O princípio da legalidade na Administração Pública contemporânea

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Resumo: O presente estudo visa apenas iniciar uma reflexão acerca do princípio da legalidade, suas diferentes abordagens doutrinárias, e a sua vinculação com a Administração Pública. No entanto, o enfoque deste artigo não recai sobre o tão falado alargamento do conteúdo material deste princípio, o que vincularia a Administração Pública não somente à legalidade, mas sim à juridicidade, abarcando um Direito inorganizado e não escrito, compreendendo os costumes, os princípios gerais de direito, e a própria ideia não positivada de “Direito”. O que se pretendeu aqui foi levantar uma discussão sobre o sentido a ser atribuído à legalidade, seja formal ou material, colocando em xeque a ideia de supremacia da lei e de superioridade axiológica do Parlamento sobre o Poder Executivo.


Palavras-chave: Princípio da legalidade. Reserva legal. Vinculações da Administração Pública. Poder regulamentar. Democracia.


Sumário: 1. Introdução. 2. O surgimento do Estado de Direito e a gênese do Direito Administrativo. 3. Os sentidos de legalidade aplicados à Administração. 4. O princípio da legalidade e a democracia. 5. A questão no direito comparado. 6. Conclusão. Referências bibliográficas.


1. Introdução


A evolução do conceito de legalidade e, mais do que isso, as mudanças ocorridas na vinculação deste princípio com a Administração Pública, denotam a importância de seu caráter contextual. Forçoso se torna pensar que o princípio da legalidade deve, imperiosamente, ser trabalhado de acordo com a realidade contemporânea de sua época. A desmistificação da ideia de perfeição da lei em sentido estrito, o crescente protagonismo dos órgãos administrativos, e a distância existente entre a formulação teórica dos alicerces político-filosóficos do princípio da legalidade e a sua efetiva concretização, demonstram que as atividades da Administração Pública devem, agora, ser pautadas na lei em sentido material. 


Para que seja possível uma análise crítica tocante às superadas leituras do princípio ora discutido, mostra-se necessária, ainda, uma abordagem geral a respeito do surgimento do Estado de Direito e sobre a gênese do Direito Administrativo na França.


Ressalte-se, por fim, a necessidade de imediata insurgência contra alguns pensamentos que vêm passando ao largo de críticas, mas que merecem ser desconstruídos, como a questão da ilusória força representativa das Casas legislativas na produção das leis, e da suposta desigualdade democrática existente entre as leis em sentido formal e a norma oriunda do Poder Executivo.


2. O surgimento do estado de direito e a gênese do direito administrativo


Um dos principais êxitos obtidos pelo movimento revolucionário francês do final século XVIII, que culminou no fim da monarquia e do regime totalitário que até então vigia naquele país, foi o da implantação do Estado de Direito, colocando um sistema de normas acima da vontade dos indivíduos. Como ensina Odete Medauar[1], essa concepção de Estado Direito foi elaborada inicialmente sob forma científica pelos publicistas alemães Von Mohl, Stahl, Gneist e Bahr. Na sua formulação originária revestia-se de significado polêmico contra o Estado absolutista tardio (Estado de polícia) e visava, na essência, à limitação do poder do Estado, pelo Direito, como garantia dos indivíduos contra o arbítrio. E, segundo narra a história oficial, foi desta subordinação do poder à lei ocorrida na prática com a Revolução Francesa que teria nascido o direito administrativo, definindo-se uma pauta de direitos individuais que então passavam a vincular a Administração Pública. Porém, como alerta Gustavo Binenbojm[2], esta história quase romântica sobre a gênese do direito Administrativo é falsa. Afirma Binenbojm que:


“A associação da gênese do direito administrativo ao advento do Estado de direito e do princípio da separação de poderes na França pós-revolucionária caracteriza erro histórico e reprodução acrítica de um discurso de embotamento da realidade repetido por sucessivas gerações, constituindo aquilo que Paulo Otero denominou ilusão garantística da gênese”.


