Resumo: A globalização não é um fenômeno único, uma vez que se manifesta nas diversas instâncias das relações sociais. Processo extremamente importante para a compreensão da Cidadania, promoveu uma significativa mudança na dinâmica espaço-temporal. Assim, apesar de ter como produto – em razão do avanço das técnicas – a produção de uma mais-valia globalizada e de um mundo perverso, sobretudo hoje, temos ótimas possibilidades de promover uma mudança de baixo para cima (bottom-up development) também em escala global. Contudo, o surgimento de uma expressão popular planetária deve ter como pressuposto uma Cidadania local capaz de instigar o indivíduo e a coletividade a participar intensamente da vida social, de forma consciente, (pois somente assim, plena) a fim de promover a efetividade do Direito, na busca da justiça e da igualdade.
Palavras-chave: Cidadania; Cidadania Planetária; Globalização; Crise do Estado; Direito Internacional.
Abstract: Globalisation is not a single phenomenon, given that it manifests itself in various forms of social relations. As an extremely important process for understanding Citizenship, it has promoted a significant change in time-space dynamics. As such, in spite of having as products – because of technical advances – the production of globalised added value and a perverse world, especially today, we also have excellent possibilities of promoting change from the bottom-up (bottom-up development) on a global scale. Withal, the emergence of a popular expression should have as a basic assumption a local Citizenship capable of encouraging the individual and the collectivity to participate intensely in social life, in a conscious way (but only this way, fully) in order to promote the effectiveness of the Law, in the search for justice and equality.
Keywords: Citizenship; Planetary Citizenship; Globalisation, Crisis of the State; International Law.
Sumário: Introdução; 1. O tempo, o conhecimento, a tecnologia e a ciência; 1.1. O tempo e o conhecimento; 1.1.1. O saber; 1.1.2. O tempo; 1.2. Tecnociência; 2. Globalização, Cidadania e soberania nacional; 2.1. A Globalização hegemônica e a globalização contra-hegemônica; 3. A Cidadania do consumo; 4. A Cidadania planetária; Referências Bibliográficas.
Introdução
A globalização, enquanto fenômeno civilizatório planetário, remonta à época da descoberta da nau oceânica[1] e das grandes navegações. Essa foi, sob este ponto de vista, a fase inicial da globalização atual[2]. Pois,
“[…] durante a maior parte do tempo entre 3.000 a.C. e 1500 d.C., cada uma das regiões em que se dividia o habitat do homem seguiu seu próprio caminho. Isolamento e diferenciação predominaram sobre comunicação e assimilação. As civilizações regionais coexistiram sem amalgamar-se.”[3]
Contudo, enquanto essa representou o encurtamento das distâncias globais e o intercâmbio comunicativo entre culturas as mais diversas, ao mesmo tempo, acabou por revelar-se como um acontecimento excludente e perverso.
É, de uma vez por todas, deflagrada em período de transição do poder político – dos monarcas (soberanos) e da nobreza (corte) detentores desse poder para os grandes comerciantes (burguesia) detentores do poder econômico-financeiro –, mas isso numa visão estritamente eurocêntrica[4].
É preciso reconhecer, nesse contexto, a existência concomitante de culturas milenares como a africana, a chinesa e a indiana e, assim, expor a fragilidade – mormente, histórica e jurídica – de uma cultura que se pretende única. E isso nos revela uma história de guerras, de dominação e de avanços científicos que se tornou muito mais complexa desde a intensificação em massa do processo de ocidentalização do mundo. Segundo Edgar Morin e Anne Kern,
“A História é o surgimento, o crescimento, a multiplicação e a luta até a morte dos Estados entre si; é a conquista, a invasão, a escravização, e também a resistência, a revolta, a insurreição; são batalhas, ruínas, golpes de Estado e conspirações; é o desfraldar do poderio e da força, a desmedida do poder; é o reinado aterrorizante de grandes deuses sedentos de sangue; é a servidão de massa e o massacre de massa; é a edificação de palácios, templos, pirâmides grandiosos, é o desenvolvimento das técnicas e das artes; é o aparecimento e desenvolvimento da escrita; é o comércio por mar e por terra das mercadorias, e depois das idéias; é também, aqui e ali, uma mensagem de piedade e de compaixão, aqui e ali um pensamento que interroga o mistério do mundo.”[5]
Enquanto, para os países “protagonistas”, a globalização, em suas várias faces, significou fonte de prosperidade, de expansão territorial e exploração das riquezas materiais, culturais etc., espoliando os países tecnologicamente menos avançados e também os países mais pobres, para estes últimos, nada ou muito pouco fora dado em troca. Logo, por óbvio, esses não tiveram os mesmos acessos materiais, culturais, tecnológicos etc. Sendo assim, relembrando a tentativa de Mário de Andrade[6], poderíamos dizer: “é preciso globalizar a globalização, urgentemente”.
Portanto, a globalização pode ser entendida – em certa medida – como um processo impositivo no qual as culturas mais poderosas exploram as mais pobres, disseminando e potencializando a miséria em detrimento de sua própria riqueza. A globalização, todavia, e isso é importante compreender, não é um fenômeno apenas econômico, nem mesmo um epifenômeno, mas é cultural, jurídico, político etc.[7] Nesse sentido, deu-se, primordialmente, através de um processo de ocidentalização do mundo.
Assim, uma análise histórica e jurídica, a partir da ideia de globalização, sobretudo tecnológica, que nos conectou – cada um de nós – numa rede mundial de comunicação, deve se dar de modo multifacetado, interdisciplinar. Para, com isso, aproveitar esse leque de possibilidades como instrumento auxiliar da Emancipação Social e, principalmente, da Cidadania comprometida com a biosfera, uma Cidadania calcada no pensamento biocêntrico.[8]
A história dominante, que remonta à Europa, obrigatoriamente remete à cultura greco-romana, mas, além disso, aos árabes, nórdicos, germânicos, macedônios, hindus, chineses, ameríndios, africanos etc. Além disso, remete também à colonização, escravidão, mercantilismo, industrialização, a extinção das monarquias absolutistas e a formação dos Estados-nação de Direito secularizados. Obviamente, também perpassa as grandes rotas comerciais que trazem consigo as misturas culturais – a linguagem, a culinária, a política, as artes – e assim, o mundo se torna globalizado. É, pois, uma história multidimensional.
Com isso, neste contexto da globalização, tem-se como proposição – neste trabalho – pensar uma Cidadania Global partindo do fortalecimento da Cidadania local, de cunho comunitário.
Não há sentido pensar numa Cidadania global sem pensar no estabelecimento de mecanismos potencializadores da Cidadania local, pois cada “célula comunitária” interfere no equilíbrio do sistema. Deve-se pensar, pois, no desenvolvimento de um organismo social participativo em que, em cada comunidade, seus membros atuem no processo de tomada de decisão em diversos níveis. Nos projetos de seu bairro[9], nas audiências públicas do plano diretor de sua cidade[10], no plano plurianual[11], participe, também, ativamente em leis de iniciativa popular[12].
É transformando sua realidade que a sociedade alcançará a mudança estrutural necessária para conquistar, verdadeiramente, uma melhor qualidade de vida. É, também, na educação cotidiana para o exercício da Cidadania que se desenvolve um pensamento mais crítico e participativo.
