Resumo: Os direitos e garantias fundamentais começaram a ser positivados a partir do século XVIII com a Declaração de Independência Americana e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. A partir daí, estes foram evoluindo e ganhando destaque no ordenamento jurídico de todo o mundo. A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, deu um intenso enfoque a esta temática. Os direitos fundamentais encontram-se espalhados por todo o Texto Magno e resguardados como cláusulas pétreas. Dentre eles, destaca-se o princípio da isonomia cuja interpretação vem sendo aperfeiçoada ao longo dos últimos anos. A partir dele, ganharam destaque as chamadas desequiparações permitidas, que constituem numa forma de tratar de maneira desigual pessoas que encontram-se em classes ou situações diferentes das demais. O presente artigo científico visa analisar as ocorrências deste fenômeno na CF-88 ampliando a visão do princípio da isonomia, principalmente no que diz respeito ao início do caput do art. 5º da Carta Magna. Este trabalho foi orientado pelo Professor Dr. Hugo César Araújo de Gusmão.
Palavras-chave: Constituição. Direitos Fundamentais. Isonomia. Desequiparações Permitidas.
Abstract: The rights and guarantees positivism began to be from the eighteenth century with the American Declaration of Independence and Bill of Rights of Man and Citizen. From there, they were evolving and gaining prominence in the legal system around the world. The Constitution of the Federative Republic of Brazil, in 1988, gave an intense focus on this issue. Fundamental rights are spread throughout the Great Text and guarded clauses as immutable. Among them, there is the principle of equality whose interpretation has been perfected over the last year. From it, gained prominence allowed inequality calls, which are a way of treating people unequally are in different classes or situations of others. This research paper aims to analyze the occurrence of this phenomenon in the CF-88 broadening the perspective of the principle of equality, especially with regard to the beginning of the chapeau of Art. 5 of the Constitution.
Keywords: Constitution. Fundamental Rights. Equality. Inequality Allowed.
Sumário: 1. Introdução. 2. As gerações de Direitos Fundamentais e o Neocontratualismo de Rawls. 3. O princípio da isonomia e as manifestações das desequiparações permitidas. 4. Conclusão.
1. Introdução
Uma das grandes inovações que a Constituição Federal de 1988 trouxe para o ordenamento jurídico brasileiro foi a ampliação e solidificação dos direitos e garantias fundamentais. Sua incorporação no Texto Magno não ocorreu por coincidência, mas sim pela necessidade e desejo do constituinte em, ao sair de um regime autoritário que desrespeitou grande parte destes direitos, reforçá-los.
O Preâmbulo da nossa atual Constituição deixa claro o interesse mencionado acima: “instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça” (BRASIL, 2009, p. 11). Na mesma perspectiva, o art. 60, §4º, IV proporciona o grau máximo de proteção a estes direitos ao incluí-los como cláusulas pétreas. Portanto, há um interesse nítido na CF-88 de protegê-los e garanti-los.
Podemos entender como marco inicial da discussão acerca destes direitos o surgimento da religião cristã. Ao pregar ideais como o amor e o respeito ao próximo, a indisponibilidade da vida e a igualdade dos homens, Jesus Cristo é tido por muitos como o primeiro e principal impulsionador para a positivação destes direitos. Porém, a grande aceitação e evolução dos mesmos se deu a partir do século XVII. Embora sua obra tenha sido utilizada para justificação do absolutismo monárquico, Hobbes[1] já afirmava em sua obra máxima “Leviatã” que a vida é o maior de todos os bens. Rousseau[2], além de defender a vida, passou a considerar a liberdade como intrinsecamente necessária à vida em sociedade. Enfim, a relação, que antes era de superioridade do Estado em relação aos indivíduos, passou a ser de servidão por parte do Estado em defender os direitos destes.
“Nos séculos XVI e XVIII, as teorias contratualistas vêm enfatizar a submissão da autoridade política à primazia que se atribui ao indivíduo sobre o Estado. A defesa de que certo número de direitos preexistem ao próprio Estado, por resultarem da natureza humana, desvenda característica crucial do Estado, que lhe empresta legitimação – o Estado serve aos cidadãos, é instituição concatenada para lhes garantir os direitos básicos” (BRANCO,2010, p. 308).
