A tragédia grega e a orígem mítica das instituições policiais e judiciais democráticas de direito

1- INTRODUÇÃO


O mundo do Direito mantém um contato dos mais próximos possíveis em uma área científica com o mundo da vida. Ele se integra nos atos, abstenções, contatos e relações mais variados do cotidiano de todas as pessoas, muitas vezes de forma imperceptível, mas sempre marcando sua presença.


Dessa forma não poderiam suas instituições mais caras deixarem de ser objeto das manifestações explicativas e narrativas mais tradicionais na história da humanidade. As manifestações da razão humana não se constituem de forma unívoca. Por mais que o cientificismo tão em moda pretenda reduzir o pensamento válido àquele informado pelo método científico, é inegável que esse reducionismo mutila a própria riqueza da racionalidade do homem e prejudica até mesmo a atividade científica, especialmente na seara de sua criatividade, da formulação de seus “insights”  e da elegância de suas teorias e doutrinas.


Como bem observa Armstrong, “a ciência depende de fé, intuição e visão estética, bem como da razão. O físico Paul Dirac (1902 – 1984) disse que ‘é mais importante ter beleza nas equações que adequá-las ao experimento’. O matemático Roger Penrose acredita que a mente criativa ‘irrompe’ num mundo platônico de formas matemáticas e estéticas: ‘A argumentação rigorosa geralmente é o último passo! Antes é preciso ter muitos palpites, e para esses as convicções estéticas são de enorme importância’. Em muitas circunstâncias temos  de deixar de lado a análise objetivista, que busca de algum modo dominar o que contempla”. [1]


Para que se possa levar a cabo a ousada tarefa de compreender o enlace íntimo entre o  mundo do Direito e o mundo da vida é necessário mais do que ler alguns manuais técnicos,  inteirar-se de diplomas legais e de tendências jurisprudenciais. Para ir ao fundo dessa relação e buscar a compreensão para além da epiderme das questões o estudioso deve sensibilizar-se com o conhecimento de outros instrumentos capazes de refletir a condição humana e sua influência na conformação da sociedade.


Ensina Gofredo Telles Júnior que “o Direito é a arte da convivência humana” [2], o que evidencia a dificuldade de se obter um conhecimento profundo do Direito. Isso justamente porque, conforme já acima consignado, o conhecimento do Direito não é redutível à legislação, ao dogmatismo, à jurisprudência, ainda que sejam estes combinados com outras ciências auxiliares como a sociologia, a medicina, a psicologia entre outras. O diferenciador de um jurista é o seu conteúdo, sua bagagem experimental relativa ao convívio humano, aos sentimentos, às ações e reações das pessoas diante das mais variadas realidades.


Mas um enorme óbice se impõe à obtenção dessa espécie de experiências. Ele consiste no fato de que praticamente todas as pessoas não têm a chance de experimentarem os extremos da vida. O mais comum é  que uma mediania insossa impere na vida das pessoas em geral. São raros os que têm a oportunidade  de vivenciar o heroísmo ou a extremada covardia; a riqueza e a carência mais abjeta; um amor avassalador ou um ódio dominante…


Ainda que alguém tenha vivenciado algum desses extremos, geralmente desconhece o seu oposto ao menos por experiência própria. Então perscrutar o mistério da convivência humana, com a necessária passagem pela compreensão da alteridade (do “do outro”), torna-se um exercício muitíssimo árduo que não pode ser orientado pelos manuais jurídicos, pelas legislações ou pela jurisprudência.  


O caminho para superar esse limite da condição humana é apontado pelo já mencionado Gofredo Telles Júnior [3] como sendo o da leitura dos grandes livros, das grandes obras da literatura mundial, onde são encontráveis descrições memoráveis elaboradas por indivíduos com uma sensibilidade fora do comum e que são capazes de retratar variados sentimentos e estados humanos com uma fidelidade inacreditável. A literatura mundial, juntamente com os mitos em sua riqueza intuitiva, possibilitam às pessoas um vivenciar praticamente autêntico de situações às quais jamais teriam acesso no decorrer de uma vida normalmente pobre em experiências reais.