Além do mais, a “democratização” dos benefícios da globalização é fundamental para o desenvolvimento de uma nova cultura planetária[13]. Uma cultura da alteridade, e que por isso, compreenda a impossibilidade de imposição de uma concepção única de Direitos Humanos, a impossibilidade de imposição unilateral de uma “ordem” mundial. Contudo, atenta aos perigos do relativismo cultural, numa postura crítica aos totalitarismos e fundamentalismos atuais que não podem simplesmente ser legitimados por contingências históricas, religiosas, consuetudinárias, culturais etc.
Para tanto, é preciso pensar/estimular uma educação voltada para o exercício contínuo da Cidadania[14]. Desde a fase escolar mais básica, participando das decisões da escola, também em grêmios escolares, organizações estudantis etc., podemos pensar uma educação emancipatória e que, por isso, realize a possibilidade de todas as instâncias sociais participarem e influenciarem (ou se omitirem) nas dinâmicas da sociedade de forma plena, horizontal, equânime e consciente.
Cidadania tal qual a compreendemos é termo originado das grandes revoluções burguesas e, justamente por esse fato, é fruto da ideologia Liberal. Brota no Iluminismo a partir do Racionalismo, com isso, os homens passam a ser responsáveis por tudo, Deus não é mais a salvação. A ideia do cidadão é o oposto de súdito (pertencente a Deus e ao rei). A fé morreu como dogma fundamental e então surge a razão[15].
É, propriamente, o que Boaventura traduz como mudança da equação raízes e opções. Ao passo que, até o advento da Modernidade, a raiz é a religião e tendo como uma das opções a razão, com o Iluminismo essa lógica se inverte. Assim, diz o sociólogo português,
“As teorias racionalistas do direito natural do século XVII reconstituem a equação entre raízes e opções de modo inteiramente moderno. A raiz é agora a lei de natureza pelo exercício da razão e observação.[16]
No mesmo processo histórico em que a religião transita do status de raiz para o de opção, a ciência transita, inversamente, do status de opção para o de raiz. Giambattista Vico e a sua proposta de ‘nova ciência’ (1961 [1725]) é um marco decisivo nesta transição que se iniciara com Descartes e se consumará no século XIX. A ciência, ao contrário da religião, é uma raiz que nasce no futuro, é uma opção que, ao radicalizar-se, se transforma em raiz e cria a partir daí um campo imenso de possibilidades e de impossibilidades, ou seja, de opções.”[17]
Além disso, pode-se constatar que o conceito de Cidadania é, tradicionalmente, impregnado por um pensamento antropocêntrico e individualista, produto dessa matriz político-ideológica liberal.
Sendo assim, a própria ideia de homem cidadão já se encontra fragmentada desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França – 1789). Daí emerge a constatação de que a própria ideia de Cidadania necessita de um redimensionamento, como veremos mais adiante.
1. O Tempo, o conhecimento, a tecnologia e a ciência
O início da globalização, a partir das grandes navegações, promoveu uma transformação fantástica na compreensão espaço-territorial do mundo. Um lugar que nunca se poderia chegar – a não ser “acidentalmente”, posto que “não existia” – agora poderia ser alcançado em meses, explorado e povoado.
A dinâmica política, cultural, jurídica e econômica global passa a incorporar territórios e povos, até então, desconhecidos. O processo “civilizatório”, que se dá através da colonização, promove um enriquecimento esplêndido das potências marítimas europeias e é essa acumulação material (que, em verdade, se dá pelo genocídio e pela espoliação de riquezas alheias) que permite um desenvolvimento – sobretudo, tecnológico – jamais visto na história da humanidade.
Com isso, a racionalidade moderna promove uma transformação irreversível no mundo, a partir do desenvolvimento insaciável da Ciência[18], a que Morin chama de Tecnociência[19].
Mais tarde, a industrialização – iniciada pela Inglaterra – provoca uma intensificação das dinâmicas globais. As relações políticas, culturais, econômicas, jurídicas etc., jamais serão as mesmas. E nesse ínterim, o território e a concepção de tempo sofrem modificações significativas.
As invenções tecnológicas como o automóvel, o avião a jato, a telefonia celular e a rede mundial de computadores, encurtaram as distâncias no mundo. Podemos nos comunicar com pessoas que se encontram no outro lado do planeta em questão de segundos. O mundo está realmente menor. Assim, a globalização é avassaladora, pois – assumindo o “papel de deus” – ela é onipresente e onipotente. Segundo Milton Santos,
“Explicações mecanicistas são, todavia, insuficientes. É a maneira como, sobre essa base material, se produz a história humana que é a verdadeira responsável pela criação da torre de babel em que vive a nossa era globalizada. Quando tudo permite imaginar que se tornou possível a criação de um mundo veraz, o que é imposto aos espíritos é um mundo de fabulações, que se aproveita do alargamento de todos os contextos (Milton Santos, A natureza e o espaço, 1996) para consagrar um discurso único. Seus fundamentos são a informação e o seu império, que encontram alicerce na produção de imagens e do imaginário, e se põem ao serviço do dinheiro, fundado este na economização e na monetarização da vida social e da vida pessoal.”[20]
Numa espécie de vaticínio, em 1932, com o seu livro Brave new world (Admirável mundo novo), Aldous Huxley denuncia os processos desumanizadores do desenvolvimento científico e material[21].
Nessa evolução histórica, o tempo e o território são comprimidos. O tempo, agora instantâneo, dita o ritmo da vida no campo e na cidade. “O tempo cronometrado, o tempo precipitado fazem desaparecer a disponibilidade, os ritmos naturais e tranquilos. A pressa expulsa a reflexão e a meditação.” [22]
Sendo assim, a globalização opera em vários âmbitos inclusive o espaço-temporal.
1.1. O tempo e o conhecimento
No processo de ocidentalização do mundo, o pensamento hegemônico tende a condenar determinados conhecimentos e saberes à ausência, interferindo e, até, destruindo culturas milenares, alternativas, não-ocidentais, apenas reconhecendo e se apropriando daqueles conhecimentos com potencial mercadológico[23]. “A idéia desenvolvimentista foi e é cega às riquezas culturais das sociedades arcaicas ou tradicionais que só foram vistas através das lentes economistas e quantitativas.”[24]
Sendo assim, na busca da compreensão desse processo, utilizar-se-á, para uma melhor compreensão didática, as lições de Boaventura através do método designado sociologia das ausências. “Trata-se de uma investigação que visa demonstrar que o que não existe é, na verdade, activamente produzido como não existente, isto é, como uma alternativa não-credível ao que existe.”[25]
A partir desse ensinamento, o sociólogo português identifica cinco modos de produção de não-existência.
“A primeira lógica deriva da monocultura do saber e do rigor do saber. É o modo de produção de não-existência mais poderoso.” E se consubstancia em aceitar a ciência moderna e a alta cultura como o único caminho da verdade e da virtude estética, respectivamente.[26]
“A segunda lógica assenta na monocultura do tempo linear.” Esta impõe a percepção da História sob um único sentido e direção. É através dessa lógica, que são concebidas as ideias de “progresso, revolução, modernização, desenvolvimento, crescimento, globalização.”[27]
Justamente, em razão disso, entende-se inapropriada a denominação “países subdesenvolvidos”. Posto que gera uma ideia deformada de desenvolvimento, obtida apenas pela análise de índices de desenvolvimento tecnológico e científico, pelo Produto Interno Bruto (PIB)[28], pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Ocultando uma realidade desigual em oportunidades e possibilidades, numa lógica paradoxal, em que aos mais ricos está reservado, em abundância, o melhor, por uma legitimação que se dá pela dominação, através do poder econômico, pela alienação e/ou pela violência.
