Advogado público não é advogado

Palavras-chave: Direito administrativo. Advocacia Pública. Advocacia Privada. Registro em órgão de classe.


Sumário: 1. Introdução – 2. Breves distinções acerca das advocacias pública e privada  – 3. Da capacidade postulatória. – 4. Do exercício da advocacia fora das funções do cargo. – 5. Outros profissionais/servidores. – 6. Cotejo com atuais pareceres e decisões veiculadas em prol dos Defensores Públicos. 7. Dos vícios que inquinam o artigo 3º, §1º, da Lei n.º 8.906/94. – 7.1. Inconstitucionalidade formal do artigo 3º, § 1º, da Lei n.º 8.906/94 – 7.2. Inconstitucionalidade material do artigo 3º, § 1º, da Lei n.º 8.906/94 – 7.3. Das antinomias / derrogação do § 1° do art. 3° da Lei n.º 8.906/94. – 8. Incongruência do ato do Corregedor Geral – 9. Considerações Finais – 10. Referências bibliográficas


1. Introdução


É notório (e facilmente aferível do Texto Constitucional) que as Advocacias Pública e Privada possuem misteres distintos. Enquanto a primeira[1] exerce as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo, a segunda representa os particulares perante os Órgãos do Poder Judiciário.


Outrossim, as Advocacias Púbica e Privada se consubstanciam em diferentes categorias de “funções essenciais à justiça”. Explica-se: a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) reservou Seções específicas e apartadas para tratar das Advocacias Pública (Seção II, do Capítulo IV, do Título IV) e Privada (essa tratada conjuntamente com a Defensoria Pública na Seção III, do Capítulo IV, do Título IV), assim como o fez com relação ao Ministério Público (Seção I, do Capítulo IV, do Título IV).


Em suma: são instituições diversas, com objetivos e finalidades que não se confundem, e cuja única semelhança reside no nome a elas emprestado.


Ignorando tais distinções, o Corregedor-Geral da AGU fez publicar por meio eletrônico a Orientação Normativa n.º 1, de 21 de junho de 2011, para obrigar todos os integrantes das carreiras jurídicas da AGU (Advogados da União, Procuradores Federais e Procuradores da Fazenda Nacional) a se inscreverem na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).


Entretanto, além das distinções já apontadas, verificar-se-á no presente estudo que a vinculação dos integrantes da Advocacia Geral da União à Ordem dos Advogados do Brasil é flagrantemente inconstitucional ou, pelo menos, a lei que assim estabelece[2] já foi derrogada ou não se aplica aos advogados públicos.


Em síntese, demonstrar-se-á o quão falha (e destituída de fundamentação jurídica) é a afirmação de que “o Advogado Público é Advogado”.


2. Breves distinções acerca das advocacias pública e privada


Consoante expressa previsão Constitucional[3] (artigo 131), a Advocacia Pública é a instituição que, diretamente ou por intermédio de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.


Em âmbito federal (objeto do presente estudo, como já esclarecido anteriormente), a Advocacia Pública é promovida pela Advocacia-Geral da União, que açambarca as carreiras de Advogado da União, Procurador Federal e Procurador da Fazenda Nacional[4]. Nesse passo, a Lei Complementar n.º 73[5], de 10 de fevereiro de 1993, disciplina e estrutura a AGU, e a Lei nº 9.028[6], de 12 de abril de 1995, estabelece as atribuições dos membros da carreira.


A Advocacia privada, também nos termos da Constituição de 1988, é instituição indispensável à administração da justiça e representa os particulares – pessoas físicas ou jurídicas – perante os órgãos do Poder Judiciário. É disciplinada pela Lei nº 8.906, de 04 de julho de 1994, que, inclusive, dispõe sobre a Ordem dos Advogados do Brasil.


Vale apenas pontuar que, de acordo com o entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.026/DF[7], a Ordem dos Advogados do Brasil não integra a estrutura da Administração Pública Federal, direta ou indireta. Trata-se, adversamente, de “serviço público independente”, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro.


Não obstante tais distinções, a norma do art. 3º da Lei nº 8.906/94 reza que o exercício da atividade de advocacia no território brasileiro e a denominação de advogado são privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil – OAB” e seu § 1° estabelece exercerem “atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas entidades de administração indireta e fundacional”.


