Resumo:O presente artigo tem como objetivo realizar um estudo do princípio de não devolução (non-refoulement) previsto no Direito Internacional dos Refugiados e uma das consequências trazidas por ele que é a impossibilidade de extradição dos refugiados. O trabalho apresentará a discussão acerca do aparente conflito em que os Estados se encontram diante uma solicitação de extradição de uma pessoa reconhecida como refugiada ou de um solicitante de refúgio para concluir que a proteção da pessoa humana deve prevalecer sobre tratados de extradição.
Palavras-chave: Extradição; refúgio; princípio de não-devolução.
Sumário: 1.Introdução; 2. A extradição: definição, evolução histórica, princípios e classificações; 3. Requisitos para a concessão de extradição; 4. O instituto jurídico do refúgio; 5. A extradição e o princípio de não devolução (non-refoulement) no Direito Internacional dos Refugiados; 5.1 A aplicação do princípio de não devolução dos refugiados; 5.2 Exceções ao princípio de não devolução dos refugiados; 5.3 O procedimento de concessão de refúgio e o procedimento de extradição; 6. A extradição e o princípio de não devolução (non-refoulement) no direito interno; 6.1. A aplicação do princípio de não-devolução (non-refoulement) no direito interno: análise do caso Cesare Battisti; 9. Conclusão; 10. Bibliografia.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo realizar um estudo do princípio internacional de não devolução (non-refoulement) previsto na Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e no respectivo Protocolo de 1967, ratificados pelo Brasil, que determina a impossibilidade de extradição do refugiado como meio para impedir que essas pessoas sejam devolvidas para países onde suas vidas ou liberdade estejam sendo ameaçadas.
Por um lado, o instituto da extradição apresenta-se como um instrumento de cooperação internacional que visa impedir a impunidade assegurando que criminosos fugitivos prestem contas perante a justiça. Os Estados obrigam-se, através de acordos bilaterais ou multilaterais de extradição ou de instrumentos internacionais ou regionais, a extraditar, isto é, a entregar um indivíduo a um outro Estado que tenha jurisdição criminal para processá-lo, julgá-lo ou aplicar-lhe uma sanção penal.
Por outro lado, o Direito Internacional dos Refugiados, com fundamento no seu princípio de não devolução, tem como escopo garantir proteção à pessoa humana impedindo que elas sejam perseguidas e sofram outros tipos de violações aos seus direitos humanos. Este princípio é considerado parte do direito consuetudinário internacional e, sendo assim, vincula todos os Estados, incluindo aqueles que ainda não sejam parte da Convenção de 1951 ou do Protocolo de 1967.
O presente artigo analisará em conjunto os conceitos de extradição e refúgio e as obrigações internacionais assumidas pelos Estados em tratados de extradição, na Convenção de 1951 e em outros instrumentos internacionais de proteção da pessoa humana, para verificar como os Estados deverão se posicionar diante de casos de pedidos de extradição de pessoas reconhecidas como refugiadas ou de solicitantes de refúgio: cumprir as obrigações assumidas em tratados de extradição ou cumprir as obrigações estabelecidas no Direito Internacional dos Refugiados e no Direito Internacional dos Direitos Humanos?
O trabalho desenvolvido será baseado em um estudo dogmático do tema, através do método dedutivo, observando e interpretando as normas de direito interno (Constituição Federal de 1988 e Lei 9.474/97), bem como a legislação internacional através da interpretação da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e do respectivo Protocolo de 1967.
Será desenvolvida também uma metodologia teórica/filosófica partindo do estudo bibliográfico de doutrinas buscando apreender e desenvolver o que os teóricos do direito dizem a respeito do tema em questão.
E, por fim, o trabalho realizará uma análise sociológica, pragmática/realista do tema ao realizar uma discussão acerca do caso Cesare Battisti. O estudo do caso concreto tem como objetivo aprofundar mais a temática e verificar como o Brasil vem se posicionando nessas questões.
Nos dois primeiros capítulos será analisado o conceito de extradição, a sua evolução histórica, os princípios aplicáveis a este instituto e os requisitos necessários para a sua concessão.
O terceiro capítulo apresentará o conceito de refúgio e a sua importância como instrumento de proteção da pessoa humana.
O quarto e o quinto capítulo apresentarão a discussão acerca do conflito em que os Estados se encontram diante uma solicitação de extradição de uma pessoa reconhecida como refugiada e a forma como os Estados devem se posicionar nestas situações.
Por fim, o sexto capítulo ambientará a discussão no cenário nacional e apresentará a lei nacional de proteção ao refúgio e as garantias conferidas pelo Brasil aos refugiados e solicitantes de refúgio no tocante à proteção contra a sua devolução.
O sétimo capítulo aprofundará o estudo sobre a extradição e o princípio de não devolução aplicado no Brasil através da apresentação do caso concreto ‘Cesare Battisti’ e da análise das implicações jurídicas surgidas no decorrer do processo de extradição do italiano.
2. A EXTRADIÇÃO: DEFINIÇÃO, EVOLUÇÃO HISTÓRICA, PRINCÍPIOS E CLASSIFICAÇÃO
O estudo da extradição está situado no campo do Direito Penal relacionado com o Direito Internacional Público – esta relação denomina-se Direito Penal Internacional. O Direito Penal Internacional tem como objetivo regulamentar no âmbito interno os problemas penais ocorridos na esfera internacional[1].
O instituto da extradição pode ser definido como o ato pelo qual um Estado entrega um indivíduo a outro Estado para julgá-lo e puni-lo, por crime pelo qual está sendo processado ou já foi condenado[2].
Nesse sentido é a definição dada pelo professor Alberto Jorge Correia de Barros Lima[3]:
“Extradição é um instrumento jurídico, através do qual, um Estado (requerido) soberanamente entrega à justiça criminal de outro Estado (requerente) uma pessoa, porquanto este último tem jurisdição para processá-lo e julgá-lo (extradição processual) ou aplicar-lhe uma sanção penal (extradição executiva).”
A extradição não se caracteriza como uma pena, mas como uma medida de cooperação internacional na repressão ao crime, que visa à boa administração da justiça penal[4].
O instituto da extradição já existia na prática internacional da Antiguidade Oriental em Israel e no Egito[5]. Naquela época, todavia, a extradição apresentava características diferentes das atuais: era prevista a extradição do criminoso político e não do criminoso comum e a extradição era considerada um fenômeno esporádico que geralmente encontrava aplicação nos pós-guerras[6].
O desenvolvimento da extradição ocorre a partir das ideias de respeito à soberania dos Estados estrangeiros e com a abolição do direito de caça que permitia a um Estado prender um criminoso dentro do território estrangeiro[7].
A extradição foi praticada no mundo grego em relação aos criminosos que tivessem cometido delitos graves[8] e também entre os romanos que, apesar de não respeitarem a soberania dos Estados estrangeiros, praticavam a extradição através do Tribunal dos “recuperatores”, órgão que tinha como função decidir sobre a entrega ou não de um indivíduo[9].
