Resumo: A preocupação com o meio ambiente deixou de ser um tema ligado unicamente aos ecologistas, passando a ser um assunto importante dentro da agenda política dos países. Paralelo a isso, uma cobrança mais efetiva do uso eficiente da terra foi ocorrendo. Assim, a terra ao adquirir esta importância, fez os congressistas perceberem que deveriam impor limites à utilização desenfreada dos recursos naturais bem com estabelecer formas de acesso a terra àqueles que quisessem dali gerar riquezas. Fatalmente, ao estabelecer obstáculos ou impor restrições, macularam um dos princípios mais polêmicos do direito, qual seja, o direito de propriedade.Este artigo foi orientado pelo Prof. Wank Remy de Sena Medrado.
Palavras-chaves: Manejo – Reforma Agrária – Limitações – Restrições – Direito de Propriedade.
Abstract: Concern for the environment is no longer a subject related only to ecologists, becoming an important issue within the political agenda of countries. Parallel to this, a collection of the most effective efficient use of land was taking place. Thus, the importance of acquiring this land, did they realize that lawmakers should impose limits on the unrestrained use of natural resources and to establish ways of access to land away to those who wanted to create wealth. Fatally, by establishing restrictions or obstacles, a tarnished most controversial of the principles of law, namely property rights.
Keywords: Management – Land Reform – Limitations – Restrictions – Property Rights.
Sumário: 1. Introdução. 2. Direito de propriedade – evolução histórica e aspectos gerais. 3. Evolução do direito de propriedade no Brasil. 4. Manejo do solo. 5. Limitações ao manejo da terra em âmbito constitucional. 6. Restrições de manejo advindas do estatuto da terra. 7. Restrições de manejo advindas do código florestal – Lei nº 4.771/65. 8. Considerações finais. Referências bibliográficas.
1. Introdução
Nas primeiras décadas do século passado, o homem estava passando por um forte e acelerado movimento de avanço tecnológico. Máquinas eram projetadas, novas substâncias ou medicamentos eram desenvolvidos, novos hábitos eram adquiridos pela população. Podia-se dizer que essa época era mais um estágio dentro do processo iniciado com 1ª Revolução Industrial na Inglaterra.
Considerando que essas evoluções tecnológicas ainda não impactavam a natureza da mesma proporção que atualmente, seja pela menor quantidade de indivíduos que povoavam o globo – considerando que o conjunto de pessoas que tinham condições de consumo era muito diminuto – seja pela pouca quantidade de máquinas, a defesa do meio ambiente não era uma causa tão defendida por muitos.
Com o passar do tempo, foi-se percebendo, a existência de uma relação de causa e efeito entre certos desastres que iam ocorrendo – por exemplo, diminuição considerável no número de peixes de determinado lago; impossibilidade de travessia de certos rios por causa do assoreamento – com fatos que poderiam ser imputados ao homem – despejo de resíduos químicos diretamente em lagos, sem o devido processo de tratamento; corte das matas ciliares ao longo do rio – o que levou a um número maior de pessoas refletirem sobre as questões ambientais, mais especificamente quais seriam os limites ou parâmetros toleráveis a certos comportamentos.
Outrossim certas atitudes ou situações na seara agrária, desencadearam fortes conflitos no campo, gerando um grau de temor na sociedade.
Como não poderia deixar de ser, pelo menos aqui no Brasil, se determinada ação que antes era autorizada ou tolerada, passa a figurar entre o rol de práticas defesas, as leis precisam ser adaptadas ante o princípio da legalidade, pois ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (inciso II, do art. 5º da CF/88).
2. Direito de propriedade – evolução histórica e aspectos gerais
Ao longo dos seus estudos, BOBBIO[1] explica que o entendimento que se tem de um determinado direito está intimamente ligado com uma série de aspectos, quais sejam, o social, o político e o jurídico de uma sociedade em certa época.
O direito de propriedade, como não poderia deixar de ser, igualmente está sujeito a estas considerações, tendo sua interpretação alterada por esses fatores definidores acima relatados.
Para poder explicitar melhor está idéia, deve-se demonstrar qual era o entendimento do direito de propriedade em dois grandes momentos históricos: durante o período do Império Romano e durante a Revolução Francesa.