 O regime praticado na França pós-revolucionária em muito se assemelhava com o modelo absolutista do Ancien Régime. Para isso, era necessário que os novos governantes criassem e sedimentassem essa falsa ideia garantística do Direito Administrativo. Esse ilusório caráter protecionista de sua gênese serviu para assegurar a liberdade das autoridades administrativas, camuflando práticas absolutistas com uma falsa idéia de “pacto social”, plantada na população, como se aquele Direito que ali nascia viesse para garantir os direitos individuais em face da Administração Pública. Gustavo Binenbojm continua lecionando que:


“O surgimento do direito administrativo, e de suas categorias jurídicas peculiares (supremacia do interesse público, prerrogativas da Administração, discricionariedade, insindicabilidade do mérito administrativo, dentre outras), representou antes uma forma de reprodução e sobrevivência das práticas administrativas do antigo Regime que a sua superação. A juridicização embrionária da Administração Pública não logrou subordiná-la ao direito; ao revés, serviu-lhe apenas de revestimento e aparato retórico para sua perpetuação fora da esfera de controle dos cidadãos”.


No entanto, em que pese ser questionável a visão do Estado de Direito e do Direito Administrativo como redentores do totalitarismo, mostra-se inegável a presença de grandes virtudes e méritos nesse modelo de Estado adotado até os dias de hoje na França, no Brasil, e na maioria dos países do mundo. E é neste processo de racionalização e sistematização das relações entre Estado e indivíduos, através de uma estrutura normativa que parte da Constituição e alcança os menores atos administrativos decorrentes do poder regulamentar, que começam a surgir as idéias de legalidade e de reserva de lei, que devem ser trabalhadas a cada dia, para que melhor se encaixem na realidade social de seu tempo.


3.  Os sentidos de legalidade aplicados à administração


O princípio da legalidade expressa a conotação administrativa do Estado de direito. Como ensina Odete Medauar[3], este princípio vincula-se, em sua concepção originária, à separação de poderes e a todo o conjunto de ideias que historicamente significaram oposição às práticas do período absolutista. Medauar assim dispõe sobre a matéria:


“Para a Administração, o princípio da legalidade traduzia-se em submissão à lei. No conjunto dos poderes do Estado traduzia a relação entre poder legislativo e poder executivo, com a supremacia do primeiro; no âmbito das atuações exprimia a relação entre lei e ato administrativo, com a supremacia da primeira”.


Como relembra Edimur Ferreira de Faria[4], o princípio da legalidade teve sua inspiração no artigo 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e se tornou realidade depois da adoção do Estado de Direito.       


Neste sentido, a ideia sempre foi a de objetivar o poder mediante a submissão da Administração à lei. Nas palavras de Odete Medauar, “obedecer à Administração era obedecer à lei, não à vontade instável da autoridade”.


Ainda dentro das visões clássicas, a professora Vera Monteiro[5] expõe, em seu artigo “Princípio da legalidade e os poderes normativo e regulamentar da Administração Pública”, as quatro leituras propostas pelo francês Charles Eisenmann acerca do princípio da legalidade. Em um primeiro sentido, a Administração Pública poderia fazer tudo o que não está proibido em lei. Esta é a chamada vinculação negativa à lei, e tal sentido é aplicado, no sistema brasileiro atual, somente às relações entre os particulares. Já em um segundo sentido, a Administração poderia agir desde que alguma norma de Direito a autorizasse. Haveria ainda um terceiro sentido de legalidade, pelo qual a Administração somente poderia agir se alguma norma de Direito a autorizasse e ainda desde que o conteúdo do ato atendesse ao pré-determinado pela lei. E, por fim, Eisenmann propõe uma quarta leitura possível do princípio da legalidade, segundo a qual a Administração Pública só poderia agir quando obrigada pelo Direito, que não lhe concederia qualquer margem de escolha.


E, como explica Odete Medauar[6] em sua obra “Direito Administrativo Moderno”, dentro dessa enumeração arrolada por Eisenmann o vínculo da Administração à norma vai aumentando, percorrendo um caminho que vai de um significado mais liberal para as práticas administrativas até um significado altamente restritivo. E é dentro desta variação de possibilidades interpretativas que deve ser trabalhado o princípio da legalidade, sendo também necessária uma análise crítica sobre o significado da palavra “lei”, na busca pelo sentido que melhor satisfaz o instituto em nosso sistema.


É comum encontrar autores brasileiros ensinando que a legalidade aplicada ao Direito Público atual impõe que o administrador somente possa realizar o que a lei autoriza ou determina, não possuindo liberdade para criar novas regras.


O artigo 5º, inciso II, da Constituição da República de 1988[7] preceitua expressamente que:


“Art. 5º – […]


II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa em virtude de lei;”


Diante do transcrito dispositivo constitucional, grande parte da doutrina brasileira atribui um sentido formal ao princípio da legalidade. Sob este prisma, a Administração Pública não poderia exigir dos administrados determinados comportamentos que não estejam expostos em lei em sentido estrito.


