Resumo: O objetivo deste artigo é descrever e analisar a primazia da aplicabilidade das normas do direito comunitário sobre a legislação dos países-membros da União Européia. Para tanto, abordar-se-á os princípios e as fontes do direito comunitário. Outrossim, utilizar-se-á como exemplo a recepção das normas comunitárias no ordenamento jurídico francês.
Palavras-chave: Direito internacional, direito comunitário, direito francês, União Européia, primazia da aplicabilidade.
Abstract : The aim of this paper is to describe and analyze the applicability of the primacy of Community law on the legislation of member countries of the European Union. For that reason, we will talk about the principles and sources of Community law. Also, it will use the example of the receipt of EU standards in French law.
Keywords: Iinternational law, European Union law, French law, European Union, the primacy of applicability.
Sumário: Introdução; 1. Os princípios do direito comunitário; 2. A primazia da aplicabilidade das normas do direito comunitário sobre a legislação dos países-membros da União Européia; 3. A recepção das normas comunitárias no ordenamento jurídico francês; 4. Considerações finais; 5. Referências.
Introdução
O direito comunitário não deve ser mesclado com o direito internacional clássico (seja público ou privado) nem com o direito dos Estados-membros. (SOUZA, 1999, p. 28). Deve-se ressaltar que enquadrar o direito comunitário em uma categoria jurídica é tarefa árdua.
“Sugere-se, assim como gênero novo, não passível de enquadramentos nas disciplinas tradicionais, direito esse em constante interação, enquanto ordenamento jurídico da Comunidade Européia, disciplina apresentando vínculos e interferências com o direito internacional, mas sobretudo, com os ordenamentos internos dos seus Estados-membros, ao mesmo tempo exercendo influência profunda e tendo incidência direta sobre estes, atuando como modificador e complemento.” (CASELLA, 1999, p. 247)
É mister falar das fontes do direito comunitário referindo-se ao direito comunitário europeu, pois falar dessas fontes é praticamente aludir à União Européia, haja vista, conforme já foi ressaltado anteriormente, trata-se de paradigma para as demais comunidades em formação.
“O termo “Direito comunitário” refere-se à ordem jurídica própria das Comunidades Européias. Trata-se de uma ordem jurídica especifica, fundada em tratados internacionais, emanada da vontade de certos Estados e fruto de um processo político de integração econômica. Por possuir características e princípios próprios, a doutrina toma o termo emprestado, com freqüência, para referir-se a esse conjunto de princípios consagrados na ordem jurídica européia.” (TRINDADE, 2007, p. 33-34)
O direito comunitário possui fontes próprias, as quais têm origem nos tratados constituídos e nas normas criadas com base neles. Pode-se classificar o direito comunitário em: primário e derivado.
“As fontes convencionais de direito comunitário são, antes de mais e fundamentalmente, os Tratados Comunitários. Mas outras convenções podem estar na origem das normas vinculativas da Comunidade: quer as concluídas pelos Estados-membros entre si quer as concluídas pela própria Comunidade com terceiros Estados.” (CAMPOS, 2004, p. 294)
No direito primário enquadram-se os tratados constitutivos e as revisões feitas. Eles estão no topo da posição hierárquica no que tange ao direito comunitário e, portanto, gozam de supremacia tanto sobre as demais normas comunitárias quanto sobre a dos ordenamentos jurídicos dos países-membros.
Tal posicionamento foi ratificado pelo acórdão 283/84, resultado da lide entre o partido ecologista Les verts e o Parlamento Europeu. Decidiu então o TJCE que “a Comunidade Econômica Européia é uma comunidade de direito na qual nem seus Estados-membros nem suas instituições escapam do controle da conformidade de seus atos à carta constitucional de base que é o tratado”. [1]
Esta primazia não está expressa em nenhum tratado, mas o art. 230 do TCE[2] induz a este entendimento. Ademais, a despeito de uma corrente doutrinária que prega a semelhança dos tratados constitutivos referentes à União Européia com a Carta da ONU, o TJCE afirmam que eles se tratam de uma carta constitucional da Comunidade.