A partir das revoluções, especialmente da Americana e da Francesa, inicia-se o processo de positivação destes direitos. O exemplo máximo está na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão que, ainda hoje, é considerada o principal documento para o estudo da evolução dos direitos e garantias fundamentais. Com o fim do absolutismo monárquico, estes ganharam destaque absoluto e, como afirma Branco (2010), na obra Curso de Direito Constitucional, “assumem posição de definitivo realce na sociedade quando se inverte a tradicional relação entre Estado e indivíduo e se reconhece que o indivíduo tem, primeiro, direitos e, depois, deveres perante o Estado”.
No que diz respeito às características destes direitos, muitos afirmam que são universais e absolutos. Porém, esta caracterização deve ser entendida através de algumas exceções. Quando se fala em direito universal, entendemos que todas as pessoas são titulares do mesmo. Mas, vale ressaltar que há alguns restritos a determinadas pessoas ou a determinadas classes. A imunidade parlamentar (prevista no § 8º do artigo 53 da CF), por exemplo, não atinge todas as pessoas indistintamente. Além disso, direitos abrangidos pelo ordenamento brasileiro podem não ser abrangidos por outras nações. Vale ressaltar também que, ao se falar em direitos absolutos, entende-se que eles não podem sofrer qualquer tipo de restrição. Todavia, pode acontecer de haver conflitos entre eles e um se sobrepor em relação ao outro. Logo, devemos entender estas características em termos.
Os direitos fundamentais são históricos tendo em vista que sua compreensão e evolução se dá através dos momentos históricos que cada ordenamento vivencia. Logo, um direito tido como fundamental hoje pode não ser compreendido da mesma forma daqui a 100 anos. Também são inalienáveis e indisponíveis, pois não podem ser objetos de renúncia ou de comercialização. Neste ponto, vale ressaltar que estas características, da mesma forma que as do parágrafo anterior, devem ser compreendidas em parte, pois há direitos que fogem a esta regra (a exemplo do direito à imagem e à intimidade previsto no art. 5º, X da CF). Por fim, cabe ressaltar que possuem aplicabilidade imediata, tendo em vista que, por serem essenciais à manutenção do Estado Democrático de Direito, não podem ter sua aplicabilidade desconsiderada. Porém, é importante mencionar as exceções, no que diz respeito às normas com eficácia contida (que precisam de regulamentação por legislação infraconstitucional), a exemplo do direito de greve estabelecido pelo artigo 9º da CF.
É, justamente, sobre as exceções acerca da característica de direito universal e absoluto e a presença da historicidade na evolução dos mesmos que o presente artigo visa analisar. Ao observar as manifestações das desequiparações ou desigualdades permitidas e o correto entendimento do princípio da isonomia, teremos a oportunidade de vislumbrar as mudanças que o ordenamento jurídico brasileiro sofreu a fim de diminuir as suas desigualdades sociais históricas.
2. As gerações de Direitos Fundamentais e o Neocontratualismo de Rawls
Podemos classificar os direitos fundamentais através de gerações/dimensões. Muitos juristas preferem utilizar a expressão dimensões em vez de gerações, tendo em vista que esta deixa transparecer uma ideia de sobreposição. Ao falarmos em direitos fundamentais de 1ª, 2ª, 3ª ou até mesmo de 4ª geração não implica dizer, por exemplo, que, com a 2ª geração, os direitos da 1ª são deixados de lado. Os direitos fundamentais são cumulativos. A divisão em gerações tem o objetivo de apresentar o processo histórico de evolução dos mesmos. É por este motivo que, como já mencionamos, alguns doutrinadores preferem falar em dimensões. Porém, seguiremos o termo majoritário.
“Essa distinção entre gerações dos direitos fundamentais é estabelecida apenas com o propósito de situar os diferentes momentos em que esses grupos de direitos surgem como reivindicações acolhidas pela ordem jurídica. Deve-se ter presente, entretanto, que falar em sucessão de gerações não significa dizer que os direitos previstos num momento tenham sido suplantados por aqueles surgidos em instante seguinte. Os direitos de cada geração persistem válidos juntamente com os direitos da nova geração, ainda que o significado de cada um sofra o influxo das concepções jurídicas e sociais prevalentes nos novos momentos” (BRANCO, 2010, p. 310).