Celso Antônio Bandeira de Mello[8] integra esta parcela doutrinária, entendendo que “a expressão “legalidade” deve, pois, ser entendida como “conformidade à lei e, sucessivamente, às subseqüentes normas que, com base nela, a Administração expeça para regular mais estritamente sua própria discrição”, adquirindo então um sentido mais extenso”.  Segundo a visão de Celso Antônio Bandeira de Mello, a Administração estaria vinculada positivamente não somente à lei em sentido estrito, mas também a eventuais normas que possam existir, decorrentes da lei, produzidas pela própria Administração para regular seus comportamentos ulteriores.


No mesmo sentido, José Afonso da Silva[9] escreve em sua obra “Curso de Direito Constitucional Positivo” que:


“[…] a palavra lei, para a realização plena do princípio da legalidade, se aplica, em rigor técnico, à lei formal, isto é, ao ato legislativo emanado dos órgãos de representação popular e elaborado de conformidade com o processo legislativo previsto na Constituição (arts. 59 a 69). Há, porém, casos em que a referência à lei na Constituição, quer para satisfazer tão-só as exigências do princípio da legalidade, quer para atender hipóteses de reserva (infra), não exclui a possibilidade de que a matéria seja regulada por um “ato equiparado”, e ato equiparado à lei formal, no sistema constitucional brasileiro atual, serão apenas a lei delegada (art. 68) e as medidas provisórias, convertidas em lei (art. 62), as quais, contudo, só podem substituir a lei formal em relação áquelas matérias estritamente indicadas nos dispositivos referidos”.


E José Afonso da Silva ainda menciona que o princípio da legalidade pode também vincular-se, em um segundo momento, à atuação de outros poderes, mas que se mostra indispensável a vinculação primária ao Poder Legislativo. No que diz respeito à diferenciação entre o princípio da legalidade e o princípio da reserva legal, o referido autor entende que tal distinção passa pela generalidade ou especificidade da matéria regulada. Para ele, se a Constituição outorga ao Legislativo um poder amplo e geral para a regulação de qualquer espécie de relação, tem-se o princípio da legalidade. E, por outro lado, quando a Constituição especifica uma matéria particular para ser regulada por lei, estaria configurado o princípio da reserva legal. Mas, em ambos os casos, a hierarquia das fontes normativas deveria ser respeitada, sendo imprescindível a presença da lei formal.


No entanto, a ideia inicial do princípio da legalidade aplicado à Administração Pública foi se modificando ao longo dos tempos, pois, sob o ponto de vista operacional, aquela submissão total à lei tornava a atividade administrativa inviável e engessada. A concepção positivista e a própria sacralização da legalidade levaram a um legalismo exacerbado, resultando em um formalismo excessivo dos atos normativos, com a absurda predominância da letra fria da lei sobre o seu espírito ou sobre a realidade dinâmica da sociedade.


Obras mais recentes de alguns autores, como o português Paulo Otero[10], sustentam que o espaço da legalidade começa a sofrer o desgaste provocado pela desmistificação da perfeição da lei, e que o conteúdo da dimensão jurídico-positiva da legalidade encontra-se debilitado, e aponta para um maior protagonismo ou ativismo dos órgãos administrativos na aplicação ou realização constitutiva do Direito. Paulo Otero escreve em sua obra “Legalidade e Administração Pública” que “a lei revela-se insuficiente, obscura e ineficaz para fazer face às novas necessidades coletivas e o próprio conteúdo das normas jurídicas perde precisão, determinação e congruência, encontrando-se a legalidade eivada de interesses contraditórios e povoada de uma intrínseca conflitualidade normativa”. Ressaltando a distância entre a formulação teórica dos alicerces político-filosóficos do princípio da legalidade e a sua efetiva concretização, o autor afirma que a legalidade vinculativa da Administração Pública não integra apenas normas provenientes de fontes exteriores à Administração, mas comporta também uma considerável normatividade elaborada pelos órgãos administrativos.


