Resumo: Desde os tempos mais primórdios os direitos do homem é palco de grandes construções teóricas e com o passar dos anos os Direitos Fundamentais foram se desenvolvendo de acordo com sua necessidade, continuando hoje em dia o centro das discussões jurisprudenciais e doutrinarias a respeito de sua real efetividade no que tange as normas de eficácia contida que dependem de políticas públicas e econômicas, especialmente tratando-se de direito à saúde.Nesse sentido estes debates teóricos tomam mais força quando o assunto é a preservação da vida humana tendo como atores principais para sua proteção, a administração pública e o judiciário. Isso ocorre porque a princípio existem necessidades básicas para a sobrevivência do homem e o Estado muitas vezes não possui meios para sua concretização invocando a teoria da reserva do possível (impossibilidade de promover certos direitos sem prejuízo de outros),. Quando isso ocorrer deve-se recorrer ao judiciário, sua intervenção , nestes casos, significa a proteção do instituto mais protegido de nossa Constituição (dignidade da pessoa humana -vida) para que não venha a sucumbir por falta de recursos. O contra posto da reserva do possível chama-se teoria do mínimo existencial que objetiva condições mínimas para que a vida seja preserva, negando a abstenção do Estado para sua aplicação. Entende-se as duas teorias como legitimas, logo suas aplicações variam de caso para caso, sendo atributo do judiciário a resolução da lide, ou seja, a decisão a ser tomada será de livre convencimento do julgador, tendo como base os princípios da proporcionalidade e razoabilidade como fundamentação. Este trabalho foi orientado pelo Professor Dr Mauricio Reis.
Palavras-chave: Reserva do possível, Direitos Fundamentais, mínimo existencial e Direitos sociais.
Abstract: From early times more human rights is the stage for major theoretical constructs and over the years, the Fundamental Rights have been developed according to your needs, continuing today the center of discussions jurisprudence and doctrine concerning its efficacy regarding the efficacy standards herein which depend on economic and public policy, especially since it is right to sense saúde.Nesse these theoretical debates take more force when it comes to preserving human life has as main actors for their protection, public administration and judiciary. This is because the principle there are basic needs for survival of man and the state often lacks the means for achieving them by invoking the theory of reserve for (failure to promote certain rights without prejudice to the other). When this occurs, we must resort to the judiciary, their intervention in these cases means the protection of the institute more protected from our Constitution (the dignity of human life) so that will not succumb to lack of resources. The position of the reserve against possible is called the minimum existential theory that aims minimum conditions for life to be preserved by denying the State’s failure to its application. It is understood the two theories as legitimate, so their applications vary from case to case, being the attribute of judicial resolution of the dispute, namely the decision to be made will be free of conviction of the judge, based on the principles of proportionality and reasonableness as reasons.
Keywords: Reservation possible, Rights, and existential minimum social rights
Sumário: 1.Introdução. 2. A evolução dos Direitos Fundamentais. 2.1. Desenvolvimento histórico dos Direitos Fundamentais. 2.2. Antiguidade clássica e idade média. 2.3. Idade Moderna. 2.4. Desenvolvimento do Estado Liberal. 2.5. A Crise do Estado Liberal e o desenvolvimento do Estado do Bem-Estar social (Welfare State). 2.6. O Estado Democrático de Direito. 3. Características e conceitos dos direitos fundamentais. 3.1. A definiçâo dos direitos fundamentais. 3.2. Classificações. 3.3. Direitos Fundamentais de Primeira Dimensão. 3.4. Direitos de Fundamentais de Segunda Dimensão. 3.5. Direitos Fundamentais de Terceira Dimensão. 3.6. Direitos Fundamentais de Quarta Dimensão. 3.7. Direitos fundamentais em sentido formal e sentido material. 3.8. Diferença entre direitos fundamentais, garantias fundamentais e garantias institucionais. 4. A eficacia dos direitos sociais relativos a saúde: reserva do possível x mínimo existencial. 4.1. Possibilidade de intervenção jurídica: Considerações sobre a Separação dos poderes, reserva do possível e mínimo existencial. 4.2. Conclusão. Referências
1. INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 nasce com a intenção de que sua sociedade tenha como base a justiça social e por isso previu em seu artigo 6º e 196 a garantia de todos terem acesso à saúde. Nossa carta Magna foi à pioneira em trazer os direitos sociais para dentro de uma legislação brasileira e dar ao termo cidadão outro significado, ou seja, individuo repleto de direitos e garantias, pois em nenhuma outra Constituição do Brasil atribuíram tanto valor ao homem, tendo conceito de cidadão apenas sob o aspecto de nacionalidade[1].
Esta nova visão perante o homem desenvolve-se por iniciativa da Assembléia Constituinte criando movimento sanitarista que deu origem ao Sistema único de Saúde.[2] Nesse sentido o Estado cria Sistema Único de Saúde (SUS), com o intuito de fazer uma reforma na saúde baseando-se nos princípios da universalidade de cobertura com atendimento integral, gratuito, com equidade e também descentralizar assistência dos planos de saúde. Entretanto ressaltar que o SUS não surge com a intenção de competir com o setor privado e sim complementá-lo ofertando serviços e dando prioridade para as atividades preventivas e controle social através de conselhos de saúde e participação da comunidade. Ou seja, o SUS foi definido não apenas pela medicina curativa, mas sim como um requisito para o exercício da plena cidadania[3].
Contudo não é desta maneira que acontece, seguidamente ouvimos nos noticiários que os Direitos sociais estão cada vez mais difíceis de ser concretizados, principalmente no que tange ao setor da saúde, o governo diz que não pode fazer investimentos porque não há recursos para investir nesta área[4]. Os motivos aparentemente são a falta de verbas e políticas de redução de gastos que não são cumpridas, até mesmo verbas publicas que são mal empregadas pelos nossos representantes no governo[5].
O Estado se utiliza de uma norma técnica, ou seja, diz que o artigo 196 da Constituição Federal se trata de uma norma programática de eficácia contida ou limitada, logo, depende de lei que a regule, nesse sentido fica a critério do poder discricionário do Estado a aplicação dos recursos disponíveis[6]. Com o passar dos tempos o positivismo perdeu forças e dando espaço a interpretação, ou seja, a saúde não é mais vista apenas como uma norma programática e sim como um Direito social fundamental inerente ao individuo para o alcance de sua dignidade e cidadania plena.[7]
A Constituição Federal de 1988 elenca em seus artigos Direitos e garantias Fundamentais, não apenas no artigo 5º, mas em toda sua essência logo por esse motivo o Estado não deve se eximir deste dever prestacional[8], Contudo o Estado não faz metade do que prometera na área da saúde, o cidadão é obrigado a enfrentar filas imensas para receber um atendimento precário e ainda por cima com baixa qualidade fornecidos pelo SUS, mas ainda sim a maioria dos cidadãos brasileiros é dependente dele. Nesse sentido surge à dúvida, como o Estado tratara o individuo que não tem condições de ter um plano de saúde, já que o este não garante o direito a saúde?
Eis que surge o conflito entre a Reserva do possível e o Mínimo existencial. Acontece que de um lado o Estado dizendo que não há recursos para custear a assistência médica, pois as verbas já foram divididas e aplicadas, e no outro lado princípios e fundamentos que garantem o acesso de todos para se ter uma vida digna. Diariamente inúmeras pessoas procuram o Ministério Publico, defensoria publica e advogados particulares para que o Estado forneça medicamentos e/ou tratamentos que necessitam diante da negativa do governo.[9] Nesse sentido. Note-se que o poder judiciário deve intervir para que o direito a saúde não se torne apenas uma convocação política, estando a critério do convencimento dos poderes executivos e legislativos.[10]
O Direito a Vida é algo inerente ao individuo e traz a tona o princípio da dignidade da pessoa humana que é direito fundamental previsto em nossa constituição. Ingo Wolfgang Sarlet[11] diz que o a dignidade da pessoa humana é uma qualidade intrínseca e distintiva de cada pessoa e isso mereceria respeito do Estado e de seus pares, pois cada pessoa tem sua gama de Direitos e deveres fundamentais que o asseguram de qualquer ato desumano ou degradante, e isso faz com que tenha garantias mínimas para sua existência.
E ainda Ricardo Lobo Torres salienta[12] que o mínimo existencial é um conjunto de condições fundamentais para ser ter liberdade, e especifica que os direitos a saúde, educação e alimentação, mesmo que não se mostrem principais, são inerentes para que o homem tenha o mínimo para que possa sobreviver. E não apenas sobrevivência física, mas também psicológica.
Tendo em vista este conflito veremos ao longo desta monografia, como surge estes dois conceitos, situações onde são abordados, conflito que surge entre o judiciário, executivo e legislativo no que tange a real efetividade do direitos social a saúde.
2. A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS, CONCEITOS E CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS
2.1. DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Para se ter uma melhor compreensão do que são os direitos fundamentais, será realizado um relato histórico de como surgiu estes princípios fundamentais que norteiam nossa Constituição Federal de 1988, pois é somente a partir do reconhecimento dos Direitos Fundamentais nas constituições que tais garantias assumem seu papel protetivo.
2.2.Antiguidade clássica e idade média
A idéia de que o homem seria diferente dos animais vem da antiguidade clássica, por volta do século de VIII A.C, (período axial). É neste século que a filosofia nasce, substituindo a mitologia pelo saber lógico, trazendo o homem para os centros das discussões para se compreender a proposta da razão humana e dando início a teoria jusnaturalista.[13] Esta corrente consiste na idéia de que o ser humano é detentor de direitos preexistentes a ele – homem, provinda da vontade de Deus, obedecendo suas leis naturais, negando a intervenção do homem como autoridade competente para a qual todos os homens devem respeitar inquestionavelmente estas leis.[14]
De modo especial observa-se que valores como dignidade da pessoa humana, liberdade e igualdade entre os homens possuem raízes na filosofia clássica, discutidas constantemente por filósofos greco-romanos e cristãos[15]. Os filósofos estóicos (321 Antes de Cristo, até a era cristã – metade do século III) como Crisipo, Zênon e Cítion foram os pioneiros a discutir as razões da existência do homem. A idéia sustentada por estes pensadores era que o ser humano detinha desde o nascimento consciência e percepção de si, dotados de razão, porém os estóicos não viam o homem como cidadão de direitos positivados, a não ser numa visão cosmopolita política, que na visão deles o mundo era uma cidade, que seguia uma lei natural, iniciando a idéia de universalização[16].
Para Fábio Comparato, o período axial é onde o homem é reconhecido como igual perante seus pares, repleto de liberdade e razão, independente de raça, cor ou credo. É este período que inicia-se os primeiros passos referente a idéia de que o homem é repleto de direitos universais e inerentes a si. Porém foram necessários vinte e cinco séculos para que fosse elaborada a declaração Universal dos Direitos Humanos, com a idéia de que todos os homens eram iguais, libertos e possuidores de direitos e deveres. [17]
Segundo alguns historiadores, a corrente jusnaturalista teria nascido em 440 Antes de Cristo, pelo dialogo entre Creonte e Antígona, onde esta desobedece uma lei imposta de seu tio (Creonte), requerendo o direito de sepultamento de seu irmão. Antígona traz em sua discussão a questão de que como um ser mortal poderia criar uma lei que divergia de uma norma natural criada pelos deuses, ou seja, a partir deste momento a teoria jusnaturalista inicia sua expansão defendendo a idéia de que existe uma lei eterna que regra todos os homens e coisas por vontade de um Deus e que não caberia ao homem legislar sobre direitos[18].