É importante ressaltar que um tratado constitutivo posterior não revoga o anterior, pois eles são autônomos. Esta afirmação advém da leitura dos artigos 305 do TCE[3] e 40 do TUE[4].
O direito comunitário derivado é o resultante das atribuições dadas à comunidade e está previsto no art. 249 do TCE[5]. Mas o rol não é numerus clausus já que também são classificados como direito comunitário derivado os atos jurídicos que organizam o funcionamento interno da Comunidade Européia e o das suas instituições.(ALMEIDA, In: COSTA, 2009, p. 247)
Segundo os doutrinadores franceses Pierre Pactet e Ferdinand Mélin-Soucramanien a diferente entre direito comunitário originário e derivado é bastante simples.
“O primeiro se apresenta sob a forma clássica de convenções internacionais multilaerais, o segundo sob uma forma inteiramente nova, posto que é editado unilateralmente pelos órgãos comuns habilitados a tomar decisões ou elaborar normas que se impõem a todos os Estados-membros, a saber o Conselho, ao menos em direito, tratando-se, na verdade da iniciativa da Comissão, cuja grande importância já se conhece. Desconfiar-se-ia, entretanto, de uma terminologia um pouco flutuante, devendo certas decisões particularmente importantes e tomadas por unanimidade serem assimiladas a verdadeiras convenções modificativas.” (PACTET; SOUCRAMACIEN, 2007, p. 576), (tradução própria)[6]
1 Os princípios do direito comunitário
No que tange à União Européia, o Tratado da Comunidade Européia não se refere diretamente aos princípios gerais do direito comunitário. Entretanto é válido apresentar o que preconiza o art. 288 do TCE:
“A responsabilidade contratual da Comunidade é regulada pela lei aplicável ao contrato em causa. Em matéria de responsabilidade extracontratual, a Comunidade deve indemnizar, de acordo com os princípios gerais comuns aos direitos dos Estados-Membros, os danos causados pelas suas instituições ou pelos seus agentes no exercício das suas funções.
O parágrafo anterior aplica‑se nas mesmas condições aos danos causados pelo Banco Central Europeu ou pelos seus agentes no exercício das suas funções.
A responsabilidade pessoal dos agentes perante a Comunidade é regulada pelas disposições do respectivo Estatuto ou do regime que lhes é aplicável.”
Ora, da leitura deste dispositivo, pode-se entender que faz parte dos princípios gerais da União Européia a interseção entre os ordenamentos jurídicos dos Estados-membros. Não é por acaso, então, que eles, a fim de ingressarem na comunidade devem preservar por alguns princípios, como a democracia e a liberdade e que, apesar de Robert Schuman ter proclamado que a união entre os países do continente europeu estivesse aberta a qualquer um que quisesse dela fazer parte, os candidatos a membros da União Européia devem passar por uma série de exigências. Por tal razão, alguns países passaram anos para ingressar na referida comunidade e outros, até hoje, apesar de almejarem ardentemente fazer parte de tal comunidade, ainda não conseguiram, como é o caso da Turquia.
O TJCE já chegou a se referir aos princípios gerais do direito comuns a todos os Estados-membros como parte integrante dos princípios comunitários em vários casos, como ocorreu no Acórdão n. 4/73 decorrente da lide entre J. Nold, Kohlen- und Baustoffgroßhandlung contra a Comissão das Comunidades Européias.
“A comissão tem direito de autorizar uma regulamentação comercial restritiva de admissão à compra direta de combustíveis justificada pela necessidade de racionalização quanto à distribuição, contanto que aplicada da mesma maneira a todas as empresas envolvidas.
Os direitos fundamentais são partes integrante dos princípios gerais do direito e a Corte de justiça assegura o direito deles.
Assegurando a salvaguarda desses direitos, a Corte se inspira nas tradições constitucionais comuns aos Estados-membros e não admite medidas incompatíveis com as constituições dos Estados.
Os instrumentos internacionais concernentes à proteção dos direitos humanos aos quais os Estados-membros cooperaram ou aderiram podem também fornecer indicativos dos quais é conveniente levar em consideração no ordenamento comunitário.