Por seu turno, a “terceira lógica é a lógica da classificação social, e assenta na monocultura da naturalização das diferenças.” É a hierarquização popular, que se manifesta na forma mais explícita e acintosa através da classificação racial e sexual. No entanto, contraditoriamente, “a classificação social assenta em atributos que negam a intencionalidade da hierarquia social.” Assim, o exercício do poder se torna consequente e não causal, a ponto de ser tido como obrigação do homem superior “(por exemplo, o “fardo do homem branco” na sua missão civilizadora)”. “De acordo com essa lógica, a não-existência é produzida sob a forma de inferioridade insuperável porque natural.”[29]
Já a “quarta lógica da produção de inexistência é a lógica da escala dominante.”[30] Nesse raciocínio, a escala fundamental encarrega-se de despojar todas as outras escalas de um sentido de pertinência. O universalismo e a globalização são suas formas principais de manifestação.[31] Segundo Boaventura,
“No âmbito desta lógica, a não-existência é produzida sob a forma do particular e do local. As entidades ou realidades definidas como particulares ou locais estão aprisionadas em escalas que as incapacitam de serem alternativas credíveis ao que existe de modo universal e global.”[32]
Por fim, a quinta lógica de não-existência “é a lógica produtivista e assenta na monocultura dos critérios de produtividade capitalista.” Através dessa concepção, a meta primordial é o crescimento econômico. Esse critério tanto se aplica à natureza (fertilidade, possibilitando a máxima produção) quanto ao trabalho humano (produtividade que gera o máximo de lucro). “[…] a não-existência é produzida sobre a forma do improdutivo que, aplicada à natureza, é esterilidade e, aplicada ao trabalho, é preguiça ou desqualificação profissional.”[33]
Através dessas cinco formas sociais de não-existência (o ignorante, o residual, o inferior, o local e o improdutivo) tem-se como produto o que Boaventura chama desperdício da experiência.[34]
A partir da identificação desses modos de produção de não-existência, através da sociologia das ausências – numa espécie de alternativa epistemológica –, Boaventura propõe a identificação de, também, cinco ecologias[35] que, por sua vez, substituirão as monoculturas evidenciadas por essa sociologia em análise.
As cinco ecologias são: a ecologia de saberes; a ecologia das temporalidades; a ecologia dos reconhecimentos; a ecologia das trans-escalas; e a ecologia das produtividades. Para o presente trabalho, interessa a compreensão das duas primeiras ecologias.
1.1.1. O saber
A ecologia dos saberes implica reconhecer que “a lógica da monocultura do saber e do rigor científicos, tem de ser confrontada com a identificação de outros saberes e de outros critérios de rigor que operam credivelmente nas práticas sociais.”[36] Consiste, basicamente, na aprendizagem intercognitiva. A produção de um conhecimento mais amplificado e complexo, em que novos conhecimentos não anulem os já produzidos. E nesse processo interativo, cumpre reconhecer que o saber científico é apenas mais um entre tantos.
A monocultura do saber científico fora imposição estratégica de dominação no processo de ocidentalização do mundo, em que o conhecimento, transformado em instrumento dessa dominação, era propriedade dos atores dominantes. Por isso, mesmo, que Boaventura explica que
“Como o conhecimento científico não se encontra distribuído de uma forma socialmente eqüitativa, as suas intervenções no mundo real tendem a ser as que servem os grupos sociais que tem acesso a este conhecimento. Em última instância, a injustiça social assenta na injustiça cognitiva.”[37] (Grifo nosso)
A partir dessa constatação, devemos reconhecer que essa realidade também é verificável em relação ao Direito – um dos pilares da dominação ocidental. Sob esse aspecto, a Cidadania tem alta relevância. A busca por uma sociedade participativa que exerça a Cidadania de forma plena somente pode ser imaginada se, também, conhecer o Direito. A própria eficácia social da legislação estatal só será alcançada, de fato, através da luta pelo reconhecimento do direito de conhecer o Direito.
O ensino de conteúdos jurídicos (socialmente relevantes) potencializa a Cidadania e a própria Cidadania dinamiza o Direito.
Conhecer o Direito e ter uma educação voltada para o exercício da Cidadania, e. g., pode implicar na formação de um povo mais consciente e, por isso, menos propenso a circunstâncias que levam a composição de demandas processuais – como as questões relativas aos contratos de adesão e aos contratos de trabalho, às relações de consumo. E isso certamente implica na potencialização do Princípio da Celeridade Processual[38], tendo em vista a diminuição de tais demandas.
Conhecer o Direito implica, ainda, na potencialização do acesso à justiça. Isso sob diversos aspectos, pois a maioria das pessoas desconhece os meios de tutela dos seus direitos. Muitos necessitam de tradutores (os advogados) para compreender as suas situações processuais. Também é muito comum advogado ser procurador em demandas que não necessitam deste.
Ainda, e principalmente, conhecer a lei é imprescindível para o desenvolvimento de um serviço público de qualidade (através da fiscalização popular e de sua participação, também, pela melhor qualidade do serviço oferecido pelo aparato público estatal em áreas sociais estratégicas como Saúde, Educação, Habitação e Segurança).
Enfim, a Cidadania interage com o Direito em todos os ramos jurídicos (Tributário, Penal, Financeiro, Trabalho, Civil, Previdenciário etc.). Além disso, a Cidadania também dinamiza a vida cotidiana, a partir de pequenas ações individuais e coletivas, como nos índices de violência no trânsito, na coleta seletiva do lixo, na limpeza da cidade, na doação de sangue, de órgãos e tecidos, no uso e não no consumo dos bens duráveis, no respeito e na proteção da biosfera, no uso da bicicleta como meio alternativo ou complementar de transporte urbano etc.
Contudo, torna-se importante salientar que a Cidadania e o Direito não são fórmulas para a salvação. É preciso um conjunto de ações muito mais amplo, que parte da Educação, mas que interfira nas várias instâncias da sociedade, através da ação criativa, interdisciplinar e transdisciplinar que faça da prática cotidiana da participação um hábito comum que desperta e potencializa mais participação.
Todavia, é de fundamental importância denunciar que a educação para o exercício da Cidadania e para a apropriação popular do saber jurídico é, propriamente, uma das promessas da democracia ideal que não se cumpriu na democracia real[39].
1.1.2. O tempo
Retornando à compreensão acerca das ecologias, por sua vez, a “ecologia das temporalidades” seria utilizada para confrontar a lógica da monocultura do tempo linear. É o reconhecimento de diversas concepções de tempo e, por isso, a constatação da inexistência da exclusividade dessa monocultura, que se quer é a mais praticada[40]. Para Boaventura,
“O domínio do tempo linear não resulta da sua primazia enquanto concepção temporal, mas da primazia da modernidade ocidental que o adoptou como seu. Foi a concepção adoptada pela modernidade ocidental a partir da secularização da escatologia judaico-cristã, mas nunca eliminou, nem mesmo no Ocidente, outras concepções como o tempo circular, o tempo cíclico, o tempo glacial, a doutrina do eterno retorno e outras concepções que não se deixam captar adequadamente pela imagem de um tempo em linha recta.”[41]
Na esteira deste pensamento, basta uma superficial análise crítica de nossa concepção temporal. As ideias de desenvolvimento, avanço, progresso, evolução etc., impressas no homem através da modernidade chega a confundir de tal modo nossa concepção de tempo que muitas vezes não nos damos conta de outras percepções temporais. Veja, e. g., o tempo cíclico. Ora, não são as horas – apesar de expressarem uma ideia dominante de avanço incessante – uma concepção cíclica? E os dias da semana? (domingo, segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, quinta-feira, sexta-feira, sábado, domingo, segunda-feira…).