Todavia, para os filósofos gregos não bastavam apenas leis naturais como limite ou garantia de direitos, mas sim uma lei escrita que regrasse a sociedade para que todos detivessem liberdade e igualdade, não importando se fosse rico ou pobre[19]. Nesse sentido, pode-se dizer que foi em Atenas que a lei escrita (leis positivadas) iniciou a desenvolver-se também, contudo, jamais excluindo o direito natural como fonte. Aristóteles dizia que a lei natural é a base do direito positivo, e que essas duas posições não devem ser divididas[20], pois dependendo de cada caso ou momento poderiam ser utilizados os costumes jurídicos e em outros momentos leis universais[21], como por exemplo, os versos de Aristóteles em sua obra “A política”, citada por Canotilho, reconhecendo os direitos naturais de liberdade do homem, contudo, defende que o homem na qualidade de escravo, este deve obedecer incondicionalmente seu amo, pois a pessoa que possuía este poder perante ele (escravo ou súdito) detinha esta condição por força de lei estatal.[22]
O cristianismo, diferente do pensamento grego, acreditava somente no direito natural, ou seja, acreditavam apenas na lei divina, na lei de Deus, acreditavam na idéia de livre arbítrio, pois segundo a Bíblia (antigo testamento), Deus criou o homem pela sua imagem e semelhança, e por isso todos os homens deviam ser libertos[23] e considerados iguais.[24] Paralelamente ocorre também o processo de laicizarão do direito natural com o governo, pois para Grócio independente da crença religiosa do homem, este seria dotado de direitos e deveres, afirmando sua validade universal.[25]
A ruptura da antiguidade clássica e desenvolvimento da IDADE MÉDIA, configura-se, segundo o professor Lenio Streck, por dois elementos principais, a primeira é com relação ao cristianismo, pois é nesta época que é lançada a idéia de universalização do homem, e há a recusa dos governantes a submeter-se a autoridade da igreja, da mesma forma, a segunda com respeito ao feudalismo, ou seja, uma aristocracia militar dominavam certo território e obrigavam os habitantes a trabalhar nestas terras para os senhores feudais que detinham poderes econômicos, políticos e militar [26] A partir do século XVI os cristãos passariam a mudar sua concepção sobre os direitos naturais. Santo Tomás de Aquino, assim como Aristóteles, defendia a existência do direito natural e direito positivo, para que possam existir limitações aos poderes do Estado. Para Aquino, a desobediência dos direitos naturais pelos governantes deveria ser regulada por leis criadas pelo homem, alterando radicalmente o conceito cristão, contudo baseando-se sempre nos direitos naturais.[27]
A partir deste momento (IDADE MÉDIA) o direito natural acabou tornando-se presente em inúmeros estatutos e cartas de direitos de forma positivada, assim desenvolvendo uma nova corrente chamada positivismo[28], (embora em algumas destas declarações de direitos fosse negada a aplicação de direitos para certas classes sociais),[29] este momento é considerado um dos passos iniciais para o desenvolvimento dos Direitos Fundamentais e o constitucionalismo, iniciando-se com a Magna Carta assinada em 1215 no Reino Unido dando início a proteção dos direitos individuais.[30] O teor deste documento tinha o cunho de limitar o poder dos príncipes em favor dos indivíduos, pois todo o poder do Estado pertencia a ele e senhores feudais. Desta forma o povo organizou-se em contra-posição regime adotado e outorgaram a Magna Carta, que continha direitos como aumento de impostos somente com aprovação do Conselho do Reino (colegiado popular), proibição de prisões arbitrarias, e aplicação de penas de acordo com a gravidade do delito, assim como liberdade religiosa[31]. Albert Noblet, citado por José Afonso da Silva, concorda com a crítica deste Autor, pois este documento apenas abrangeu a gama de pessoas envolvidas, quando a Magna Carta fala em liberdade, os homens libertos contavam-se, e enquanto os não libertos nem sequer foram reconhecidos pelo documento.[32]
2.3 Idade Moderna
A primeira forma de Estado que surgiu na idade moderna é denominada de Estado Estamental, (transição do Estado medieval para Estado Absolutista – strictu sensu). Este Estado é formado por indivíduos da alta nobreza, baixa nobreza, clero e burguesia de outras cidades. Nesse sentido, é a partir deste momento que o controle social e político inicia a pertencer aos poderes públicos, pois com o advento da economia de mercado e a ascensão do Estado moderno, formalizasse a separação entre o direito público e privado (sociedade civil / sociedade política), em outras palavras pode-se dizer que com o crescimento do capitalismo surgiram um conjunto de normas que disponibilizassem garantias aos súditos (burgueses em ascensão).[33] Eis que emerge o Estado absolutista, tendo como base a soberania, levando a concentração dos poderes aos monarcas, originando as monarquias absolutistas, personificando o estado na figura do Rei, pois para seus súditos o rei seria o “representante” de Deus na terra. O monarca era considerado o proprietário do Estado tal qual como faziam os senhores feudais da idade média., contudo não praticavam a tirania, respeitando sua limitação de acordo com os valores e crenças da época.[34]
Um exemplo de pacto proposto é a Petition of Rights (Petição de Direitos) de 1628 no Reino Unido, este documento era focado nos súditos de sua majestade, prevendo diversos direitos e liberdades,[35] sendo “conhecida como a Pátria do Liberalismo”.[36] Os cidadãos requisitavam o reconhecimento de direitos como, proibição da utilização da corte marcial (mecanismo utilizado para demonstrar poder do monarca) perante os civis quando o rei se sentisse ameaçado e garantia à vida e liberdades individuais e direito a propriedade.[37] Os direitos e garantias já estavam positivados pela Magna Carta, contudo a Petição de Direitos serviu para que houvesse a transação de poderes entre o parlamento o Rei, pois como a assembléia já possuía o controle das riquezas do reino o monarca se viu obrigado a aceitar esta carta de direitos.[38]
Diferentemente dos documentos citados anteriormente, o mais importante para a Inglaterra se chama Bill of Rights (declaração de Direitos) em 1688. Esta carta de direitos limitava o poder do monarca e solidifica o parlamento como órgão fiscalizador dos atos do Rei. Eis então que surge a Monarquia constitucionalizada e que esta submetida ao poder do povo. O principal incentivador para que houvesse o rompimento deste paradigma foi John Locke, que a partir de seus pensamentos liberais acreditava que deveria haver um controle imparcial perante o povo.[39]
Nesse sentido, conforme Alexandre de Moraes explica: o pensamento predominante nesta época era o religioso, e por isso acabou desenvolvendo-se essas mudanças nos paises da Europa ocidental, pois as teorias contratualistas de Hobbes e John Locke (com base no jusnaturalismo) acabaram ganhando forças nos séculos XVII e XVIII incentivando as revoluções da época, bem como a transição para o Estado liberal.[40]
A teoria que iniciou a transição do Estado absolutista pra o Liberal foi a tese de John Locke, que se baseava nas seguintes argumentações: o homem em seu estado natural tem liberdade total para dispor de si próprio e de seus bens, regido apenas por um direito natural que impõe respeito a outros. A execução de uma pena para quem descumprisse algum direito natural caberia a todos que estivessem habilitados, pois todos os integrantes dessa ordem natural são iguais, sem distinção de raça, cor ou religião, contudo a execução dessa pena deveria ser conforme sua transgressão, argumenta ainda, sobre a liberdade do homem em seu meio natural e a propriedade[41]. Segundo este pensador, a liberdade é inerente ao homem, não estando a critério de ninguém sua limitação, salvo se houver legislação pertinente autorizada pela sociedade civil, ao contrario disso o homem vive na condição de escravo, sempre aprisionado ao detrimento de outra pessoa.[42]
Quanto à propriedade de coisas (imóveis ou moveis), na concepção de Locke as coisas existente em seu estado natural, estes são de propriedade comum, até que alguém a encontre, quando isso ocorre tal objeto torna-se sua propriedade, entretanto, existe o problema, conforme passagem de sua obra “Segundo Tratado de Direito Civil”. Locke se perguntava, como saber se algo, quando encontrado não se tratava de um bem de outra pessoa? Como por exemplo, frutas, animais ou terras: [43]
“Aquele que se alimentou com bolotas que colheu sob um carvalho, ou das maçãs que retirou das árvores na floresta, certamente se apropriou deles para si. Ninguém pode negar que a alimentação é sua. Pergunto então: Quando começaram a lhe pertencer? Quando os digeriu? Quando os comeu? Quando os cozinhou? Quando os levou para casa? ou Quando os apanhou? E é evidente que se o primeiro ato de apanhar não os tornasse sua propriedade, nada mais poderia fazê-lo. Aquele trabalho estabeleceu uma distinção entre eles e o bem comum; ele lhes acrescentou algo além do que a natureza, a mãe de tudo, havia feito, e assim eles se tornaram seu direito privado(…)[44].
O que John Locke queria dizer era que existia um problema do estado natural, que são as injustiças, ou seja, justiça com as próprias mãos, pois a partir do momento que um individuo tiver seu direito natural violado ou até mesmo de um amigo, este poderá ser parcial para um dos lados. E é por este motivo que John assegura que é necessário um governo civil, e não mais divino, para controlar inconveniências de um estado natural, caso contrario podendo se chegar a um Estado de guerra, como este autor chama, ou seja, inimizades, destruições, atentados contra a vida e propriedades de outrem. Logo, seria somente com uma força externa, admitida por um contrato social entre indivíduo e Estado para se ter um controle e harmonia social.[45]
Gilmar Mendes, em sua obra chamada “Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais”, diz que este pensador foi um dos primeiros a trazer os direitos naturais baseando-se num contrato social entre governados e governantes, ou seja, os governantes ou soberanos daquela época deveriam seguir as regras do direito natural, considerando o homem como um integrante daquela sociedade, independente de seu status social[46]. Por sua vez, Ingo Wolfgang Sarlet diz que Locke trouxe a idéia de contrato entre individuo e Estado com base nos direitos naturais, mas o raciocínio de John era que o Estado apenas assegurasse o direito a propriedade e a vida, criando os princípios norteadores do pensamento individualista, inspirando o iluminismo e pensadores como Rousseau, Beccaria e outros[47].