Desta maneira, é inequívoca a legalidade conferida ao Poder Executivo através da titularidade de um poder regulamentar próprio de natureza não só executiva, como também de natureza autônoma, conforme dispõe o artigo 84, inciso VI, alíneas a e b da CR/1988. Além disso, outros institutos como o das leis delegadas e da possibilidade de edição de Medidas Provisórias denotam a competência normativa atribuída pelo Constituinte ao Poder Executivo. Como sugere Paulo Otero, a atribuição direta pela ordem jurídica de poderes normativos aos órgãos administrativos para que estes definam as normas que vão pautar as suas condutas e, posteriormente, apliquem tais normas ao caso concreto, demonstra que determinadas matérias podem ser reguladas pelos próprios órgãos alvos da norma de maneira mais eficiente do que se o fossem por um Poder Legislativo que, por sua vez, encontra-se distante daquela realidade. Neste contexto, pode-se afirmar que, em muitas vezes, o ato normativo emanado do Poder Executivo possui eficácia infinitamente superior à da lei em sentido estrito, primordialmente quando confrontados ao caso concreto, o que enfraquece a visão formal do princípio da legalidade.


Tratando o princípio da legalidade desta forma, sendo natural, portanto, um maior protagonismo dos órgãos administrativos na aplicação do Direito, alguns autores chegam a mencionar que se tornaria ociosa a noção de reserva de lei, frente a autovinculação de uma Administração Pública que produz a norma a que, em um segundo momento, deve respeitar, sendo possíveis mudanças a todo o tempo.


Corroborando a corrente doutrinária que reputa um sentido material ao princípio da legalidade, mas preservando a importância da reserva de lei, Eros Grau[11] opina no sentido de haver uma distinção entre a vinculação da Administração Pública às definições da lei, o que caracterizaria a reserva da lei, e a vinculação da Administração às definições decorrentes da lei, o que configuraria a reserva da norma, que pode ser regulamentar ou regimental. Ressaltando que o mandamento contido no inciso II, do artigo 5º, da CR/1988 possui um caráter apenas relativo (enquanto em outros artigos a Constituição adota o princípio em caráter absoluto), Grau afirma que mesmo em situações que a Administração pauta suas ações em atos normativos não da espécie legislativa, o princípio da legalidade estaria sendo devidamente acatado.


Já Ferreira Filho[12] propõe uma divisão, afirmando o seguinte:


“deixar a lei para o campo das liberdades e encontrar outro instrumento para atuar no campo da impulsão do desenvolvimento econômico e social; consequentemente deve-se atribuir a um órgão o estabelecimento da lei (da lei, expressão da Justiça, elemento disciplinador da liberdade) e a outro órgão a elaboração dos instrumentos necessários à promoção do bem estar”.


4. O princípio da legalidade e a democracia


Não se trata aqui de discutir o alcance do sentido de legalidade. Mostra-se uníssono na doutrina e jurisprudências contemporâneas que o princípio em tela não abrange somente leis, mas atinge também os princípios constitucionais, o que, na prática, confere um maior grau de subjetividade aos órgãos de controle das atuações administrativas (em que pese a existência de técnicas de hermenêutica constitucional e a crescente conscientização da força normativa dos princípios). Fala-se, hoje, inclusive, em vinculação da Administração Pública à juridicidade, e não mais à legalidade.


Todavia, é importante debruçar sobre a tentativa de desmistificação de uma ideia arraigada na população, que prega a existência de uma pretensa superioridade da lei em sentido estrito sobre a norma emanada do Poder Executivo, como se a norma de natureza legislativa fosse certamente mais democrática do que a norma decorrente do poder regulamentar. Odete Medauar[13], citando Norberto Bobbio, relembra que a democracia pode ser caracterizada por um conjunto de regras que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos. Ao contrário do que muitos juristas sustentam, não nos parece ser indiscutível que a representatividade das Casas legislativas seja, prima facie, maior do que a representatividade dos órgãos e entidades administrativos. O parlamento brasileiro se mostra, hoje, como um Poder concentrado nas mãos de minorias elitistas que impõem seus interesses individuais e excludentes sobre a grande maioria da população, por meio de uma democracia “de fachada”, manipulada por financiamentos de campanha e controle midiático. A lei votada pelo legislativo deixou de expressar a vontade geral, para ser a vontade de maiorias parlamentares. Os mesmos vícios que podem atingir o Poder Executivo, maculando a representatividade de seus atos normativos, e que constantemente são invocados pelos defensores do sentido formal do princípio da legalidade, também são frequentemente encontrados na produção de leis formais pelo Poder Legislativo. Também é importante dizer que as Casas legislativas não se imunizam de tais irregularidades pelo fato de possuírem, em tese, um maior número de representantes na produção das leis do que possuem o Poder Executivo. Ademais, é preciso que se diga que os atos normativos emanados do Poder Executivo também podem ser formulados por um número maior de representantes. Nesta esteira, qual seria a superioridade da lei em sentido estrito face aos atos normativos emanados do Poder Executivo? É preciso, aqui, que entendamos a exigência de lei prevista na Carta Constitucional como um mandamento relativo, que alcance também atos normativos não legislativos produzidos por representantes eleitos democraticamente, e que por muitas vezes têm melhores condições de tratar e regular aquela matéria.