Se uma proteção é assegurada ao direito da propriedade pelo acordo constitucional de todos os Estados-membros e acordaram garantias similares ao livre exercício do comércio, do trabalho e de outras atividades profissionais, os direitos então garantidos, longe de aparecerem como prerrogativas absolutas, devem ser consideradas em vista da função social dos bens e atividades protegidas.
Por esta razão, os direitos desta ordem são apenas garantidos regularmente sob reserva de limitações previstas em função do interesse público. Na ordem comunitária há a mesma legitimidade a fim de levar em consideração esses direitos de aplicação de certos limites justificados pelos objetivos de interesse geral perseguidos pela comunidade, desde que não viole a substância desses direitos. Não se saberia em qualquer caso aumentar as garantias acima mencionadas à proteção de simples interesses ou de oportunidades de caráter comercial, no qual a característica é inerente à própria essência da atividade econômica.” [7]
Um princípio fundamental no direito comunitário, e que pode ser notado a partir mesmo do surgimento da União Européia, é o princípio da democracia. Ele pode ser isto extraído do que apregoa o preâmbulo do Tratado da União Européia, na qual os países confirmam “o seu apego aos princípios da liberdade, da democracia, do respeito pelos direitos do Homem e liberdades fundamentais e do Estado de direito”. Ademais, o art. 6º. do referido tratado versa sobre este princípio.[8]
Outros princípios comuns, comuns à ordem comunitária, são aqueles que podem ser chamados de “liberdades”. Trata-se de dispositivos que ocasionam na liberdade de circulação de pessoas e serviços; de circulação de bens; da circulação de capitais. Aliás, grande parte dos princípios, dos objetivos e das funções da União Européia, advêm do princípio da igualdade.
“Todos os princípios e normas de direito comunitário relacionados com a justiça, derivam, no Tratado da União, desse princípio fundamental – a igualdade dos Estados entre si e a igualdade dos seus cidadãos, diante não apenas das normas nacionais, mas também das normas do direito comunitário.” (CAMPOS, 2004, p. 354)
Apesar de todos os princípios serem bastante importantes, para este estudo deve-se observar principalmente os da subsidiaridade e o da primazia das normas comunitárias sobre a legislação dos Estados-membros, o qual é aplicado fielmente na União Européia, porém que ainda é praticamente inexistente no que concerne ao Mercosul e ao Brasil, conforme se demonstrará.
A primazia da aplicabilidade das normas comunitárias não está explícita em tratado constitutivo das Comunidades Européias, no entanto, é a jurisprudência que o consagra absoluto. (ALMEIDA, In: COSTA, 2009, p. 254)
“O Tribunal considera que nenhum texto interno pode contrariar o direito decorrente do Tratado, em função de sua natureza específica original, sem perder seu caráter comunitário e sem colocar em risco a base jurídica da própria Comunidade. A primazia é fundada na natureza do direito comunitário, impondo-se com relação a qualquer norma interna, seja ela constitucional ou não.“(ALMEIDA, In: COSTA, 2009, p. 254)
Neste diapasão, se houver uma norma comunitária e uma nacional versando sobre o mesmo assunto deve sempre a norma comunitária ser aplicada em detrimento da nacional. Se o dispositivo do Estado-membro for anterior, ela deixa de ser vigente assim que passar a existir a comunitária; caso a legislação seja posterior, esta também é considerada inaplicável, uma vez que contraria os princípios do direito comunitário e entra em conflito com a norma da comunidade, a qual todos os Estados-membros e cidadãos comunitários devem estar subjugados.
É neste sentido o que decidiu o TJCE no acórdão Simmenthal, resultante de um processo prejudicial acerca da interpretação do art. 189 do Tratado da Comunidade Européia e sobre as conseqüências da aplicabilidade direta do direito comunitário no caso de conflito com eventuais disposições contrárias na legislação nacional.
