Resumo: O presente artigo versa sobre aspectos atuais do instituto da alienação fiduciária de imóveis e sua (in) compatibilidade quando o seu objeto for bem imóvel da União em regime de ocupação. Objetiva-se esclarecer questões polêmicas advindas dos questionamentos sobre a possibilidade, ou não, de alienação fiduciária em garantia de imóveis da União em regime de ocupação, que são tratados nos artigos 127 a 132 do Decreto-Lei nº 9760/1946. Por fim, se demonstra por meio de análise correlata ao tema, na doutrina e na jurisprudência as peculiaridades dos institutos, que se demonstram incompatíveis.
Palavras-chave: Alienação Fiduciária de Bens Imóveis. Lei nº 9.514/1997. Bens Imóveis da União em regime de ocupação. Decreto-Lei nº 9.760/1946. Incompatibilidade entre os institutos.
Abstract: This article discusses current aspects of the institution of chattel property and its (in) compatibility when its object is property of the Union occupation regime. It aims to clarify controversial issues arising from questions about whether or not a chattel mortgage of real estate under Union occupation, which are addressed in articles 127 to 132 of Decree-Law n. 9760/1946. Finally, is demonstrated by analysis related to the topic, doctrine and jurisprudence the peculiarities of the institutes, which prove to be incompatible.
Keywords: Fiduciary Real Estate. Law nº 9.514/1997 . Real Estate Union`s occupation regime. Decree-Law n. 9.760/1946.Incompatibility between the institutes.
Sumário: I-Introdução; II- Natureza jurídica do instituto da alienação fiduciária em garantia; III- Características dos bens imóveis da União em regime de ocupação; IV- Incompatibilidade entre os institutos; V- Conclusão.
1. Introdução
Inicialmente, faz-se necessário retroceder historicamente ao surgimento do instituto da alienação fiduciária em garantia no país.
Referido instituto surgiu com o advento da Lei nº 9.514/1997, que dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências, e, assim, passou-se a permitir que nas avenças de alienação fiduciária em garantia se pudesse ter como objeto bem imóvel.
Os agentes financeiros, à época, criaram muita expectativa em torno do referido diploma legislativo, afinal seria um novo estímulo ao mercado imobiliário em razão das garantias mais sólidas oferecidas quando da intervenção das instituições financeiras. Some-se a isso o momento histórico do país (1997), ano em que a estabilização monetária ainda estava em processo de consolidação[1] – o Plano Real havia sido implantado há apenas 3 (três) anos – para aquisição de bem imóvel.
O instituto da alienação fiduciária em garantia tendo como objeto bem imóvel veio num momento onde a economia brasileira era cheia de incertezas e instável, servindo, portanto, como uma garantia a mais para a transação imobiliária no pais.
Foi um novo instrumento que serviu de facilitador na aquisição de bens imóveis, em especial à época, quando existia limitada contração no financiamento imobiliário.
2. Natureza jurídica
Quando da realização de um contrato de alienação fiduciária em garantia de bem imóvel, há um desdobramento da propriedade, ou seja, o devedor transfere ao credor a propriedade resolúvel ou indireta (Lei n. 9.514/97, artigos. 22 a 33) como garantia de seu débito, resolvendo-se o direito do adquirente com o adimplemento da obrigação.
Ainda sobre as características da alienação fiduciária de bens imóveis, nas lições de Namem Melhim Chalum[2] in verbis:
“[…]Ao ser contratada a alienação fiduciária, o devedor-fiduciante transmite a propriedade ao credor-fiduciário e, por esse meio, demite-se do seu direito de propriedade; em decorrência dessa contratação, constitui-se em favor do credor-fiduciário uma propriedade resolúvel; por força dessa estruturação, o devedor-fiduciante é investido na qualidade de proprietário sob condição suspensiva, e pode tornar-se novamente titular da propriedade plena ao implementar a condição de pagamento da dívida que constitui objeto do contrato principal.