Os direitos de 1ª geração foram os primeiros a ser positivados. Tem como titular o próprio indivíduo e são considerados indispensáveis a todos os homens. Isto se deve ao momento histórico vivenciado: o fim do absolutismo monárquico e a expansão do governo republicano através de revoluções a exemplo da Francesa e da Americana. Eles podem ser representados através dos direitos civis e políticos, além dos direitos de liberdade. Logo, diminuía-se a figura do Estado (principal marca do absolutismo) e aumentava-se a figura do cidadão (principal expoente do liberalismo).
Em seguida, novos problemas a ser resolvidos foram surgindo, a exemplo dos sociais. Pensar o homem através do individualismo fugia da ideia de justiça social que começava a se difundir, de forma bastante eloquente, em todo o mundo. Dá-se início à 2ª geração que continua defendendo os direitos da anterior, mas dão mais ênfase aos chamados direitos sociais e coletivos e direitos de igualdade.
Os direitos de 3ª geração caracterizam-se por serem difusos e coletivos. Não se trata mais agora do homem individualizado e sim dos grupos sociais. São os direitos de solidariedade ou fraternidade[3].
Alguns doutrinadores ainda acrescentam uma 4ª geração de direitos fundamentais. Esta é representada pelos direitos à democracia, informação, pluralismo e bioética. São temas essenciais para a sociedade aberta e que tem importância relevante no ordenamento jurídico não só brasileiro como também mundial[4].
Para nossa análise, iremos recorrer aos direitos de 2ª geração. Inicialmente, cabe ressaltar que seu principal objetivo é o de libertar o homem da opressão econômica. Toda nação do mundo apresenta cidadãos que foram e que são vítimas desta. O Brasil não é diferente. A construção histórica do nosso país tem como base a tortura, o suor e a exploração. De 1500 a 1532 (data em que Martim Afonso de Souza chega à colônia e instala o regime de capitanias hereditárias) fomos vítimas da exploração do Pau-Brasil e da biodiversidade, fato este que contribuiu bastante para a extinção da Mata Atlântica. Vale ressaltar também a exploração dos povos indígenas que eram tidos como inferiores pelos portugueses.
A partir de 1532, os indígenas sofreram um processo de aculturação por parte dos jesuítas sem contar o regime de escravidão que pequena parcela foi vítima. A exploração ambiental foi crescendo e o início do tráfico negreiro expandiu o problema que, até então, era local. A população livre sofria nas mãos dos poderosos e vivia numa situação econômica deplorável, enquanto que a elite detinha toda a riqueza.
A situação no restante do mundo não era tão diferente da vivenciada no Brasil. As colônias eram submetidas às metrópoles em todos os sentidos. Nas metrópoles, um verdadeiro estado de miséria[5] assolava grande parte da população, ao mesmo tempo em que os absolutistas construíam grandes palácios a custa dos impostos das camadas populares.
Com a Independência, em 1822, a situação não se inverteu. O tráfico perdurou até 1850 e a escravidão até 1888. A corrupção avançava e os populares continuavam sendo oprimidos pelos governantes. Em 1889, chega a República que, embora modifique a situação política, não consegue fazer o mesmo com a situação social. Os ex-escravos não participavam de políticas de inclusão e continuavam marginalizados pelas sociedades. Começam a surgir as grandes favelas e o Nordeste continuava esquecido.
Hoje, em pleno século XXI, ainda podemos perceber sérios problemas sociais. Embora ascendendo de forma bastante explícita, as mulheres continuam recebendo salários mais baixos que os homens. Os negros ainda são vítimas de preconceito. As camadas populares ainda sofrem com uma educação abaixo da média, além de problemas de infra-estrutura. Enfim, existem dois Brasis: o Brasil dos bairros nobres e o das favelas.
É por este motivo que os direitos fundamentais de 2ª geração possuem uma importância extrema e amplia o sentido do princípio da isonomia. A partir dessa, este passa a ser entendido da seguinte forma: Todos são iguais perante a lei, na medida de suas desigualdades. Surgem assim, as ações afirmativas ou desequiparações permitidas que serão abordadas de forma mais aprofundada no próximo item.