Na época de Roma, como afirma SOARES[2]:
“Primeiramente, a Propriedade romana é considerada como direito absoluto, por ser oponível erga omnes, mas não se configura como um direito ilimitado, pois sofria limitações referentes ao Interesse Público e ao Interesse Privado dos vizinhos”.
Já nos ideais da Revolução Francesa, influenciado pelo liberalismo, os direitos individuais deviam se sobrepor sobre os direitos do Estado – possibilidade de desapropriação, requisição etc. -, porque, nos dizeres de BOBBIO[3]:
“Primeiro vem o indivíduo (o indivíduo singular, deve-se observar), que tem valor em si mesmo, e depois vem o Estado, e não vice-versa, já que o Estado é feito pelo indivíduo e este não é feito pelo Estado”.
Percebe-se aqui que a concepção de direito de propriedade dos romanos, mesmo sendo bem longínqua, continua a influenciar consideravelmente o entendimento que se tem, nos dias atuais, sobre domínio, mais do que o ultrapassado posicionamento dos liberais que não advogavam da concepção de que os interesses públicos ou coletivos se sobrepujam ao direito individual.
3. Evolução do direito de propriedade no Brasil
Para se ter uma idéia da evolução do direito de propriedade no Brasil, saindo de uma visão altamente individualista para uma que considere os princípios da função social, urge comparar a forma como os parlamentares legislaram no antigo Código Civil de 1916 e no novel codex de 2002.
Estipula o antigo código civil brasileiro:
“Art. 524. A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua.
Parágrafo único. A propriedade literária, científica e artística será regulada conforme as disposições do Capítulo VI deste Título.
Art. 525. É plena a propriedade, quando todos os seus direitos elementares se acham reunidos no do proprietário; limitada, quando tem ônus real, ou é resolúvel.”
Claramente se observa da leitura destes dois artigos uma forte preocupação do legislador em garantir o direito de propriedade. Basicamente, não havendo restrições no seu gozo.
Não é sem razão que o Código Civil de 1916 era classificado como extremamente individualista ou liberal.
Em forte contrapartida, totalmente influenciado pela nova ordem que se iniciava na nação com a Carta Magna de 1988, mais especificamente o inciso XXIII do art. 5º, o novel código já limita de uma forma mais ampla o direito de propriedade, como se observa:
“Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. (…)
§ 3o O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.
§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.“ (grifos nossos).
Chega a ser flagrante a substancial diferença existente entre os dois códigos. A norma de 2002 estipula uma série de requisitos para que a propriedade se adeque aos ditames da lei. Condições estas elencadas majoritariamente no §1º.
Sabe-se agora que não cumprida a sua função social, a propriedade estará a margem de sofrer restrições no seu direito.
A título complementar, oportuno consignar a visão de certos doutrinadores de ponderar a função social não somente com um limitador do direito, mas como uma faculdade e imposição ao proprietário, como bem observa o eminente COMPARATO[4]:
“Função social da propriedade não se indicam as restrições ao uso e gozo dos bens próprios. Estas últimas são negativas ao direito do proprietário. Mas a noção da função, no sentido em que é empregado o termo nessa matéria, significa um poder, mais especificamente, o poder de dar ao objeto da propriedade destino determinado, de vinculá-lo a certo objetivo. O adjetivo social mostra que esse objetivo corresponde ao interesse coletivo do próprio dominus, o que não significa que não possa haver harmonização entre um e outro. Mas, de qualquer modo, se está diante de um interesse coletivo, essa função social da propriedade corresponde a um poder-dever do proprietário, sancionável pela ordem jurídica”.
4. Manejo do solo
Ao consultar o significado do termo manejo, no Dicionário Aulete[5], encontramos várias acepções, quais sejam: ação ou resultado de manejar, chefia, administração, mas o que melhor se encaixa para os fins desse trabalho é o de prática e uso para os fins do trabalho.
Como é sabido, para que o uso da terra esteja condizente com o regramento jurídico pátrio é preciso que a propriedade atenda os requisitos da função social.
Para sabermos quais são estes requisitos, urge analisar os principais dispositivos normativos que tratam da matéria.
5. Limitações ao manejo da terra em âmbito constitucional
Ao se iniciar qualquer estudo sobre o uso da terra, um dos caminhos introdutórios do assunto é comentar sobre os tão conhecidos incisos XXII e XXIII do art. 5º da CF/88 que dizem:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito… à propriedade, nos termos seguintes: (…)
XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;”
Ao se interpretar estes dispositivos se deduz que só estará assegurado o domínio de uma propriedade se ela cumprir a função social.