A legislação foi bem didática quanto ao instituto, consoante se infere do artigo 22 da Lei nº 9.514/1997 o conceito de alienação fiduciária de bem imóvel, in verbis:
“Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.
§ 1o A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto, além da propriedade plena: (Renumerado do parágrafo único pela Lei nº 11.481, de 2007)
I – bens enfitêuticos, hipótese em que será exigível o pagamento do laudêmio, se houver a consolidação do domínio útil no fiduciário; (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)
II – o direito de uso especial para fins de moradia; (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)
III – o direito real de uso, desde que suscetível de alienação; (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)
IV – a propriedade superficiária. (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)
§ 2o Os direitos de garantia instituídos nas hipóteses dos incisos III e IV do § 1o deste artigo ficam limitados à duração da concessão ou direito de superfície, caso tenham sido transferidos por período determinado. (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)
Art. 23. Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título.
Parágrafo único. Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel.”
Da intelecção dos dispositivos acima, depreende-se o caráter acessório do direito real de garantia caracterizado pela propriedade fiduciária, porquanto seu escopo é resguardar o direito à satisfação do crédito, objeto principal.
Há de se explicar, ainda, sobre o pacto denominado pacto comissório.
Esse instituto veda que o credor fiduciário (possuidor indireto) consolide a propriedade em nome próprio, por meio da retomada do imóvel do devedor fiduciante (possuidor direto), sem levar o bem à hasta pública para aquisição por terceiros.
Essa vedação (pacto comissório) decorre da interpretação do art. 27, da Lei n. 9.514/1997 senão vejamos:
“Art. 27. Uma vez consolidada a propriedade em seu nome, o fiduciário, no prazo de trinta dias, contados da data do registro de que trata o § 7º do artigo anterior, promoverá público leilão para a alienação do imóvel.
§ 1º Se, no primeiro público leilão, o maior lance oferecido for inferior ao valor do imóvel, estipulado na forma do inciso VI do art. 24, será realizado o segundo leilão, nos quinze dias seguintes.
§ 2º No segundo leilão, será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais.
§ 3º Para os fins do disposto neste artigo, entende-se por:
I – dívida: o saldo devedor da operação de alienação fiduciária, na data do leilão, nele incluídos os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais;
II – despesas: a soma das importâncias correspondentes aos encargos e custas de intimação e as necessárias à realização do público leilão, nestas compreendidas as relativas aos anúncios e à comissão do leiloeiro.
§ 4º Nos cinco dias que se seguirem à venda do imóvel no leilão, o credor entregará ao devedor a importância que sobejar, considerando-se nela compreendido o valor da indenização de benfeitorias, depois de deduzidos os valores da dívida e das despesas e encargos de que tratam os §§ 2º e 3º, fato esse que importará em recíproca quitação, não se aplicando o disposto na parte final do art. 516 do Código Civil.
§ 5º Se, no segundo leilão, o maior lance oferecido não for igual ou superior ao valor referido no § 2º, considerar-se-á extinta a dívida e exonerado o credor da obrigação de que trata o § 4º.
§ 6º Na hipótese de que trata o parágrafo anterior, o credor, no prazo de cinco dias a contar da data do segundo leilão, dará ao devedor quitação da dívida, mediante termo próprio.
§ 7o Se o imóvel estiver locado, a locação poderá ser denunciada com o prazo de trinta dias para desocupação, salvo se tiver havido aquiescência por escrito do fiduciário, devendo a denúncia ser realizada no prazo de noventa dias a contar da data da consolidação da propriedade no fiduciário, devendo essa condição constar expressamente em cláusula contratual específica, destacando-se das demais por sua apresentação gráfica. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)
§ 8o Responde o fiduciante pelo pagamento dos impostos, taxas, contribuições condominiais e quaisquer outros encargos que recaiam ou venham a recair sobre o imóvel, cuja posse tenha sido transferida para o fiduciário, nos termos deste artigo, até a data em que o fiduciário vier a ser imitido na posse. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)”
A proibição do pacto comissório é corroborada, também, pelo art. 1.428 (outrora presente no art. 765 do CC de 1.916) do Código Civil, pois consoante texto expresso do artigo 1.428 do novo Código Civil é “nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício, anticrético ou hipotecário a ficar com o objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento”.