“A aplicabilidade direta do direito comunitário significa que suas regras devem espalhar a plenitude de seus efeitos, de uma maneira uniforme em todos os Estados-membros, a partir de sua entrada em vigor e durante toda a duração de sua validade. As disposições diretamente aplicáveis são uma fonte imediata de direitos e de obrigações para todos os aqueles aos quais elas concernem, os quais se tratam dos Estados-membros ou de particulares; este efeito concerne também todo juiz que, sendo um órgão do Estado-membro, tem por missão proteger os direitos conferidos aos particulares pelo direito comunitário.
Em virtude do princípio da primazia do direito comunitário, as disposições do tratado e os atos das instituições diretamente aplicáveis tem por efeito, em suas relações com o direito interno dos Estados-membros, não somente se tornar inaplicável de pleno direito, do fato que com a sua entrada em vigor, toda disposição contrária à legislação nacional existente, mas ainda – no que se refere a essas disposições e atos são parte integrante, com prioridade, do ordenamento jurídico aplicável no território de cada Estado-membro – de impedir a formação válida de novos atos legislativos nacionais à medida que eles serão incompatíveis com as normas comunitárias.
O fato de reconhecer uma eficácia jurídica a qual seja a dos atos legislativos nacionais interfere sobre o domínio interior do qual se exerce o poder legislativo da comunidade ou, em outras palavras, incompatíveis com as disposições de direito comunitário, estaria negando, desta maneira, o caráter efetivo dos engajamentos incondicionais do tratado, e colocariam, dessa forma, em questão até mesmo as bases da comunidade.
O juiz nacional encarregado de aplicar, devido a sua competência, as disposições de direito comunitário, tem a obrigação de assegurar a plena efetividade dessas normas de deixando de aplicar se necessário e com base em sua própria autoridade, toda disposição contrária à legislação, mesmo posterior, sem que se tenha demandado ou esperar a eliminação prévia dela por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional”. [9]
2 A primazia da aplicabilidade das normas do direito comunitário sobre a legislação dos países-membros da União Européia
Os princípios do efeito direto e da primazia das normas comunitárias sobre as normas dos Estados-membros foram progressivamente reconhecidos pelas jurisdições nacionais. (CHALTIEL, 2006, p. 838) Entretanto, este reconhecimento não significa que não houve controvérsias anteriormente. As Cortes alemães e italianas, por exemplo, no final dos anos 60 e início dos 70, não admitiam o princípio da primazia caso houve falta de proteção aos direitos fundamentais na ordem jurídica comunitária. Tal proteção jurisdicional foi depois assegurada pelo TJCE e, por conseguinte, as jurisdições supremas começaram a aceitar o princípio da primazia.
Quanto ao princípio da aplicabilidade direta, ele é reconhecido pelos juízes nacionais na França, mas,algumas vezes, os argumentos utilizados são, de certa maneira, “sofisticados”, conforme o entendimento de Florence Chaltiel (2006, p. 841)[10]. Este argumento pode ser observado ao se analisar o caso Cohn-Bendit contra o Ministro do Interior francês.
Daniel Cohn-Bendit se insurgiu contra uma decisão de expulsão do Ministro do Interior ocorrida em 25 de maio de 1968, conseqüência de sua participação nos acontecimentos de Maio de 68. O requerente aludia à diretiva, de 25 de fevereiro de 1964, adotada pelo Conselho das Comunidades Européias. O Conseil d’État, do outro lado, alegava que as diretivas não podiam ser objeto de recurso contra ato administrativo individual, mesmo se tivesse ocorrido um atraso entre o início da vigência da diretiva e a medida adotada pelos Estados-membros para aplicar o conteúdo da diretiva.
Mas, a decisão pode ser vista como contraditória, em um determinado aspecto, posto que, apesar de não poder se utilizar recurso, ele pode pleitear a incompatibilidade entre os objetivos fixados pela diretiva e as medidas adotadas. O que observa é que pode haver um controle constitucional, semelhante ao que ocorre no Recurso Extraordinário no Brasil.