Assim, pensar uma Cidadania planetária implica reconhecer a diversidade cultural e o pluralismo de forma complexa num pensamento para além do científico, mas, obviamente, não basta o simples reconhecimento. É necessário o respeito e o diálogo equânime entre as diversas culturas. Implica o desenvolvimento do global a partir de uma cultura planetária que reconheça, respeite e dialogue com as diversas esferas locais. Uma cultura que parta dos diversos locais (de baixo para cima) num movimento de convergência da humanidade. Um pensamento holístico e multidimensional que faça o indivíduo perceber-se como elemento de um conjunto de instâncias interconectadas do nível mais local e privado ao mais complexo e planetário, a humanidade unida, sobretudo, pelo necessário equilíbrio da biosfera e da humanidade. Toynbee alerta,
“A biosfera existe e sobrevive através de um delicado equilíbrio de forças, auto-regulador e autopreservador. Os constituintes da biosfera são interdependentes e o Homem é exatamente tão dependente de sua relação com o resto da biosfera quanto qualquer dos outros atuais constituintes da mesma.”[42]
1.2. Tecnociência
Segundo Edgar Morin, o nosso destino hoje é condicionado pelo desenvolvimento da técnica e das ciências. Assim, a tecnociência, por seu turno, cresce da interação desses dois tipos de desenvolvimento.[43]
Para Milton Santos a técnica é decisiva para “o uso do tempo, permitindo, em todos os lugares, a convergência dos momentos, assegurando a simultaneidade das ações e, por conseguinte, acelerando o processo histórico.”[44]
Todavia, a tecnologia tem importância inestimável, nesse processo, justamente pelo fato de que, como nunca na história da humanidade, as tecnologias de massificação agora são também utilizadas pelas massas. Para Milton Santos,
“As massas, de que falavam Ortega y Gasset na primeira metade do século (La rebelión de las masas, 1937), ganharam uma nova qualidade em virtude da sua aglomeração exponencial e de sua diversificação. Trata-se da existência de uma verdadeira sociodiversidade […]. Junte-se a esses fatos a emergência de uma cultura popular que se serve dos meios técnicos antes exclusivos da cultura de massas, permitindo-lhe exercer sobre esta última uma verdadeira revanche ou vingança”.[45]
Ainda com base nas lições do baiano Milton Santos, pode-se compreender que as grandes aglomerações populacionais constituem-se “em uma das bases de reconstrução e de sobrevivência das relações locais, abrindo espaço para a utilização, ao serviço dos homens, do sistema técnico atual.”[46]
Vejamos, e. g., o caso do Irã, onde, após as eleições presidenciais de 2009, iniciou-se um intenso movimento popular insatisfeito com o processo eleitoral que resultou na re-eleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad. Mesmo com a proibição de manifestações públicas e a consequente repressão estatal, e com a expulsão de jornalistas e diplomatas, a sociedade civil conseguiu – por meio da tecnologia digital e da rede mundial de computadores – divulgar os acontecimentos naquele país.
Contudo, é importante também observar que a unicidade das técnicas[47], “cujo computador é uma peça central,” torna possível a existência de uma “finança universal, principal responsável pela imposição a todo o globo de uma mais-valia mundial.”[48] “A atual competitividade entre as empresas é uma forma de exercício dessa mais-valia universal.”[49]
Sendo assim, apesar dessa monetarização da vida em escala global (em que o consumo é o grande fundamentalismo de nosso tempo[50]) nunca tivemos condições tão formidáveis para buscar uma nova globalização. “No plano teórico, o que verificamos é a possibilidade de produção de um novo discurso, uma nova metanarrativa, um novo grande relato.”[51]
2. Globalização, Cidadania e soberania nacional
No processo de globalização das relações sociais, frequentemente, formula-se um discurso em que o Estado encontra-se enfraquecido, mormente no que tange à sua soberania nacional. “O velho conceito de soberania de cada Estado está em crise porque os Estados soberanos (isoladamente) não conseguem solucionar problemas globais.”[52]
A crescente ideologia neoliberal, que possibilitou a legitimação de um sistema financeiro e de mercado sem regulamentação, impossibilitou ao Estado (em que esse modelo político-ideológico fora, efetivamente, implantado) criar e organizar mecanismos de controle e fiscalização das suas atividades, mormente em relação aos grandes conglomerados econômicos.
O próprio território – o âmbito local das relações – torna-se um espaço fragilizado, tendo em vista que as “empresas, na busca da mais-valia desejada, valorizam diferentemente as localizações.”[53]
As condições técnicas atuais unificam o mundo e mundializam a ação humana. Contudo, “impõe-se à maior parte da humanidade como uma globalização perversa.”[54]
Sendo assim, “o encolhimento das funções sociais e políticas do Estado […] amplia o papel político das empresas na regulação da vida social.”[55]
O enfraquecimento do Estado – em última instância – se dá, efetivamente, pelos efeitos da globalização, mas também é produto da secular apropriação do poder político pelo grupo dominante, que (hoje) na maioria dos países do capitalismo periférico dependente, deve conjugar (e/ou subjugar) seus interesses aos dos grupos econômicos transnacionais.
Na lógica da violência do dinheiro[56], as empresas multinacionais desfragmentam o território e geram um enfraquecimento do local explorado. “A aceitação de um modelo econômico em que o pagamento da dívida é prioritário implica a aceitação da lógica desse dinheiro.”[57]
O Mercado surge como espaço político agindo não como ente, mas como uma espécie de discurso ideologizante.[58] Com isso, através dessa escala mundial, a globalização impõe o desequilíbrio das localidades exploradas, principalmente, com a convergência da grande maior parte do dinheiro para os países onde se localizam as matrizes das empresas globais, logo, “[…] o território é hoje um território nacional da economia internacional.”[59]
Todavia, esse processo globalizante, em que as empresas agem demarcando territórios para serem explorados, desorganizando as relações locais, não opera simplesmente por sua própria vontade. A utilização do Estado como mecanismo legitimador da aniquilação de áreas sociais determinantes para o fortalecimento da nação e, consequentemente, a implantação fictícia da sua crise é em parte produto do distanciamento da população nos assuntos relacionados à coisa pública e, portanto, de todos. Segundo Milton Santos (e as ideias aqui desenvolvidas se inclinam nesse sentido),
“Ao contrário do que se repete impunemente, o Estado continua forte e a prova disso é que nem as empresas transnacionais, nem as instituições supranacionais dispõem de força normativa para impor, sozinhas, dentro do território, sua vontade política ou econômica.”[60]
Esse é – na análise desenvolvida nesta seção – o ponto nevrálgico da discussão. O aparente enfraquecimento do poder Estatal é fruto de uma política interna comprometida com os interesses privados de uma pequena parte da sociedade[61] e, principalmente, da ausência da participação popular. Na verdade, a crise é do modelo estatal assim estabelecido, a democracia de uma minoria que se diz maioria por impor um senso comum distorcido da representatividade da vontade geral.