Desse modo, o ordenamento normativo pátrio, em especial, o Código Civil veda o preceito a cláusula comissória, também denominada lex comissoria ou pacto comissório.
Na lição do saudoso Clóvis Beviláqua[3] aquela consiste na estipulação de que o credor ficará com a coisa dada em garantia real, se a dívida não for paga no vencimento (Direito das Coisas, v. II, p. 40).
Pois bem, em apertada síntese, uma vez constatada a inadimplência do devedor, o credor poderá recuperar a propriedade direta (posse) do bem, mas com o encargo de vendê-lo para, com o produto da venda, satisfazer o seu crédito.
3. Bens imóveis da união
3.1. Enfiteuse ou aforamento
O Decreto-Lei n. 9.760/1946 cuida dos denominados terrenos de marinha, apresentando os diversos regimes a que estão submetidos os bens imóveis da União, merecendo especial atenção, para o desenvolvimento do nosso tema, o regime enfitêutico e de ocupação.
A enfiteuse está prevista nos artigos 99 a 124, sendo que a enfiteuse (ou aforamento) é um direito ad perpetuam em bem de outrem, para uso, gozo e, também, poder de disposição do bem.
No aforamento o domínio do bem imóvel é desdobrado em dois: o domínio pleno pertence à União e o foreiro é titular do domínio útil.
Toda vez que o foreiro pretende alienar, transferir ou promete transferir onerosamente o domínio útil sobre o imóvel a União cobra o laudêmio, um valor a ser pago pela manutenção do desdobramento do domínio (em útil e pleno). Isso porque o domínio pleno do imóvel a ela pertence, e cada vez que o foreiro transfere, ou promete transferir, onerosamente o domínio útil sobre o imóvel, a União está, em outras palavras, abrindo mão de fundir os dois domínios (útil e pleno), permitindo que o foreiro continue apenas com o domínio útil do imóvel.
Por isso diz-se que o laudêmio é a contraprestação, prevista em lei, para a não consolidação, não fusão de domínios (útil e pleno), no direito real de enfiteuse.
3.2. Regime de ocupação
Por outro lado, existem bens imóveis da União que está sob o regime de ocupação. O instituto da ocupação terá como característica sua natureza precária, de mera tolerância. Esse entendimento se depreende dos ditames do art. 7º, da Lei nº 9.636/1997, que dispõe in litteiris:
“Art. 7 A inscrição de ocupação, a cargo da Secretaria do Patrimônio da União, é ato administrativo precário, resolúvel a qualquer tempo, que pressupõe o efetivo aproveitamento do terreno pelo ocupante, nos termos do regulamento, outorgada pela administração depois de analisada a conveniência e oportunidade, e gera obrigação de pagamento anual da taxa de ocupação.” (grifou-se, negritou-se)
Saliente-se que a precariedade do regime de ocupação resta evidenciada pela legislação que trata sobre o tema. Verbi gratia, o art. 10 da lei supracitada consigna que: constatada a existência de posses ou ocupações em desacordo com o disposto nesta Lei, a União deverá imitir-se sumariamente na posse do imóvel, cancelando-se as inscrições eventualmente realizadas (…).
Assim, a existência de regime de ocupação em desacordo com a legislação que rege o tema, por ser, repita-se, mera tolerância da União para com o ocupante de imóvel de sua propriedade, pode ser desconstituído a qualquer tempo.
Corrobora a precariedade e mera detenção pelo ocupante, os ditames do art. 132 do Decreto-Lei nº 9.760/1946 dispõe que:
“Art. 132. A União poderá, em qualquer tempo que necessitar do terreno, imitir-se na posse do mesmo, promovendo sumariamente a sua desocupação, observados os prazos fixados no § 3º, do art. 89.