Os povos germânicos, por outro lado, não aplicaram a extradição uma vez que, diante do poder universal do Império, a extradição desapareceu, pois estes povos não conheciam fronteiras para a perseguição dos criminosos; o Estado perseguia os criminosos até encontrá-los, ainda que para isso fosse necessário ir além dos seus limites enquanto Estado[10].
Durante a Idade Moderna a extradição reaparece, mas não apresenta ainda as suas características definitivas. Com o surgimento do absolutismo os tratados de extradição dessa época apresentavam dois objetivos: a defesa dos regimes e a entrega de criminosos militares como forma de evitar as deserções, abandonos de posto e insubordinações[11].
É somente no século XIX, quando da realização do Tratado de Paz de Amiens firmado entre França, Espanha e Inglaterra, em 1802, que o termo extradição é propriamente consagrado e o instituto da extradição passa a se constituir com as suas características definitivas[12]. No referido tratado não há mais menção dos criminosos políticos como passíveis de serem extraditados; este entendimento é posteriormente consagrado de forma definitiva na Lei belga de extradição de 1833[13].
A concessão da extradição nos moldes atuais baseia-se na busca pela justiça, entendimento de que nenhum criminoso deverá ficar impune, e no princípio da solidariedade que deve reger as relações entre os Estados no plano internacional, principalmente no tocante ao dever de cooperação na repressão à criminalidade[14].
Outros princípios que regem a extradição visam dar maior proteção ao extraditando: o princípio da especialidade que tem como objetivo impedir que o extraditando seja detido ou processado por fato anterior diverso daquele pelo qual a extradição foi concedida[15], ou que lhe seja aplicada pena outra, diversa (mais grave) do que a estabelecida quando da concessão da extradição; e o princípio da identidade o qual define que não se dará a extradição quando no Estado requerido não se considerar crime os fatos que fundamentam o pedido de extradição[16].
O dever de extradição, levando em consideração o conceito de soberania, surge apenas através de tratados e convenções firmados entre os Estados[17], porém é possível que na falta de um tratado ou convenção um Estado conceda a extradição por meio de uma declaração de reciprocidade, através da qual o Estado requerente irá se comprometer a garantir a reciprocidade quando solicitado em um caso semelhante[18].
A extradição pode ser classificada em extradição ativa em relação ao Estado que a reclama ou extradição passiva em relação ao Estado que a concede; e em extradição voluntária quando há anuência do extraditando ou extradição imposta quando há oposição do extraditando[19].
A extradição pode também ser classificada como instrutória, quando o pedido de extradição é formulado com o objetivo de submeter o individuo a processo criminal; ou executória, quando o pedido de extradição é formulado a fim de obrigar o indivíduo a cumprir a pena a que foi condenado[20].
Outro conceito importante é o de reextradição. A reextradição ocorre quando o Estado que obteve a extradição (requerente) torna-se requerido por um terceiro Estado, que solicita a entrega da pessoa extraditada[21]. A reextradição, todavia, só poderá ser concedida caso o primeiro Estado que concedeu a extradição confira autorização[22].
Importante ainda destacar que a extradição não se confunde com os institutos de deportação e expulsão.
A deportação consiste na saída compulsória do estrangeiro quando este entra ou permanece irregularmente no território brasileiro (artigo 58, Lei 6.815/80). A deportação, diferente da extradição, não decorre da prática de ato ilícito criminal, mas do não cumprimento dos requisitos para entrar ou permanecer no território, quando o estrangeiro não se retirar voluntariamente no prazo determinado[23]. A competência para o procedimento é da Superintendência da Polícia Federal .
Já a expulsão é considerada um modo coativo de retirar o estrangeiro do território nacional por delito, infração ou atos que o tornem inconveniente[24]. É passível de expulsão o estrangeiro que possui o visto em vigor, mas pratica crime contra a segurança nacional, ou contra a ordem política, ou social, a tranqüilidade ou a moralidade pública e a economia popular, ou torna-se nocivo aos interesses nacionais, bem como inconveniente[25]. A expulsão é medida administrativa da competência do Presidente da República.
3. REQUISITOS PARA A CONCESSÃO DE EXTRADIÇÃO
A questão da extradição no Brasil está disciplinada na Constituição, artigo 102, I, “g”, que confere ao Supremo Tribunal Federal competência para processá-la e julgá-la; no Estatuto do Estrangeiro, Lei n. 6.815/1980, em seu título IX; no Regimento Interno do Supremo Tribunal e no Decreto-Lei n. 394 de 28 de abril de 1938 que regulamenta a extradição ativa.
A viabilidade da concessão da extradição poderá ser verificada a partir da análise de requisitos negativos, os quais determinam os casos em que não será concedida extradição.
Nesse sentido, o art. 77 do Estatuto do Estrangeiro determina que:
“Art. 77 – Não se concederá a extradição quando:
I. Se tratar de brasileiro, salvo se a aquisição dessa nacionalidade verificar-se após o fato que motivar o pedido;
II. O fato que motivar o pedido não for considerado crime no Brasil ou no Estado requerente;
III. O Brasil for competente, segundo suas leis, para julgar o crime imputado ao extraditando;
IV. A lei brasileira impuser ao crime a pena de prisão igual ou inferior a 1 (um) ano;
V. O extraditando estiver a responder a processo ou já houver sido condenado ou absolvido no Brasil pelo mesmo fato em que se fundar o pedido;
VI. Estiver extinta a punibilidade pela prescrição segundo a lei brasileira ou a do Estado requerente;
VII. O fato constituir crime político; e
VIII. O extraditando houver de responder, no Estado requerente, perante Tribunal ou Juízo de exceção”.
A impossibilidade de extradição de nacional (art. 77, I) está também prevista na Constituição Federal, no seu artigo 5º, LI que determina que “nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei”.
Tal proteção dá-se principalmente devido ao fato de que o Estado tem a obrigação de proteger os seus nacionais[26]. Os brasileiros naturalizados também recebem esta proteção, salvo nos casos em que os motivos que ensejam a extradição são crimes cometidos antes da naturalização ou o comprovado envolvimento no tráfico ilegal de drogas (neste último caso independe se o crime foi praticado antes ou após a naturalização, sempre caberá a extradição).
Outras razões são apresentadas para fundamentar a impossibilidade de extradição de nacionais como, por exemplo, o direito do nacional de habitar no seu próprio Estado; a dificuldade de defesa em tribunais estrangeiros e a falta de imparcialidade da justiça estrangeira[27].
A não extradição do nacional não pode, todavia, servir para deixar impunes pessoas que praticam crimes, devendo os seus Estados de origem comprometer-se a julgá-los em seus territórios[28].