Assim, uma primeira e apressada leitura do dispositivo inspira a conclusão no sentido de que os advogados públicos devam compulsoriamente vincular-se à Ordem dos Advogados do Brasil.


Contudo, segundo o Min. Humberto Gomes de Barros, do Superior Tribunal de Justiça:


“Os denominados advogados (ou procuradores) de Estado não são, em rigor, advogados. Com efeito, eles não atuam em lugar do Estado, mas como um de seus órgãos. Assim como o juiz é o órgão pelo qual o Estado executa sua função jurisdicional, o procurador é o órgão de que o Estado se vale, para defender-se e atacar, em juízo (…) O Procurador, quando é investido em seu cargo público, está automaticamente habilitado para funcionar como órgão estatal de comunicação com o Poder Judiciário. Por isso, não necessita de qualquer outro documento ou formalidade, para funcionar em defesa da entidade a que se incorporou.” [8]


Verificadas essas primeiras diferenciações, será demonstrado a seguir que a capacidade postulatória dos Advogados Públicos não decorre de sua inscrição na OAB, mas da investidura no respectivo cargo público. Adiante serão evidenciados os vícios que inquinam o § 1° do artigo 3° da Lei nº 8.906/94 e a Orientação Normativa n.º 1, de 21 de junho de 2011.


3. Da capacidade postulatória


Costuma-se bradar que somente o profissional do Direito inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil tem capacidade postulatória e, portanto, o advogado público jamais poderia peticionar em prol da Administração Pública sem que estivesse vinculado à OAB, sob pena de se configurar o exercício ilegal da profissão. Esse raciocínio – comumente ancorado numa interpretação embaçada do artigo 133 da CRFB/88 (o advogado é indispensável à administração da justiça…) – não poderia ser mais equivocado.


Ora, não é somente o advogado quem tem capacidade aduzir pretensões perante o Poder Judiciário. Ele só é indispensável naquelas demandas em que não se faculta aos próprios litigantes o peticionamento ou naquelas em que os representantes das partes não tenham capacidade postulatória decorrente de regramento próprio.


E a prescindibilidade do advogado há muito está consagrada nas reclamatórias trabalhistas, nas causas atinentes aos juizados especiais (estaduais e federais), na interposição do habeas corpus bem como na articulação dos recursos a ele respeitantes etc. Outros dois exemplos servem para ilidir a asserção de que somente o advogado teria a exclusividade da capacidade postulatória: tanto o Ministério Público quanto os Delegados de Polícia Civil e Federal têm capacidade para apresentar requerimentos ao juiz. E nessa mesmíssima catalogação é possível evidentemente incluir os advogados públicos como legitimados a deitar suas pretensões em juízo e no interesse da entidade pública que representam, evidentemente.


Não se defere a inscrição na OAB dos membros do Ministério Público justamente porque eles não podem exercer advocacia privada. Destarte, o mesmo raciocínio deve ser aplicado em relação aos membros da AGU, que também não podem exercer a advocacia privada.


Mas isso nada tem a ver com a capacidade postulatória para (re)presentar os entes públicos em juízo[9]. Assim, além dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, que recebem a denominação de advogados, por força do artigo 3º do respectivo Estatuto, têm capacidade postulatória de índole constitucional e infraconstitucional (decorrentes de leis diversas e específicas), a Defensoria Pública, a Advocacia Pública, o Ministério Público, por exemplo.


 E isso se deduz da lógica organizacional esculpida na CF, que, em seu Capítulo IV, do Título IV – “das funções essenciais à justiça” – estabeleceu quatro entidades diversas, todas elas com capacidade postulatória derivada da própria Constituição ou das leis especificadas na CF. São pelo menos quatro leis orgânicas: uma do Ministério Público, outra da Advocacia Pública, outra da Advocacia e mais uma da Defensoria Pública. Delas, somente uma é de índole ordinária – a da OAB; as outras são leis complementares.