O autor Lenio Streck ensina em sua obra “Ciência política e Teoria do Estado” que a instituição “Estado” é criação do homem, que em consenso tácito ou expresso entre indivíduos de uma sociedade, finalizam o estado natural e iniciam o Estado Social e Político, ou seja, o contratualismo tem a finalidade de estabelecer um acordo de vontades entre governantes e governados para sanar as deficiências do estado de natureza.[48] É a partir deste momento que se enxerga as diferenças entre o Estado Medieval e o Estado Moderno, neste ultimo, o poder não se centraliza nas mãos de apenas uma pessoa, há uma dissociação da autoridade e individuo. Contudo a fiscalização dos atos praticados pelos indivíduos da sociedade, necessitam de um titular, que neste caso torna-se o Estado, que para sua existência é necessário, território, nação e autorização do povo, diferentemente do Estado medieval, a qual baseava-se o poder no patrimônio. [49]
Esse pensamento (contrato social) veio a trazer inspirações para a declaração de Direitos de Virgínia (declaração de direitos na luta pela independência dos Estados Unidos da América em 1776) e Revolução Francesa (1789). Diante destes discursos surge o movimento constitucionalista. Este movimento nasce contra o regime absolutista e a favor do liberalismo, ou seja, a garantia do cidadão perante o Estado de sua vida, propriedade e liberdade, este com princípios baseados na economia livre. Logo, a intenção deste movimento era que o poder não se detivesse nas mãos de uma única pessoa, mas sim que fosse dividido entre poderes e que fosse declarados Direitos Individuais em um documento constitucional e também que os indivíduos de sua sociedade tivessem liberdade.[50]
Nas palavras do Ministro do STF Gilmar Mendes:
“O constitucionalismo reivindica a segurança jurídica que o regime absolutista negava por definição. Neste contexto explica-se o impulso que as idéias de respeito a um núcleo mínimo de direitos como a propriedade e as liberdades de profissão , de ação e de locomoção, obtiveram no período” [51]
2.4 Desenvolvimento do Estado Liberal
O Estado liberal e os Direitos Fundamentais começam a tomar força a partir dos acontecimentos da revolução Americana, que surge no século XVIII por habitantes colonizados que viviam no litoral leste da América do norte sob poder da Coroa Britânica. Os indivíduos que viviam nas treze colônias não possuíam nenhum tipo de privilégios, até mesmo as pessoas nomeadas pelo Rei, como por exemplo, governadores e funcionários administrativos que ajudavam a coordenar as treze colônias[52].
Ocorre que o governo Londrino se endividou por conta da guerra dos sete anos (Inglaterra contra França) e acabou por interferir no setor mercantil das treze colônias aumentando os impostos e taxas durante 150 anos[53]. Miguel Reale analisando tal circunstancia, ensina que por causa deste contexto, surge um descontentamento por parte dos advogados, fazendeiros e proprietários de terras que buscaram influenciar nas políticas coloniais, iniciando inúmera revoltas. [54] Nesse sentido, colonos e ingleses entraram em conflito iniciando uma guerra pela independência das terras americanas, onde de um lado estavam os burgueses, lutando pela independência de suas colônias, do outro, os ingleses buscando a ordem. O povo norte-americano teve apoio da França e Espanha (potencias rivais no mercado do Reino Unido). E em 16 de junho de 1776 foi criada a Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia. [55]
Ou seja, os sujeitos detentores de poder econômico (burgueses) abriram mão deste direito para tomar a si o poder político, até então privilegio da aristocracia, tendo como base uma “constituição”, onde constariam direitos e deveres da sociedade e Estado.[56] Nesta via, mais uma vez na historia dos Direitos Fundamentais, direitos foram positivadas em um documento. A declaração de Virgínia trouxe em seus 16 artigos o reconhecimento da existência de direitos naturais inerentes ao homem, como a igualdade (sem privilégios, salvo os cargos de função pública), liberdade, direito a vida, propriedade, e ainda soberania popular (governo do povo para o povo) e a tripartição dos poderes[57].
Dias após a Declaração do Bom Povo de Virgínia, Thomas Jefferson, assinou a declaração de independência (04 de julho de 1776) das treze colônias, que em seu texto trazia a consideração de que todos os homens são iguais, libertos e possuidores da vida, pois seriam dotados de direitos por vontade do Criador[58]. Com a promulgação da Constituição Norte-Americana, aprovado na Filadélfia em 17 de setembro de 1787, pelas treze colônias, esta constituição tinha os seguintes objetivos: fortalecimento do novo governo central, unicidade federalista e proteção à propriedade privada.[59] Contudo, em 1791 Thomas Jefferson e James Madson incluíram uma carta de direitos chamada de Bill of Rights do povo americano e que deram origem as dez primeiras emendas a Constituição Americana, nesses artigos estariam direitos como, inviolabilidade da propriedade, direitos de defesa, julgamento público, abolição da escravatura, nacionalidade, igualdade perante a lei, permissão de voto as mulheres, entre outros[60]:
Poucos anos na França, após a independência dos Estados Unidos, a burguesia francesa com o apoio da população e incentivados pelos pensamentos iluministas de Voltaire e Rousseau, acabaram por entrar em conflito com o chamado “antigo regime” e iniciando a Revolução Francesa[61]. Entretanto é de mister explicar quem foram os idealizadores, pois não se pode falar em Revolução Francesa, sem antes explicar quem foram os “Iluministas”.
Os pensadores iluministas eram assim chamados pelo fato de sempre buscar respostas e desvendar os fenômenos da razão humana, tendo como princípios a efetivação dos direitos naturais. Para os Iluministas, o jusnaturalismo deveria ser comparado com a noção de justiça, pois todos os homens seriam livres por natureza e qualquer privilegio era considerado antinatural.[62] Pensadores Iluministas como Locke, Voltaire, Montesquieu, Diderot, Condorcet e Rousseau foram os norteadores desse movimento, e construíram um forte pensamento intelectual que acabou ruindo o sistema social feudal em que viviam e servindo como um núcleo de idéias filosóficas para a burguesia francesa[63].
Nesse sentido, pode-se dizer que a burguesia francesa, conjuntamente com o pensamento Iluminista, foram os idealizadores da Revolução Francesa, pois seus pensamentos tinham muito em comum e confrontavam-se com o “antigo regime”, como por exemplo, o individualismo, liberdade econômica, o contrato entre a sociedade e o Estado, igualdade e propriedade[64]. O “antigo regime” era assim chamado por se fundamentar nas desigualdades entre os homens. O poder era concentrado entre a realeza e a aristocracia centralizando todo o poder nas mãos de uma classe social. O iluminismo tinha por objetivo uma reflexão para o processo revolucionário de desvinculação da centralização do poder em torno do rei, dando inicio as idéias de Direitos humanos, igualdade, liberdade e a difusão do pensamento liberal[65].
Os burgueses questionavam o regramento diferenciado entre os homens daquela sociedade, principalmente no que tangia a liberdade econômica e direito a propriedade, pois existiam inúmeras barreiras feudais, como por exemplo, pagamento de impostos e taxas[66], tributos que a nobreza e clero não estavam sujeitos a estes pagamentos.
Na França, anos antes da Revolução Francesa, a nobreza e o clero sofreram duas tentativas de sujeição ao pagamento de tributos, porém não efetivas, contudo estes foram os primeiros passos das forças sociais, incentivando a liberação do comercio, abolição do trabalho gratuito dos camponeses e emancipação das fazendas reais.[67] Os burgueses tiveram apoio incondicional do povo Francês, contudo o que interessava mesmo a esta sociedade menos favorecida economicamente não era a propriedade, mas sim que a vontade popular prevalecesse nas instituições francesas por seus representantes, ou seja, que a soberania estivesse na nação, difundindo o termo democracia.[68]
Nesse sentido em 26 de agosto de 1789 foi fundada na França uma assembléia que outorgou a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, destituindo o antigo regime instalado na França dando início à idade contemporânea. Esta declaração, assim como a Declaração de Virgínia tinha como fundamento quatro direitos: liberdade (desde que não prejudique a outrem), propriedade (direito inviolável), segurança (aplicação da lei sem distinção social, inclusive nas cobranças fiscais) e resistência a pressões políticas (Estado Soberano, com a garantia da separação dos poderes).[69]
Contudo é de mister ressaltar que esses direitos elencados nesta declaração não são tratados de forma homogênea. José Damião de Lima Trindade explica dessa forma:
(…) “A liberdade Recebeu sete artigos: o 4º e o 5º definem seus contornos gerais. O 7º, o 8º e o 9º tratam da liberdade individual, o artigo 10 refere-se à liberdade de opinião e 11, à liberdade de expressão. A propriedade só é abordada no artigo 17, mas beneficia-se de um tratamento enfaticamente protecionista e privatista – note-se que é o único direito qualificado como “inviolável e sagrado”. A segurança só é contemplada no artigo 12, e de modo visivelmente menos relevante. Quanto ao direito de resistência à opressão, a Declaração nada lhe dedicou, a não ser a menção inicial.” [70]
Segundo este mesmo autor, em sua análise a Declaração de Direitos do homem e do Cidadão, nota-se que não foi dada a atenção merecida e suficiente no que tange a igualdade, embora o termo “igualdade” tenha sido referido pela declaração, esta tem o sentido apenas de guiar as obrigações, ou seja, eram iguais apenas perante a lei e o fisco, deixando de lado as questões sociais, familiares e econômicas[71]. Direitos que serão o motivo da queda do Estado Liberal como será explicado no decorrer desta monografia
É a partir desse momento que o Estado Liberal nasce, tendo como referencia a doutrina do contrato social seguida de uma constituição. Embora este inicio de crescimento do Estado Liberal tenha a compreensão de um Estado mínimo, é neste momento que a pessoa começa a ser considerada um sujeito de direitos subjetivos como resposta a intolerância religiosa e prisões arbitrarias. Neste inicio de Estado liberalista o que se deve levar em consideração é a limitação do poder estatal, a divisão dos poderes, assim como o direito a voto é após a concretização destes direitos que há uma consolidação das conquistas liberais, como, por exemplo, direitos humanos, liberdades, governos representativo, etc.[72]
Paulo Bonavides em sua obra “Curso de Direito Constitucional” afirma que a partir da realização da revolução francesa nasce o direito constitucional, inspirando políticas para o Estado liberal. Nesse sentido, pode-se dizer que o constitucionalismo liberal baseasse em estipular competências para os órgãos estatais e principiava ideologias filosóficas, políticas e doutrinarias liberais, ou seja, o Estado Liberal por meio de sua constituição disciplinavam somente os direitos civis (direitos individuais) e os poderes estatais (direitos políticos)[73].
O Estado Liberal é composto por três núcleos chamados de: A) núcleo moral: consiste na afirmação dos valores básicos do homem, como a vida, liberdade, dignidade e proteção contra as vontades do governo; B) núcleo político ou político-juridíco: são divididos em quatro categorias, como consentimento individual (o Estado existe somente com a autorização da sociedade), representação (o povo elegia seus representantes no governo), constitucionalismo (documento com força que instituía direitos e deveres do Estado e cidadãos), soberania popular (participação do nas decisões do Estado); C) Núcleo econômico (liberdade da livre economia com intervenção mínima do Estado). Estes são os principais núcleos liberais que deram origem as primeiras declarações de Direitos Fundamentais.[74]
2.5. A Crise do Estado Liberal e o desenvolvimento do Estado do Bem-Estar social (Welfare State)
A partir do século XIX a aplicação da teoria do Estado Liberal chega ao seu auge da transformação, a economia cresce de forma muito rápida, ampliasse o sufrágio, associações e os direitos a liberdade e a vida tornado-se indiscutíveis. O Estado liberal preocupava-se em demasia com o direito de propriedade e isso acabava limitando a prestação de outros direitos fundamentais. Além disso, no inicio o governo liberal não tolerava cultos, reuniões sindicalistas e liberdade de consciência, gerando um comportamento individualista[75].
Benjamim Constant, já justificava que o modelo liberal não era justo[76]:
“Só a propriedade torna os homens capazes do exercício dos poderes políticos (…). O fim necessário dos não-proprietários é chegar a propriedade (…). Esses direitos (os direitos políticos) nas mãos da massa servirão infalivelmente para invadir a propriedade. E isso será feito por essa via irregular, em vez de via natural, a do trabalho; para ele será fonte de corrupção, para o Estado uma fonte de desordem” .