O inciso II do artigo 77 trata do já mencionado princípio da identidade ou princípio da dupla tipificação que determina que, para que a extradição seja concedida, o fato que motiva o pedido deve ser considerado crime tanto pela legislação do Estado requerente, quanto pela legislação do Estado requerido.
Ademais, para a concessão da extradição o crime praticado deve ser considerado um crime grave, pois não se concederá extradição para delitos de pouca gravidade e contravenções penais[29] (77, IV); também não será concedida a extradição se o crime estiver prescrito segundo a lei de qualquer dos países envolvidos (77, VI) e o Estado requerente deverá demonstrar competência sobre o caso e que irá julgá-lo pelo juiz natural e não por tribunais constituídos ex post fctum (77, VIII).
Concorrendo a jurisdição brasileira e a estrangeira para processar e julgar o criminoso, a jurisdição nacional afastará a alienígena. Sendo assim, não se concederá a extradição, pois ninguém deverá ser julgado e punido duas vezes pelo mesmo fato (princípio do ne bis in idem) (77, III).
Da mesma forma, com fundamento no princípio do ne bis in idem, o Brasil não concede a extradição daquele que aqui esteja sendo processado ou que já tenha sido condenado ou absolvido pelo mesmo fato em que se fundamentou o pedido de extradição (77, V).
A garantia de não extradição pela prática de crime político (77, VII) tem previsão constitucional. O artigo 5, LIII da Constituição de 1988, de forma mais abrangente, determina que não será concedida a extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião.
Ressaltando a proteção de estrangeiros que cometeram em seus países crimes políticos, sendo a eles garantindo o direito a não extradição, assinala o professor Alberto Jorge:[30]
“A lógica da extradição é a ajuda mútua entre os Estados no combate aos crimes havidos como reprováveis em qualquer parte, enquanto o raciocínio para o asilo reside, ao revés, na proteção de determinadas pessoas (v.g. dissidentes políticos) acusadas de cometimento de ilícitos cuja natureza é estritamente política-ideológica.”
O delito de opinião é aquele que, através da palavra escrita ou falada, representa abuso na liberdade de manifestação do pensamento[31].
O crime político caracteriza-se pelo objetivo de atingir a segurança interna ou externa do Estado; tais crimes não ensejam a extradição dos seus agentes levando em conta dois critérios: o critério objetivo analisa se o crime foi praticado contra a ordem política estatal e o critério subjetivo observa a finalidade do delito, ou seja, se foi praticado com uma finalidade política[32].
Todavia, quando na verdade há prática de atos terroristas como atentados contra a vida de um chefe de Estado ou Governo estrangeiro ou contra membros de sua família, crimes de guerra, crimes contra a paz e a segurança da humanidade, o Supremo poderá deixar de considerá-los como crimes políticos e, assim, os autores de tais crimes ficarão sujeitos à extradição[33].
Para os casos em que o crime constitui, simultaneamente, infração comum e política, o § 1° do artigo 77 do Estatuto do Estrangeiro adotou o critério da preponderância que determina que a extradição será concedida quando o fato constituir principalmente delito comum, ou quando o crime comum, conexo ao delito político, constituir o fato principal[34].
O artigo 78 do Estatuto do Estrangeiro prevê ainda outras condições para a concessão da extradição: o cometimento de crime sujeito à jurisdição do Estado estrangeiro (inciso I) e a existência de sentença condenatória definitiva ou ordem de prisão emitida pela autoridade competente estrangeira (inciso II).
Verificada a possibilidade de extradição (ausência dos requisitos negativos do artigo 77 supracitado), o art. 91 do Estatuto do Estrangeiro determina ainda que não será efetuada a entrega do extraditando sem que o Estado requerente assuma os seguintes compromissos: de não ser o extraditando preso nem processado por fatos anteriores ao pedido (princípio da especialidade); de computar o tempo de prisão que, no Brasil, foi imposta por força da extradição; de comutar em pena privativa de liberdade, a pena corporal ou de morte[35]; de não ser o extraditando entregue, sem consentimento do Brasil, a outro Estado que o reclame e de não considerar qualquer motivo político para agravar a pena.
O procedimento de extradição passiva no Brasil pode ser dividido em três fases: a primeira fase é administrativa, sob a responsabilidade do Poder Executivo; a segunda é judiciária, na qual o Suprem Tribunal Federal examinará a legalidade, a procedência e regularidade do pedido, não adentrando no mérito da questão, nos termos do art. 102, inciso I, alínea g da Constituição Federal[36] e do art. 207 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal[37]; e a terceira fase é novamente administrativa, na qual o governo procede à entrega do extraditando ao país requerente ou comunica a sua negativa.
Negada a solicitação de extradição pelo STF, o extraditando será posto em liberdade e o Poder Executivo comunicará o resultado ao Estado requerente. Neste caso, fica o Presidente da República impedido de extraditar, ainda que entenda a medida conveniente, sob pena de desrespeitar o comando constitucional que atribui ao Supremo a competência para julgar o pedido de extradição.
Com o deferimento da extradição pelo Supremo, a doutrina divide-se entre os que entendem que a existência de um tratado biliteral de extradição obriga o Estado brasileiro a entregar o extraditando não podendo o Presidente da República decidir de maneira diversa, tendo em vista o compromisso assumido; e os que entendem que cabe ao Poder Executivo decidir sobre a extradição ou não de um indivíduo podendo recusar, de acordo com o seu juízo de conveniência e oportunidade, mesmo quando o STF tenha declarado a legalidade e procedência do pedido.
4. O INSTITUTO JURÍDICO DO REFÚGIO[38]
Desde o início do século XX a questão dos refugiados tornou-se uma preocupação da comunidade internacional, porém a efetiva proteção dos refugiados surge apenas com a Sociedade das Nações.
Durante a Primeira Guerra Mundial surgem os primeiros problemas de movimentos massivos e a necessidade de a comunidade internacional definir a condição jurídica dos refugiados e realizar atividades de socorro, bem como organizar assentamentos e a questão da repatriação; mas, foi durante a Segunda Guerra Mundial que o problema dos refugiados tomou grandes proporções com o descolamento de milhões de pessoas por várias partes do mundo[39].
Em 1951, com a função de garantir proteção internacional aos refugiados, é criado, no âmbito do Secretariado da Organização das Nações Unidas (ONU), o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR): instituição apolítica, humanitária e social. Foi construído ainda na ONU o Fundo de Emergência das Nações Unidas para os refugiados e instituído o ano do refugiado (de junho de 1959 a junho de 1960) com o intuito de chamar atenção da opinião pública mundial para essa questão[40].
Diante dos efeitos devastadores gerados no mundo, decorrentes da Segunda Guerra Mundial, a ONU elaborou uma Convenção para regular a situação jurídica dos refugiados. A Convenção foi aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 28 de julho de 1951 e sua vigência teve início em 21 de abril de 1954.