E a Lei Complementar 73/93 (lei orgânica da AGU), que regulou o art. 131 da CF/88, não contém qualquer disposição acerca da necessidade de inscrição dos Advogados da União nos quadros da OAB. Ao revés, atribui a eles a representação da União, judicial e extrajudicialmente, sem exigir-lhes o registro em conselho de classe, o qual nem se justificaria (caso houvesse) porque a LC 73/93 também institui órgão de controle interno, como se disse, para orientar e fiscalizar a atuação dos seus integrantes. Nessa esteira, o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA sustentou que:


“O procurador não é advogado. Com ele não se confunde. Trata-se de funcionário público pago pelo Estado, com recursos arrecadados do povo, exercente de munus. Não está obrigado a inscrever-se na OAB e não tem direito próprio a opor às partes e só poderá receber honorários se a lei expressamente autorizar, o que não ocorre na hipótese.” (…) [10]


4. Do exercício da advocacia fora das funções do cargo


Poder-se-ia dizer que a vinculação dos advogados públicos à OAB seria necessária ao exercício da advocacia desviada da representação do Poder Público. Essa interpretação, portanto, somente teria cabimento quanto aos advogados públicos municipais ou estaduais cujos respectivos regramentos autorizam a advocacia privada concomitantemente com a representação da entidade pública.


Todavia, segundo o artigo 24 da Lei n.º 9.651, de 27 de maio de 1998[11], conjugado com a Medida Provisória nº 2.229-46, de 6 de setembro de 2001[12], e com a Lei nº 10.480[13], de 2 de julho de 2002, aos integrantes da Advocacia-Geral da União – Advogados da União, Procuradores Federais, Procuradores da Fazenda Nacional – é vedado exercer advocacia fora das atribuições institucionais. A mesma proibição consta do artigo 28, I da Lei Complementar nº 73.


Nem tampouco se pode afirmar que o imperativo da inscrição decorre da possibilidade de o Advogado Público compor a lista dos indicados ao quinto constitucional. Por óbvio, NENHUM “Advogado Público” compõe a lista do quinto por ser “Advogado Público”, mas por ser “Advogado (particular)”, mesmo que seja ao mesmo tempo advogado público.


Explica-se: muitos Advogados Públicos (geralmente procuradores estaduais e municipais) têm permissão – conforme as respectivas leis de regência de seus cargos – para advogar fora das atribuições do cargo, ou seja, são a um só tempo “Advogados Públicos” (servidores) e “Advogados Particulares”. Nessa última condição é que alguns disputam as vagas destinadas aos advogados nos tribunais.


Conforme já expendido, a Constituição faz nítida distinção entre “Advocacia” e “Advocacia Pública”. A essência dessas duas instituições revela por si a absoluta incongruência das atribuições, prerrogativas, disciplina e tratamento normativo entre Advogados particulares e Advogados Públicos. É possível assentar que a única – única mesmo! – semelhança entre advocacia pública e advocacia privada é o nome. Só!


4. Outros profissionais / servidores


Poder-se-ia dizer que os médicos integrantes da administração pública têm registro no conselho de classe, assim como os engenheiros, dentistas etc. Logo, os advogados públicos também deveriam ter registro no respectivo conselho.


Não. Terminantemente não. As situações são completamente distintas. Um médico servidor público é médico; um dentista servidor público é dentista; um engenheiro servidor público é engenheiro; um Advogado Público não é um Advogado. Enquanto que naquelas carreiras é possível referir-se ao profissional pelo uso de um substantivo isolado (independentemente dos designativos “público” ou “privado”), no caso da advocacia ocorre o inverso: um profissional da advocacia (privada) em nada se assemelha a um servidor da advocacia pública (veja-se que neste último caso nunca é possível usar isoladamente o substantivo “advogado” sem se fazer acompanhar do designativo “público”).


As atividades do médico servidor público são idênticas às do médico particular. Mas as atividades do advogado público SÃO COMPLETAMENTE DIFERENTES das do advogado (particular). Ademais, se tudo fosse a mesma coisa, os membros do Ministério Público também seriam “Advogados”.


Sabe-se que há Advogados Públicos que podem também ser advogados (alguns procuradores municipais e estaduais, cujos regramentos permitem a advocacia privada) e, ainda nesses casos, a pessoa se submete a regras distintas quando atua como “advogado público”, ou seja, um servidor do Estado, e quando exerce a advocacia (particular), ou seja, trabalha como um autônomo.


Pergunta-se: que outro motivo teria a Constituição para distinguir – no Título IV, Capítulo IV – a Advocacia Pública (seção II) da Advocacia (seção III)? Se todos fossem “Advogados” a CF deles trataria numa única seção denominada “da advocacia”!