Neste trabalho pretende-se retratar em linhas gerais um aspecto em que a literatura grega, mais especificamente a tragédia grega em Ésquilo, brinda a humanidade com uma narrativa mitológica que descreve a transição da chamada vingança privada e sem limites para a criação de instituições jurídicas a solucionarem a questão da punição dos homens por atos criminosos. Nesse passo intenta-se demonstrar o origem mitológica da transição para uma organização policial e judicial democrática de direito, indicando, portanto, um caminho que não se reduz à dogmática jurídica ou mesmo à abordagem histórica.


2-O PAPEL DO MITO NA RACIONALIDADE HUMANA


O desejo de explicar e de compreender a si mesmo e ao seu entorno é inerente à natureza humana e uma das vias para essa empreitada tem sido ao longo da história a concepção de mitos.


A palavra deriva de “mythos” que tem o sentido de narrativa ou lenda. Ë comumente conceituado como uma “narrativa lendária, pertencente à tradição cultural de um povo, que explica através do apelo ao sobrenatural, ao divino e ao misterioso, a origem do universo, o funcionamento da natureza e a origem e os valores básicos de um povo” (grifo nosso). [4]


O caráter lendário e sua ligação com crenças supersticiosas tem rendido certo descrédito ao mito enquanto opção racional de explicação, motivo pelo qual muitas vezes nomear algo por “mito” equivale a afirmar sua inverdade (v.g. o mito da superioridade da raça ariana; o mito da neutralidade científica etc.). [5]


No entanto, é preciso recuperar a verdadeira função do mitológico para a razão humana. O mito pode ser uma via  de “discurso alegórico” apto a transmitir com propriedade e beleza “uma doutrina” ou um ensinamento por meio de “uma representação simbólica”. [6] Ele não descarta a racionalidade, mas a compõe como um de seus elementos esteticamente mais perfeitos, ele não se opõe à racionalidade, mas pode ser uma via de acesso mais rápida à compreensão das pessoas que a partir dele podem perfeitamente formular teorias ou hipóteses de natureza filosófica ou científica. Não fosse assim o que explicaria que os filósofos modernos e contemporâneos nada mais têm conseguido fazer com todo seu racionalismo exacerbado do que produzirem meras notas de rodapé às obras dos baluartes da filosofia grega como Platão e Aristóteles?


Na lição de Abbagnano, de acordo com certa concepção o mito pode ser considerado como “uma forma autônoma de pensamento e de vida” de modo que  suas validade e função  “não são secundárias e subordinadas em relação ao conhecimento racional, mas originárias e primárias, situando-se num plano diferente do intelecto, mas dotado de igual dignidade”. Assim sendo, “a verdade do mito não é uma verdade intelectual corrompida ou degenerada, mas uma verdade autêntica, embora com forma diferente da verdade intelectual, com forma fantástica ou poética”. [7]


Não se pode olvidar ainda a chamada moderna função sociológica atribuída ao mito enquanto  “justificação retrospectiva dos elementos fundamentais que constituem a cultura de um grupo”. Tem, portanto, a função precípua de “reforçar a tradição e dar-lhe maior valor e prestígio, vinculando-a à mais elevada, melhor e mais sobrenatural realidade dos acontecimentos iniciais”. Pode-se afirmar neste diapasão que o mito constitui uma forma de expressão do grupo social quanto à sua atitude perante o mundo, bem como em relação ao enfrentamento da questão de sua existência. [8]


É na esteira dessas concepções valorizadoras do mito como autêntica forma de pensamento humana e expressão de uma sociedade, retratando seus valores, origens e instituições, que se pretende fazer o liame no item seguinte entre a tragédia grega “Oresteia” de Ésquilo e a consolidação das instituições policiais e judiciais democráticas de Direito.