A Convenção, todavia, estava limitada no tempo, pois só era aplicada para os refugiados que tinham essa condição decorrente dos acontecimentos ocorridos antes de 1 de janeiro de 1951, ou seja, para tratar das situações decorrentes do pós Segunda Guerra Mundial. A Convenção apresentava ainda uma reserva geográfica, pois concedia aos signatários a faculdade de aplicá-la apenas às situações dos refugiados no continente Europeu[41].
Com o passar do tempo e diante do aparecimento de novas situações de refugiados no mundo, surgiu a necessidade de ampliar as disposições da Convenção de 1951. O Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967 ampliou o conceito de refugiados no tocante ao limite temporal e geográfico: permitiu que os dispositivos da Convenção pudessem ser aplicados aos refugiados sem considerar a data limite de 1 janeiro de 1951 e para os casos de refugiados em todo o mundo e não mais apenas no continente europeu[42].
O refugiado é definido no artigo 1A (2) da Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiado de 1951 como a pessoa que, em razão de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de origem e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer fazer uso da proteção desse país ou, não tendo uma nacionalidade e estando fora do país em que residia como resultado daqueles eventos, não pode ou, em razão daqueles temores, não quer regressar ao mesmo.
A Convenção de 1951 apresenta ainda cláusulas de exclusão e cessação da condição de refugiado. As cláusulas de exclusão do refúgio, uma vez verificadas qualquer um delas, obstará a concessão do status de refugiado; neste sentido é o artigo 1º, D, E, F da referida Convenção[43]:
1D – Esta Convenção não será aplicável as pessoas que atualmente se beneficiam de uma proteção ou assistência da parte de um organismo ou instituição das Nações Unidas que não o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados);
1E – Esta Convenção não será aplicável a uma pessoa considerada pelas autoridades competentes do país no qual esta pessoa instalou sua residência como tendo os direitos e obrigações inerentes a nacionalidade de tal país;
1F – As disposições desta Convenção não serão aplicáveis às pessoas a respeito das quais houver razões sérias para pensar que:
a) Elas cometeram um crime contra a paz, crime de guerra ou crime contra a humanidade, no sentido dos instrumentos internacionais elaborados para prever tais crimes.
b) Elas cometeram um crime grave de direito comum fora do país de refúgio antes de serem nele admitidas como refugiados.
c) Elas se tornaram culpadas de atos contrários aos fins e princípios das Nações Unidas.”
Já nas cláusulas de cessação são enunciadas as situações em que a condição de refugiado previamente conferida não é mais necessária pelo fato de que a pessoa passou novamente a contar com a proteção de seu Estado de origem e/ou residência habitual. As cláusulas de cessação baseiam-se no princípio de que a proteção internacional não deve ser mantida quando deixe de ser necessária ou não mais se justifique[44]. Tais cláusulas estão previstas no artigo 1º, C da Convenção de 1951:
“(C) Esta Convenção cessará, nos casos abaixo, de ser aplicável a qualquer pessoa compreendida nos termos da seção A, acima:
1. Se ela voltou a valer-se da proteção do país de que é nacional;
2. Se havendo perdido a nacionalidade, ela a recuperou voluntariamente;
3. Se adquiriu nova nacionalidade e goza da proteção do país cuja nacionalidade adquiriu;
4. Se se estabeleceu de novo, voluntariamente, no país que abandonou ou fora do qual permaneceu por medo de ser perseguida;
5. Se, por terem deixado de existir as circunstâncias em conseqüência das quais foi reconhecida como refugiada, ela não pode mais continuar a recusar valer-se da proteção do país de que é nacional;
6. Tratando-se de pessoa que não tem nacionalidade, se, por terem deixado de existir as circunstâncias em conseqüência das quais foi reconhecida como refugiada, ela está em condições de voltar ao país no qual tinha a sua residência habitual.”
Ao verificar que a pessoa preenche os requisitos necessários para ser reconhecida como refugiada e a inexistência de cláusulas de exclusão do refúgio, o Estado de acolhida obriga-se a proteger os direitos, a garantir um refúgio seguro e a tratar com dignidade a pessoa do refugiado.
Dentre os direitos garantidos à pessoa do refugiado faz-se necessário destacar o direito fundamental de não ser devolvido ao país em que sua vida ou liberdade esteja sendo ameaçada. Tal direito constitui um princípio geral do direito internacional de proteção dos refugiados e dos direitos humanos, princípio do non-refoulement (não devolução) devendo, portanto, ser reconhecido como um princípio do jus cogens (norma imperativa de direito internacional geral[45].
5. A EXTRADIÇÃO E O PRINCÍPIO DE NÃO-DEVOLUÇÃO (NON-REFOULEMENT) NO DIREITO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS
O Direito Internacional dos Refugiados visa garantir aos refugiados, que são pessoas que se encontram em situação bastante vulnerável, proteção internacional da sua segurança, vida e liberdade.
Um dos princípios mais importantes que fundamentam a proteção internacional dos refugiados é o princípio da não devolução (non-refoulement[46]); tal princípio encontra-se previsto no artigo 33 (1) da Convenção de 1951:
“1. Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou repelirá um refugiado, seja de que maneira for, para as fronteiras dos territórios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaçados em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas. (grifos)”
O principio do non-refoulement no Direito Internacional dos Refugiados surge, diante da insegurança humanitária que ameaça a vida dos refugiados, como um instrumento que garante proteção contra a devolução dessas pessoas para o país onde sofrem a perseguição que originou a sua condição de refugiado ou a qualquer outro país onde sua vida ou liberdade estejam sendo ameaçadas.
O principio do non-refoulement é indispensável à ideia de proteção internacional dos refugiados; tal princípio é considerado a pedra angular do regime internacional de proteção dos refugiados[47], ou seja, a ausência deste princípio torna o objetivo de proteção internacional dos refugiados ineficiente. Nesse sentido José Francisco Sieber Luz Filho[48]:
“Trata-se de princípio inerente à proteção internacional do refugiado, compreendido pela doutrina como o pilar de sua aplicabilidade. Na ausência do princípio a proteção internacional resta vazia e ineficiente (…) A eficácia do princípio do non-refoulement é conditio sine qua non para a efetiva proteção internacional, esta última função primordial do direito internacional dos refugiados.”
O princípio da não devolução é fundamental e não é possível ser derrogado. O princípio também é considerado parte do direito consuetudinário internacional e, sendo assim, vincula todos os Estados, incluindo aqueles que ainda não sejam parte da Convenção de 1951 ou do Protocolo de 1967[49].
No contexto do Direito Internacional dos Refugiados o termo non-refoulement representa o gênero que abrange todas as espécies de institutos jurídicos que visam à saída compulsória do estrangeiro do território nacional (deportação, expulsão e extradição), mas, para fins do presente artigo, apenas será aprofundada a questão da extradição.
