso especial afetado, quaisquer outros recursos remetidos a este Tribunal serão julgados pela Presidência, nos termos da Resolução n. 3, de 17 de abril de 2008.
Art. 10 A suspensão a que se refere o artigo 1º, caput, desta Resolução, cessará automaticamente assim que publicado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça proferido no recurso especial afetado, aplicando-se aos recursos especiais suspensos as seguintes regras:
I – coincidindo os acórdãos recorridos com o julgamento do STJ, não serão admitidos;
II – divergindo os acórdãos recorridos do julgamento do STJ, serão novamente submetidos ao órgão julgador competente no tribunal de origem, competindo-lhe reconsiderar a decisão para ajustá-la à orientação firmada no acórdão paradigma, sendo incabível a interposição de outro recurso especial contra o novo julgamento.
III – havendo outras questões a serem decididas, além daquelas julgadas no acórdão paradigma, serão submetidos a juízo de admissibilidade.
(…)
Art. 12 Os processos suspensos em primeiro grau de jurisdição serão decididos de acordo com a orientação firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, incidindo, quando cabível, o disposto nos artigos 285-A e 518, § 1º, do Código de Processo Civil.
Art. 13 Será considerada juridicamente inexistente manifestação prévia do relator, no tribunal de segundo grau de jurisdição, a respeito da manutenção do acórdão recorrido desafiado por recurso especial sujeito ao procedimento estabelecido na Lei n.11.672/2008 e nesta Resolução.”
4. CONCLUSÕES FINAIS
Em suma:
a) Por força da nova sistemática instituída no art. 543-C do CPC, quando o Presidente ou Vice-Presidente do Tribunal de origem detectar a existência de vários recursos que versam sobre uma mesma questão de direito, lhe caberá selecionar um ou alguns recursos e encaminhá-los ao STJ, antes mesmo de exercer o seu juízo de admissibilidade.
b) Os que não forem selecionados como “representativos”, serão sobrestados, aguardando em cartório o pronunciamento definitivo do STJ sobre a questão federal a ele submetida.
c) Nada impede, também, que o STJ determine por sponte propria o sobrestamento na origem dos recursos cuja controvérsia já esteja pendente de análise pelo colegiado. Nesse caso, caberá ao Presidente ou Vice-Presidente do Tribunal de origem apenas cumprir a ordem quanto a todos os recursos relacionados àquela controvérsia.
d) Enquanto o STJ não se pronunciar sobre a questão federal selecionada, compete ao Tribunal de origem apreciar os incidentes e as medidas urgentes referidas ao especial que fica sobrestado na origem. O mesmo, contudo, não deve acontecer com os recursos representativos da controvérsia, pois, mesmo que ainda não tenha sido exercido o seu juízo de admissibilidade, eles já se encontram sob o crivo do Superior Tribunal, e seria contraditório que a instância recorrida emitisse uma ordem a uma instância superior, determinando a sustação dos efeitos de uma decisão cujo controle definitivo sequer lhe compete.
e) Publicado o acórdão do STJ acerca da controvérsia representativa, a coordenadoria do órgão julgador expede ofício ao Tribunal de origem, comunicando o resultado do julgamento, instruindo-o inclusive com cópia do acórdão.
f) Se o STJ tiver chegado, no julgamento dos recursos representativos, à mesma conclusão encampada no acórdão recorrido, deverá o Presidente ou Vice-Presidente do Tribunal de origem denegar seguimento aos recursos especiais sobrestados.
g) Se o STJ tiver chegado à conclusão diferente da encampada no acórdão recorrido, deverá o Presidente ou Vice-Presidente do Tribunal de origem encaminhar os autos ao órgão fracionário que prolatou o acórdão recorrido para que os feitos sobrestados sejam reapreciados. Caso o órgão julgador reconsidere a sua decisão, adequando-a à orientação firmada pelo STJ, fica prejudicado o recurso especial sobrestado, abrindo-se, é claro, novo prazo recursal à parte sucumbente, que pode perfeitamente querer devolver a demanda às instâncias excepcionais. Caso o órgão julgador não reconsidere a sua decisão, mantendo a divergência com a orientação firmada pelo STJ, os autos deverão ser novamente encaminhados ao Presidente ou Vice-Presidente do Tribunal de origem, que aí sim exercerá o juízo de admissibilidade do recurso especial sobrestado, para que se oportunize a análise de sua pretensão diretamente pelo juízo ad quem.
Informações Sobre o Autor
Victor Cretella Passos Silva
Advogado, Chefe de Gabinete da Vice-Presidência do TJ/ES biênio 2008-2009, Pós-graduando em Direito Constitucional pela PUC/SP, Bacharel em Direito pela UFES