5. A questão no direito comparado


A despeito da discussão sobre o sentido a ser atribuído ao princípio da legalidade, seja formal ou material, absoluto ou relativo, fato é que a Constituição da República ressalta, em vários de seus artigos, a exigência de lei como baliza da atuação administrativa. O inciso II, do artigo 5º, da Carta Maior, como já visto, dispõe que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Também o artigo 37 da CR/1988 destaca em seu caput o princípio da legalidade que, segundo o entendimento clássico de Hely Lopes Meirelles[14], caracteriza uma vinculação positiva da Administração Pública à lei, senão vejamos:


“Na Administração não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza.”


Gustavo Binenbojm[15] alerta que o mencionado paradigma postulado por Hely Lopes Meirelles encontra-se defasado, tendo como agente condutor desta superação dogmática o fenômeno da constitucionalização do Direito Administrativo. Contudo, o fato de a Constituição da República prever expressamente o princípio da legalidade como norteador da atuação administrativa ainda faz com que a vetusta visão de Meirelles seja muito praticada, difundida e lecionada.


Já no direito francês, por exemplo, o cenário é outro. Ferreira Filho[16] destaca que a Constituição francesa de 1958 prevê campos reservados à lei e matérias reservadas ao regulamento autônomo, ou seja, campos de normação elaborada pelo governo. E para que o poder atribuído ao Executivo não se tornasse ilimitado nessas matérias, o Conselho de Estado francês passou a conferir aos princípios gerais do direito administrativo um valor constitucional, subordinando a atuação normativa da Administração aos sumos preceitos axiológicos que balizam a própria vida institucional francesa. Vejamos o que dispõe o artigo 34 da Constituição francesa, in verbis:


“Art.°34- A lei é votada pelo Parlamento.


A lei estabelece os regulamentos referentes :


 aos direitos civis e às garantias fundamentais concedidas aos cidadãos para o exercício das liberdades públicas ; as obrigações impostas pela defesa nacional aos cidadãos quanto à sua pessoa e seus bens
 à nacionalidade, ao estado e à capacidade das pessoas, aos regimes matrimoniais, às sucessões e doações
 à determinação dos crimes e delitos bem como às penalidades aplicáveis ; ao processo penal ; à amnistia ; à criação de novas ordens de jurisdição e ao estatuto dos magistrados
 à base, à taxa e às modalidades de arrecadação de impostos de todo tipo ; ao sistemo de emissão de moeda.


A lei estabelece igualmente os regulamentos referentes :


 ao regime eleitoral das assembleias parlamentares e das assembleias locais
à criação de categorias de estabelecimentos públicos
às estatizações de empresas e às transferências de propriedade do sector público ao sector privado “.”


Como se verifica, a Constituição francesa reseva um campo de matérias a serem reguladas de maneira primária pelo Poder Executivo. E o artigo 37 desta Constituição ainda complementa, nos seguintes termos:


“Art.°37 – As outras matérias, fora do domínio da lei, possuem carácter regulamentar. Os textos de forma legislativa referentes a tais matérias podem ser modificados por decretos emitidos após consulta ao Conselho de Estado. Os textos legislativos que vierem a ser aprovados depois da entrada em vigor da presente Constituição, só podem ser modificados por decreto se o Conselho Constitucional declarar que possuem carácter regulamentar, conforme a definição do parágrafo precedente.”


Isto não ocorre no Brasil, onde, em regra, os regulamentos apenas complementam a lei. Dentre as competências atribuídas ao Presidente da República do Brasil dispostas no artigo 84 da Constituição de 1988, consta a expedição de decretos e regulamentos em complemento à lei formal. Esta ideia se mostra tão arraigada na consciência jurídica brasileira que o fato de o inciso VI deste mesmo artigo 84 prever a possibilidade de o Presidente da República dispor sobre restritas matérias por meio de decretos autônomos provoca enorme celeuma na doutrina.