Diante de uma solicitação de extradição de uma pessoa reconhecida como refugiada ou de um solicitante de refúgio, é provável que o Estado requerido encontre-se em um conflito de deveres: de um lado a obrigação de extradição que pode estar prevista em um acordo bilateral ou multilateral de extradição ou em instrumentos internacionais ou regionais que determinam a obrigação de extraditar ou processar; por outro lado, o Estado requerido deve cumprir as obrigações estabelecidas no Direito Internacional dos Refugiados e no Direito Internacional dos Direitos Humanos de não extradição de um refugiado ou solicitante de refúgio.
Levando em consideração a natureza das obrigações previstas pelo Direito Internacional dos Refugiados e Direitos Humanos (proteção da pessoa humana) e a posição de prevalência hierárquica dessas obrigações na ordem jurídica internacional (artigo 103 c/c artigos 55 (c) e 56 da Carta das Nações Unidas[50]), é evidente que a proibição de entrega de um refugiado prevalece sobre qualquer obrigação de extradição independente da existência de disposições específicas para o seu efeito no tratado que estabelece uma obrigação de extraditar[51].
O instituto da extradição é um instituto de cooperação judiciária entre Estados, por outro lado, o instituto de refúgio é um instituto de proteção à vida humana; não havendo, portanto, grau de comparação para equiparar os dois institutos. Trata-se da aplicação do princípio da norma mais favorável, ou seja, em se tratando da afirmação da dignidade humana, prevalecerá a norma que melhor proteja o ser humano.
5.1 A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DE NÃO DEVOLUÇÃO DOS REFUGIADOS
A proteção conferida pelo artigo 33 (1) da Convenção de 1951 aplica-se a qualquer pessoa que seja considerada refugiada nos termos da referida Convenção. Sendo assim, qualquer pessoa que preencha os requisitos da definição de refugiado previstos no artigo 1A (2) da Convenção de 1951 e desde que não se encontre dentro do âmbito de nenhuma das cláusulas de exclusão (artigo 1º, D, E, F da Convenção de 1951), receberá a proteção contra a extradição.
Importante destacar que o princípio da não devolução aplica-se não somente ao refugiado já devidamente reconhecido, mas também ao solicitante de refúgio enquanto pendente a análise da solicitação, inclusive durante a etapa de apelação[52].
A proteção dada pelo princípio do non-refoulement está garantida desde o momento da solicitação do refúgio, durante o momento da decisão do órgão competente ao reconhecimento da referida condição e apenas cessa na hipótese de a decisão pelo reconhecimento do status de refugiado ser inferida ou quando tal condição já adquirida cesse por qualquer outra causa legalmente prevista.
A determinação do status de refugiado tem natureza declaratória, isto quer dizer que a pessoa não se torna um refugiado por causa do reconhecimento, mas é reconhecido porque é um refugiado.
Sendo assim, ainda que o indivíduo não tenha sido formalmente reconhecido como refugiado (por exemplo, no caso dos que estão com as suas solicitações pendentes de análise ou ainda nas situações em que o interessado encontra-se em um Estado que não seja parte da Convenção de 1951 ou do Protocolo de 1967; ou um Estado que não estabeleceu um procedimento formal para a determinação do estatuto de refugiado; ou o Estado permite que o refugiado lá resida, mas não fornece a documentação formal do seu reconhecimento como refugiado; ou ainda o próprio indivíduo pode não ter feito um pedido formal para ser reconhecido como refugiado) ele estará protegida pelo princípio de não devolução[53].
O princípio de não-devolução tem aplicação não apenas com relação ao país de origem de um refugiado, mas também em qualquer outro país onde o refugiado tem um temor fundado de perseguição relacionado com um ou mais dos motivos estipulados no artigo 1A (2) da Convenção de 1951, ou quando existe a probabilidade de que a pessoa possa ser enviada a um país onde corra risco de perseguição vinculado a algum dos motivos da Convenção[54].
Nesse sentido, quando existe um requerimento de extradição de um refugiado ou solicitante de refúgio feito por um país diferente do seu país de origem, o Estado requerido deverá assegurar que a extradição não irá colocar o refugiado ou o solicitante em nenhum risco de perseguição, tortura ou sofrimento irreparável naquele país e que o refugiado/solicitante não ficará exposto a uma posterior expulsão para o seu país de origem ou para um terceiro país em que exista tal risco[55].
Ademais, importante ressaltar que a condição de refugiado determinada por um Estado tem efeito extraterritorial, pelo menos com relação a outros Estados Parte da Convenção de 1951: no caso da existência de um pedido de extradição de um refugiado, assim reconhecido por outro país diferente do Estado requerido, a extradição deverá ser negada em virtude do princípio da não devolução.
A condição de refugiado determinada por um Estado Parte apenas poderá ser questionada por outro Estado Parte em casos excepcionais, quando restar evidente que a pessoa não reúne os requisitos necessário estabelecidos pela Convenção de 1951[56].
5.2 EXCEÇÕES AO PRINCÍPIO DE NÃO-DEVOLUÇÃO
O Direito Internacional dos Refugiados permite, todavia, exceções ao princípio de não-devolução. Estas exceções ocorrem unicamente nas circunstâncias previstas pelo artigo 33 (2) da Convenção de 1951:
“Art. 33 (2): O benefício da presente disposição não poderá ser, todavia, invocado por um refugiado que por motivos sérios seja considerado um perigo para a segurança do país no qual ele se encontre ou que, tendo sido condenado definitivamente por crime ou delito particularmente grave, constitui ameaça para a comunidade do referido país. (grifos).”
A decisão de não aplicação do princípio de não devolução do refugiado deverá ser tomada com muito cuidado pelo Estado de refúgio, mediante procedimento que contemple as salvaguardas adequadas, sob pena de atentar contra um direito fundamental da pessoa humana previsto em tratados internacionais e colocar essas pessoas em situação de risco[57].
Dentre as salvaguardas procedimentais que devem ser observadas, o ACNUR prevê, como mínimo, as elencadas no artigo 32 (2) e (3) da Convenção de 1951 que dizem respeito à expulsão dos refugiados: o direito a ser escutado, o direito ao recurso de apelação, bem como o direito que se permita um prazo razoável para programar sua admissão legal em outro país.
“A expulsão do refugiado só é admitida em hipótese de “segurança nacional ou ordem pública”, sendo-lhe facultado o direito de se defender e tempo suficiente para encontrar outro país que queira abrigá-lo, proibida terminantemente a expulsão ou a devolução para um país em que sua vida ou liberdade possam estar ameaçadas por causa de sua raça, religião, nacionalidade, vinculação a determinado grupo social ou opinião política”[58].
Para que seja aplicada a exceção de “segurança do país”, o refugiado deve constituir um perigo atual ou futuro para o país de acolhida. O perigo deve ser muito grave e constituir uma ameaça para a segurança nacional[59].