Desta forma, iniciasse uma serie de acontecimentos culturais e sociais, o Estado de Direito passa a intervir freqüentemente nas relações individuais, pois as demandas sociais cresciam gradativamente a partir de movimentos sociais que buscavam regulação das relações de trabalho e justiças sociais. Isso ocorre por força da revolução industrial, Primeira Guerra Mundial, a crise de 1929 e Segunda Guerra Mundial. Ou seja, estes movimentos buscavam a igualdade de todos, mas para isso era necessário a criação e aplicação de uma política de intervenções para os desamparados, dando origem a teoria neoliberal.[77]
A partir do momento que o sufrágio passou a ser direito de outros setores sociais, substituindo as monarquias por Republicas, surgiram novos partidos políticos como resposta aos anseios dos eleitores, suas principais criticas eram sobre a mínima intervenção sobre as relações (liberdade econômica), pois nesta nova idéia de Estado era necessário uma maior intervenção estatal.[78] As primeiras intervenções estatais foram através de leis que detinham o condão de erradicar a pobreza (conforme adventos citados anteriormente) elaborando legislações trabalhistas, pois com o advento da revolução industrial o desemprego se tornou um problema para a sociedade. Ao fim do século XIX o objetivo era criar justiças sociais em detrimento dos indivíduos menos favorecidos buscando sua autoconfiança, pois agora estas pessoas fazem parte de um todo não sendo mais isoladas por não pertencerem ao mercado econômico.[79]
As teorias socialistas são consideradas de grande importância para transição do Estado Liberal para o Estado Social, visto que os estudos relativos ao mercado tendo como base o liberalismo eram considerados auto-destrutivos, pois na concepção socialista a força do trabalho não poderia ser vendida como mercadoria, mas sim como proprietários de meio de produção. Estas pesquisas proporcionaram uma nova alternativa para o Estado de Direito.[80]
Eis que surge o Estado do Bem-Estar Social como resposta a teoria liberal, é a partir deste momento que o Estado é responsável pela organização econômica do país para que não haja monopólios e diferenças sociais, contudo é importante frisar que esta teoria não tem o condão de socializar, mas sim resolver lacunas que o Estado Liberal proporcionou. Nesse sentido, pode-se dizer que a diferença principal entre a teoria liberal e a teoria social, é modo de como o Estado vê o individuo, na concepção liberal o sujeito era visto como individuo iluminado pela benção divida, já no Estado social as prestações estatais são vistas como direitos e deveres conquistados pelos cidadãos.[81]
2.6 O Estado Democrático de Direito
Contudo, o Estado Social, não obteve sucesso no que tange a igualdade a todos, e por esta razão desenvolve-se o Estado Democrático de Direito, com o intuito de garantir todos os bens jurídicos que foram conquistados ao longo dos tempos.[82] Porém este modelo de Estado não veio como uma adaptação melhorada do Estado Social (condições de existência do individuo), mas sim um meio de concretização de participação pública no processo de (re)construção de um projeto de sociedade.[83] A democracia é tida como realização de valores como a igualdade, liberdade, e dignidade da pessoa humana, reconhecido como forma mais abrangente do Estado Social, porém utilizando-se de características liberais.[84]
Este Estado se funda pelo princípio da soberania popular, que impõe participação ativa nas decisões da administração pública, e em especial, a defesa dos Direitos Fundamentais.[85] O princípio da legalidade é a fonte principal da busca efetiva da igualdade, devendo ser considerado não mais apenas pela igualdade normativa, mas também sobre igualdade social. Pois seria através da aplicação deste princípio que todos os indivíduos de uma sociedade não sofreriam repreensão ou retaliações, ou seja, busca a solução de problemas materiais para a existência do homem.[86]
O Estado Democrático de Direito traz princípios tanto de cunho liberal (Estado de Direito), quanto de cunho neoliberal (Estado Social), como por exemplo, a constitucionalização de direitos em instrumento (constituição), garantias dos direitos individuais e coletivos – autonomia, justiça social, igualdade material e formal, divisão de poderes, legalidade e segurança jurídica.[87]Ou seja, a novidade deste modelo de Estado é a incorporação de características de modelos Estatais tradicionais, porém trazendo a igualdade como questão principal de efetivação, através da solidariedade entre seus pares, relacionados a qualidade de vida.[88] OU seja, é a partir da convivência social numa sociedade livre, justa e solidária, pois pressupõe respeito a opiniões e pensamentos divergentes, tanto de cunho cultural, religioso ou étnico, não sendo tolerados qualquer forma de opressão racial, econômica ou político.[89]
Nesse sentido, Canotilho ensina que para a real efetivação do Estado Democrático de Direito, este deve seguir alguns princípios e tarefas, como por exemplo, 1) principio da constitucionalidade, que visa, a supremacia e rigidez da Constituição vigente, provinda da vontade do povo, pois vincula todos os atos e garantias dos cidadãos perante seus pares e Estado, 2) princípio democrático, que deve sempre buscar constituir uma democracia representativa e participativa, nos moldes da Constituição vigente, 3) sistema de Direitos Fundamentais, compreendendo todos os Direitos Fundamentais individuais e coletivos, assim como todos os princípios basiladores de uma Constituição, como por exemplo, o princípio da legalidade, segurança jurídica, divisão dos poderes, igualdade entre outros. [90]
Logo conclui-se que a lei tem um papel de transformação para a manutenção da vida humana, visando a promoção das relações comunitárias sendo as relações coletivas difusas o foco principal, iniciando a partir deste momento as partilhas orçamentárias do Estado. Deste modo, esta é a diferença principal do Estado Democrático de Direito com os antigos governos, é através da constituição e seus princípios fundamentais que possibilitarão condições para a transformação da realidade social, econômica, cultural e individual.[91]
3 CARACTERÍSTICAS E CONCEITOS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
3.1 A DEFINIÇÂO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Expressões como Direito do Homem, Direitos fundamentais, Direitos Humanos, liberdades fundamentais, princípios fundamentais são amplamente utilizadas por autores jurídicos para explicar o conceito dos Direitos fundamentais.[92]Existe essa confusão terminológica desde o desenvolvimento das teorias jusnaturalistas, que se utilizavam de expressões como “Direitos do Homem” e “Direitos humanos” (tornando-se hoje a nomenclatura mais utilizada) e após, com filósofos contratualistas como Hobbes, Locke e outros, que conceituavam esses direitos como “liberdades publicas”, “liberdades individuais”[93].
Estes filósofos justificavam este conceito com base na teoria jusnaturalista. Os Direitos Fundamentais se concretizam pelos direitos naturais inerentes ao homem, por vontade de um Deus, sem a interferência do Estado, porém aplicando suas teorias contratualistas, ou seja, ao invés de Deus, haveria um Estado que regularia a sociedade por força de leis positivadas[94]. Explica José Afonso da silva que:
“Direitos naturais diziam-se por se entender que se tratava de direitos inerentes à natureza do homem; direitos inatos que cabem ao homem só pelo fato de ser homem. Não se aceita mais com tanta facilidade a tese de que tais direitos sejam naturais, provenientes da razão humana ou da natureza das coisas. São direitos positivos, que encontram seus fundamentos e conteúdos nas relações sociais materiais em cada momento histórico”. [95]
Com o advento da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), houve uma universalização com a retomada das palavras “Direitos Fundamentais” e “Direitos Humanos”. A primeira detinha o cunho de concretizar direitos numa ordem social estatal. Já a segunda seria a validação destes direitos independente do contexto social em que o homem vive, ou seja, desconhece fronteiras nacionais para sua aplicação, são normalmente positivados em documentos internacionais.[96]
Sarlet explica que o termo “Direitos Humanos” e “Direitos Fundamentais” podem se confundir, entretanto não se considera um erro inaceitável, pois os Direitos Fundamentais sempre remeterão a idéia de proteção ao homem, contudo há de serem especificadas as diferenças entre estes termos. Quando se trata do termo “Direitos Humanos”, este nos trás a idéia de documentos internacionais positivados independentes da ordem constitucional, já quando se fala em “Direitos Fundamentais”, este refere-se a positivação de direitos em um determinado Estado por força de uma Constituição.[97]
Nota-se que não se encontra em unanimidade uma expressão correta, pois até mesmo no decorrer de nossas constituições brasileiras houveram inúmeras definições para estes direitos, vejamos: nas constituições de 1824 e 1937 denominavam-se “direitos civis ou individuais e políticos”, as de 1891, 1934, 1946 e 1967/1969 estavam sob o rotulo de “Declaração de Direitos”, “Direitos do Homem”, “Direitos do Cidadão”.[98] Atualmente em nossa constituição são utilizadas muitas destas expressões para definir os direitos fundamentais como, por exemplo, o título II “Direitos e Garantias Fundamentais”, que neste caso levasse em consideração o amplo grau de abrangência, dando origem ao capítulo I (direitos individuais e coletivos) e capítulo II (direitos sociais), e ainda, é de mister ressaltar que estas categorias citadas anteriormente sustentam os direitos de defesa – liberdade e igualdade –, direitos relativos à prestação estatal – direitos sociais e políticos – e garantias institucionais.[99]
É neste sentido que Sarlet crítica expressões como “liberdades públicas”, “liberdades fundamentais” ou “individuais”, que a doutrina moderna vem se utilizando, pois para este doutrinador, estes termos trazem a idéia de separação, ou seja, eles mostram-se com menos intensidade deixando de lado a concepção de evolução dos Direitos Fundamentais.[100]
Assim como Sarlet, Jorge Miranda prefere a expressão “Direitos Fundamentais”[101], pois este termo remete-nos a idéia de direitos e constituição. O que o doutrinador quer dizer é que a constituição é a lei fundamental que protege os Direitos Fundamentais, e por isso tal termo vem sendo utilizado a mais de 50 anos na Europa e vem adquirindo força pelo resto do mundo.[102]Ou seja, os Direitos Fundamentais são reconhecidos pelo Estado de forma positivada que se limitam ao contexto social considerados como base de um sistema jurídico.[103]
Partindo desta linha, a definição de Direitos Fundamentais para Cláudio Lembo consiste em um conjunto de valores inerentes ao homem e indispensáveis para sua preservação física e psíquica perante a sociedade, positivados pelo legislador constituinte.[104]Na concepção de Marcelo Pimenta, em sua obra “Direito Constitucional Positivo em Perguntas e Respostas”, os Direitos Fundamentais são todos aqueles essenciais à pessoa humana, direitos que não podem ser restringidos porque são indispensáveis para uma existência digna e honrosa, incluindo-se os direitos sociais ao qual o Estado jamais deve se obster de garanti-los, buscando sempre políticas públicas para a efetivação tanto dos direitos individuais, quanto dos direitos sociais.[105]
Ou seja, os Direitos Fundamentais são direitos positivados juridicamente e institucionalmente em uma constituição que “se impõem a todas as entidades públicas e privadas”,[106] sejam elas em sentido formal ou material, que pessoas de determinada sociedade detém.[107]
3.2 A classificação dos Direitos Fundamentais e suas características