O direito alemão se assemelha bastante com o brasileiro neste aspecto, e confere ao Poder Executivo um âmbito limitado de inovação na ordem jurídica. Neste sentido, Konrad Hesse[17], professor da Universidade de Freiburg im Breisgau e juiz, fora de serviço, do Tribunal Constitucional Federal daquele país, menciona que:


“A segunda função básica constitucional é aquela do poder “executivo”. […]. “Execução” compreende o exercício de tarefas que pertencem a matérias mais diferentes e, no modo do vencimento dado, mostram diferenças essenciais. De outro lado, ela não é somente um mero conceito coletivo para tudo aquilo que não é legislação e jurisdição. Ela indica, antes, as funções do tornar-se ativo estatal direto. Se isso sucede somente em um sentido que tipifica – também o poder executivo pode, como mostrado, em proporção limitada, estabelecer direito -, então aparece, com isso, todavia, a diferença entre legislação e jurisdição.”


Analisando a força representativa no âmbito da atuação administrativa nos países acima mencionados, pode-se verificar que os modelos brasileiro e alemão não se caracterizam mais democráticos do que o francês à medida em que restringem o âmbito da liberdade e autonomia normativa do Poder Executivo. Diante disto, convém ressaltar que a reserva de matérias destinadas à normatização primária pelo Executivo pode ser de inestimável valia para a prática de atividades típicas do Estado, como a promoção do desenvolvimento econômico e social.  


6. Conclusão 


Por todo o exposto no presente trabalho, pode se concluir que a noção de legalidade aplicada à Administração Pública ainda carrega um ranço muito forte oriundo dos primórdios do Estado de Direito e da gênese do Direito Administrativo. A ideia de submeter o poder à lei, tornando objetivas as práticas dos administradores, sempre foi a motivação da existência deste princípio e da sustentação de seu sentido mais formal. No entanto, realizando uma visão crítica deste pensamento tão difundido, percebe-se que o medo das práticas totalitaristas dos governantes pode acabar por implicar à Administração Pública algumas vinculações exacerbadas, inviabilizando a operacionalidade de determinados atos do Executivo, e gerando o formalismo e o legalismo excessivos.


Países que conferem legitimidade à Administração Pública para a normatização, de forma primária, em determinados campos de atuação, demonstram que este modelo é possível e, em várias situações, se mostra muito mais eficiente do que aquele sistema que prega uma ilusória superioridade axiológica da lei formal sobre a norma decorrente do poder normativo atribuído ao Executivo.


Desta maneira, torna-se necessária uma discussão sobre esta nova proposta, descontruindo conceitos ultrapassados a respeito da democracia representativa exercida pelo Parlamento, e analisando, sob um novo viés, as vantagens que podem se originar do exercício do poder normativo conferido à Administração Pública.  


 


Referências bibliográficas:

BINENBOJM, Gustavo. Interesses Públicos Versus Interesses Privados: Desconstruindo o Princípio de Supremacia do interesse Público. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. 168p.

FARIA, Edimur Ferreira de. Curso de Direito Administrativo Positivo. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2007.

FILHO, Ferreira. Curso de direito constitucional. São Paulo. 1990.

GRAU, Eros. O direito posto e o direito pressuposto. 3ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2000.

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MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 3ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.

MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 1995.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 20ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2006.

MONTEIRO, Vera. Princípio da legalidade e os poderes normativo e regulamentar da Administração Pública. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 5, n. 20, p. 209-218, out./dez. 2007.

OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública. O sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Lisboa: Editora Almedina, 2003.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2009.

 

Notas:

[1] MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992.

[2] BINENBOJM, Gustavo. Interesses Públicos Versus Interesses Privados: Desconstruindo o Princípio de Supremacia do interesse Público. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010.

[3] MEDAUAR, Odete. Op. Cit.

[4] FARIA, Edimur Ferreira de. Curso de Direito Administrativo Positivo. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2007.

[5] MONTEIRO, Vera. Princípio da legalidade e os poderes normativo e regulamentar da Administração Pública. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 5, n. 20, p. 209-218, out./dez. 2007.

[6] MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 3ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.

[7] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. 168p.

[8] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 20ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2006.

[9] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2009.

[10] OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública. O sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Lisboa: Editora Almedina, 2003.

[11] GRAU, Eros. O direito posto e o direito pressuposto. 3ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2000.

14FILHO, Ferreira. Curso de direito constitucional. São Paulo. 1990.

[13] MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992.

[14] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 1995.

[15] BINENBOJM, Gustavo. Op. Cit.

[16] FILHO, Ferreira. Op. Cit.

[17] HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução da 20ª edição alemã. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998.


Informações Sobre o Autor

Luís Felipe de Azeredo Coutinho

Especialista em Direito Público pelo Instituto de Educação Continuada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Advogado


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