Com relação à exceção da “ameaça para a comunidade”, o refugiado implicado deve não somente ter sido condenado por um crime muito grave, mas também se faz indispensável verificar que, em vista do crime e da condenação, o refugiado representa um perigo muito grave no presente e no futuro para a comunidade do país de refúgio. Não basta, portanto, o fato de ter sido condenado por um delito de particular gravidade, pois nem sempre a prática deste tipo de delito significa que a pessoa reúne também o requisito de “ameaça para a comunidade” [60].
Como representa uma exceção da proteção de não-devolução prevista na Convenção de 1951, deve ser aplicada de forma restritiva devendo observar a existência de um nexo racional entre a extradição do refugiado e a eliminação do perigo que representa a sua presença para a segurança nacional ou para a comunidade do país de refúgio e deve ser utilizada como o último recurso possível ao qual se deve recorrer[61].
A nota de orientação sobre extradição e proteção internacional de refugiados elaborada pelo ACNUR esclarece que “o perigo para o país anfitrião deve ter mais peso que o risco de dano que possa sofrer a pessoa requerida como resultado de sua devolução[62].”
As exceções ao princípio de não devolução (artigo 33 (2) da Convenção de 1951) não afetam, todavia, as obrigações de não devolução asseguradas pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, o qual não permite exceções.
Nesses termos, não é possível extraditar uma pessoa caso a extradição represente um risco real de dano irreparável para o indivíduo como, por exemplo, a exposição do refugiado ao risco de ser vítima de tortura[63] e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes ou vítima de outras violações graves de direitos humanos[64].
A proibição estabelecida pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos extende-se a todas as pessoas que se encontram dentro do território de um Estado ou que estejam sujeitas a sua jurisdição incluindo, assim, os refugiados e os solicitantes de refúgio.
Sendo assim, não será possível extraditar um refugiado, ainda que esta decisão esteja fundamentada nos motivos elencados no artigo 33 (2) da Convenção de 1951, caso esta devolução represente um sério risco de violação de direitos humanos.
5.3 O PROCEDIMENTO DE CONCESSÃO DE REFÚGIO E O PROCEDIMENTO DE EXTRADIÇÃO
A extradição e a determinação da condição de refugiado são dois processos diferentes: possuem objetivos diferentes e apresentam critérios legais distintos.
Quando o pedido de extradição é apresentado enquanto ainda está pendente a análise da solicitação de refúgio ou quando a solicitação de refúgio se dá após o requerimento de extradição, alguns critérios devem ser observados para garantir a proteção do indivíduo.
Nesses casos, deve-se resolver primeiro a condição de refugiado para que o Estado requerido possa decidir se é possível ou não extraditar a pessoa requerida legalmente, uma vez que o fato de a pessoa requerida se qualificar ou não para a condição de refugiado tem importante repercussão no âmbito das obrigações do Estado requerido com relação a decisão acerca do pedido de extradição[65].
As autoridades de refúgio que examinam uma solicitação de um indivíduo que também é objeto de um pedido de extradição devem valorar com cautela as informações prestadas pelo Estado requerente, bem como as prestadas pelo indivíduo solicitante de refúgio para, de um lado, verificar a possibilidade de as autoridades do país requerente estar pedindo a extradição como meio de perseguição e, por outro lado, valorar também se objetivo do solicitante de refúgio não é meramente impedir a extradição e, consequentemente, fugir de um julgamento ou do cumprimento da pena[66].
É preciso também garantir que a existência de um pedido de extradição não exclua o indivíduo do acesso ao procedimento de refúgio, nem que o mesmo seja objeto de restrições quanto às salvaguardas procedimentais fundamentais durante o processo de refúgio[67].
Ainda que se conclua que o solicitante preenche os requisitos para ser incluído na definição de refugiado, é possível que o pedido de extradição ou as informações relacionadas com esse pedido leve à exclusão do seu reconhecimento como refugiado com base no artigo 1F da Convenção de 1951 (quando houver indícios de que a pessoa em questão possa haver cometido um crime contra a paz, crime de guerra, crime contra a humanidade, crime grave de direito comum ou atos contrários aos fins e princípios das Nações Unidas)[68].
As cláusulas de exclusão previstas na Convenção de 1951 asseguram que os culpados pela prática de crimes graves não se utilizem do instituto do refúgio como meio para fugir da responsabilização pelos delitos praticados. Excluída a possibilidade de ser reconhecido como refugiado, caberá a análise acerca da possibilidade de extradição do indivíduo.
Nos casos em que o pedido de extradição é apresentado quando a pessoa já foi reconhecida como refugiada pelo Estado requerido, não é mais possível, como regra, deferir o pedido de extradição em respeito ao princípio de não devolução.
A extradição de uma pessoa reconhecida como refugiada apenas será cabível quando, com base nos documentos e provas apresentados no pedido de extradição, se verificar que o indivíduo não poderia ter sido reconhecido como refugiado, pois no momento em que se tomou a decisão de reconhecimento ele não reunia os critérios de elegibilidade – porque restou comprovado que ele não tinha um fundado temor de perseguição ou porque havia praticado algum dos delitos previstos como cláusula de exclusão do refúgio (art. 1F da Convenção de 1951) -; ou quando o pedido de extradição estiver fundamentado na prática de crimes previstos nas cláusulas de exclusão do refúgio cometidos pelo refugiado após a concessão do status de refugiado[69].
Nestas situações será necessário dar início a um procedimento formal que pode resultar na decisão de cancelamento ou revogação a condição de refugiado[70], respectivamente.
Apenas após a decisão de cancelamento ou revogação da condição de refugiado é que poderá ser analisada e deferida a extradição. Enquanto pendente a decisão o refugiado continuará recebendo a proteção contra a sua devolução.
6. A EXTRADIÇÃO E O PRINCÍPIO DE NÃO-DEVOLUÇÃO (NON-REFOULEMENT) NO DIREITO INTERNO
A legislação nacional de muitos Estados traz a previsão de negação de extradição quando a pessoa requerida é um refugiado ou quando possa existir o risco de que a pessoa seja objeto de violações graves de direitos humanos depois de ser entregue. Estas disposições podem ser encontradas nas leis nacionais de extradição, no direito penal (processual), no direito constitucional ou na legislação relativa ao refúgio[71].
Ainda que não haja na legislação nacional proibição expressa da extradição de refugiados e solicitantes de refúgio, a obrigação de não extraditar é vinculante para o Estado requerido de acordo com o Direito Internacional dos Refugiados e o Direito Internacional dos Direitos Humanos, sob pena de responsabilização[72].
O artigo 1º, III da Constituição brasileira apresenta o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos que rege a República Federativa do Brasil e o artigo 4º, II da CF determina que o Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos humanos.
O reconhecimento da dignidade humana como valor que fundamenta o sistema de direitos fundamentais provoca um verdadeiro deslocamento do direito do plano do Estado para o plano do indivíduo e implica no surgimento de um núcleo indestrutível de prerrogativas que o Estado não pode deixar de reconhecer.