A ideia de justiça social é muito bem trabalhada pelo neocontratualista John Rawls. Ele, em sua obra “Uma Teoria da Justiça”, menciona que a desigualdade só pode existir se beneficiar os mais fracos e a sociedade como um todo. Se tratarmos determinada classe social através de opressões e submissões, estaremos criando um verdadeiro exército de desfavorecidos que, a qualquer momento, poderá se rebelar em busca da igualdade que lhe foi retirada ao longo dos anos. Logo, devemos entender o princípio da isonomia a fim de favorecer àqueles grupos sociais que foram desfavorecidos. Não há como se tratar igualmente uma pessoa pertencente a uma família de renda mensal de R$ 10.000,00 e outra que possui renda inferior a um salário mínimo.
“Nessa medida, pensar a justiça com John Rawls é pensar em refletir acerca do justo e do injusto das instituições. Qual seria a melhor forma de administrar a justiça de todos senão por meio das instituições sociais? Não se quer tratar do fenômeno na esfera da ética de cada indivíduo, da ação humana individualmente tomada, das concepções plúrimas que se possam produzir sobre a justiça, o que não deixa de ser considerado relevante; quer-se, pelo contrário, disseminar a ideia de que a justiça das instituições é que beneficia ou prejudica a comunidade que a elas se encontra vinculada. Uma sociedade organizada é definida exatamente em função da organização de suas instituições, sabendo-se que estas podem ou não realizar os anseios de justiça do povo ao qual se dirigem” (ALMEIDA; BITTAR, 2007, p. 409 e 410).
Diferentemente de Hobbes, Locke e Rousseau, a preocupação de Rawls não é com a existência de um vínculo político na sociedade e sim com a justiça. O seu principal objetivo é construir um equilíbrio entre a igualdade e a liberdade, utilizando duas ideias fundamentais: a própria liberdade e a diferença. Para ele, aquela consiste numa ordenação serial. Não se pode, portanto, sacrificar a liberdade buscando a prosperidade. Inclusive, foi com este argumento que instalou-se diversas ditaduras em todo o mundo, inclusive na segunda metade do século XX na América Latina. O filósofo admite que a desigualdade deve ser aceita na medida que maximize a situação dos menos favorecidos, como já foi mencionado.
Para diminuí-las, o neocontratualista destaca dois princípios: o da reparação e o da diferença. O primeiro consiste em, como o próprio nome já afirma, reparar os prejuízos causados pelas desigualdades. Já o segundo consiste no objeto principal deste artigo: utilizar um tratamento diferente para aqueles que se situam em esferas diferentes. Portanto, os dois princípios encontram-se interligados: Para se atingir a reparação, utiliza-se a diferença.
“A primeira apresentação dos dois princípios é a seguinte: Primeiro. Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais extenso sistema de liberdades básicas que seja compatível com um sistema de liberdades idêntico para as outras. Segundo. As desigualdades econômicas e sociais devem ser distribuídas por forma a que, simultaneamente: (a) se possa razoavelmente esperar que elas sejam em benefício de todos; (b) decorram de posições e funções às quais todos têm acesso” (RAWLS, 1993, p. 68).
Finalmente, afirma que as instituições têm como objetivo atender aos interesses de toda a população. As desigualdades sociais e econômicas devem ser revertidas de modo que traga vantagens para todos. É neste contexto que surgem as desequiparações permitidas. Trata-se de uma forma de agir com desigualdade a fim de reparar situações históricas.
3. O princípio da isonomia e as manifestações das desequiparações permitidas
Segundo Coelho (2010, p. 221), o princípio da isonomia consiste em “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades”. Esta concepção mostra-se bastante importante para a aplicação correta do mesmo. A leitura gramatical do caput do art. 5º da CF dá a entender que a igualdade mencionada é ampla e não pode sofrer nenhum tipo de restrição, independentemente de sua função social. Porém, esta forma de interpretação não é a adequada para a aplicação deste princípio essencial para o Estado Democrático de Direito.
Ao falar-se que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (BRASIL, 2009, p. 15), o constituinte trabalhou com a ideia de igualdade na lei. Segundo o doutrinador Inocêncio Mártires Coelho (2010, p. 221), em obra conjunta denominada Curso de Direito Constitucional, ela “tem como destinatário o próprio legislador, a quem seria vedado valer-se da lei para fazer discriminações entre pessoas que mereçam idêntico tratamento”. Já o conceito exposto no início deste tópico diz respeito à igualdade perante à lei. Esta é dirigida aos seus aplicadores que, como já mencionado, deverá tratar igualmente as pessoas que estejam numa condição de igualdade.