Os Direitos Fundamentais desenvolveram-se através de etapas de acordo com sua necessidade e contexto histórico social, e a tais desdobramentos a doutrina jurídica nomeia de Direitos Fundamentais de Primeira, Segunda, Terceira e até mesmo, segundo alguns doutrinadores defendem que existam, Direitos Fundamentais de Quarta Geração. Estes direitos tendem a seguir certas características, que servem como sua identificação, como veremos a seguir.[108]
De acordo com o doutrinador Cláudio Lembo, os Direitos Fundamentais contemplam características e fundamentos próprios, são eles: Historicidade: características de valor histórico, evolução, dos direitos cujo o berço do desenvolvimento foram os de paises ocidentais, modificando-se ou excluindo-se de acordo com sua necessidade contextual; Inalienabilidade: o próprio nome já traz o conceito desta característica, são direitos intransferíveis e inegociáveis de cunho pessoal ao qual o individuo não pode abrir mão, ao qual remete a característica da Irrenunciabilidade – Embora haja previsões constitucionais de direitos renunciáveis como o direito de propriedade; Imprescritibilidade: Os Direitos Fundamentais jamais deixam de ser exigíveis perante o Estado, mesmo com a falta do seu exercício, pois o texto constitucional positivado trás esta garantia para que o cidadão sempre tenha seus direitos assegurados e possa utilizá-lo a qualquer tempo; Universalidade: todos serão abrangidos pelos direitos fundamentais, não sendo tolerada nenhuma tentativa de aplicação;[109]Limitabilidade: Embora transpareça que os Direitos Fundamentais possam ser absolutos, é importante frisar que existem limites para seu exercício, para que não haja a violação de direitos de outrem.[110]
Contudo, antes de compreender-se o que são direitos e respectivas gerações, é de mister explicar a confusão doutrinaria entre os termos geração e dimensão. Sarlet ensina que estes dois termos utilizados pela doutrina jurídica não são equivocados, porém a palavra geração traz a compreensão de substituição, o que não é o caso, pois os Direitos Fundamentais nunca foram trocados por outros, mas sim corroborados com o passar dos anos de acordo com a cultura, política e economia local. Logo, para este autor, a terminologia a ser utilizada é dimensão, pois remete a idéia de cumulação de direitos conquistados e não de substituição.[111]
3.3 Direitos Fundamentais de Primeira Dimensão
Embora haja uma discussão doutrinaria para saber quando surgiram os Direitos Fundamentais, Ingo Sarlet defende a idéia de que foram as declarações americana e francesa (entre os séculos XVII e XVIII), como resposta ao poder opressor do rei, que tornaram-se o marco teórico inicial para o surgimento destes direitos.[112] Suas previsões tinham o cunho de prestação negativa do Estado[113], ou seja, uma abstenção do Estado sob a esfera privada do indivíduo para que ele tivesse liberdade, religião, opinião e garantia de inviolabilidade de sua propriedade.[114] Pode-se dizer que, em suma, os Direitos fundamentais surgiram com a necessidade de impor limites as funções estatais, para que fossem garantidas liberdades e direitos, dando origem as constituições liberais.[115]
Por esta via, a concepção clássica do constitucionalismo vê os direitos de primeira dimensão como a positivação dos Direitos fundamentais individuais após o termino do Estado absolutista. Antes deste rompimento a sociedade estava submissa a vontade dos governantes e, com a queda do “antigo regime”, esses direitos individuais ganharam valoração máxima, pois eles foram valorizados de tal forma que se tornariam inalienáveis e fixariam limitações aos atos estatais.[116]Para Sarlet, esses direitos buscavam a prestação negativa do Estado – um não fazer –, pois neste momento o Estado era o maior violador de direitos e que após o reconhecimento destes direitos pelo governo, este passou a ser um expectador nas relações da sociedade como se fosse uma polícia administrativa, não interferindo na esfera privada, salvo nos casos estipulados em lei.[117]
José Sampaio ensina que os Direitos Fundamentais dividem-se em Direitos civis e Direitos políticos:
“Os Direitos civis são aqueles que, mediante garantias mínimas de integridade física e moral, bem assim de correção procedimental nas relações judicantes entre os indivíduos e o Estado, asseguram uma esfera de autonomia individual de modo a possibilitar o desenvolvimento da personalidade de cada um (…)”[118]
Os direitos civis que este autor cita acima, seriam as liberdades individuais –gerais e especificas –, como por exemplo, religião, consciência, liberdade de expressão, vida, segurança (vedação de prisões arbitrarias, impostos e taxas abusivas), propriedade, liberdade econômica (liberdade contratual, profissional e econômica) e, para a garantia de efetivação de direitos, a única coisa que o Estado estaria responsável seria criar formas para a tutela dessas garantais. Em relação aos direitos políticos, são aqueles que inspiram a democracia, direito de votar e ser votado, ou seja, como o próprio nome remete, direitos políticos.[119]
Para Cláudio Lembo, direitos de primeira dimensão significam, direitos de liberdade (direitos negativos), proibindo o poder discricionário do Estado perante a sociedade:
“São os direitos elaborados (visualizados) pelo pensamento liberal e procuram obstar a ação do Estado contra as pessoas. Essa geração de direitos busca preservar a vida, a integridade física, a liberdade, a dignidade, a intimidade e a inviolabilidade do domicilio”.[120]
Hoje, doutrinadores afirmam que estes direitos de liberdades atingem o âmbito privado, pois da mesma maneira que o Estado deve abster-se e garantir os direitos dos indivíduos de sua sociedade, os integrantes desta, também devem respeitar e garantir os direitos de seus pares, como, por exemplo, vedar liberdades entre conjugues.[121] Nesse sentido conclui-se que os Direitos de primeira dimensão são direitos de proteção da liberdade do indivíduo – tanto civis quanto políticos –, tributos que podem ser facultados ou não a ele e por isso esses direitos foram os primeiros a constarem num instrumento normativo e comparecer em todas as constituições ocidentais.[122]
Nesta via, pode-se ver que esta primeira dimensão de Direitos desenvolvesse conjuntamente com o Estado Liberal e sua principal característica é a livre dependência do individuo perante o Estado, sua única função é manter a segurança e as liberdades civis. Entretanto com o passar dos anos este modelo mostra-se com falhas e, a partir deste momento, desenvolvem-se os Direitos de Segunda Dimensão.[123]
3.4 Direitos de Fundamentais de Segunda Dimensão
Com o impacto da industrialização e o aumento gradativo dos problemas sociais e econômicos no século XIX, dando origem a um novo conceito de Estado (Estado Social) por força de movimentos reivindicatórios que atribuíam ao Estado um novo comportamento, não mais de prestações negativas, mas sim de dimensões positivas proporcionando novas ações aos governantes objetivando o bem-estar social de todos. Esta nova busca de Direitos chama-se Direitos de Segunda Dimensão. As características desta nova gama de direitos visam prestações sociais mínimas do Estado perante a sociedade, como por exemplo, assistência social, previdência, educação, trabalho, saúde e etc, abrindo caminhos de liberdades formais abstratas para liberdades materiais concretas, ou seja, direitos que requerem a liberdade e prestações por intermédio do Estado, negando a máxima liberal “intervenção zero”.[124]
Seu desenvolvimento inicia-se após a Segunda Guerra Mundial, sendo consagrados nas constituições da Alemanha, México, Estados Unidos, Declaração Internacional dos Direitos Humanos e pactos internacionais.[125] A constituição de Weimar (Alemanha) foi umas das fontes principais para ser levada como modelo, garantindo a proteção do Estado com a sociedade e não mais abstenção em relação ao indivíduo como nos Direitos de Primeira Dimensão. Em outras palavras, a intenção dos alemães era fazer com que o Estado se importasse com a sociedade fazendo com que as teses individualistas perdessem forças, dando origem a uma nova forma de Estado e Direitos. [126]
Paulo Bonavides conceitua os Direitos de Segunda Dimensão como “Direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividade”. Esses direitos estão abraçados ao princípio da igualdade, são direitos antiliberais positivados nas constituições dos Estados Sociais.[127] Ingo Sarlet entende que os Direitos Sociais desenvolvem-se a partir da concepção socialista que argumentava ser necessária condições mínimas para a sobrevivência do homem, considerando as liberdades sociais direitos de cunho positivo – sindicalização, direito de greve, reconhecimento de direitos fundamentais de trabalhadores – é de mister ressaltar que esta dimensão de direitos (garantias individuais e coletivas) não se confundem com os direitos de terceira dimensão, que serão compreendidos a seguir.[128]
3.5 Direitos Fundamentais de Terceira Dimensão
Paulo Bonavides expõe em sua obra “Curso de Direito Constitucional” que os direitos de terceira dimensão, ou Direitos Institucionais desenvolvem-se a partir do reconhecimento de prestações positivas do Estado perante seus contratantes, tendo como base relação aos direitos de liberdade (direitos subjetivos), e a positivação da Constituição Alemã (constituição de Weimar), que trouxe a idéia de direitos objetivos, ou seja, direitos que propiciavam a garantia e a proteção de valores relativos às instituições sociais, concretizando-se ao final do século XX. Estes direitos vieram a ser reconhecidos como direitos sociais, pois fizeram nascer a consciência do Estado sobre a importância que há em se resguardar e proteger os valores de instituições Estatais ou privadas, devendo ser considerada a vontade da maioria, pois o contexto social vivido nesta época, propiciava uma participação social mais rica e aberta para a sociedade.[129] Estes direitos podem ser denominados também como os “direitos dos povos”, “direitos de solidariedade” ou de “cooperação”, surgindo como resposta as explorações da classe trabalhadora pelos países industrializados,[130] nesta mesma linha Péres Luño, nomeia estes fenômenos como poluição das liberdades, que significa um “processo de erosão e degradação sofridos pelos direitos e liberdades fundamentais, principalmente em face do uso de novas tecnologias”[131]
Nesta mesma linha Sarlet trata os direitos de terceira Dimensão, como direitos e valores dotados de humanismo e universalidade, pois altera o paradigma focalizando a proteção para os grupos sociais, e não mais para o homem-indivíduo, tendo a titularidade de direitos coletivos, valorizando os modos de liberdade já existentes e ampliando seu raio de aplicação.[132]
Carl Schmitt conceitua os direitos coletivos da seguinte forma, primeiramente que seja uma garantia positivada em uma constituição, após, que esta garantia designe uma instituição para proteger, e por fim que este instituto seja organizado e seja presente na sociedade, como, por exemplo, saúde, educação e meio ambiente. Nesse sentido, não se pode mais desconsiderar que existe um novo conceito para os direitos fundamentais, ou seja, direitos vinculados materialmente a uma norma institucional.[133] Nesse mesmo raciocínio tanto Bonavides, como Sarlet completam o conceito acima citado da seguinte forma: que estes direitos podem ser encontrados de forma indefinida e indeterminável, como por exemplo, o direito ambiental, pois embora este direito seja aplicado a um único individuo é necessário uma maneira diferenciada para a manutenção e aplicação deste direito.[134]