Diante do valor fundamental da dignidade da pessoa humana e do princípio da prevalência dos direitos humanos, o Brasil tem ratificado diversos tratados internacionais que visam garantir proteção à pessoa humana contra violações aos seus direitos fundamentais.
Neste diapasão o Brasil ratificou a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 sobre o Estatuto dos Refugiados e também adotou uma lei específica para tratar da questão do refúgio que foi elaborada pelos representantes do governo brasileiro juntamente com representantes do ACNUR: Lei 9.474/97[73].
Seguindo as diretrizes apontadas pelas Nações Unidas para garantir uma proteção ampla aos refugiados, bem como visando consagrar no âmbito interno o princípio do non-refoulement (não devolução) previsto na Convenção de 1951, a lei brasileira assegura a proteção dos refugiados impedindo a aplicação das medidas compulsórias de deportação (artigo 7º, parágrafo 1º), expulsão (artigo 36º e 37º ) e extradição (artigo 33º a 35º).
O artigo 33 da Lei nacional 9.474/97 determina que “o reconhecimento da condição jurídica de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio.
A lei nacional também confere proteção aos solicitantes de refúgio ao determinar em seu artigo 34 que “a solicitação suspenderá, até decisão definitiva, qualquer processo de extradição pendente, em fase administrativa ou judicial, baseado nos fatos que fundamentaram a concessão do refúgio.”
O Brasil tem se esforçado para fornecer instrumentos aptos a assegurar a mais ampla proteção aos refugiados e por tal preocupação a legislação brasileira que trata da proteção dos refugiados foi considerada pelo ACNUR como paradigma de uma legislação uniforme na América do Sul[74].
6.1 A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DE NÃO-DEVOLUÇÃO NO DIREITO INTERNO: ANÁLISE DO CASO CESARE BATTISTI[75]
O Brasil é um país que tem tradição na concessão de abrigo e proteção a pessoas perseguidas por motivos políticos, raciais e sociais. O presente tópico tem como objetivo apresentar, de forma sucinta, o recente caso de pedido de extradição de um refugiado ocorrido no Brasil – caso Cesare Battisti – para analisar a forma como o país se posiciona sobre esta questão.
Na esfera nacional o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) é o órgão de deliberação, no âmbito do Ministério da Justiça, encarregado de tomar decisões em matéria de refúgio. É competência do CONARE, como primeira instância, analisar o pedido e declarar o reconhecimento da condição de refugiado e decidir também acerca da cessação e da perda dessa condição[76]. Nos casos de negativa do CONARE é cabível ainda recurso ao Ministro da Justiça no prazo de 15 dias; da decisão do Ministro não caberá mais recurso[77].
O italiano Cesare Battisti[78] foi um ativista de extrema esquerda ligado ao grupo armado Proletários Armados pelo Comunismo (PAC) que atuou na Itália durante o período que se convencionou chamar de anos de chumbo. A Corte italiana condenou Cesare Battisti à prisão perpétua pela prática de quatro homicídios praticados entre 1978 e 1979.
No caso do italiano Cesare Battisti, o Ministro da Justiça, em sede de recurso, concedeu o status de refugiado a Battisti por entender caracterizado o fundado temor de perseguição por motivação política, mas o STF, ao analisar o pedido de extradição feito pela Itália e as pressões políticas feitas por este país ao Brasil, entendeu que seria da sua competência reexaminar o ato do Ministro da Justiça, tendo em vista que este ato do Ministro seria um ato vinculado aos requisitos da Lei 9.474/97 e caberia, portanto, o controle de legalidade do ato administrativo pelo Poder Judiciário.
O STF ao reexaminar o ato do Ministro da Justiça entendeu que os crimes cometidos por Battisti eram crimes comuns e não crimes políticos e que, por isso, o ato de concessão de refúgio deveria ser anulado por não ter observado a existência de uma cláusula de exclusão prevista em lei, qual seja, a prática de crime hediondo (acusação da prática de quatro homicídios dolosos tendo sido, pelo menos um deles, cometido com premeditação e com o intuito de vingança).
Battisti foi condenado pela prática de crimes comuns relacionados à participação do italiano em ação militar do grupo Proletários Armados pelo Comunismo – PAC. Para solucionar esses casos de prática de crime que constitui, simultaneamente, a prática de infração comum e política, o Estatuto do Estrangeiro, adotou o critério da preponderância, ou seja, será concedida a extradição quando o fato for, principalmente, delito comum ou quando o fato principal for delito comum e este for conexo com o delito político (art. 77, inciso VII, parágrafo I da Lei 6.815/80).
Para o Supremo a condenação de Battisti pela Corte de Milão pela prática de quatro homicídios deixou clara a preponderância da prática de crimes comuns e esta condenação pela justiça italiana é suficiente, pois não cabe ao Estado requerido a análise acerca do mérito da decisão proferida no Estado requerente[79].
Diante da existência de uma cláusula de exclusão do refúgio, o Supremo anulou o ato do Ministro da Justiça que concedeu refúgio a Battisti e, posteriormente, deferiu a extradição de Battisti com a condição de que o italiano não seja enviado à prisão perpétua, já que essa pena não está prevista na legislação brasileira. A pena deverá ser de no máximo 30 anos e deverá ser computado o tempo de prisão que, no Brasil, foi imposta a Battisti por força da extradição.
O caso Battisti foi o primeiro caso em que o Supremo anulou um ato de refúgio concedido pelo governo brasileiro. Até então o STF não analisava o processo de extradição de pessoas já reconhecidas como refugiadas; o Supremo indeferia a extradição, desde logo, com base no artigo 33 da lei 9.474/97.
No caso Battisti foi discutida ainda a possibilidade de os crimes cometidos pelo italiano já estarem prescritos (nesse sentido votou o Ministro Marco Aurélio). Conforme analisado no tópico 3 do presente estudo, o artigo 77, VI do Estatuto do Estrangeiro determina que não se concederá a extradição caso esteja extinta a punibilidade pela prescrição segundo a lei brasileira ou a do Estado requerente.
A prescrição da pretensão executória só pode ocorrer depois de transitar em julgado a sentença condenatória, regulando-se pela pena concretizada (art. 110 Código Penal brasileiro – CPB). No caso Battisti foi aplicada ao italiano a pena de prisão perpétua. Entretanto, embora a lei italiana determine que a prescrição não extingue os crimes para os quais a lei prevê pena de prisão perpétua, no Brasil não existe tal modalidade de pena; o artigo 110 do CPB determina que a pena máxima possível no Brasil é de 30 anos.
O CPB prevê ainda que, para os crimes com penas superiores a 12 anos de reclusão (é o caso da prática de crimes de homicídio), a prescrição acontece em 20 anos, nos termos do artigo 109, I do CPB.