É através desta segunda forma de interpretação do princípio da isonomia que surgem as desequiparações permitidas. Como já foi demonstrado no tópico anterior, é impossível haver igualdade de condições numa região marcada por uma pluralidade histórica. Infelizmente, as desigualdades estão e sempre estiveram presentes em todo o mundo, desde o tratamento diferenciado entre homens e mulheres até às diversas condições econômicas e sociais. Logo, a fim de se atender o objetivo do princípio estudado, há a necessidade de se aplicar as leis de acordo com as desigualdades intrínsecas à sociedade.
A Constituição Federal de 1988, sem dúvida alguma, é a mais democrática de toda a nossa História. Isto se dá pela relação estabelecida entre os direitos fundamentais nela previstos e a aplicação dos princípios essenciais de um Estado Democrático de Direito. Direitos como a liberdade de pensamento, liberdade religiosa, acesso à educação, saúde e cidadania, dentre outros são indispensáveis para a construção de um país desenvolvido. Porém, há a necessidade de se conceder estes direitos levando em consideração à realidade da nação. Foi por este motivo que, da mesma forma que o constituinte de 88 estabeleceu a igualdade na criação das leis, estabeleceu também, em seu Preâmbulo, a sua aplicação de modo que atenda valores supremos de uma sociedade fraterna e pluralista.
As desequiparações permitidas ou ações afirmativas surgem como uma forma de atender a estes objetivos. São políticas públicas em favor dos desfavorecidos que não ferem a garantia de isonomia, pois decorrem do próprio texto constitucional. Os exemplos mais conhecidos são a exclusividade de alguns cargos públicos (a exemplo do de Presidente da República), imunidade parlamentar e foro privilegiado.
O § 3º do artigo 12 da Constituição Federal estabelece que:
“§ 3º São privativos de brasileiro nato os cargos:
I – de Presidente e Vice-Presidente da República;
II – de Presidente da Câmara dos Deputados;
III – de Presidente do Senado Federal;
IV – de Ministro do Supremo Tribunal Federal;
V – da carreira diplomática;
VI – de oficial das forças armadas;
VII – de Ministro de Estado da Defesa.” (BRASIL, 2009, p. 24)
O objetivo desta desequiparação está no fato de que os cargos enumerados no parágrafo citado são de defesa da segurança nacional. Destarte, torna-se, no mínimo, perigoso entregá-los a estrangeiros. Seria uma forma de passar a soberania da nação às mãos de outro país. Foi por este motivo que o constituinte de 88 resolveu fazer esta reserva de cargos. A Constituição define os brasileiros natos e naturalizados[6]. Estabelece, também, que todos são iguais perante a lei. Mas, o parágrafo citado corresponde a um exemplo concreto das desequiparações permitidas: há uma diferença entre esses dois grupos e, destarte, o princípio da isonomia deve ser aplicado tendo em vista estas desigualdades.
Da mesma forma, ocorre com a imunidade parlamentar e o foro privilegiado do Presidente da República. Estabelecem os ss. 1º, 2º e 3º do artigo 53 e o art. 102, I, “b” da CF:
“Art. 53 Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.
§ 1º Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal.
§ 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.
§ 3º Recebida a denúncia contra Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação. (…)
Art. 102 Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I – processar e julgar, originalmente:
a) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República”. (BRASIL, 2009, p. 53 e 75)
Como se pode vislumbrar, tanto a imunidade parlamentar como o foro privilegiado são exemplos de desigualdades permitidas, pois estão previstas no próprio texto constitucional. A explicação é a mesma para a citada anteriormente. Os membros do Congresso Nacional, Ministros do STF, Presidente, Vice e Procurador-Geral da República ocupam cargos que representam a soberania nacional. Logo, não podem ser tratados da mesma forma que os demais. Daí a preocupação do constituinte em estabelecer foro privilegiado e imunidade parlamentar.