Advogado Público” não é “Advogado Privado”, assim como “Procurador Federal” (membro da AGU) não é “Procurador da República” (membro do Ministério Público Federal). Existe, em ambas as situações, apenas coincidência da terminologia de um dos termos de cada expressão.


6. Cotejo com atuais pareceres e decisões veiculadas em prol dos Defensores Públicos


Em recente parecer sobre a temática em análise, solicitado pela Associação Paulista de Defensores Públicos, o ilustre administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello esclarece que a inscrição do futuro Defensor Público na OAB é condição editalícia exigida tão somente para se aferir a capacidade técnica do respectivo profissional. Preenchido tal requisito, torna-se desnecessária a permanência de sua inscrição perante o órgão de classe.


Respaldando tal afirmação, a Lei Complementar n.º 80, de 12 de janeiro de 1994[14], que organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios, estabelece em seu artigo 4º, § 6º (parágrafo acrescentado pela Lei Complementar n.º 132/2009) que a capacidade postulatória desse profissional decorre exclusivamente de sua nomeação e posse no correspondente cargo público.


Na esteira do dispositivo supramencionado, a 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo prelecionou, quando do julgamento da Apelação Cível n.º 0016223-20.2009.8.26.0032[15], que o exercício da atividade de Defensor Público não se atrela à habilitação para o exercício da Advocacia Privada, o que é perfeitamente compatível com a distinção existente entre as atividades exercidas pelos respectivos profissionais.


Se os Defensores Públicos não dependem de inscrição na OAB para postular em juízo, com mais razão ainda não se pode impor tal exigência aos Advogados Públicos.


Isso porque, além de toda a argumentação já desenvolvida no presente estudo, a CRFB/88 contempla a Advocacia Privada e a Defensoria Pública em uma mesma Seção (Seção III, do Capítulo IV, do Título IV), enquanto reserva Seções apartadas à Advocacia Pública (Seção II, do Capítulo IV, do Título IV) e ao Ministério Público (Seção I, do Capítulo IV, do Título IV).


O próprio Conselho Federal da OAB, por seu presidente, reconhece que há evidentes distinções entre as Advocacias Pública e Privada, visto que foram abordadas pelo Texto Magno em Seções diversas, diferentemente do que ocorre com a Defensoria Pública, conforme se infere dos seguintes excertos da petição inicial da ADIN n.º 4.636[16]:


“Ora, se fosse intenção do legislador constitucional tratar a Advocacia e a Defensoria Pública como institutos diversos, o faria, tratando-as separadamente e, não, como fez, agrupando-as na mesma seção, sob o mesmo título “Da Advocacia e da Defensoria Pública.  (…)


Com efeito, se a intenção do legislador constitucional fosse desdobrar a Advocacia e a Defensoria Pública teria feito, como fez para o Ministério Público e a Advocacia Pública, nas Seções I (Do Ministério Público – artigos 127 e seguintes) e na II (Da Advocacia Pública – artigos 131 e seguintes), do mesmo Capítulo IV do Titulo IV.”


O trecho acima mencionado deixa assente o posicionamento adotado no presente artigo: os Advogados Públicos não são Advogados.


6– Dos vícios que inquinam o artigo 3º, § 1º, da Lei n.º 8.906/94


6.1.– Inconstitucionalidade formal do artigo 3º, § 1º, da Lei n.º 8.906/94


O vício formal de inconstitucionalidade é evidente, pois a norma inserta no parágrafo 1° do artigo 3° da Lei n.º 8.906/94 – lei ordinária – adentra seara que a CRFB/88 reservou à Lei Complementar:


“Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.”


Mesmo que se pretendesse considerar a OAB uma entidade componente da Administração Pública Federal (e o Supremo Tribunal Federal já disse que ela não o é, conforme expendido no tópico supra) confundindo-a com a AGU no tocante à disciplina e atuação dos advogados públicos, ainda assim a norma conteria outro vício de inconstitucionalidade formal (de índole subjetiva), já que fora elaborada a partir de proposta do Deputado Federal Ulysses Guimarães, ao passo que, segundo a Constituição Federal, é de competência exclusiva do Presidente da República a iniciativa do projeto de leis que disponham sobre a criação de cargos, empregos, funções e de órgãos da Administração e, especialmente, da Advocacia-Geral da União, nos moldes dos artigos 61, § 1º, II, “a” e “e”; e 29, § 1º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).