É esse o ponto mais fraco da democracia representativa, posto que enfraquece a consciência participativa da população que acaba por aceitar passivamente e acriticamente as decisões políticas.
É precisamente a ausência de um sentimento coletivo nacional (e hoje também planetário), que possibilite a percepção do discurso influente[62] e estimule a Cidadania participativa, o fator determinante para o enfraquecimento do Estado. A apatia social é a conexão que possibilita a utilização da máquina estatal apenas aos interesses do poder hegemônico, segundo um discurso e uma lógica dominante.
Sendo assim, fortalecer a Cidadania é tornar o poder Estatal mais forte, pois, a partir do momento em que a sociedade participa das decisões do mundo social, o Estado fortalece a própria instância local em seus diversos níveis de atuação e não apenas num determinado setor, pois Cidadania se manifesta para além do estatal. Somente com a participação efetiva da sociedade o Estado (assim, como o Direito) realizará o seu objetivo principal: servir ao povo! E isso somente é possível, devido a um dado de extrema importância: “[…] é o Estado nacional, em última análise, que detém o monopólio das normas, sem as quais os poderosos fatores externos perdem eficácia.”[63]
A globalização perversa, dessa forma, imprime novas definições ao espaço geográfico. Aos atores hegemônicos, os melhores lugares estão reservados. Assim, o território acaba por fragmentar-se causando interferência sobre “o movimento geral da sociedade planetária e o movimento particular de cada fração, regional ou local, da sociedade nacional.”[64]
Assim, o território revela-se como elemento sensível ao processo de globalização, sobretudo quando as finanças re-estruturam o espaço geográfico, a partir da aplicação de fatores exógenos que acabam por interferir no cotidiano local.[65] A competitividade destrói a concepção local de solidariedade e, com isso, estabelece uma solidariedade vertical e essa, por sua vez, “exclui qualquer debate local eficaz”.[66]
Nessa esquizofrenia do território, os espaços territoriais acabam por serem usados a partir de uma política alienígena. Quando um local não mais oferece as vantagens necessárias para a manutenção dos lucros de uma empresa (incentivos fiscais, mão-de-obra qualificada e/ou barata etc.), torna-se um lugar descartável e tal empresa, simplesmente, passa a buscar outra localidade para explorar.
“É melhor fazer a nação por intermédio do seu território, porque nele tudo o que é vida está representado.”[67] A fragilidade do Estado reside, basicamente, na ausência quase total da prática cotidiana da Cidadania (nas várias instâncias), o que torna praticamente inviável uma democracia participativa. Daí a imprescindibilidade de um poder popular local que atue, também, sobre esse espaço geográfico para, assim, não se tornar refém do discurso importado que serve apenas a interesses exógenos.
Pensar uma Cidadania planetária pressupõe, então, o fortalecimento das bases democráticas de cada local. Para que cada um deles interfira de modo equilibrado nas dinâmicas mais externas e amplas (regional, nacional) até o nível mundial. Implica analisar a Cidadania, enfim, também pelo seu aspecto geográfico.[68] Logo, um Estado forte é imprescindível à própria Cidadania (e vice-versa) e isso também na escala global.
A “crise financeira” alardeada, sobretudo, pela mídia (e que possibilitou o repasse indecoroso de vários trilhões de dólares às grandes empresas privadas) é prova da importância do Estado. Veja o exemplo da General Motors. Empresa de grande poder econômico e financeiro, superando o PIB de muitos países, agora tem 60% do seu capital controlado pelo governo dos Estados Unidos[69]. Ora, não fossem os Estados, em todo o mundo (inclusive no Brasil), tal crise financeira teria tomado proporções ainda mais catastróficas.
Vale notar que o esgotamento do capitalismo atual[70] se dá em seu momento de maior vigor, numa espécie de contradição, e disso extrai-se a conclusão de que o imprevisível é o mais provável em detrimento das previsões e planos. O perfeito e acabado deve, no mínimo, ser questionado. Por isso, devemos proceder à valorização da incerteza, do não-dogmatismo, da não-cristalização e, assim, abrir as portas para as possibilidades. “[…] o progresso não está assegurado automaticamente por uma lei da história. O devir não é necessariamente desenvolvimento. O futuro chama-se doravante incerteza.”[71]
Pensar a Cidadania, em nossos dias, também implica correlacioná-la ao pensamento político-ideológico neoliberal. E nesse diapasão, a privatização, a mercantilização e a liberalização foram “os três pilares do neoliberalismo e da globalização neoliberal.”[72]
O discurso midiático – o grande encarregado da legitimação desse sistema – encontra-se em poder de um pequeno grupo de atores hegemônicos que se apropriam do discurso transformando-o em senso comum. Por isso mesmo, é mais um senso impositivo do que um discurso legítimo da população. É um verdadeiro “pseudo-senso comum”.
Sendo assim, tal discurso cool autoritário[73] traduz-se como o legitimador das políticas dos grupos dominantes. Estes últimos, detentores – sobretudo – dos poderes político, jurídico, econômico e financeiro, a partir de uma lógica global muitas vezes comprometida com o capital externo, utilizam o aparato estatal para diminuir as ações sociais e fortalecer as atenções ao âmbito financeiro do país. Justamente por esse fato, é muito comum observarmos grandes auxílios financeiros a bancos e montadoras de automóveis, e. g., segundo uma política de manutenção de empregos e privilégios.[74]
Assim, quanto menos Estado social mais força tem o mercado. Este, por sua vez, exerce seu poder legitimado pela informação, daí o seu elo com a mídia. Por isso, Milton Santos assevera:
“Há um verdadeiro retrocesso quanto à noção de bem público e de solidariedade, do qual é emblemático o encolhimento das funções sociais e políticas do Estado com a ampliação da pobreza e os crescentes agravos à soberania, enquanto se amplia o papel político das empresas na regulação da vida social”.[75]
Na missão de nos entorpecer diariamente, o discurso midiático nos bombardeia com mensagens de consumo (a propaganda onipresente) e com notícias da violência urbana a fim de torná-la comum e habitual, banalizando a miséria que se esconde no subterrâneo da criminalidade.
Com isso, a mídia tem como função precípua confundir a consciência. “O que é transmitido à maioria da humanidade é, de fato, uma informação manipulada que, em lugar de esclarecer, confunde.”[76]
O discurso do mercado atua com tanta força que “o modus operandi da empresa privada com fim lucrativo tornou-se o modelo ao qual o governo aspira.”[77]
Nesse contexto, em que o Estado, obviamente, também sofre o impacto da globalização, uma discussão sobre a democracia também deve ser travada, ainda que sem a profundidade desejada pelo cuidado de não fugir por demais do objetivo central deste trabalho.
Uma consideração inicial deve ser apontada: “pela primeira vez na história humana há uma única forma de Estado claramente dominante – a república democrática, constitucional, representativa e moderna”.[78]
Segundo Hobsbawn, no que concerne à democracia, e em especial às democracias liberais, duas premissas são básicas: (a) a aprovação expressa da população ao regime (premissa de ordem moral) e (b) a premissa de ordem prática e que repousa em três presunções, como veremos logo em seguida.[79]
Sendo assim, em relação à crise do Estado, a fase atual é marcada por “[…] um divórcio bastante óbvio dos cidadãos com relação à esfera política.”[80] O que afeta, substancialmente, a premissa (a).