Neste diapasão apresenta-se um trecho do artigo publicado no site do Conseil d’État:
“Se, inicialmente, a divergência da jurisprudência entre a Tribunal de Justiça das Comunidades Européias e o Conseil d’État tenha sido destacado, os desenvolvimentos ulteriores conduziram a uma aproximação das posições entre as duas jurisdições na prática, sem por tal razão colocar em termo a diferença teórica. De uma parte o TJCE, precisou sua jurisprudência julgando que a diretiva era apenas diretamente invocável pelos particulares, em caso de falha do Estado em referente a suas obrigações de transposição, (TJCE, 5 abril 1979, Ratti, n°148/78, p. 1629), em deduzindo particularmente que uma diretiva não podia ser invocada ao encontro de um particular. De outra lado, o Conseil d’État tem, na prática, concedido pleno efeito às diretivas. Primeiramente, ele adimitiu que elas pudessem ser incovadas diretamente como suporte de um recurso por excesso de poder contra um ato regulamentar, que ele seja utilizado para assegurar sua transposição (28 de setembro de 1984, Confédération nationale des sociétés de protection des animaux de France, p. 512) ou não non (7 de dezembro de 1984, Fédération française des sociétés de protection de la nature, p. 410). Em seguida, Além disso, ele logicamente lhe estendeu o benefício do artigo 55 da Constituição que acorda aos tratados e acordos regularmente ratificados e aprovados a superioridade sobre as leis. (Ass. 28 de fevereiro de 1992, S.A. Rothmans International France et S.A. Philip Morris France, p. 81). Enfim, ele adimitiu, de maneira bastante liberal, a receptividade dos meios conclusos através do embate contrariededade do direito natural com uma diretiva. Ele julgou que o direito natural poderia ser incompatível com os objetivos de uma diretiva quabto ao que não comportava uma isencão fiscal que ela previa. (Ass. 30 de outubro de 1996, S.A Cabinet Revers et Badelon, p. 397). Enfim, ele adimitiu a falta de toda norma positiva, interpretada logicamente pela jurisprudência como fornecendo às pessoas públicas concernentes a uma liberdade de ação no domínio em caso, podia ser resguardada como incompatível com os objetivos previstos por uma diretiva, no domínio em questão, de regras procedimentais.” 22 de dezembro de 1978 – ministre de l’intérieur c/ Cohn-Bendit – Rec. Lebon p. 524[11]
3 A recepção das normas comunitárias no ordenamento jurídico francês
A Constituição Francesa de 1958 possui um artigo cujo conteúdo é a superioridade hierárquica das normas internacionais frente às nacionais. Eis o que preconiza o art. 55 da referida constituição:
“Art. 55 – Os tratados ou acordos regularmente ratificados ou aprovados têm, desde sua publicação, uma autoridade superior a das leis, sobre reserva, para cada acordo ou tratado, de sua aplicação pela outra parte. (tradução da autora)”[12]
Deve-se distinguir, no entanto, a aplicabilidade das normas de direito comunitário originário das de direito comunitário derivado. No segundo caso há um direito supranacional, pois se trata de um verdadeiro poder legislativo europeu, utilizado de maneira voluntária e coletiva. Assim ocorre porque os Estados-membros optaram por assinar os tratados constituintes da União Européia – direito comunitário originário – e, portanto, transferiram parte de seu poder para a União Européia.