Pelo exposto, deve-se considerar como lapso de tempo para ocorrer a prescrição dos crimes cometidos pelo italiano Cesare Battisti o prazo de 20 anos. O prazo da pretensão executória começa a correr do dia em que transitar em julgado a sentença condenatória para a acusação, conforme artigo 112 do CPB. Após a primeira condenação (13 de dezembro de 1988), apenas a defesa de Battisti apelou da decisão em instâncias superiores da Justiça italiana, que mantiveram a condenação.
A defesa de Battisti entendeu que como não houve alteração da sentença, nem recurso por parte do Ministério Público italiano, o prazo prescricional passaria a contar da data em que a primeira sentença da Corte de Assise de Milão transitou em julgado – dezembro de 1988. Desta forma, passados os vinte anos exigidos, teria prescrito, em dezembro de 2008, o prazo para a execução das penas.
O entendimento da defesa está correto, pois o fluxo do prazo prescricional só é interrompido pelo acórdão quando este, modificando a sentença absolutória, condena o réu[80], o que não ocorreu no caso em análise. Todavia, o STF não acatou a tese da prescrição.
Outra discussão importante travada no caso Cesare Battisti foi sobre a vinculação ou não do Presidente da República à decisão do STF favorável à extradição. Por cinco votos a quatro, os ministros entenderam que a decisão do Judiciário de mandar extraditar não obriga necessariamente o Poder Executivo a fazê-lo, pois, conforme artigo 84, inciso VII da Constituição Federal, compete ao Poder Executivo conduzir as relações internacionais do país; as decisões tomadas nesse âmbito são soberanas do Estado brasileiro.
No caso Battisti o então Presidente da República Luis Inácio Lula da Silva politicamente entendeu que, apesar da decisão do STF favorável à extradição, não caberia a extradição de Battisti para a Itália, pois Battisti seria um militante político e não um criminoso comum e, sendo assim, a proteção constitucional conferida contra a extradição por delitos políticos prevalece sobre o tratado de extradição firmado entre Brasil e Itália.
Embora a decisão de concessão de refúgio apresente caráter político-administrativo e ainda o fato de o poder ou dever de outorga ser atribuição reservada à competência da própria União por representar o país nas relações internacionais, tais fatos não retiram a possibilidade de controle jurisdicional de legalidade dos atos jurídico-administrativos (judicial review). O Supremo, ao realizar o controle jurisdicional sobre eventual observância dos requisitos de legalidade verificou a existência de condição legal excludente da concessão de refúgio, qual seja, a prática de crimes comuns o que caracterizou a ilegalidade da decisão administrativa.
O Supremo não deferiu a extradição de um refugiado. Conforme o procedimento recomendado pelo ACNUR, o STF tomou em primeiro lugar a decisão de cancelar o ato de concessão de refúgio, pois com base nos documentos e provas apresentados no pedido de extradição verificou que Battisti não poderia ter sido reconhecido como refugiado porque praticou delitos previstos como cláusula de exclusão do refúgio (art. 1F da Convenção de 1951).
Após a decisão de cancelamento da concessão do refúgio o Supremo passou a analisar o pedido de extradição feito pela Itália e, como Battisti não tinha mais a proteção prevista pelo princípio de não devolução, o STF deferiu a extradição.
7. CONCLUSÃO
O estudo da extradição e do direito ao refúgio se interpenetram quando existe um pedido de extradição de uma pessoa reconhecida como refugiada ou de um solicitante de refúgio.
Nestes casos é provável que o Estado requerido se encontre em um conflito de deveres: de um lado a obrigação de extradição que pode estar prevista em um acordo bilateral ou multilateral de extradição ou em instrumentos internacionais ou regionais que determinam a obrigação de extraditar ou processar; e, por outro lado, o Estado requerido deve cumprir as obrigações estabelecidas no Direito Internacional dos Refugiados e no Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Nos casos de pedido de extradição de um refugiado ou de um solicitante de refúgio, os Estados assumem a obrigação de assegurar o respeito total ao princípio de não devolução (non-refoulement) previsto pelo Direito Internacional dos Refugiados que impede a devolução dessas pessoas para qualquer o país onde sua vida ou liberdade estejam sendo ameaçadas.
A extradição é um instituto de cooperação internacional que visa impedir a impunidade assegurando que criminosos fugitivos prestem contas perante a justiça. O instituto de refúgio, por outro lado, é um instituto de proteção da vida humana; não havendo, portanto, como equiparar os dois institutos. A proibição de entrega de um refugiado prevalece sobre a obrigação de extradição.
O Direito Internacional dos Refugiados não tem como objetivo beneficiar as pessoas que pretendem se utilizar do refúgio com o propósito de fugir da responsabilidade pela prática de delitos graves; seu objetivo é garantir que as pessoas que realmente necessitam e merecem da proteção internacional possam ter acesso e se beneficiar dela.
Para tanto o Direito Internacional dos Refugiados prevê cláusulas de exclusão do refúgio que determinam que as pessoas que praticam crimes graves como, por exemplo, crime contra a paz, crime de guerra ou crime contra a humanidade, não são merecedoras da proteção conferida aos refugiados podendo, dessa maneira, serem extraditadas para responder pelos crimes cometidos.
Para evitar, de um lado, ferir o princípio da não devolução e entregar um refugiado para um país no qual ele corre o risco de ser perseguido e sofrer outros prejuízos irreparáveis e, por lado, visando evitar que pessoas se utilizem do instituto do refúgio de má fé, faz-se necessário que as autoridades de refúgio realizem uma valoração rigorosa acerca do preenchimento dos requisitos necessário para a concessão do status de refugiado através de uma análise cuidadosa de todos os fatores relevantes, assegurando o respeito aos requisitos procedimentais de justiça e devido processo legal.
Essas regras devem ser estritamente observadas pelos Estados, pois a extradição de um refugiado ou o uso indevido da proteção do refúgio representa um descumprimento das regras previstas na Convenção de 1951 podendo gerar conseqüências negativas no plano internacional e debilitar internacionalmente a instituição do refúgio, seja pelo descrédito daqueles que buscam o refúgio ou pela utilização do refúgio como escudo para os criminosos.
A legislação brasileira é bastante avançada no tocante à proteção dos refugiados apresentando dispositivos claros que vedam expressamente a extradição de um refugiado ou solicitante de refúgio para países onde corram o risco de perseguição.
A jurisprudência brasileira vem se ambientando e se adequando às normas internacionais e à legislação nacional de proteção ao refugiado e firmando sua posição no sentido de proteção dessas pessoas contra a extradição, deixando claro também que o instituto do refúgio não pode ser utilizado para impedir a responsabilização pela prática de delitos graves, sob pena de descrédito desse instrumento tão importante para a proteção da pessoa humana.
Informações Sobre o Autor
Carina de Oliveira Soares
Advogada; Mestranda em Direito Público pela Universidade Federal de Alagoas