Ainda em relação ao enfraquecimento do Estado, e no que diz respeito à premissa prática (b) da democracia, vejamos a correlação entre as presunções desta última premissa apontada e o processo de transformações por que passa o Estado.
Primeiro, a presunção de que o Estado deve deter um poder superior a qualquer ente presente em seu território.[81] Tal afirmação pode ser facilmente confrontada, a partir da constatação de que, atualmente, muitos Estados não são mais os detentores do monopólio da força.[82]
Segundo, presenciamos um período de enfraquecimento da “lealdade voluntária” e da “prestação de serviços dos cidadãos ao Estado”. Fatores determinantes para as guerras e para o aumento da renda do Estado, que em alguns casos supera os 40% do produto interno bruto.[83]
Por último, a presunção de que o Estado é o único capaz de prestar determinados serviços de modo eficaz, como assegurar o império da lei.[84] Ora, “[…] os triunfos extraordinários da economia põem à disposição da maioria dos consumidores mais do que o governo […]”. Esse último seria um dos grandes problemas, pois o “ideal da soberania do mercado não é um complemento à democracia, e sim uma alternativa a ela.”[85]
E esses são fatores que também devem ser levados em conta na análise da “crise” e do processo de transformações cujo Estado também é parte. Com isso, acaba por revelar-se como uma crise paradigmática.
Nesse cenário de completa apatia social, a Cidadania se encontra tão fragmentada que perdeu sua capacidade de dialogar com o Direito.
A Cidadania é termo idealizado pelos burgueses, a partir da matriz político-ideológica liberal e sob uma concepção estritamente antropológica. Além do mais, o individualismo e a competitividade, fruto dessa concepção, atomizam os indivíduos.
Assim, a partir da lógica da globalização, a não participação da sociedade nos destinos políticos do país proporciona um ambiente formidável à manutenção dos interesses dominantes, tanto na esfera nacional como internacional. Daí o desconhecimento da população brasileira em relação ao destino do dinheiro público cuja origem está na própria sociedade por meio de uma pesada carga tributária.
Para se ter uma ideia, em relação à utilização desse dinheiro, da distância entre a sociedade e o modelo econômico cuja prioridade é o pagamento da dívida[86] – sob o ponto de vista da realidade brasileira:
“Um mês de juros e amortizações corresponde ao dispêndio anual com atenção hospitalar e ambulatorial de todo o Sistema Único de Saúde. Dez dias correspondem a todos os recursos alocados ao Programa Bolsa Família, que unificou as ações sociais do governo. Uma semana supera os gastos anuais previstos para o Programa Brasil Escolarizado. Um dia cobre com sobras todo o gasto previsto para construção de habitações populares. Uma hora supera a dotação anual para conservação de monumentos históricos. Finalmente, um minuto de juros e amortização das dívidas corresponde à alocação anual – sim, anual – de recurso com a política de direitos humanos.”[87]
Outro fator importantíssimo para a análise do enfraquecimento do Estado, como já anteriormente observado, é a relativização da sua soberania nacional. A concepção tradicional da soberania implica reconhecer a influência do Estado em todos os aspectos relacionados à sua delimitação espaço-territorial.[88]
Quanto a este ponto, a análise das questões ecológicas melhor explica e explicita as nuances da soberania nacional e a problemática de seu enfraquecimento.
Ora, o acidente com o reator nuclear de Tchernobyl fora um acidente de grandes proporções. A nuvem de gases radioativos contaminou o ar e afetou a saúde da população de vários países.[89] Ainda, impossível não citar o argumento de que o aquecimento global terá maior impacto danoso nos países mais pobres.[90] Assim, no contexto ecológico, a esfera da soberania também enfrenta dilemas em proporções globais.
2.1. A globalização hegemônica e a globalização contra-hegemônica
Nesta seção, as lições de Boaventura são de grande valia para a sustentação da ideia central deste trabalho.
A globalização não pode ser descrita como uma entidade de per si. “[…] aquilo que habitualmente designamos por globalização são, de facto, conjuntos diferenciados de relações sociais; […].”[91]
De acordo com o sociólogo português a globalização pode ser definida como processo no qual um elemento de determinado local passa a interagir na escala planetária a ponto de desenvolver “a capacidade de designar como local” forma e elementos desconhecidos ou rivais.[92]
Nesse sentido, propõe observar quatro processos de produção de globalização, que são o substrato para a produção de uma globalização hegemônica ou contra-hegemônica.
Para a primeira forma, dois processos operam em conjunto o localismo globalizado e o globalismo localizado. Na segunda forma (a contra-hegemônica), os processos são o cosmopolitismo subalterno e insurgente e o patrimônio comum da humanidade. O localismo globalizado é o processo no qual um elemento local é globalizado com êxito, tornando-se, com isso, um elemento hegemônico. Já o globalismo localizado é o impacto causado por um elemento exógeno transformando as condições locais e que só é possível exatamente por ser efeito do localismo globalizado, ou seja, são processos interdependentes.[93] Por isso, adverte:
“A divisão internacional da produção da globalização assume o seguinte padrão: os países centrais especializam-se em localismos globalizados, enquanto aos periféricos cabe tão-só a escolha entre várias alternativas de globalismos localizados.”[94]
Sob a forma contra-hegemônica, o cosmopolitismo subalterno e insurgente é a resistência aos dois processos acima descritos. São todas as formas de luta contra a exclusão e contra as manifestações hegemônicas, sobretudo neoliberais, que não poupam nem mesmo a biosfera. E que se tornaram interligadas devido os avanços das técnicas, acima citado[95]. “[…] a ideia de cosmopolitismo está associada com as ideias de universalismo desenraizado, individualismo, cidadania mundial e negação de fronteiras territoriais ou culturais.”[96]
O último processo, o patrimônio comum da humanidade é a luta em escala global por valores e recursos essenciais ao próprio ser humano e ao planeta.[97]
Por fim, Boaventura constata que, conforme os processos logo acima descritos, “[…] enquanto forem concebidos como direitos humanos universais em abstracto, os direitos humanos tenderão a operar como localismo globalizado e, portanto, como uma forma de globalização hegemônica.”[98]
É o que Eric Hobsbawn chama de imperialismo dos direitos humanos e que pode ser entendido como a busca – através de um discurso hegemônico – pela legitimidade, até mesmo, por meio de intervenções militares internacionais, “para preservar ou impor os direitos humanos […]”.[99]
A própria Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, fora “elaborada sem a participação da maioria dos povos do mundo”, o qual se reconheceu direitos individuais, com exceção à autodeterminação.[100]
3. A Cidadania do consumo
De acordo com Arnold Toynbee, o “aparecimento da ética na biosfera deu-se ao mesmo tempo que o da percepção consciente.” Para ele, a ética juntamente com a consciência constituiriam a forma espiritual de existência.[101]
O mundo ocidental, quase que completamente, promoveu um esplêndido desenvolvimento material, mormente em razão da ciência e da tecnologia. Entretanto, fora negligente em relação ao desenvolvimento interior individual, ou seja, o desenvolvimento do próprio ser humano. Importante, nesse momento, explicar que o ponto aqui discutido não é a religião ou a espiritualidade e sim o desenvolvimento pleno do ser humano (o autoconhecimento em si).