Como existem diferentes categorias de normas comunitárias, também são diversas as formas de integração quanto ao direito nacional francês. Quanto a esta questão, de acordo com o entendimento dos doutrinadores franceses Pactet e Mélin-Soucramanien (2007, p. 577), a integração do direito comunitário relacionada ao direito francês é superior aquela decorrente da integração de normas internacionais porque o objetivo da comunidade é constituir uma ordem jurídica comum e integrada.[13]
“Tratando-se de convenções constitutivas ou modificativas, concebidas pela forma solene, a recepções delas é submetida aos processos e formalidades habituais. O Parlamento francês – ou o povo francês, caso se coloque em prática o art. 11 da Constituição – deve autorizar a ratificação delas e elas são publicadas nas condições específicas do direito francês. Em compensação, a aplicação delas vai bem além daquilo que prevê as regras de direito internacional visto que consoante a jurisprudência da Corte de justiça das comunidades européias (CJCE), e diversamente das referidas regras, as disposições delas não somente ligam os Estados membros como ainda são presumidas diretamente aplicáveis, em princípio, às pessoas privadas. As decisões do Conselho da União Européia, semelhantes, em razão da sua natureza e do seu processo, aos compromissos internacionais precisam, no seu conjunto, das mesmas observações. Enquanto que os nomes incluídos nas negociações internacionais da União não se beneficiam, a priori, de uma presunção de aplicabilidade direta.” (PACTET; MÉLIN-SOUCRAMANIEN, 2007, p. 577) (tradução livre)[14]
A aplicabilidade direta acontece no que concerne aos regulamentos, às diretivas e às decisões, pois elas não devem ensejar qualquer mecanismo de recepção no ordenamento jurídico interno. Tal circunstância não significa, apenas, que o mecanismo de recepção seja desnecessário; mas que, na verdade, ele é proibido. Foi neste sentido que o TJCE decidiu o litígio entre a Comissão das Comunidades Européias e a República Italiana: “Um Estado-membro não pode se eximir das disposições ou das práticas de ordem internas, e, particularmente das disposições ou das práticas orçamentárias, para justificar o não-respeito das obrigações e atrasos resultantes dos regulamentos comunitários”. (Acórdão – TJCE 30/72 de 8 de fevereiro de 1973)[15]
Ora a primazia das normas constitucionais sobre as leis nacionais diz respeito a uma primazia jurídica, a qual deve ocorrer em todas as jurisdições. O Conseil d’État, após resistência, decidiu, assim, como a Cour de cassation, manter-se a favor da primazia da norma internacional sobre a norma legislativa, mesmo que posterior. Estas duas Cortes de alta jurisdição são impossibilitadas de censurar o legislador, entretanto, quando chamadas a se pronunciar, devem apreciar a compatibilidade entre as duas normas ou, no caso de incompatibilidade, dar preferência à comunitária. Ademais, o máximo que pode fazer o Conseil d’État, no caso de desrespeito à norma comunitária, é aplicar uma sanção ao Estado.
“De um lado, a condição de reciprocidade, prevista pelo artigo 55, não teria, em princípio um grande papel, ao menos no que concerne aos regulamentos comunitários posto que eles são diretamente e imediatamente aplicados no território e a toda a população dos Estados-membros. Em contrapartida, esta condição reencontra sua força no tangente às diretivas, que podem ser objeto de medidas de execução estabelecidas em datas diferentes. Por outro lado, e sobretudo, as convencões institutivas colocaram em evidência uma alta jurisdição comunitária, podendo o TJCE, conhecer o recurso em caso de omissão do Estado, o que pode certamente ocorrer em meio às possíveis faltas de edição de normas nacionais em contraposição com as normas comunitárias. Todavia, mesmo se a jurisprudência do TJCE só tem uma característica declaratória e se ela não pode anular os atos legislativos ou regulamentares, isso não significa que as autoridades nacionais não tenham que se conformar com os julgamentos do TJCE, pois o tribunal pode ser provocado de novo. A primazia das normas comunitárias, então, é particularmente bem garantida.” (PACTET; MÉLIN-SOUCRAMANIEN, 2007, p. 580) (tradução da autora)[16]
Um caso de divergência entre a lei comunitária e a constitucional que vale ser citado é o da Convenção de Schengen de 10 de junho de 1990. Consoante a referida convenção seria a União Européia a encarregada de analisar, primeiramente, o pedido de asilo, haja vista que se trataria de competência exclusiva. O Conselho Constitucional se posicionou contra, pois haveria um choque entre a Convenção de Schengen e os valores constitucionais, previstos no preâmbulo de 1946, mais especificamente na alínea 4, a qual tem o seguinte preceito: “Todo homem perseguido em razão de sua ação em favor da liberdade tem direito de asilo nos territórios da República”[17]. Esta situação obrigaria a França a rever os pedidos de asilos já recusados.
A fim de resolver o impasse, o Conseil d’État foi favorável a uma revisão constitucional cujo resultado almejado seria a integração das cláusulas comunitárias no ordenamento jurídico francês. Foi assim que se introduziu o art. 53-1 na Constituição em 25 de novembro de 1993, o qual possui o seguinte teor:
“Art. 53-1. A República pode concluir, com os Estados europeus que são unidos por engajamentos idênticos no tocante ao asilo e à proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, acordos determinando suas competências respectivas para o exame dos pedidos de asilo que lhes são apresentados.