Contudo, é preciso reconhecer que nem todos os Direitos Fundamentais de terceira dimensão, salvo algumas exceções, não foram reconhecidos em um documento constitucional, mas sim em normas infraconstitucionais ou pactos internacionais. Nesse sentido os Direitos de Terceira Dimensão consagram os princípios da solidariedade e fraternidade, aplicando-se em todo instituto que se defina ao uso social, ou seja, protegendo direitos coletivos ou difusos. São exemplos destes princípios direitos a criações de organizações não governamentais, sindicatos, proteção ao meio ambiente, água, sol, ar, consumidores e entre outros. É de mister frisar que tais direitos não se destinam a proteção individual ou de um grupo de um determinado Estado, mas sim proteger o gênero humano, demonstrando uma preocupação com o futuro das próximas gerações.[135]
3.6 Direitos Fundamentais de Quarta Dimensão
Muitos Doutrinadores defendem e até mesmo questionam a idéia de se reconhecer a existência de uma quarta dimensão, no entanto, estes direitos ainda não foram consagrados nos textos constitucionais internos e aguardam consagração em documentos Internacionais.[136] Os direitos de quarta dimensão desenvolvem-se a partir da revolução tecnológica iniciada ao final do século XX até os dias de hoje, e produziram sérios impactos nas relações humanas, como serão explicadas a seguir.[137]
Paulo Bonavides trata os direitos de quarta dimensão como uma nova fase dos Direitos Fundamentais como, por exemplo, direito a democracia direta, informação e aceitação de todos os tipos de convivência e culturas. Ou seja, direitos que se desenvolvem a partir da globalização política, cultural e econômica, baseando-se pelo princípio da legitimidade e liberdade, considerando o homem como centro dos interesses do sistema, pois é ele quem fiscaliza a positivação de todos os direitos até então já conquistados.[138]
Para José Sampaio a definição de direitos de quarta dimensão não se destina a tão somente participação cidadã, mas sim é um desdobramento dos direitos de terceira dimensão, porém dando mais ênfase a vida do homem e da terra (proteção ao meio ambiente e restrições/limitações a ciência no que tange a biotecnologia, procurando respeitar a dignidade da pessoa humana). Este mesmo autor chama esta fase de “direito de comunicação”, pois com o crescimento dos meios de comunicação (elementos constitutivos desta dimensão), o acesso a estes meios como, por exemplo, Internet, radio, televisão, tornaram-se de difícil acesso as classes menos favorecidas, e é nesse sentido que o Estado e a sociedade tem o dever de garantir o acesso universal destes meios para que todos tenham acesso a democracia e cultura.[139]
3.7 DIREITOS FUNDAMENTAIS EM SENTIDO FORMAL E MATERIAL
Além das características citadas por Lembo, conforme Carl Schmitt citado por Bonavides e lembrado por Jorge Miranda – anteriormente, existem duas maneiras para se compreender os Direitos Fundamentais.[140] Estas duas teorias têm sentidos inversos, contudo podem se coincidir, pois as compreensões destas teorias permitem a reflexão de outros sistemas jurídicos, além de concretizar outras categorias de direitos dando titularidade, objeto e funções, abrangendo todos os direitos subjetivos, entretanto sem deixar de lado as concepções dos Direitos Fundamentais, regimes políticos e ideologias.[141]
A concepção aludida acima trata da fundamentação formal e material, nesse sentido é de mister a compreensão destes dois conceitos, para que se tenha o entendimento do porque que o rol dos Direitos Fundamentais se torna amplo, e ainda, possibilita a inserção de tratados internacionais.[142] A acepção formal contém a finalidade de designar Direitos Fundamentais e/ou garantias para dentro de um instrumento constitucional que receberam pela Constituição uma atenção mais elevada de segurança e garantia, reconhecidos como cláusulas pétreas (direitos imutáveis ou de difícil alteração).[143] Ingo Sarlet explica da seguinte maneira: que “a fundamentalidade formal encontra-se ligada ao direito constitucional positivo”, ou seja, os Direitos Fundamentais encontram-se consolidados em uma Constituição pátria, situando-se no mais alto patamar da escala jurídica, submetendo-se a limites formais quando alterada.[144]
O professor Léo Van Holthe, resume este conceito (formal) da seguinte forma, “Direitos Fundamentais são aqueles expressamente designados” por nossa constituição, ou seja, são todos os direitos que empregam as palavras “Direitos Fundamentais”.[145] Contudo é preciso ter cautela ao analisar este conceito, pois não significa que a positivação, ou não, de um Direito Fundamental deixará de ter seus valores naturais intrínsecos ao individuo, pois o que ocorre é apenas uma constitucionalização dos direitos subjetivos do homem por normas formalizadas.[146]
A outra visão é a questão material, os Direitos Fundamentais variam de acordo com a política instalada no Estado, valores, princípios, ou seja, cada Estado cria sua constituição de acordo com seu contexto.[147] Esta fundamentalização material está ligada ao direito Constitucional positivo, pois é a partir deste critério que será permitido a abertura para novos direitos que não constam em seus textos, sendo considerados direitos materialmente fundamentais.[148] Nesse sentido, Canotilho complementa o conceito acima dizendo que a fundamentação material consiste em estruturar o Estado, vejamos:
“(…)direitos fundamentais é decisivamente constitutivo das estruturas básicas do Estado e da sociedade. Prima fade, a fundamentalidade material poderá parecer desnecessária perante a constitucionalização e a fundamentalidade formal a ela associada. Mas não é assim. Por um lado, a fundamentalização pode não estar associada à constituição escrita e à idéia de fundamentalidade formal como o demonstra a tradição inglesa das Common-Law Liberties. Por outro lado, só a idéia de fundamentalidade material pode fornecer suporte para: (1) a abertura da constituição a outros direitos, também fundamentais, mas não constitucionalizados, isto é, direitos materialmente mas não formalmente fundamentais; (2) a aplicação a estes direitos só materialmente constitucionais de alguns aspectos do regime jurídico inerente à fundamentalidade formal; (3) a abertura a novos direitos fundamentais. Daí o falar-se, nos sentidos (1) e (3), em cláusula aberta ou em princípio da não tipicidade dos direitos Fundamentais. Preferimos chamar-lhe de norma aberta que, juntamente com uma compreensão aberta do âmbito normativo das normas concretamente consagradoras de direitos fundamentais, possibilitará uma concretização e desenvolvimento plural de todo o sistema constitucional.Os Direitos Fundamentais são universais e absolutos, pois todo ser humano são titulares desse direito”[149]
3.8 Diferença entre Direitos Fundamentais, Garantias Fundamentais e Garantias Institucionais.
O artigo 5º, § 1°, traz a expressão “Direitos e Garantias Fundamentais” em seu texto. Embora pareça ser apenas um jogo de palavras, é de mister analisar de forma mais profunda estas duas palavras para que se tenha um melhor conhecimento e não confundi-los.[150] Embora, para alguns doutrinadores, como Kildare Carvalho, estes dois institutos possuem a mesma finalidade[151], para o constitucionalista José Afonso da Silva e outros autores, é de mister conhecer as distinções existentes entre estas duas expressões, e que ao contrario disso apenas gera mais “obscuridade”se em nossa doutrina.[152]
Quando se fala em Direitos fundamentais, remete-se a idéia de norma com natureza declaratória e devidamente positivada pelo legislador competente[153], “princípios que imantam os sistemas de normas com seus valores e bens pertinentes”.[154] Já as garantias fundamentais são normas que asseguram o cumprimento do pleno exercício dos Direitos Fundamentais, ou seja, os Direitos Fundamentais regem as normas que possuirão caráter de reconhecimento de certos direitos individuais como um mecanismo de defesa.[155] BONAVIDES ensina que sempre que houver necessidade de garantias para a proteção de algum instituto fundamental, sempre terá de haver um meio de defesa – garantia fundamental.[156]
O conceito utilizado pelo autor citado anteriormente pode ser exemplificado na seguinte forma: o direito de locomoção e/ou liberdade são direitos de todos, e previstos em nossa Constituição Federal de 1988,[157] ou seja, ninguém pode ser privado ou obrigado a ficar num lugar contra sua vontade, salvo por previsão de Lei (Artigo 5º, II, CF). A medida assecuratória a ser utilizada neste caso é o habeas corpus (artigo 5º, LXVIII – “conceder-se-á “habeas-corpus” sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”). [158] BONAVIDES salienta que estes dois institutos jamais podem ser confundidos, sob pena de expressar de forma equivoca estes dois conceitos e perdermos uma das noções mais valiosas da transição do Estado liberal para o Social,[159] como acontece com o Dicionário da Real Academia Espanhola, ao qual os conceitua como direitos previstos em uma constituição de um Estado.[160]
“A garantia – meio de defesa – se coloca então diante do direito, mas com este não se deve confundir. Ora, esse erro de confundir direitos e garantias, de fazer sinônimo da outra, tem sido reprovado pela boa doutrina, que separa com nitidez os dois institutos.” [161]
É importante frisar desde já que as garantias e direitos fundamentais podem comparecer juntos num mesmo enunciado, como por exemplo, o artigo 5º, X, de nossa Constituição que proíbe a inviolabilidade da vida privada, propriedade, imagem, honra, e após, assegurando medida assecuratória que seria o direito a indenização pela violação material e/ou moral cometida contra o individuo.[162] Já as garantias institucionais derivam de um conceito diferente das garantias fundamentais, pois esta tem o objetivo de proteger instituições tanto de direito público (poder legislativo, executivo, judiciário) quanto de direito privado (instituições familiares e de ensino, como universidades), por “desempenharem uma importância tão elevada na ordem jurídica que devem ter seu núcleo essencial preservados contra a vontade do legislador”.[163] Nas palavras do professor Jorge Miranda “os direitos fundamentais representam só por si certos bens, as garantias fundamentais destinam-se a assegurar a fruição destes bens”, ou seja, as garantias são acessórias e os direitos fundamentais permitem a inserção do individuo direta e indiretamente por si só nas esferas jurídicas.[164]
Nesse sentido, o professor da universidade de Coimbra, José Canotilho ensina:
“As chamadas garantias institucionais (Einrichtungsgarantien) compreendiam as garantias jurídico-públicas (Institutionnelle Garantien) e as garantias jurídico-privadas (Institutsgarantie). Embora muitas vezes estejam consagradas e protegidas pelas leis constitucionais, elas não seriam verdadeiros direitos atribuídos diretamente a uma pessoa; as instituições, como tais, têm um sujeito e um objeto diferente dos direitos dos cidadãos. Assim, a maternidade, a família, a administração autônoma, a imprensa livre, o funcionalismo público, a autonomia acadêmica, são instituições protegidas diretamente como realidades sociais objetavas e só, indiretamente, se expandem para a proteção dos direitos individuais.”[165]
Como salientado no inicio deste capitulo, é de suma importância a compreensão destas diferenças conceituais para que entendamos como surge a problemática da eficácia e aplicabilidade dos Direitos Sociais.
4. A EFICÁCIA DOS DIREITOS SOCIAIS RELATIVOS A SAÚDE: RESERVA DO POSSÍVEL X MÍNIMO EXISTENCIAL
OS DIREITOS SOCIAIS RELATIVOS À SAÚDE
A partir deste capítulo será abordado a problemática da eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais, buscando compreender como são aplicadas as teorias da Reserva do Possível e do Mínimo Existencial, compreendendo suas possibilidades jurídicas e materiais, pelo viés doutrinário e jurisprudencial.