3-A NARRATIVA ALEGÓRICA DA ORESTEIA DE ÉSQUILO E A CONCEPÇÃO DE UMA JUSTIÇA CRIMINAL DEMOCRÁTICA DE DIREITO


Na Ilíada Homero descreve a guerra de Tróia enquanto em sua obra Oresteia Ésquilo trata, em uma trilogia, do retorno de Agamémnon, comandante vitorioso dos Gregos naquela empreitada, para casa após dez anos de ausência. Não obstante Agamémnon não terá uma recepção vitoriosa, mas encontrará a morte pelas mão de sua própria esposa, Clitemnestra, a qual planeja matá-lo devido ao fato dele haver sacrificado a própria filha de ambos, Ifigênia aos deuses a fim de obter ventos favoráveis que levassem a frota grega até Tróia. No seguimento o filho de Agamémnon e Clitemnestra, Orestes, instigado por sua irmã Electra, desfecha uma nova vingança cometendo o matricídio em represália pela conduta da mãe ao eliminar Agamémnon.  Devido a esse crime Orestes passa a ser perseguido pela Fúrias (criaturas terríveis metade aves de rapina e metade mulheres, às quais compete vingar os crimes de sangue tal qual o matricídio). Prestes a ser executado pelas Fúrias, ocorre a intervenção da deusa Atena que substitui “o primitivo e interminável ciclo de retribuição e vingança privada e contravingança por um sistema de justiça baseado na lei e nos tribunais públicos”.  Orestes acaba sendo perdoado e as Fúrias se transformam em Euménides, “espíritos que presidem à imposição da lei civilizada”. [9]


A mensagem enviada muito claramente pela narrativa mitológica de Ésquilo é a de que a brutalidade, o assassinato, as execuções sumárias e a própria guerra não devem ser os meios para solução dos conflitos individuais e grupais. É preciso pensar um sistema racional e equilibrado para tratar desses conflitos com justiça e imparcialidade. Ésquilo inicia com a referência à guerra de Tróia conhecida por seus sangrentos combates onde heróis valorosos perderam a vida. Ora, a referência é oportuna, já que a guerra pode certamente ser encarada como uma verdadeira negação do Direito. [10] Se no âmbito externo ou grupal a guerra é a negação do Direito e a opção pela força para a solução dos conflitos, no âmbito interno ou individual a vingança privada ou a contravingança pública e sumária representada pelas Fúrias é também uma negação do Direito.


Portanto, na dicção de O’Hear, “o final da Oresteia constitui, naturalmente, um refazer dos mitos antigos, apresentando  a fundação dessa instituição ateniense que são os tribunais – e portanto das deliberações racionais e humanizadas”. [11]


Sabe-se que a transição da vingança privada e das execuções sumárias para um novo sistema de Justiça Pública com apropriação dos conflitos e monopólio da jurisdição e do direito de punir não se operaria de forma branda e isenta de resistências. No âmbito internacional, por exemplo, até hoje não se pode afirmar que haja um sistema capaz de conter a solução dos conflitos entre nações pelo uso primitivo da força representado pelo recurso à guerra. [12]


Não é sem razão, portanto, que Ésquilo descreve a indignação das Fúrias pela retirada de seus poderes de vingança imediata, somente sendo aplacadas e convencidas por Atena com a ajuda da deusa Peithô (que simboliza a persuasão). Apenas assim as Fúrias concordam em tornar-se as Euménides que terão doravante a missão de fazer respeitar as leis da “polis”.


Realmente a apropriação dos conflitos pelo Estado através das instituições policiais e judiciais que se vão conformando ao longo da história redundam na supressão de um direito de vingança privada e ilimitada até então vigente. No lugar desse direito deve surgir outro, e este é nada mais nada menos do que aquilo que hoje designamos por um “direito ao acesso à jurisdição”. Ora, se as pessoas não podem mais fazer valer por si mesmas seus direitos por meio de execuções sumárias e vinganças privadas, devem ter o recurso a um órgão encarregado da solução desses conflitos. Esses órgãos públicos devem ser dotados de força que lhes confira poder de coação, mas também devem agir dentro de um comedimento e nos termos da lei.