Como afirma o artigo 53 da CF, os membros do Congresso Nacional, durante seus mandatos, não poderão sofrer qualquer ação civil ou penal por qualquer opinião, palavra ou voto dado. Esta é mais uma conquista de 88. Vale ressaltar que o Brasil saia de um regime militar onde o Congresso foi fechado por diversas vezes e vários parlamentares tiveram seus mandatos cassados simplesmente por não seguir as ordens do governo. O presente artigo vem para assegurar a liberdade de manifestação e representação dos deputados e senadores.
É bem verdade que muitos utilizam da imunidade parlamentar para fins, moralmente, inaceitáveis. Porém, em um Estado Democrático de Direito, é impossível não se prever o disposto no artigo, pois, caso contrário, estaríamos restringindo o poder representativo dos parlamentares. A exceção feita pela norma é em caso de flagrante de crime inafiançável. Nesta circunstância, o membro do Congresso poderá ser preso, mas os autos deverão ser enviados, em até 24 horas, para a Casa respectiva onde a prisão deverá ser resolvida pelo voto dos demais parlamentares.
Vale ressaltar, também, que a desequiparação não encerra outros processos anteriores à posse do cargo. Estes e seus prazos prescricionais estão paralisados e voltarão a transcorrer após o término do mandato. Portanto, encaramos como de um valor inestimável o artigo supracitado, pois estabeleceu uma desigualdade aceitável, sem, contudo, dar plenos poderes a fim de que os parlamentares pudessem agir da forma como bem entendessem.
No que diz respeito ao foro privilegiado, o próprio artigo 53, em seu § 1º, estabelece essa garantia aos deputados e senadores. Da mesma forma, ocorre com os ocupantes dos cargos mencionados no art. 102, I, “b”. O Supremo Tribunal Federal, por ser a instância máxima do ordenamento jurídico brasileiro, ficará responsável pelo julgamento destas pessoas, tendo em vista a importância do cargo que ocupam. Enquanto que, para os demais cidadãos, o STF é a última instância (no que diz respeito à temática constitucional), para os citados anteriormente, enquanto ocupam o mandato, é a primeira e única para qualquer que seja a temática.
Outra desequiparação permitida presente no texto constitucional está no § 7º do art. 201:
“§ 7º É assegurada aposentadoria no regime geral de previdência social, nos termos da lei, obedecidas as seguintes condições:
I – trinta e cinco anos de contribuição, se homem, e trinta anos de contribuição, se mulher;
II – sessenta e cinco anos de idade, se homem, e, sessenta anos de idade, se mulher, reduzido em cinco anos o limite para os trabalhadores rurais de ambos os sexos e para os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, nestes incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal.” (BRASIL, 2009, p. 129 e 130)
É importante destacar que, apenas neste artigo, há 3 formas de desequiparação no que diz respeito ao sistema de aposentadoria: a primeira entre homem e mulher, a segunda para os trabalhadores rurais e a terceira para os que exercem atividades em regime de economia familiar.
Todos sabem que a mulher foi vítima, durante grande parte da história, de preconceitos. Para se ter uma ideia, na Grécia Antiga, os garotos perdiam a virgindade com homens, pois acreditavam que a mulher era um ser inferior. Em Roma, a função da mulher era, especialmente, criar as filhas para serem boas esposas. Na Idade Média, a mulher era vista como mera reprodutora e o sexo por prazer tido como pecado, sendo que ela, assemelhada a Eva, era vista como a “transmissora da tentação do Demônio”. No Brasil, só passaram a ter direito ao voto na Constituição de 1932 e só conseguiu chegar à Presidência da República em 2011.
Todas essas circunstâncias colocam a figura feminina numa posição inferior durante a História. A nova concepção do princípio da isonomia, assegurado pelo Estado Democrático de Direito, veio corrigir estas desigualdades na forma de desequiparações permitidas. É por este motivo que a Constituição, em todas as hipóteses de aposentadoria, coloca a mulher numa posição de 5 anos mais privilegiada do que o homem.
Já em relação ao trabalhador rural, esta desigualdade é assegurada tendo em vista que o trabalho no campo é muito mais desgastante do que o trabalho urbano. Portanto, não há como se tratar igualmente estes cidadãos que participam de mercados de trabalho tão diferentes. Daí, a redução no período para aposentadoria destes trabalhadores.
Da mesma forma, ocorre com os que exercem atividades em regime de economia familiar. Por ser um trabalho desgastante e até mesmo arriscado[7] não há como se exigir que este trabalhador exerça sua atividade durante o mesmo período que um trabalhador urbano em condições totalmente diferentes.
