Resumo: O presente artigo aborda os problemas decorrentes da utilização no discurso jurídico dos conceitos de princípios constitucionais e direitos fundamentais, propondo uma tentativa de sistematização de tais conceitos.
Palavras-chave: Princípios. Direitos fundamentais. Proposição normativa. Norma. Princípio. Regra.
Abstract: This article addresses the problems arising from the use of legal concepts in the discourse of constitutional principles and fundamental rights, suggesting an attempt to systematize these concepts.
Keywords: Principles. Fundamental rights. Normative proposition. Standard. Principle. Rule.
Sumário: 1.Introdução. 2.Conceito de direito. 3.Norma 4.Normas éticas e religiosas. 5.Normas sociais. 6.Normas jurídicas. 7.Conjunto e sistema. 8.Princípios e direitos fundamentais. 9.Proposição normativa, norma, princípio e regra. 10.Conclusão. Referências Bibliográficas
Introdução.
Na atualidade as decisões judiciais mais controvertidas são fundamentadas em princípios constitucionais e/ou nos direitos fundamentais. O problema e que esses termos são vagos e maleáveis e admitem qualquer interpretação. Urge, portanto, a fixação de parâmetros mínimos que sejam capazes de disciplinar o uso de tais justificativas para, com isso, coibir a prática de uma argumentação que pressuponha o significado dessas expressões de forma totalmente arbitrária.
Esse artigo formula uma proposta para a fixação lógica, sistemática, e porque não dizer científica, desses conceitos.
Conceito de direito
A definição de direitos fundamentais pressupõe a definição de direito. O problema em definir direito reside na raiz da definição dos conceitos dados. Santo Agostino dizia saber o que era tempo até que algum de seus pupilos demandava uma definição (AGOSTINHO, 1980, p.265). Saber o que é muitas vezes é mais fácil que definir. Isso é o que acontece com o conceito de direito.
O direito é, classicamente, definido como um conjunto de normas jurídicas. Essa definição somente faz sentido se optarmos por uma regressão com a definição de cada um de seus termos. Assim há que se definir “norma”, “jurídica” e “conjunto”.
Norma
Norma é o ato de vontade dirigida a conduta de outro e dotada de sanção, ou seja, de uma consequência desagradável pelo seu não cumprimento (KELSEN, 1986, p.3) .
Esse ato de vontade, que constitui a norma é formulado de maneira característica que consiste em uma hipótese (conduta descrita), um preceito (comando positivo ou negativo frente a hipótese) e uma sanção (consequência pela violação do preceito).
Toda existência social é relacional e as relações são criadas e organizadas com base em normas, portanto o ser humano é um “animal normativo”. Temos normas de vários tipos: religiosas, éticas, morais, sociais e jurídicas.
Essas várias esferas normativas se diferenciam pelos seguintes fatores:
fonte;
conteúdo da hipótese;
conteúdo da sanção;
forma de aplicação da sanção.
A definição de norma jurídica só pode ser obtida pela comparação com normas não jurídicas, morais, sociais e religiosas.
Normas éticas e morais
Entre o sistema ético e o moral a diferença reside, basicamente, no conteúdo da hipótese. Pode-se afirmar que as normas morais são obtidas pela resposta a pergunta “o que devo fazer?” Já o sistema ético responde a uma outra questão “como eu quero viver?” partindo dessa divisão fica fácil perceber que o conteúdo da hipótese e da sanção são distintos ( LA TAILLE, 2006, p. 29).
Enquanto o sistema moral cuida de deveres o sistema ético organiza os desejos. Mas de onde vêm os deveres ditados pela moral? O ser humano ao descer das árvores precisou, para sobreviver, se organizar em grupos. Esses grupos têm, desde então, por objetivo a sobrevivência de seus membros. Para que isso fosse possível cada grupo elegeu meios que julgou serem os mais adequados. Os meios bem sucedidos foram valorados como o “bem” e os mal sucedidos como o “mal”. Cada sociedade desenvolve, ao longo do tempo, uma escala própria de valores que acabam por se “descolar” de sua fundamentação e passam a ter existência própria.
O que definirá a identidade de um certo grupo como diferente dos demais é ideologia, definida como escala de valores básica comum aos membros do grupo (fundamento comum) (DIJK, 2003, p.22-27).
Os seres humanos nascem e estão inseridos em grupos sociais, como a educação e o desenvolvimento intelectual se baseiam na imitação e na repetição todos os seres humanos são “herdeiros” de uma dada escala de valores.