Segundo a Emenda Constitucional nº 26/2000, são considerados direitos sociais a educação, o lazer, a moradia, a segurança, a previdência social, a proteção a infância, a saúde e etc.[166]porem esta monografia tem procurará limitar-se apenas no que tange ao direito a saúde referentes à efetivação da saúde no Brasil,
Destarte é preciso compreender qual o significado dos direitos sociais abrangidos pela nossa Carta Magna. Nossa doutrina classifica os direitos sociais como base do Estado Democrático de Direito, sendo um desdobramento da perspectiva do Estado Social de Direito (direitos de segunda dimensão),[167] que tiveram como base as constituições Mexicana e Alemã[168]. Estas Constituições buscaram agregar caráter solidário e igualitário através de direitos econômicos, culturais e sociais[169], deste modo, segundo Pedro Lenza, pode-se dizer que os direitos coletivos são reconhecidos como a busca pela isonomia, igualdade social e melhores condições de vida a todos integrantes de uma sociedade.[170]
Seguindo na linha conceitual de José Afonso da Silva, este autor trata os Direitos Sociais como uma dimensão dos direitos do homem. São prestações positivas do Estado, sendo elas direita ou indiretamente, sendo enunciadas em normas constitucionais, que possam possibilitar melhor condição de vida a indivíduos hipossuficientes, visando a igualdade de vida e condições materiais de gozo.[171] Ou seja, como se pode ver os Direitos Sociais tem a função de diminuir as desigualdades fáticas que cada sociedade possui, distribuindo suas riquezas de acordo com a situação econômica favorável a sua efetivação.[172]
Este tipo de norma é classificada pela doutrina como uma norma constitucional programática, ou seja, embora esteja positivado certo direito por via constitucional, o objetivo dela – lei – é a definição de fins a serem atingidos pelo Estado através de programas. Não estabelecem os meios de como serão alcançadas suas finalidades, tendo sua aplicabilidade diferida, ou seja, são normas que não se aplicam por si, dependem da vontade do legislador ou da discricionariedade do poder executivo no que tange a aplicação de verbas. Ou seja, é função do Estado, através de termos de lei, reger pela sua efetividade, regulamentando sua função. [173]
Nesse sentido, é correto afirmar de acordo com o conceito citado anteriormente, o direito a saúde é um direito social garantido por políticas sociais e econômicas, nos termos dos artigos 196 e 197 de nossa Constituição Federal de 1988, que visam a garantia ao acesso universal aos meios necessários para redução de doenças e outros agravos a saúde por meio de políticas públicas e econômicas? [174] A resposta para esta pergunta seria em termos, vejamos o porque a seguir.
4.1 Possibilidade de intervenção jurídica: Considerações sobre a Separação dos poderes, reserva do possível e mínimo existencial
Em que pese cabe apenas ao legislador a criação e a aplicação de leis de cunho programáticas[175], devendo o judiciário se abster em extrair direitos destas normas[176]. Esta não-intervenção é devida por força do princípio da separação dos poderes, ao qual sustenta que as normas reguladoras de Direitos Sociais não são auto-aplicáveis por dependerem de recursos, e ainda, por serem de prerrogativa estatal e legislativa. Logo desenvolve-se um debate doutrinário a cerca do poder judiciário nas funções executivas e legislativas.[177]
Tal discussão diz respeito à legitimidade do judiciário de intervir junto ao Estado sempre que houver omissão de um direito de cunho prestacional relacionado a um direito individual pelo poder público, causando uma lesão ao titular ou legitimado, sendo cabível demandar ações para promover a tutela do bem jurídico afetado, principalmente em se tratando de direitos que condigam ao mínimo existencial – teoria que será objeto de estudo a seguir. Pois de acordo com o artigo 5º, §1, de nossa Carta Magna, todas as normas que objetivarem direitos ou garantias constitucionais (tanto individuais como coletivos), podem ser imediatamente exigíveis do Estado ou do privado, por meios das ações constitucionais (ou infraconstitucionais) previstas em nosso ordenamento. Ocasionando um papel ativo do poder judiciário na analise dos direitos à saúde.[178]
Isso Ocorre porque nossa Constituição Federal de 1988 abriga inúmeros princípios, podendo ocasionar conflitos entre os Direitos Fundamentais e Direitos Constitucionais. Como estas normas tratam de princípios, ou seja, possuem mesma hierarquia, estas não podem ser aplicadas como regras,[179] mas de acordo com sua relevância, cabendo tanto ao legislador ou interprete judicial sua aplicação. Por isso chamam os princípios de mandados de otimização (princípios de máxima efetividade), ou seja, sendo observados todos os elementos jurídicos e fáticos contidos no caso concreto poderá tal direito ser pleiteado frente a justiça:[180]
“O ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida devida de seu cumprimento depende não apenas das possibilidades reais senão também das possibilidades jurídicas. O âmbito de possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos” (tradução livre)[181]
Entretanto não é de maneira pacifica o entendimento de que o judiciário possa intervir de maneira excessiva sobre a efetividade dos direitos sociais, direito a saúde, cujo funções recaem sobre outros poderes. Existem duas corrente que tratam sobre a aplicação dos direitos sociais. A primeira, posiciona-se de forma negativa a atuação judicial. Tal tese compreende que não há legitimidade democrática à justiça para decidir sobre questões referentes a saúde, cabendo somente ao povo decidir como os recursos devem ser gastos (recursos provenientes do cidadão) ou por meio de seus representantes eleitos, pois não foram eleitos pelo voto popular; a segunda crítica é um desmembramento da primeira, que nega a prerrogativa do judiciário de aplicar eficácia imediata ao direitos a saúde, devendo ser seguido o preceito institucional da isonomia interpretando literalmente os preceitos constitucionais.[182]
Esta corrente tem como base teórica o princípio da separação dos poderes, ou seja, é atribuição exclusiva do poder estatal (legislativo e executivo) decidir sobre a destinação dos recursos públicos, principalmente no que tange as políticas públicas, que refletem no orçamento elaborado.[183] Para Luiz Barroso isso ocorre porque é apenas a administração pública que possui uma visão e noção maior das necessidades relativas a saúde de sua sociedade, logo por desconhecimento do judiciário este não deve interferir, caso contrario acabaria ferindo princípios institucionais protegidos por nossa Constituição.[184]
A aplicação destas teorias pode ser encontrada em diversos julgados antigos como, por exemplo, a decisão da oitava câmara cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro de 1994[185], que neste caso o referido Acórdão negou provimento à decisão (Mandado de Injunção) que concedeu direito a obtenção de medicamentos para manutenção da vida do requerente, tendo como uma de suas argumentações o princípio da separação dos poderes, retificando que não é competência do judiciário aplicar as verbas existentes, sendo esta função privativa da administração pública.[186]
Como informado anteriormente, tal decisão é considerada antiga, mas de forma nenhuma sem fundamentos. Contudo o que deve ser considerado para a compreensão de tal análise (intervenção da justiça) é a situação concreta, pois embora os princípios institucionais sejam dotados de legitimidade, a competência para interpretar e proteger o ordenamento jurídico quando ocorrer estas colisões (princípio contra princípio ou Direitos Fundamentais contra Princípios Constitucionais) é tributo exclusivo do poder judiciário[187] autorizado por nossa Constituição.[188] Logo, sua aplicação deve ser relativizada de acordo com o caso real, e relacionada em harmonia com os dispositivos fundamentais que o contraria.[189]:
“EMENTA: Suspensão de Segurança. Agravo Regimental. Saúde pública. Direitos fundamentais sociais. Art. 196 da Constituição. Audiência Pública. Sistema Único de Saúde – SUS. Políticas públicas. Judicialização do direito à saúde. Separação de poderes. Parâmetros para solução judicial dos casos concretos que envolvem direito à saúde. Responsabilidade solidária dos entes da Federação em matéria de saúde. Fornecimento de medicamento: Zavesca (miglustat). Fármaco registrado na ANVISA. Não comprovação de grave lesão à ordem, à economia, à saúde e à segurança públicas. Possibilidade de ocorrência de dano inverso. Agravo regimental a que se nega provimento.”[190]
Nesse sentido, para o Ministro Eros Roberto Grau, o poder judiciário é considerado como “aplicador do último direito”, ou seja, será a justiça quem irá aplicar determinada norma (se solicitada individualmente ou coletivamente), quando a administração pública (executiva e/ou legislativa), e até mesmo particular, deixar de fazê-la. Nesse sentido pode-se dizer que o judiciário tem o dever de conferir se determinado direito tem efetividade imediata, inovando nosso ordenamento jurídico, suprindo eventuais lacunas de acordo com o caso concreto.[191] Logo fica claro que o poder judiciário é legitimo para atuar em áreas que não lhe são competentes.