Por fim, vale ressaltar o mais fiel e polêmico exemplo de ações afirmativas presentes neste início de século: a política de cotas em concursos públicos. Grupos sociais como estudantes de escolas públicas, membros de baixa renda, afro-descendentes e indígenas possuem vagas reservadas na grande maioria destes processos de seleção.
Embora não haja nenhum dispositivo constitucional que, explicitamente, regulamente este sistema, o caput do art. 205 da CF estabelece que “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade”. É, também, de conhecimento de todos que os grupos sociais citados no parágrafo anterior foram e são vítimas de discriminações e oportunidades inferiores durante toda a história. Logo, segundo a correta interpretação do princípio da isonomia, não há como colocá-los em igual situação com os demais cidadãos (na sua maioria, privilegiados com educação de excelente qualidade).
A política de cotas surge como uma forma de tentar harmonizar este princípio, dando oportunidades a todos. Vale destacar que, em alguns casos, já vem surtindo efeitos positivos. No Vestibular 2011 da Universidade Estadual da Paraíba, em igual quantidade de vagas para cotistas e não-cotistas, alguns cursos[8] já apresentaram desempenho superior dos candidatos da 1ª opção. Isto demonstra que estas ações já estão produzindo frutos e, talvez, num futuro não tão distante, todos os cidadãos possam concorrer em condições idênticas.
Porém, vale destacar um ato da Universidade acima citada que, em nosso ver, corresponde a um excesso na incorporação destas desequiparações permitidas. O fato de a instituição conceder reserva de vagas apenas para estudantes de escolas públicas do Estado da Paraíba fere o princípio federativo e extrapola, negativamente, a ideia das ações afirmativas. É bem verdade que os alunos de instituições públicas de Ensino Médio podem ser abrangidos, perfeitamente, por estas exceções. Porém, não se pode conceder apenas a determinados estudantes e não a outros. Desta forma, ocorre uma Discriminação Negativa (que corresponde a uma desigualdade sem fundamento constitucional). Logo, vemos que há a necessidade da Universidade modificar seu sistema de reserva de vagas, incluindo estudantes de escolas públicas de todo o Brasil.
Por fim, vale destacar a política de cotas para afro-descendentes. Atualmente, há uma séria controvérsia (inclusive maior que as demais) acerca da instituição da mesma. Muitos a vêem como uma própria discriminação, ao encarar que uma cor pode definir capacidade de um cidadão. De outro lado, os defensores argumentam que o objetivo da reserva de vagas não é este, e sim uma forma de corrigir todo o sofrimento e discriminação que os negros sofreram na história do Brasil. O tema é muito amplo e possui argumentos fortíssimos para ambos os lados. Logo, não nos debruçaremos detalhadamente acerca do tema, tendo em vista que o artigo visa analisar o gênero e não a espécie.
4. Conclusão
Portanto, o avanço na interpretação e aplicação do princípio da isonomia constitui numa forma de efetivação do Estado Democrático de Direito. Não há como se tratar de forma igual cidadãos que apresentam condições desiguais. Para se atingir a igualdade, deve-se acabar com as discrepâncias. É neste sentido que surgem as desequiparações permitidas.
É importante diferenciá-las das discriminações negativas. Enquanto estas não possuem nenhum respaldo constitucional, aquelas ou são abrangidas pelo texto da Carta Magna ou são resultado do mesmo. Logo, tratamentos desiguais como a política de cotas, a imunidade parlamentar, o foro privilegiado, a exclusividade de cargos, o sistema de aposentadoria, dentre outros, não são formas de desrespeitar o princípio da igualdade, e sim uma forma de avançar e aperfeiçoar o seu entendimento.
A Constituição Federal de 1988 veio englobando estas desequiparações e dando uma contribuição para a evolução dos direitos e garantias fundamentais. Após um período de cerca de 20 anos de regimes totalitários, ela veio assegurar o regime democrático. Enfim, atitudes como estas, além de aperfeiçoar o ordenamento jurídico brasileiro, vêm corrigir discriminações e desigualdades históricas a fim de levar nossa nação ao desenvolvimento.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Joagny Augusto Costa Dantas
Estudante de Direito.