Essa escala de valores é incorporada por cada indivíduo e funciona como base primeira de sua visão de mundo servindo de fundamento para a ética e a moral. A conjunção dessa escala de valores com a vivência individual fará com que cada um defina, ainda que de forma inconsciente, um ideal e um projeto de felicidade. É esse projeto que determinará à resposta a questão fundamental da ética.
Como a sobrevivência dos seres humanos depende do êxito de sua convivência em grupo todo projeto de felicidade pressupõe um conjunto de deveres para com os demais. Disso decorre a indissociabilidade entre a moral e a ética.
Sem deveres para com os demais a felicidade não é possível.
Os sistemas ético e moral aqui definidos são individuais, não são nem pode ser imposto de forma heterônoma. Embora o sistema de valores do grupo em que o indivíduo está inserido seja determinante para a criação de seu próprio sistema de valores a moral e a ética são diferentes para cada um. Logo a fonte das normas morais e éticas é o próprio indivíduo; o conteúdo da hipótese no caso da moral são deveres; na ética, os desejos; a sanção pelo descumprimento das normas morais é a culpa e para o descumprimento das normas éticas a frustração, e esta sanção é sempre auto infringida.
Normas religiosas
Assim como o ciclope mitológico o homem só é capaz de prever um fato futuro, a própria morte. Essa maldição sempre atormentou a existência humana. A forma primordial de se lidar com o terror da morte é negá-la com base em uma “outra vida” após a morte.
Além desse medo há o desejo de entender e controlar todo o mundo, (a chuva, os acidentes de carro, a final da copa do mundo) como isso é impossível a religião serve de forma de explicação e tentativa de controle por meio de rituais.
Mas como os homens são animais normativos esses rituais, para serem exitosos devem seguir a certas regras, até mesmo a “outra vida” precisa ser regrada e explicada. Para isso cria-se a religião. Com a religião se explica o, até agora, inexplicável e se regulam as condutas que nos conduzirão ao paraíso ou a danação.
Diferentemente dos sistemas ético e moral, o sistema religioso é institucionalizado e suas normas partem de pessoas autorizadas a ditar normas em nome da divindade, portanto a fonte de suas normas é heterônoma.
Os conteúdos das hipóteses normativas dizem respeito ao cumprimento dos dogmas da religião. A sanção varia da expulsão do grupo religioso à danação eterna, passando pela derrota na copa do mundo. Essa sanção será aplicada pela instituição religiosa como mandatária da divindade ou pelos próprios deuses.
Normas sociais.
Como já afirmado todo grupo social se define pela escala de valores que adota. Essa escala de valores é defendida e reproduzida pelo grupo de forma mais ou menos difusa, por via das instituições educacionais, culturais, pela mídia e pela família.
O grupo social busca preservar sua existência. Como essa existência se identifica com a escala de valores que o individualiza há, naturalmente uma defesa desta escala de valores. Essa defesa se dá pelo estabelecimento de regras de conduta sociais. Essas são postas pelos mesmos grupos que criam e reproduzem a escala de valores sociais. São por vezes expressas noutras vezes tácitas. São regras com conteúdo o mais variado, vão de coisas simples como modos à mesa e regras de vestuário até a dimensões muito mais complexas como a fixação dos padrões de normalidade.
Essas regras, assim como as religiosas, são heterônomas, o conteúdo das hipóteses é variado, mas têm em comum o desejo de preservação do fundamento comum da sociedade. O conteúdo da sanção é social, varia desde uma reprimenda até a execração pública. A aplicação da sanção é sempre levada a cabo pelo próprio grupo.
Normas jurídicas.
Pode-se afirmar que as normas jurídicas são uma subespécie das normas sociais. Sua fonte é um poder reconhecido pelo grupo como apto a criar regras e aplicar sanções (KELSEN, 1999, p. 50). O conteúdo é, em regra, parte do conteúdo das regras sociais. Diferentes das regras sociais são sempre expressas. A sanção varia da invalidade da prática de um ato até a morte. Essa sanção pode vir a ser aplicada pela força, aplicada pelos mesmos detentores do poder reconhecido como legítimo pelo grupo (KELSEN, 1999, p.49-51) .
No parágrafo anterior foi descrito o que é uma norma jurídica. Dessa descrição se pode retirar o conteúdo do termo juridicidade, ou melhor, definir-se o adjetivo jurídico associado a certos tipos de norma.
A juridicidade está ligada, diretamente, a institucionalização e a sindicabilidade.