Em síntese: se a OAB pode tratar da disciplina dos servidores públicos, a Lei nº 8.906/94 tem vício formal subjetivo de constitucionalidade, pois não observada a iniciativa privativa do projeto, defeito tão grave que nem pode ser sanado pela sanção presidencial.


6.2. Inconstitucionalidade material do artigo 3º, § 1º, da Lei n.º 8.906/94


No que diz respeito ao aspecto material da norma em exame sua inconstitucionalidade é ainda mais evidente.


Primeiro porque a Ordem dos Advogados do Brasil não integra a estrutura da Administração Pública Federal e, por conseguinte, jamais poderia pretender imiscuir-se na disciplina e vinculação funcional dos integrantes da Advocacia-Geral da União ou de quaisquer outros servidores públicos.


Um segundo argumento – e quiçá o mais relevante – diz respeito à impossibilidade (jurídica e fática) de a Ordem dos Advogados do Brasil exercer qualquer controle sobre as atividades desempenhadas pelos integrantes da Advocacia-Geral da União em seus misteres institucionais ou submeter à sua disciplina punitiva os Advogados da União, Procuradores Federais e Procuradores da Fazenda Nacional.


É que os direitos, deveres e prerrogativas dos advogados públicos são completamente distintos daqueles dos advogados particulares, tais como a prestação de contas, a obrigatoriedade de recorrer das decisões judiciais, o manejo de alguns atos processuais, a forma de se praticar tais atos etc.


Ora, os membros da Advocacia-Geral da União não estão sujeitos ao poder de fiscalização correcional da OAB, mas sim ao da Corregedoria da instituição pública (AGU). Registre-se, inclusive, que o Decreto n.º 767[17], de 5 de março de 1993, disciplina o controle interno da AGU, regulamentando os artigos 32, 33 e 34 da Lei Complementar n.º 73, nos seguintes termos:


“Art. 32. A atividade funcional dos membros efetivos da Advocacia-Geral da União está sujeita a:


I – correição ordinária, realizada anualmente pelo Corregedor-Geral e respectivos auxiliares;


II – correição extraordinária, também realizada pelo Corregedor-Geral e por seus auxiliares, de ofício ou por determinação do Advogado-Geral da União.


Art. 33. Concluída a correição, o Corregedor-Geral deve apresentar ao Advogado-Geral da União relatório, propondo-lhe as medidas e providências a seu juízo cabíveis.


Art. 34. Qualquer pessoa pode representar ao Corregedor-Geral da Advocacia da União contra abuso, erro grosseiro, omissão ou qualquer outra irregularidade funcional dos membros da Advocacia-Geral da União.”


Além disso, o controle disciplinar dos membros da Advocacia-Geral da União é realizado por órgão público integrante da estrutura da Administração Pública Federal e, por razões óbvias, independe de qualquer posicionamento ou entendimento de entidade de classe de advogados particulares. Diz a Lei nº 10.480/2002, in verbis:


“Art. 11. É criado, na Procuradoria-Geral Federal, o cargo de Procurador-Geral Federal, de Natureza Especial, privativo de Bacharel em Direito de elevado saber jurídico e reconhecida idoneidade.


§ 1o O Procurador-Geral Federal é nomeado pelo Presidente da República, mediante indicação do Advogado-Geral da União.


§ 2o Compete ao Procurador-Geral Federal:


I – dirigir a Procuradoria-Geral Federal, coordenar suas atividades e orientar-lhe a atuação; (…)


VI – instaurar sindicâncias e processos administrativos disciplinares contra Membros da Carreira de Procurador Federal, julgar os respectivos processos e aplicar as correspondentes penalidades;”


É de se ressaltar também que as chamadas Procuraturas Constitucionais – Procuradoria Federal, Advocacia da União e Procuradoria da Fazenda Nacional – conferem diretamente aos seus membros a representação das entidades públicas federais, não se coadunando com o desempenho de suas atividades qualquer outra exigência além das de acesso ao cargo (art. 37, I e II da CF/88). Logo, se sob o enfoque processual os membros da AGU são representantes judiciais da União e de suas autarquias, sob a ótica administrativa são agentes públicos investidos nas funções de seus cargos públicos.