No ocidente, a religião fora e é uma das formas encontradas para preencher essa ausência. Contudo, a atual fase da globalização neoliberal estabeleceu uma mudança significativa deslocando da religião para o consumo, o ópio do povo.[102]
Esse processo, no qual o consumo tem sido o grande fundamentalismo, é sintetizado por Milton Santos, com grande perspicácia, no processo que vai “do Cidadão Imperfeito ao Consumidor Mais-que-perfeito.”[103]
A ausência do autoconhecimento atrofia, ou pelo menos dificulta, a autonomia, a individualidade, a consciência independente. Assim, a sociedade que se forma (do conjunto desses indivíduos) possui um déficit enorme em relação à participação individual e coletiva o que torna a emancipação social algo muito distante.
Além do mais, o poder ideológico do discurso do mercado, principalmente por meio da televisão, cria a ideia de que a Cidadania e a Dignidade podem ser alcançadas pelo consumo. A partir do momento em que uma (des)necessidade criada é saciada, gera-se uma sensação de possibilidade de inclusão. Essa é – basicamente – a origem da importância do ter em detrimento do ser.
Com isso, as classes mais pobres, procurando saciar o desejo de se sentir “cidadão”[104] passam a viver sob a lógica de um consumismo no qual são incapazes de sustentar, promovendo um ciclo inter-geracional e perverso de manutenção da miséria e da desigualdade.
Daí também a ênfase no sistema educacional voltado à formação para o trabalho, verdadeira fonte da reserva de mão-de-obra para o mercado e, por consequência, do completo descaso para com a formação para a Cidadania e para o pleno desenvolvimento do ser, no que tange a grande maior parte da sociedade.[105]
A alienação se torna um subterfúgio à escravidão uniformizando a sociedade, quase que completamente. Um ótimo exemplo desta constatação é a moda:
“[…] cada qual deve tornar-se semelhante aos outro. É preciso ‘fazer como todo mundo’; não devemos ‘nos fazer notar’. Pois fazer-se notar, não fazer como todo mundo, é excluir-se do meio social ao qual se pertence.”[106]
Assim, atualmente, os avanços tecnológicos e materiais se encontram distantes dessa forma “espiritual” (consciência + ética) e esse vazio que surge entre essas formas de existência é, atualmente, preenchido de forma devastadora pelo consumo (ideia de poder reconfortante). Milton Santos, neste ponto, é sagaz:
“Consumismo e competitividade levam ao emagrecimento moral e intelectual da pessoa, à redução da personalidade e da visão do mundo, convidando, também, a esquecer a oposição fundamental entre a figura do consumidor e a figura do cidadão. É certo que no Brasil tal oposição é menos sentida, porque em nosso país jamais houve a figura do cidadão. As classes chamadas superiores, incluindo as classes médias, jamais quiseram ser cidadãs; os pobres jamais puderam ser cidadãos. As classes médias foram condicionadas a apenas querer privilégios e não direitos”.[107] (grifo nosso)
Sendo assim, um dos motores que movem as sociedades atuais é a ideia cíclica da necessidade e da satisfação. Cria-se a necessidade que, imediatamente depois de satisfeita, novamente se transforma em necessidade, num ciclo sem fim. Com isso, as empresas acabam criando primeiro os consumidores e só depois os produtos, a partir de uma lógica despótica[108]. Pois,
“O homem produtor está subordinado ao homem consumidor, este ao produto vendido no mercado, e este último a forças libidinais cada vez menos controladas no processo circular no qual se cria um consumidor para o produto e não mais apenas um produto para o consumidor.”[109]
Nesse ínterim, a globalização perversa se manifesta como um globalitarismo, visto que – como o grande geógrafo baiano – o dinheiro, a competitividade e a potência em estado puro, associados, conduzem a novos totalitarismos.[110] Uma espécie de totalitarismo sem estado em que a Cidadania é colocada de lado e passa a ser concebida pela ideia de consumo.
Nesse processo desumanizante, a biosfera se encontra sobrecarregada. O padrão de consumo dos países ricos torna-se a meta de todos os outros lugares. O consumismo desenfreado, por conseguinte, gera uma produção de lixo inacreditável. Isso sem citar o esgotamento dos recursos naturais, a emissão de gases tóxicos, o destino dos resíduos nucleares etc.
Daí a necessidade de uma mudança significativa: “devemos usar e não consumir”. O uso deve ser concebido como forma dominante de consumo, ou seja, o consumo consciente e sustentável.
As mudanças climáticas, o aumento do buraco da camada de ozônio, o aumento da temperatura e do nível dos mares, e. g., são produtos desse ritmo desenfreado de produção e consumo. A consciência ecológica se dá pela catástrofe, pela necessidade e não por um ato genuinamente bom.
Esse problema, em última análise, reside no modo de produção capitalista. A exploração do homem pelo homem não pode ser substituída pela exploração da natureza (biosfera) pelo homem.
4. A Cidadania planetária
Como defendido, até o presente momento, não é possível o desenvolvimento de uma concepção planetária de Cidadania sem percebê-la como uma das esferas de Cidadania.
Por óbvio, a Cidadania não é estanque, não se limita à esfera estatal. Cidadania não é apenas participar das tomadas de decisões do Estado. Ela se manifesta no âmbito familiar e social, no trabalho, na escola, na vida cotidiana, no bairro, do nível municipal ao nacional(componente interno), e mais, com a globalização tecnológica, na dinâmica internacional e no convívio harmônico com a biodiversidade (componente externo).
Pensar uma Cidadania planetária nos leva também à reflexão acerca de duas representações completamente diferentes. “La représentation traditionnelle d’un monde divisé en Etats souverains hermétiquement séparés faisait face à l’émergence de la biosphère comme totalité intégrée.”[111]
Com isso, dois problemas devem ser enfrentados: como assentar uma concepção planetária e como abordar a questão dos Estados-nação, no estabelecimento dessa Cidadania?
A solução dessa questão parece repousar numa transposição teórico-prática de cunho eminentemente epistemológico: o pensamento biocêntrico. Segundo as lições de Ana Maria Borges de Sousa:
“Ou seja, a Educação Biocêntrica, enquanto uma prática pedagógica traz como referencial imediato, a vida em todas as suas dimensões e assume que é o Princípio Biocêntrico (Rolando Toro, 2005) o seu paradigma fundamental, porque este se inspira nas leis universais existentes para conservar os sistemas vivos e tornar possível a sua evolução.”[112]
Como imaginar uma cidadania planetária se nem sequer um mínimo de cidadania se estabeleceu na maioria dos países? Como pensar uma interação social em escala global sem desenvolver uma esfera local forte e influente?
A análise crítica das ideias de Edgar Morin, por exemplo, revela uma interessante ideia sobre Antropolítica: “a política deve tratar da multidimensionalidade dos problemas humanos. […] assumir o destino e o devir do homem assim como o do planeta.”[113] Contudo, com a devida vênia, suas opiniões, em alguns momentos, são excessivamente antropocêntricas. “O desenvolvimento deve ser concebido de maneira antropológica. O verdadeiro desenvolvimento é o desenvolvimento humano.”[114] Ainda que entendido, esse desenvolvimento humano, apartado da tecnociência.