O conceito de instituição é um dos mais complexos e controversos das ciências humanas. O que aqui chamamos de instituição é o exercício organizado do poder com a aceitação mais ou menos pacífica por parte dos destinatários desse poder.
Já a sindicabilidade é a possibilidade de imposição do cumprimento da norma e/ou da sanção pelo não cumprimento com o uso da força (BARCELLOS, 2008, p. 40).
Os seres humanos têm por hábito imaginar que as coisas que já existiam quando eles nasceram e continuam a existir ao longo de suas vidas são naturais e eternas, em outras palavras, existe o hábito de imaginar que as “coisas sempre foram e sempre serão assim mesmo”. Desse comportamento decorre a identificação entre o Estado e o direito.
É parte do imaginário corrente que o direito está associado ao Estado tal qual existe hoje. Não é assim. O que define a juridicidade não é a atuação estatal mas a atuação institucional. Onde há uma organização capaz de criar normas e impor seu cumprimento, se necessário pela força, com a aceitação dessa autoridade por parte dos destinatários dessa norma haverá direito.
Pode-se observar em várias situações a existência de direito sem Estado (SANTOS, 1989, p.191-192). O contrário já parece ser impossível já que o Estado é um fenômeno eminentemente jurídico.
Conjunto e sistema
Conjunto pode ser definido como o agrupamento de elementos pertencentes a uma mesma classe (RUSSELL, 2007, p. 29). Ao afirmar que o direito é um conjunto de normas o que se faz é nomear uma classe intencional das normas que têm como características comuns sua fonte institucional e a sindicabilidade.
Assim a definição de direito pode ser mais refinada: Direito é a classe das normas de conduta emanadas de um poder organizado e legitimado pelos destinatários cuja sanção pode ser aplicada com o uso da força.
Restam ainda duas questões não respondidas e que estão entrelaçadas. Há alguma ordem interna no conjunto que é direito? Há limites quanto ao conteúdo das normas jurídicas?
Partindo-se da premissa de que o direito é um sistema fechado onde a norma de hierarquia inferior retira seu fundamento de validade exclusivamente da norma que lhe é hierarquicamente superior fica claro que há alguma organização no conjunto direito. Há, portanto, um sistema.
O sistema jurídico seria um sistema fechado já que todos os seus elementos e sua justificação são obtidas dentro do próprio sistema (LUHMANN, 2009, p.73-74).
Além da classificação entre sistemas abertos e fechados há outra dicotomia entre os sistemas estáticos e dinâmicos (KELSEN, 1999, p. 207-210).
Os sistemas dinâmicos seriam aqueles em que a ordem sistêmica se limita as regras de produção das normas sem que haja a necessidade de coerência entre os conteúdos postos. Em outras palavras, nos sistemas dinâmicos não há a necessidade de que os conteúdos nas normas sejam dedutíveis uns dos outros, o que serve de amalgama a esse tipo de sistema é a fundamentação pela origem (KELSEN, 1999, p. 209).
Já nos sistemas estáticos todas as normas devem derivar, logicamente, umas das outras, podendo todo o sistema, em última análise, ser redutível a uma ou algumas poucas normas (KELSEN, 299, p. 208).
Segundo a doutrina prevalente até a segunda metade do século XX, o direito podia ser definido como um sistema do tipo dinâmico e fechado, onde a validade das normas e do sistema decorre, exclusivamente, de suas fontes e da compatibilidade entre essas fontes sendo o conteúdo das normas irrelevantes.
O positivismo jurídico tenta circunscrever a fixação ou descoberta desses princípios dentro da ordem jurídica posta, e encara o direito como sendo um sistema dinâmico, ou seja, a validade das normas independe de seu conteúdo, o nexo entre elas existente é quanto a forma de sua produção podendo, inclusive, coexistir dentro de um mesmo ordenamento, normas com conteúdos contraditórios.
Essa forma de ver o direito tem sofrido críticas por conta de seu relativismo. Se o direito só tem como fundamento o próprio direito, normas imorais ou iníquas serão válidas a despeito de seu conteúdo. O fenômeno do totalitarismo, em meados do século vinte, foi utilizado como exemplo das alegadas insuficiências do modelo positivista de direito.
O Estado Nazista legalizou práticas que teoricamente afrontavam a escala valorativa que se julgava ser a prevalente no mundo ocidental. Isso serviu como alavanca para a retomada da discussão milenar entre positivistas e jusnaturalistas sobre a questão do conteúdo axiológico do direito. Uma norma injusta é jurídica? O que é uma norma injusta? Quais os critérios a adotar? Esses critérios são universais?