O Superior Tribunal de Justiça, analisando a questão dos honorários advocatícios, já reconheceu que integrante de carreira da AGU não está obrigado a se inscrever nos quadros da OAB[18], in verbis:


“A recorrente desiste do recurso interposto, renunciando, em caráter irrevogável e irretratável ao direito em que se funda a ação, objetivando quitar o débito tributário com a União, utilizando-se dos benefícios do art. 13 da Lei nº 10.637/2002, em estreita conformidade com o disposto no art. 14 da MP nº 75/2002, rejeitada. A Fazenda Pública, intimada juntamente com o Ministério Público, veio aos autos para dizer “que, acolhido o pedido de desistência, deverá ser condenada a parte ao pagamento de honorários advocatícios. Transcreve ementas e refere julgados das Eg. 1ª e 2ª Turmas concessivos da verba sucumbencial. Examinando, porém, o art. 13 da Lei nº 10.637/02, não vejo como condenar a parte desistente em verba de sucumbência, pois atendeu a prescrição legal estabelecida, tudo visando o próprio interesse do Estado credor, responsável pela condução da sociedade dentro da harmonia pensada e expressa no sistema legal. O procurador não é advogado. Com ele não se confunde. Trata-se de funcionário público pago pelo Estado, com recursos arrecadados do povo, exercente de múnus. Não está obrigado a inscrever-se na OAB e não tem direito próprio a opor às partes e só poderá receber honorários se a lei expressamente autorizar, o que não ocorre na hipótese. Homologo, por isso, o pedido formulado pela parte, nos amplos termos em que articulado, sem qualquer outro ônus excedente dos contidos na lei autorizadora. Publique. Intime-se. Brasília (DF), 18 de março de 2003.”


A respeito do tema, invoca-se texto doutrinário do Juiz Federal Flávio da Silva Andrade, para quem


“o assunto em foco exige interpretação no sentido de que os advogados públicos (proibidos de exercer a advocacia fora das funções institucionais) têm capacidade postulatória que decorre exclusivamente da Carta da República (artigos 131 e 132), e não de sua inscrição nos quadros da OAB. A capacidade postulacional dos Advogados da União, dos Procuradores Federais e dos Procuradores da Fazenda Nacional deve ser entendida como de natureza constitucional e estatutária, desvinculada, portanto, da comprovação de registro junto à OAB, o que, aliás, não é exigido pela Carta Política nem pela Lei Complementar nº 73/93 (Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União). Também deve ser assim no que toca aos Procuradores de Estado, aos Procuradores de Município e aos Procuradores Autárquicos, proibidos de advogar fora das funções institucionais. (…) a capacidade postulatória decorre da dicção constitucional e do Estatuto próprio da Instituição, sendo ínsita do cargo para o qual foram nomeados, e não da simples formalidade da inscrição no quadro de Advogados da OAB. Aliás, quem atua nas lides forenses por este país sabe bem que os advogados públicos, em suas petições e contestações, sequer fazem menção a número de registro na OAB, jamais se tendo ouvido qualquer questionamento desse jaez, até porque o que interessa é o vínculo do procurador ou advogado público com o Estado.”[19]


6.3. Das antinomias / derrogação do § 1° do art. 3° da Lei nº 8.906/94


É possível dizer que o § 1º, do artigo 3º, da Lei n.º 8.906/94 já foi derrogado ou as eventuais antinomias impõem soluções que não permitem a conclusão no sentido de se obrigar o Advogado Público a se inscrever na OAB:


a) conflito entre Lei nº 8.906/94 e Lei Complementar nº 73/93 (Lei orgânica da AGU): soluciona-se pela aplicação da lei complementar em razão de sua hierarquia e especialidade, visto que se direciona a uma categoria específica de servidores – os advogados públicos federais – ao passo que a lei ordinária nº 8.906/94 é dirigida a todos os advogados particulares. Além do mais, a CF determina (art. 131) que a estruturação da AGU se faça por lei complementar;


b) conflito entre Lei nº 8.906/94 e Lei nº 9.028/95, que estabelece as atribuições dos advogados públicos federais: aplica-se a segunda, por ser mais nova e específica;


c) conflito entre Lei nº 8.906/94 e Lei nº 10.480/02, que dispõe sobre o quadro de pessoal da AGU: aplica-se a segunda, por ser mais nova e específica;