§ 1º As benfeitorias existentes no terreno somente serão indenizadas, pela importância arbitrada pelo S.P.U., se por êste fôr julgada de boa fé a ocupação.
§ 2º Do julgamento proferido na forma do parágrafo anterior, cabe recurso para o C.T.U., no prazo de 30 (trinta) dias da ciência dada ao ocupante.
§ 3º O preço das benfeitorias será depositado em Juizo pelo S.P.U., desde que a parte interessada não se proponha a recebê-lo.”
Com efeito, a União poderá, a qualquer tempo que necessitar do terreno, imitir-se na posse do mesmo, promovendo sumariamente a sua desocupação, observados os prazos fixados no § 3º, do art. 89, do Decreto-Lei n. 9.760/1946. Tudo isso serve para evidenciar o caráter precário da ocupação.
Avançando-se sobre o tema do regime de ocupação de bens imóveis da União, não obstante a Orientação Normativa-GEARP-005 da Secretaria do Patrimônio da União — cancelamento de inscrição de ocupação e reintegração de posse de imóveis da União — fazer referência à posse, inclusive no bojo do seu título, essa inexiste. O ocupante é mero detentor, e o proprietário apenas tolera sua permanência no bem imóvel.
4. Incompatibilidade entre a alienação fiduciária de bem imóvel e o regime de ocupação
Há incompatibilidade entre os bens imóveis em regime de ocupação e a alienação fiduciária em garantia de bem imóvel, eis que esse regime apenas concede a detenção, estando ausente o poder de alienação (disposição) sobre o bem, como ocorre no regime de aforamento (enfitêutico).
Como o ocupante é mero detentor, ele não detém poder de disposição sobre o imóvel, por óbvio, não poderá dar em garantia ou vendê-lo. A União apenas tolera a utilização de imóvel de sua propriedade. Logo, se o devedor fiduciante não pagar o seu débito e for constituído em mora, a instituição financeira credora não poderá levar o bem à hasta pública.
Reforce-se, ainda, que se veda o denominado pacto comissório na alienação fiduciária em garantia, ou seja, o credor fiduciante não pode arrogar-se no bem dado em garantia, quando em mora o devedor fiduciante, pois é obrigatória a alienação do bem com a finalidade de se recuperar o valor do quantum devido.
Por conseguinte, é absoluta a incompatibilidade do regime de ocupação com aquele instituto, visto que na ocupação o particular é mero detentor do bem imóvel (o domínio é da União), restando impossibilitada a venda do bem em hasta pública para restauração dos valores pelo credor fiduciante.
A alienação fiduciária em garantia sob imóvel da União, em regime de ocupação, é portanto um negócio jurídico cujo objeto é impossível. Sendo o objeto impossível, esse negócio é nulo, conforme preceitua o art. 166, do Código Civil. Eventual declaração de nulidade desse negócio, como é sabido, tem efeitos retroativos para se restaurar as coisas ao estado original.
De esclarecer, por oportuno, que o negócio em fraude à lei tem dois requisitos cumulativos:[4]
i) existência de norma imperativa no ordenamento jurídico, necessariamente incidente quando presente determinada situação jurídica;
ii) a realização de negócio jurídico suscetível de produzir, por meio indireto, exatamente o resultado previsto como indesejado pela norma jurídica imperativa, ou que seja atingido resultado a ele equivalente.
5. Conclusão
Em síntese, diante das considerações apresentadas, há incompatibilidade jurídica e mesmo fática entre os institutos da alienação fiduciária em garantia de bens imóveis e o regime de ocupação de bens imóveis da União.
Portanto, as instituições financeiras antes da celebração de negócios jurídicos que envolvam bens imóveis, devem verificar, previamente, se é o bem imóvel da União e, em especial, em regime de ocupação, pois tal avença será nula e ineficaz.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Francisco José de Andrade Pereira
Advogado da União. Coordenador – Geral da Consultoria Jurídica da União no Estado de Sergipe. Especialista em Direito Tributário pela Fundação Faculdade de Direito – Universidade Federal da Bahia – (UFBA).