Os crentes na ontologia e em deus já haviam respondido a essas questões. Segundo os primeiros haveria um direito essencial, natural, comum a todos os homens viventes e o verdadeiro direito seria composto por normas que estivessem de acordo com a justiça, justiça essa vista como a aproximação maior possível do verdadeiro “ser em si” do direito.
Os que creem em deus repetem a mesma linha de argumentação somente alterando os termos natureza por deus e essência do direito por vontade de deus.
Mesmo nos idos longínquos do século vinte o retorno ao recurso a deus ou a natureza não funcionou.
A forma encontrada para limitar e delimitar o conteúdo das normas jurídicas foi abandonar o sistema dinâmico e adotar um sistema fechado e estático onde as normas jurídicas além de serem validades dentro do próprio sistema pelas sua regras de produção devem ser dedutíveis umas das outras e todas elas dedutíveis de um conjunto de proposições axiológicas básicas denominadas princípios, não se admitindo mais, dentro de um mesmo sistema, regras contraditórias.
Princípios e direitos fundamentais.
Do nada, nada se cria. Eis porque todo conhecimento deriva de um ponto de partida. Esse ponto de partida deve ser fixado por aquele que desenvolve o estudo na forma de axiomas, como conceitos que não são passíveis de explicação ou discussão.
A fixação desses axiomas pode ser feita de maneira artificial ou pode derivar da impossibilidade de regressão.
Em todo raciocínio se chega, inexoravelmente, a um ponto em que não há como oferecer mais definições dos termos sem usar aquilo que se define na própria definição (circularidade). Esse é o ponto em que são estabelecidos os conceitos fundamentais de um dado ramo do conhecimento.
Peano fixou na aritmética os conceitos básicos como sendo: número, zero e sucessor. Essa é a hipótese da impossibilidade de regressão. Segundo ele se pode dizer que não há como definir número sem pressupor o conhecimento do que seja número (RUSSELL, 2007, p. 21-22).
No outro polo há uma espécie de corte artificial onde são eleitas certas premissas sobre as quais não se admitirá discussões e a partir das quais serão feitas as deduções desse tipo de sistema.
Com o direito ocorre exatamente esse fenômeno. Em um certo ponto há que se estabelecer quais são os princípios e os fundamentos de uma dada ordem jurídica.
Esses princípios são eleitos por cada grupo social. Tão mais aceito será o grupo quanto mais próximo do sistema de valores prevalentes forem os princípios eleitos.
Na maioria dos sistemas jurídicos ocidentais esses princípios foram positivados ou nas cartas constitucionais (como é o caso brasileiro) ou nas decisões dos tribunais. Esses princípios positivados estão expressos nos direitos fundamentais.
Proposição normativa, norma, regra e princípio.
Cumpre agora explicitar outros conceitos para evitar confusões:
Direito é a classe das normas jurídicas;
Norma é o ato de vontade dirigida a conduta de outra pessoa;
Proposição normativa é o texto ou o conjunto de textos a partir de onde as normas são criadas;
Princípios e regras são duas subclasses de norma;
Regras são comandos que contêm uma proibição, um dever ou uma permissão, regras contraditórias são excludentes;
Princípios são o fundamento axiológico do sistema e devem ser aplicados por via das regras, na medida do possível, em um mesmo sistema há princípios contraditórios e devem ser harmonizados.
Dito de outra forma o direito é um conjunto de normas, essas normas são criadas com base em proposições normativas e devem ser dedutíveis de fundamentos axiológicos postos (direitos fundamentais) e, em última análise, redutíveis a eles. As normas se subdividem em regras e princípios. Os direitos fundamentais são definidos como os princípios positivados em um dado sistema jurídico. A circularidade desse raciocínio decorre do fato de se ter atingido a fundamentação axiológica e formal última de um dado ordenamento.
Conclusão.
Com a fixação dos parâmetros propostos e com a percepção de que o recurso aos princípios e aos direitos fundamentais transforma o ordenamento jurídico em um sistema fechado e estático que deve ser totalmente dedutível de seus fundamentos constitucionais se abre o caminho para a formulação de justificativas jurídicas e judiciais mais sólidas e coerentes, que serão capazes de dotar os operadores do direito de critérios mínimos para o emprego desses institutos de forma científica e não arbitrária.
Informações Sobre o Autor
Rodrigo Reis Ribeiro Bastos
Advogado no Rio de Janeiro, Mestrando em Filosofia do Direito da PUC/SP