d) conflito entre Lei nº 8.906/94 e Medida Provisória nº 2229-43, de 6 de setembro de 2001, que dispõe sobre criação, estruturação e organização de carreiras e cargos da União, dentre eles o de Procurador Federal (art. 1º), e não exige inscrição na OAB: aplica-se a segunda, por ser mais nova e específica;


e) conflito entre Lei nº 8.906/94 e Lei nº 12.269, de 21 de junho de 2010, que, em seu artigo art. 30: “considera-se prática forense, para fins de ingresso em cargos públicos privativos de Bacharel em Direito, no âmbito do Poder Executivo, o exercício de atividades práticas desempenhadas na vida forense, relacionadas às ciências jurídicas, inclusive as atividades desenvolvidas como estudante de curso de Direito cumprindo estágio regular e supervisionado, como advogado, magistrado, membro do Ministério Público ou da Defensoria Pública, ou servidor do judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Advocacia Pública com atividades, ao menos parcialmente, jurídicas”: esta segunda norma – lex posteriori derogat priori – acaba definitivamente com a “dúvida” acerca do “monopólio” da capacidade postulatória.


Detalhe importante: o artigo 31 da novíssima Lei nº 12.269/2010, estabelece como requisito para ingresso no cargo de Procurador Federal APENAS o título de bacharel em Direito, verbis:


“Art. 31.  O ingresso na carreira de Procurador Federal ocorre na categoria inicial, mediante nomeação, em caráter efetivo, de candidatos habilitados em concurso público, de provas e títulos, obedecida a ordem de classificação, exigindo-se diploma de Bacharel em Direito.”


7. Incongruência do ato do Corregedor-Geral


O ato do Corregedor-Geral mencionado na introdução do presente estudo revela uma contradição que faz desaparecer a sua mais mínima finalidade: a orientação assenta que os integrantes da AGU somente responderão disciplinarmente perante órgão da própria AGU, e não da OAB. Verbis.:


“Os membros da advocacia-geral da união e de seus órgãos vinculados respondem, na apuração de falta funcional praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontrem investidos, exclusivamente perante a advocacia-geral da união, e sob as normas, inclusive disciplinares, da lei orgânica da instituição e dos atos legislativos que, no particular, a complementem.”


Ora, se os integrantes da AGU não respondem disciplinarmente perante a OAB, qual a necessidade de se vincularem a essa entidade? Pergunta-se ainda: teria o ato do Corregedor-Geral o fito de fortalecer economicamente a entidade privada (OAB) com as contribuições anuais de milhares de servidores, que, no entanto, não só não obteriam nenhuma prerrogativa – que já têm – como não lhe deveriam vassalagem alguma? Para que serve a inscrição então?


As entidades fiscalizadoras do exercício de certas profissões – os chamados “conselhos de classe”, OAB, CREA, CRM, CRO etc. – existem justamente em razão do poder de fiscalização e disciplinar! Não fosse isso, simplesmente não existiriam.


E a Constituição Federal bem organizou em capítulo próprio (cap. IV do Título IV) quatro entidades absolutamente distintas, a saber: Ministério Público (seção I), Advocacia Pública (seção II), Advocacia e Defensoria Pública (seção III) – estas duas últimas em conjunto. A distribuição topográfica do texto Constitucional jamais permitira uma interpretação no sentido de que a OAB (entidade fiscalizadora da advocacia privada) pudesse exercer controle disciplinar sobre os membros da Advocacia Pública ou do Ministério Público.


Ou ainda: a se aceitar que a OAB tenha ingerência sobre a Advocacia Pública (seção II), por que não estender esse raciocínio ao Ministério Público (seção I)? Se somente “advogados” (inscritos na OAB) têm capacidade postulatória, por que não se exige tal inscrição de todos os membros do Ministério Público e das polícias Civil e Federal, que também peticionam em juízo?


Considerações Finais:


Todos os argumentos expendidos no presente estudo convergem para uma única conclusão lógica: o advogado público não é advogado.


Conforme exposto, as distinções têm início no próprio texto Constitucional, que: a) atribui funções diversas as Advocacia Pública e Privada; b) reserva Seções específicas a cada uma das funções essenciais à justiça (Ministério Público – seção I; Advocacia Pública – seção II; Advocacia Privada e Defensoria Pública – seção III).