A sociedade não prescinde das suas Fúrias, mas “sua ira deve ser temperada”. Por isso elas se transformam nas Euménides, seres também temíveis, mas benfazejos. Elas representam a substituição das vinganças pessoais pela sujeição à lei. “As vinganças particulares têm de ser substituídas por tribunais imparciais capazes de estancar o ciclo de sangue através do exercício da razão e da humanidade e, em certo sentido, resolver o dilema colocado pela necessidade da vingança e o correspondente exercício”. Trata-se, em suma, da opção declarada  por uma sociedade assentada “na discussão, na racionalidade e na humanidade” em detrimento de “uma sociedade com instituições regidas pela força e pelas decisões arbitrárias de um ou de alguns”. [13]


Não resta dúvida de que a obra de Ésquilo é uma alegoria mítica dessa transição da vingança privada e da execução pública sumária para instituições policiais e judiciais de um Estado Democrático de Direito. A força poética e teatral da tragédia grega ilustra de forma muito mais eficaz e bela do que qualquer texto jurídico a necessidade dessa transição para que a humanidade não se consolide como uma sequência de crimes de sangue e rapina, de abusos e arbitrariedades particulares e públicos.


É bem verdade que após as muitas encenações da trilogia de Ésquilo os gregos, inclusive muitos que as assistiram, continuaram cometendo atrocidades entre si e para com povos estrangeiros de que é exemplo o massacre de todos os homens da Ilha de Melos no conflito de Atenas e Esparta, somente pelo fato de que os habitantes daquela ilha pretendiam permanecer neutros. Mas isso não retira o poder do mito na transmissão de sua mensagem. Apenas e tão somente demonstra que  não é suficiente ter boas instituições. É preciso, para além disso, que estas sejam dirigidas por homens justos e de boa vontade. [14] Será esta uma verdade que somente vale para a Atenas dos tempos de Ésquilo, ou uma realidade perene que deve ser levada em conta por todos aqueles que compõem atualmente nossas instituições policiais e judiciárias?


4-CONCLUSÃO


Motivou a elaboração deste texto a constatação da necessidade para a formação do jurista de uma atuação interdisciplinar que lhe permita uma informação cultural diversificada, inclusive com incursão pelo campo das artes, da literatura e da mitologia, o que o poderá conduzir a alguma (ainda que parca) compreensão do homem e de suas relações, a qual é imprescindível para a compreensão, criação e devida aplicação de uma ciência social como o Direito.


Abordou-se a importância do mito para o desenvolvimento da racionalidade humana, como instrumento explicativo e cultivador de costumes, valores, origens e instituições. Nesse contexto, afasta-se a visão do mito como uma forma de pensamento meramente supersticiosa e irracional.


Finalmente foi exposta a Oresteia de Ésquilo e sua ligação franca com a criação dos órgãos de julgamento e aplicação da lei em substituição à vingança privada e mesmo às execuções públicas sumárias. Nesse ponto restou clara a alegoria mitológica que explica a necessidade de apropriação dos conflitos individuais pelo Estado e sua solução mediante o acesso amplo à jurisdição. Conclui-se, portanto, que a Oresteia de Ésquilo, como outras obras literárias e mitológicas podem ser um caminho alternativo e poético para a compreensão dos institutos jurídicos contemporâneos.


 


Referências bibliográficas:

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

ARMSTRONG, Karen. Em defesa de Deus. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

ARON, Raymond. Paz e Guerra entre as nações. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Universidade de Brasília, 2002.

JAPIASSÚ, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1996.

O’HEAR, Anthony. Os grandes livros. Trad. Maria José Figueiredo. 2ª ed. Lisboa: Aletheia, 2008.

 

Notas:



[1] ARMSTRONG, Karen. Em defesa de Deus. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 304.

[2] Aulas da disciplina de Filosofia do Direito do Curso de Mestrado  em Direito Social da Unisal, sob a orienta;áo do Professor Doutor Luís Alberto Peluso.

[3] Ibid.

[4] JAPIASSÚ, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1996, p. 183.

[5] Ibid, p. 184.

[6] Ibid, p. 184.

[7] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 673 – 674.

[8] Ibid, p. 674 – 675.

[9] O’HEAR, Anthony. Os grandes livros. Trad. Maria José Figueiredo. 2ª ed. Lisboa: Aletheia, 2008, p. 71.

[10] ARON, Raymond. Paz e Guerra entre as nações. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Universidade de Brasília, 2002, p. 862.

[11] O’HEAR, Anthony. Ibid, p. 82.

[12] ARON, Raymond. Ibid, p. 847.

[13] O’HEAR, Anthony. Ibid, p. 83.

[14] Ibid., p. 83 – 84.


Informações Sobre o Autor

Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.


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