Todavia, mesmo se o pedido não seja de sua competência em virtude desses acordos, as autoridades da República tem sempre o direito de dar asilo a todo estrangeiro perseguido em razão da sua ação em favor da liberdade ou que solicita a proteção da França por outro motivo. “(tradução minha)[18]
Com o acréscimo do dispositivo acima referido houve uma repartição de competências quanto ao asilo, entre a União Européia e a França. O país não deixou de obedecer a Convenção de Schengen nem, portanto, de aplicar a norma comunitária, o que o fez honrar o princípio do pact sunt servanda, todavia reservou para si o direito de aceitar quem lhe conviesse dentro de seu território, a despeito da competência conferida à União Européia.
Outro caso semelhante foi o do referendo de 2005, no qual a França rejeitou a “Constituição Européia”. O Conselho Constitucional encontrou discrepâncias entre a Constituição francesa e o tratado ao qual se referiam precocemente como Constituição. Para haver a recepção de tal tratado, deveria ser aprovado um projeto de lei (o de 1º. de março de 2005) que mudaria drasticamente o Título XV da Carta Maior Francesa (Des communautés européennes et de l’Union Européenne). No entanto, este projeto restou suspenso já que o referendo obteve um resultado negativo.
4. Conclusão
Conforme pode ser observado no decorrer deste trabalho, o direito comunitário é um ramo do direito, o qual surgiu através do amadurecimento da União Européia. Tal comunidade originou-se no período pós-guerra almejando a recuperação do continente europeu. “A trama que hoje forma a União Européia não foi obra dos acadêmicos. Não constitui um projeto filosófico e tampouco jurídico. De outro lado, ele aparece como um fruto da razão prática, do trabalho prudente do estadista”. (GUSSI, 2006, p. 120) Conclui-se, deste modo, que a formação da comunidade européia é de nível pragmático.
Ademais, o lema da União Européia – “União na diversidade – representa a proposta comunitária de respeitar os diferentes níveis econômicos, políticos e culturais entre os Estados-membros.
“Nesse ponto, é interessante o papel da cultura. Salvo em questões radicais, como é a xenofobia, a integração cultural não é um pressuposto absoluto em relação à integração econômica, política e jurídica. Não deve ser objetivo comunitário a uniformização da cultura européia sob um determinado paradigma. Como a cultura não está no campo estrito dos objetivos comunitários, deve continuar a cargo do Estado, ou ainda das sociedades menores que o compõe.” (GUSSI, 2006, p. 124)
O objetivo é lutar pelo bem comum, neste caso, de todos os países-membros da União Européia. Para atingir tal fim, a comunidade é encarregada daquilo que os Estados-membros não poderiam fazer ou que fariam de uma maneira menos eficiente quando se comparada àquela que poderia ser feita pela União Européia. Esta situação se concretiza através do princípio da subsidiariedade, cuja origem é a Doutrina Social da Igreja, mais especificamente nas Encíclicas Quadragesimo Anno e Pacem in Terris.
Ao se questionar se tal princípio não violaria a soberania dos Estados-membros observa-se a evolução da supranacionalidade, acentuada após a metade do século XX.
“O processo supranacional europeu não se deu com base em potestas, mas sim com base em autctoritas, como distinguiam muito bem os medievais. Tomou seus alicerces na adesão espontânea e não em imposições injustificadas.
É nesse sentido que podemos seguramente dizer que ele é fruto muito mais de um eficiente exercício de soberania que uma negação dela. Percebeu-se a existência de um bem comum supranacional, e o modo de operacionalizá-lo foi justamente o modelo comunitário. (GUSSI, 2006, p. 122)”
Referências bibliográficas:
Notas:
Informações Sobre o Autor
Juliana Emanuelle Dutra de Barros
Jornalista e advogada, membro da Société de Législation Comparée e aluna do curso de especialização em direito público do ATF Cursos Jurídicos