No que diz respeito à limitação de recursos (outra corrente, e mais utilizada), aduz que as normas consideradas programáticas não podem ser objeto de aplicabilidade imediata, como por exemplo, o artigo 196 da Constituição Federal[192], que deixa claro que o direito a saúde se concretizara por meio de políticas sociais e econômicas de acordo com a possibilidade financeira do Estado.[193] Ou seja, são dependentes de prestações positivas (leis que as regulem), e por isso encontram problemas para sua eficácia, sendo necessárias condições materiais e financeiras, ponderação de valores e contexto social presente, estando limitados a reserva do possível.[194] Os direitos sociais sempre necessitam de cofres cheios para sua efetivação, pois ao contrario dos direitos de defesa (direitos individuais), estes custam muito dinheiro, e por estes motivos autores como Canotilho, aderem ao conceito de que os direitos sociais – direitos de prestação – aplicam-se somente quando houver leis ou políticas sociais que as possam concretizar.[195]
Na compreensão do Ministro Gilmar Mendes a Reserva do Possível[196] está relacionada aos direitos sociais, ou seja, concretizam-se de acordo com a possibilidade econômica que o Estado possui e/ou previsão legal, como vistos anteriormente. Ou seja, prevê que se não houver legislação ou orçamento para a concretização dos direitos sociais, cuja distribuição é realizada de acordo com possibilidade e sensibilidade do poder público – devido ao fato que nossa Constituição não prevê como será realizada as alocações dos recursos disponíveis –, logo tais direitos sociais não serão concretizados por falta de condições ou previsão legal.[197] Sabe-se pelo conhecimento do dia-dia que os recursos públicos são escassos, pois a sociedade vive em constante desenvolvimento e os custos do sistema público de saúde tornam-se cada vez maiores, deixando de suprir necessidades mínimas para existência do homem.[198]
De acordo com o exposto (legitimidade de intervenção do poder judiciário em outras esferas) é de mister registrar que a efetividade dos serviços públicos referentes a saúde, não são obrigatoriamente totalmente gratuitas a frente de qualquer impossibilidade do indivíduo, devendo o julgador ponderar sua real necessidade com a obrigação estatal. Entende a jurisprudência e a doutrina brasileira, que o artigo 196 (Constituição Federal) garante “que todos tenham, em princípio, as mesmas condições de acessar o sistema público de saúde, mas não qualquer pessoa receber seus respectivos tratamentos em qualquer circunstância”.[199] Isso ocorre porque a própria Constituição faz referência aos sistemas de saúde privados que garantem prestações ao cidadão mediante pagamento (desde que não comprometa seu sustento e de sua família) ou ainda (dependendo de qual prestação exigida), prejudicar a acessibilidade de outras pessoas ao sistema público de saúde.[200]
É de comum acordo que existem programas[201] relacionados à saúde, embora que muitas vezes sua execução seja limitada ou precária, nesse sentido uma decisão tomada em favor de uma única pessoa, ou grupo, que buscaram sua positivação perante a justiça que resulta em um tratamento muito caro, ou até mesmo experimental,[202] como, por exemplo, liberação de medicamentos em teste, iniciando uma “desorganização na administração pública”. Esta desorganização diz respeito há impossibilidade do poder público prever novos gastos (reserva do possível), comprometendo a eficiência administrativa no atendimento do cidadão, ou seja, prejudicando o acesso de pacientes que já recebiam certo medicamento, ou ainda, impossibilitando gerar novas vagas em unidades de tratamentos intensivos.[203] Com relação a esta explanação, nossa Excelentíssima Ministra Ellen Gracie sustentou seu voto na resolução da lide dando procedência ao recurso do Estado do Rio Grande do Norte que objetivava a suspensão da execução da liminar que autorizou mediante Mandado de Segurança, o fornecimento de medicamentos ao paciente portador de câncer, tendo como argumento que tal decisão (Mandado de Segurança) possui grave lesão à ordem e à economia pública, violando o princípio da legalidade orçamentária[204], pois o Estado não teria previsão orçamentária para suprir todas as demandas que a população necessite, estando limitados a reserva do financeiramente possível, e ainda, trazendo a idéia de que não cabe ao judiciário efetivar tais direitos quando não há recursos. Nesta via, assim decide.[205]
“Verifico estar devidamente configurada a lesão à ordem pública, considerada em termos de ordem administrativa, porquanto a execução de decisões como a ora impugnada afeta o já abalado sistema público de saúde. Com efeito, a gestão da política nacional de saúde, que é feita de forma regionalizada, busca uma maior racionalização entre o custo e o benefício dos tratamentos que devem ser fornecidos gratuitamente, a fim de atingir o maior número possível de beneficiários. Entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao se deferir o custeio do medicamento em questão em prol do impetrante, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade. Ademais, o medicamento solicitado pelo impetrante, além de ser de custo elevado, não consta da lista do Programa de Dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional do Ministério da Saúde, certo, ainda, que o mesmo se encontra em fase de estudos e pesquisas.”[206]
Nota-se que neste julgado a aplicabilidade do acesso a saúde foi considerada como um direito social (como analisados anteriormente), conforme artigo 6º de nossa Constituição[207] (elencada no capítulo II – dos direitos Sociais), e de caráter programático de acordo com o artigo 196 da referida lei, e ainda, aplicando a teoria da reserva do possível, que foram determinantes para o convencimento do magistrado respaldando este tipo de argumentação. Entretanto estamos tratando de uma norma que possui duas dimensões prestacionais, tanto de cunho negativo, quanto positivo, por isso não se deve apreciar a tese de que por ser a saúde um direito coletivo, esta não pode ser objeto de prestação individualizada perante o juízo. O que deve ser considerado é que em nenhum momento o direito coletivo a saúde retira a condição dos Direitos Fundamentais de primeira dimensão (direitos de aplicabilidade imediata), pois a pessoa é o centro da dignidade humana, por este motivo que não se deve retirar a possibilidade de tutelar seu direito perante o judiciário. Em que pese não se está afirmando que o bem individual deve se sobressair ao coletivo, mas sim que se aplique a tutela mais adequada quando isso ocorrer, ou seja, conclui-se que a garantia do acesso aos direitos sociais é sempre considerada individual no que tange a saúde.[208]
Ana Paula Barcellos entende como “penosa” a decisão que o magistrado deve tomar com relação a aplicabilidade (ou não) do direito a saúde, pois dependendo da sua compreensão, sua decisão pode salvar ou prejudicar sua vida. É por este motivo que o responsável pela definição da lide deve alocar suas impressões psicológicas e sociais para aplicar as normas constitucionais necessárias ao presente caso.[209] É nesta via que Ingo Sarlet entende que uma não-prestação do direito à saúde a um indivíduo é equiparado a uma pena de morte, cujo crime foi não deter recursos necessários para seu atendimento. [210]
Para confrontar a tese do financeiramente possível foi desenvolvida a teoria do mínimo Existencial (ou mínimo vital ou social). Este conceito é criado pela doutrina Alemã, pós-segunda guerra mundial. Seu núcleo é composto pelo princípio da dignidade da pessoa humana, ou seja, consiste nos direitos de estar vivo, e lutar por viver, da integridade física e da vida digna, sendo interrompido apenas pela morte natural que é inevitável, tornando-se o centro da discussão jurídica. Deste modo, pode-se dizer que a teoria do mínimo existencial pode ser utilizada como critério para a realização de algum ato prestacional não realizado pelo Estado, tanto para um único indivíduo, quanto para um grupo.[211]
“O mínimo existencial afirma o conjunto de direitos fundamentais sem os quais a dignidade da pessoa humana é confiscada. E não se há de admitir ser esse princípio mito jurídico ou ilusão da civilização, mas dado constitucional de cumprimento incontornável, que encarece o valor de humanidade que todo ser humano ostenta desde o nascimento e que se impõe ao respeito de todos”[212]
Nesse sentido, nosso Supremo Tribunal Federal tem decidido inúmeros julgados com base na teoria do mínimo Existencial, como por exemplo, o julgado que manteve decisão obrigando o governo do Rio Grande do Sul a fornecer medicamentos a pacientes soro positivo que absteve-se de promover assistência com base na teoria da reserva do possível:
“EMENTA: PACIENTES COM HIV/AIDS. PESSOAS DESTITUÍDAS DE RECURSOS FINANCEIROS. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS. DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196). PRECEDENTES (STF). – O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência médico-hospitalar. – O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público”, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental.””[213]
A tese argüida pelo Ministro Celso de Melo[214] para a intervenção judicial contra a reserva do possível recai sobre a dignidade da pessoa humana que vislumbra a liberdade, igualdade e vida, sendo o foco principal de um Estado Constitucional, obrigando tanto o poder executivo, legislativo, judiciário e a sociedade a buscar sua efetivação. Ou seja, são características centrais dos Direitos Fundamentais, tendo como base o Estado Democrático de Direito. Estas garantias são reconhecidas como núcleos essenciais aos direitos do homem, e que necessitam de condições mínimas para uma sociedade alcançar seus ideais e valores, sendo reconhecidos pela doutrina como teoria do mínimo existencial.[215] Não podendo o Estado justificar-se pela teoria da reserva do possível quando uma prestação buscar condições mínimas de existência, muito menos se admite que por discricionariedade da administração pública sejam os recursos aplicados de forma ilegítima com intuito de fraudar ou inviabilizar os direitos sociais.[216]
Ocorre esta construção jurisprudencial a partir do advento da Constituição de 1988, que torna a saúde elemento extremamente importante para a condição da vida do homem. Segundo José Afonso, isso ocorre porque todo homem que for dotado de vida é indivíduo, por isso a vida é fonte primária de todos os outros bens jurídicos, pois “de nada adiantaria a Constituição assegurar outros Direitos Fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos”.[217] Deste modo entende-se que o direito a saúde[218] é um mecanismo para a manutenção da vida, derivando uma prestação obrigacional do Estado.[219]
No que tange a parte do convencimento do julgador, não basta apenas o mero pedido para que receba certo direito do magistrado, deve ser comprovada a real necessidade, com base em elementos probatórios de acordo com a situação de cada caso, assim como possibilidades de tratamentos alternativos e eficientes, ou seja, um simples requerimento médico não viabiliza sua aplicabilidade. Quando comprovado necessidade fática do paciente, inverte-se a ônus da prova, cabendo ao prestador do serviço a saúde provar que não há condições de promover tal direito por meio de prestações das contas públicas.[220] E caso comprovado que não há finanças para promoção conforme convencimento, o magistrado responsável retirará os recursos de outras previsões e os alocado à saúde.[221]
Nesse sentido o princípio da reserva do possível deve ser relativizada quando se trata da eficácia e/ou aplicabilidade do acesso à saúde com a teoria do mínimo existencial, pois existem outros institutos em jogo, como por exemplo, a vida e integridade física que são mais importantes que princípios institucionais (de acordo com o caso concreto), devendo ser protegidos por todos. Deste modo, note-se que é função do poder judiciário zelar pela efetivação dos direitos sociais, devendo cada decisão ter cautela e responsabilidade, seja ao conceder ou negar certa prestação de direito, ponderando os princípios da proporcionalidade e razoabilidade.[222]
4.2 CONCLUSÃO
Os Direitos Fundamentais sempre foram objeto de lutas durante toda a historia do homem, e hoje são reconhecidos como garantais inerentes do cidadão insculpidas em um ordenamento constitucional. Nesse sentido, pode-se dizer que de todos os direitos adquiridos, os direitos sociais são os que mais encontram problemas para sua aplicação.
Nossa Constituição Federal completou neste ano de 2010 seus primeiros 20 anos de existência, se comparada com Constituições de primeiro mundo, como por exemplo, Estados Unidos, França e Inglaterra, muitos doutrinadores consideram-na jovem, contudo jamais ouve uma Carta Magna que dispusesse de tantas garantias e deveres ao cidadão como esta. De fato não se pode negar que o Brasil ainda esta dando seus primeiros passos para a concretização dos direitos sociais, especialmente quando o tema é a aplicação de políticas públicas e econômicas na área da saúde. Entretanto a sociedade brasileira não pode admitir que seus administradores públicos sejam condizentes com esta situação, que utilizam-se de seu poder discricionários e artifícios técnicos para justificar sua não efetivação como, por exemplo, o argumento sobre o artigo 196 de nossa atual Constituição Federal, ao qual sustenta de tratar-se de uma norma programática, ou seja, dependente de leis que a regulem ou recursos financeiros.
Contudo, como vimos anteriormente, sempre que esta omissão ocorrer, e esta abstenção causar a um individuo ou grupo, uma lesão a sua saúde (aqui compreende-se uma lesão a vida e/ou integridade física), ou seja, ao princípio da dignidade humana, este(s) deve(m) procurar a justiça buscando sua concretude, como vimos ao longo desta monografia. É esta busca por sua concretização que torna os indivíduos em cidadãos brasileiros, pois este é o principio fundamental de um Estado Democrático de Direitos, deixando de lado o conceito formal, encaminhando-se para uma atuação ativa diante do Estado.
A intervenção judicial nestes casos tem crescido em grande escala, embora haja constantemente colisões entre princípios e direitos quando o judiciário interfere nas funções do poder executivo, ou legislativo, ao qual devemos ressaltar que são argumentos sempre utilizados por estes entes públicos, o magistrado sempre deve ponderar qual seria a melhor tutela a ser aplicada, para que não afete pessoas que se beneficiam da assistência pública a saúde. Logo jamais a teoria da reserva do possível terá sobreposição ao princípio do mínimo existencial, caso isso ocorra não poderemos falar em liberdade, igualdade ou dignidade da pessoa humana, pois este é o alicerce dos Direitos Fundamentais
Nesse sentido conclui-se que é inevitável a Judicialização dos direitos sociais para sua real efetivação, ainda que este ente (poder judiciário) possa agir somente quando solicitado. Nesta via, note-se que na verdade os direitos de cunho programático derivam de plena eficácia, ao contrário das interpretações literais utilizadas pelos responsáveis públicos. Ou seja, quando uma prestação a saúde objetivar a tutela de um bem maior com, por exemplo, a vida, esta devera ser protegida, pois é somente desta maneira que o homem terá o exercício pleno de sua dignidade.
Informações Sobre o Autor
Diego Rafael Slim Vargas