Sendo assim, uma concepção planetária de Cidadania deve estar calcada em um pensamento que comporte todas as formas de vida de modo equânime. Os problemas da humanidade somente podem ser levados a sério se observados sob a ótica biocêntrica, e não pelas lentes econômico-financeiras que devastam toda a natureza pelo mínimo de lucro e acumulação, sob a forma de desenvolvimento, como ocorre atualmente. Toynbee adverte:
“Nessas circunstâncias desconcertantes, somente uma previsão pode ser feita com certeza. O Homem, o filho da Mãe-Terra, não seria capaz de sobreviver ao crime de matricídio, se um dia o cometesse. A punição para isso seria a autodestruição.”[115]
Enquanto prevalecer a mentalidade da superioridade da espécie humana, nosso crescimento (enquanto humano/humanidade) se dará de forma incompleta e deformada. A natureza nos contém, e justamente por fazermos parte dela é que devemos re-estruturar ideias como a presente em nossa Constituição da República que estabelece que o meio ambiente equilibrado deve ser preservado para as presentes e futuras gerações. Aqui se deve compreender gerações de seres vivos.
Outro problema que se coloca é que o Direito e o Estado, segundo o pensamento neoliberal, não serviria mais à regulamentação, o mercado se auto-regularia. Daí a razão de toda essa crise financeira, a não intervenção. Não há equívoco, tudo como manda a cartilha fora feito e, mesmo assim, sem guerras globais ou regionais, a crise chegou.
A falta de normatização sobre os responsáveis por essa crise pode nos levar a crer que uma solução plausível seria o Direito Planetário. Apesar disso, essa solução não é tão simples.
Primeiramente, destacar-se-ia a dificuldade (senão impossibilidade) da grande maioria dos juristas em pensar o Direito sem Estado.
Em consequência disso, sem tanto radicalismo, poderíamos também imaginar uma entidade supra-estatal (internacional ou intergovernamental) capaz de organizar as dinâmicas globais. Papel assumido com pouca legitimidade pela ONU.
O fato é que os países mais ricos, capitaneados pelos Estados Unidos da América, no afã do domínio do planeta, tentam impor sua ideologia política, econômica, social etc., sobretudo, pelo poderio bélico. Dessa forma submetem os assuntos locais aos seus interesses, desorganizando culturas e desfragmentando o território.
O Brasil é um exemplo histórico disso. No intento de afastar a Inglaterra e a França da região, os Estados Unidos apossou-se da política dessa região utilizando o Brasil como “área de experimentação para métodos modernos de desenvolvimento industrial.”[116] Ainda, nesse mesmo contexto, o período de ditadura militar brasileira fora um período influenciado por questões internas e externas. Pois contou “com apoio e envolvimento constante dos Estados Unidos.”[117]
Assim, apesar da crescente constatação da emergência de um Direito Global, ainda convivemos numa conjuntura internacional em que os países mais ricos detêm certa autonomia, em face de organismos internacionais.[118]
Mesmo assim, presenciamos a emergência de organismos supranacionais na busca da resolução de assuntos transnacionais, como é o caso da cooperação entre os Estados para se estabelecer uma Justiça universal. Como destaca Luiz Flávio Gomes:
“No plano do Direito penal internacional, a novidade é constituída pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), que conta com jurisdição mundial (em relação aos países que subscreveram o Tratado de Roma).”[119]
O TPI existe desde 02 de julho de 2002, tem sua sede em Haia, na Holanda e conta com 18 magistrados. Além disso, esse Tribunal tem a adesão de 106 países.[120]
Todavia, ainda não existe nenhuma autoridade global legítima, neutra e democrática, capaz de resolver conflitos transnacionais.[121]
A forma como os Estados vêm acolhendo determinações internacionais (de um grupo forte e rico de países hegemônicos), também é influenciada pela ausência de uma Cidadania local verdadeiramente governante. A democracia feita por aqueles que se dizem nossos representantes – sobretudo no sul global – proporciona um ambiente próprio para o governo das minorias detentoras de grande poder econômico.
Quando o interesse do mercado, em escala global, logrou êxito em sua desregulamentação, este se aliou aos interesses econômicos locais dominantes, o que possibilitou aos interesses exógenos, por sua vez, exercer significativa influência no espaço territorial local.
Assim, diversas culturas ao redor do mundo sofrem interferências externas – muitas vezes indesejadas e outras tantas dissimuladas –, o que também implica na “crise do tradicional conceito de soberania.”[122]
Esse processo possibilitou a intensificação da ocidentalização do mundo, que acaba por legitimar a produção de uma globalização hegemônica que se manifesta, como vimos[123], através de localismos globalizados e globalismos localizados. Sendo assim,
“Não podemos enfrentar os problemas da globalização do planeta […] com os instrumentos, o Direito e as Justiças nacionais e regionais. A situação de desordem geral parece muito evidente, visto que as corporações atuam multinacionalmente enquanto os agentes de controle são locais ou nacionais ou, no máximo, regionais.”[124]
A dinâmica social, hoje, conseguiu atingir a escala planetária. Com isso, obviamente, os problemas também se tornaram globais.[125] Contudo, há um crescente movimento de conscientização humana pela solidariedade também em escala global. O auxílio humanitário às vítimas do Tsunami na Ásia, e ao terremoto na China, as entidades não-governamentais de defesa do meio ambiente, o Fórum Social Mundial etc., são exemplos dessa tendência mundial.
Assim, a Cidadania planetária é uma exigência de nosso tempo. É preciso o estabelecimento de mecanismos de controle transnacionais, uma nova epistemologia para o Direito Internacional.
Entretanto, não podemos imaginar essa nova realidade sem antes estabelecer mecanismos de concretização dos direitos mínimos à tomada de consciência de cunho emancipatório. Sobretudo o direito de conhecer o Direito, para que o povo se aproprie deste e o utilize como ferramenta concretizadora de um pluralismo jurídico existente, mas sistematicamente ignorado.
Qualquer entidade que assuma o papel de mediador internacional apenas terá legitimidade se for democraticamente escolhida. E isso somente será possível se os Estados-nação envolvidos forem capazes de estabelecer em seus territórios uma democracia real, em que todos tenham iguais oportunidades de acesso ao controle/organização nas diversas instâncias. Ou seja, quando o direito de conhecer o Direito[126] for elevado à mais alta categoria jurídica, possibilitando uma participação (ou abstenção) popular realmente consciente, ao contrário da práxis atual (a da participação formal). Mas o locus inicial dessa empreitada é o local,
“É no território, tal como ele atualmente é, que a cidadania se dá tal como ela é hoje, isto é, incompleta. Mudanças no uso e na gestão do território se impõem, se queremos criar um novo tipo de cidadania, uma cidadania que se nos ofereça como respeito à cultura e como busca da liberdade.”[127]
Somente dessa forma seremos capazes de imaginar um cidadão do mundo, que participa coletiva e democraticamente das tomadas de decisões em âmbito planetário, sob pena de estarmos preparando as bases, repetidas vezes, para uma nova espécie de instituição que delibere por sobre a vontade dos indivíduos numa escala global – como, aliás, já parece estar acontecendo.
Informações Sobre o Autor
Kleiber Gomes Reis
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Especialista em Direito Público pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) e Mestrando em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro do Grupo de Pesquisa em Antropologia Jurídica (GPAJU/UFSC). Bolsista CAPES-Brasil