Ademais, a capacidade postulatória dos Advogados Públicos não depende de inscrição na OAB, uma vez que é atribuída pela Constituição e por Lei Complementar específica.


Deveras, como se demonstrou, a vinculação dos integrantes da Advocacia Geral da União à Ordem dos Advogados do Brasil é flagrantemente inconstitucional, decorrente de vício de forma (a iniciativa do projeto de leis que disponham sobre a criação de cargos, empregos, funções e de órgãos da Advocacia-Geral da União é do presidente da República) e de conteúdo (não compete à OAB controle sobre as atividades desempenhadas pelos integrantes da Advocacia-Geral da União em seus misteres institucionais ou submeter à sua disciplina punitiva os Advogados da União, Procuradores Federais e Procuradores da Fazenda Nacional).


Sendo assim, pode-se afirmar veementemente que o advogado público não é advogado.


 


Referências bibliográficas:

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

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THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. São Paulo: Forense. 39 ed. v. I.

 

Notas:

[1] Cabe ressaltar de início que o presente estudo se restringe a analisar as distinções existentes entre a Advocacia Pública da União e a Advocacia Privada.

[2] BRASIL Lei n.º 8.906, de 4 de julho de 1994. Legislação Federal.

[3] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado

Federal, 1988.

[4] Aos Advogados da União compete a representação judicial e extrajudicial da Administração Pública Federal Direta. Aos Procuradores Federais, a representação judicial e extrajudicial da Administração Pública Federal Indireta (autarquias e fundações). Aos Procuradores da Fazenda Nacional cabe a representação da União na execução da dívida ativa de natureza tributária.

[5] BRASIL Lei Complementar n.º 73, de 10 de fevereiro de 1993. Legislação Federal.

[6] BRASIL Lei n.º 9.028, de 12 de abril de 1995. Legislação Federal.

[7] Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.026/DF, Rel. Ministro Eros Grau, julgamento em 08.06.2006, DJe de 19.06.2006.

[8] Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 401.390/PR. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, julgamento em 17.10.2002, DJe de 25.11.2002.

[9] Capacidade postulatória, segundo Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery, deve ser entendida como “a aptidão para promover ações judiciais e elaborar defesas em juízo” (Código de Processo Civil Interpretado, Revista dos Tribunais, 10ª edição, 2007, p. 241). Para Humberto Theodoro Júnior é “a aptidão para realizar atos do processo de maneira eficaz.” (Curso de Direito Processual Civil, Editora Forense, v. I, 39ª edição, p. 91). Ensina José Roberto dos Santos Bedaque que capacidade postulatória é “… a necessidade de a parte atuar no processo por intermédio de representante com habilitação técnica para a prática de atos processuais.” (Código de Processo Civil Interpretado, Coordenador Antonio Carlos Marcato, Editora Atlas,2004, p. 131).

[10] Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 515.768/RS. Rel. Min. Luiz Fux, julgamento em 21.08.2003, DJe de 25.11.2002.

[11] BRASIL. Lei n.º 9.651, de 27 de maio de 1998. Legislação Federal.

[12] BRASIL. Medida Provisória nº 2.229-46, de 6 de setembro de 2001. Legislação Federal.

[13] BRASIL. Lei n.º 10.480, de 2 de julho de 2002. Legislação Federal.

[14] BRASIL Lei Complementar n.º 80, de 12 de janeiro de 1994. Legislação Federal.

[15] Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n.º 0016233-20.2009.8.26.0032. Rel. Des. Fábio Tabosa, julgamento em 3.5.2011.

[16] ADIN n.º 4.636, fl. 15.

[17] BRASIL. Decreto n.º 767, de 5 de março de 1993. Legislação Federal.

[18] Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 416.853/PR. Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, julgamento em 18.3.2003, DJe de 3.4.2003

[19] ANDRADE, Flávio da Silva. Reflexões sobre a capacidade postulatória do advogado público, a obrigatoriedade de que mantenha inscrição na OAB e pague anuidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1814, 19 jun. 2008. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/11406. Acesso em: 3 ago. 2011.


Informações Sobre os Autores

Deborah Pierozzi Lobo

Advogada.

Matheus Rocha Avelar

Procurador Federal. Professor de Direito Constitucional.


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