O próprio texto constitucional tenta indicar, ao longo do art. 186, quais são os parâmetros a serem utilizados na verificação da função social, sendo estes o aproveitamento racional e adequado da terra; a utilização apropriada dos recursos naturais disponíveis, considerando a preservação do meio ambiente; as regularizações do trabalho e assuntos do bem-estar dos proprietários e trabalhadores.
Deixando a parte os aspectos trabalhistas e securitários do empregador e empregados, a Carta Ápice mostra que a terra deverá ser utilizada de forma proveitosa, a gerar renda a sociedade de uma forma geral, mas que ela deverá ser gerida a fim de preservar o meio ambiente.
No que tange ao meio ambiente propriamente dito, a CF/88 reservou um capítulo específico sobre o tema, no caso, o capítulo VI, englobando o art. 225.
6. Restrições de manejo advindas do estatuto da terra
Fruto de uma longa luta histórica, a questão da reforma agrária, através de seus princípios norteadores, também limita e impõe restrições ao uso da terra.
Embasados pelo texto constitucional e pelo Estatuto da Terra – Lei nº 4.504/64 – o proprietário rural terá, em outras palavras, que fazer com que a sua terra seja produtiva, gere riquezas.
Se não pode aplicar o raciocínio de que sendo a terra minha, dou a ela destinação que quiser, ou se quiser até destinação não dou.
Como reza o caput do art. 2º do instrumento legal em comento, só terá direito ao acesso a propriedade quem atender a função social.
“Art. 2° É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.”
Em complementação ao Estatuto da Terra, tem-se a Lei nº 8.629/93 que regula todo o processo desapropriatório para a reforma agrária, estabelecendo, a depender da localização e natureza do terreno índices de produtividades a serem cumpridos, a fim de a terra não seja inserida dentro do leque de propriedades suscetíveis à desapropriação.
7. Restrições de manejo advindas do código florestal – Lei nº 4.771/65
Ao se ler o Código Florestal – Lei nº 4.771/65 – nota-se de forma límpida a preocupação do legislador em atingir as seguintes finalidades: a) preservar as áreas cuja vegetação seja considerada importante para o ecossistema; b) recuperar as áreas indevidamente desmatadas ao longo dos anos.
Tendo em vista o primeiro objetivo, preservar as áreas essenciais de vegetação, primeiro, ele definiu-as com os seguintes conceitos:
“I – área de preservação permanente: área protegida nos termos dos arts. 2o e 3o desta Lei, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.
III – Reserva Legal: área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas”. (grifo nossos).
Após tê-los definido, o legislador impôs algumas restrições de seu manejo, com se pode depreender da conjugação do §1º do art. 3º e do caput do art. 4º, pois qualquer supressão de florestas de preservação permanente só será admitida com prévia autorização do Poder Executivo Federal, quando for necessária à execução de obras, planos, atividades ou projetos de utilidade pública ou interesse social, desde que inexista alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto.
Descumprindo o indivíduo o seu dever de preservar as áreas restritas para manejo, o legislador criminalizou estas práticas, como se pode auferir pelo art. 38 da Lei 9.605/98:
“Art. 38. Destruir ou danificar floresta considerada de preservação permanente, mesmo que em formação, ou utilizá-la com infringência das normas de proteção:
Pena – detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.
Parágrafo único. Se o crime for culposo, a pena será reduzida à metade.”
Quanto a outra grande proposta do legislador em promover a recuperação das matas e florestas, o Estado, se valendo das prerrogativas do poder de polícia, se deu o direito de executar obras de reflorestamento dentro da propriedade alheia, mesmo não tendo havido qualquer transferência de domínio entre o ente público e o particular, quando este deixar de cumprir suas obrigações, como se pode depreender da leitura do art. 18 do instrumento normativo em comento:
“Art. 18. Nas terras de propriedade privada, onde seja necessário o florestamento ou o reflorestamento de preservação permanente, o Poder Público Federal poderá fazê-lo sem desapropriá-las, se não o fizer o proprietário. “
Para não deixar lacunas, oportuno consignar o entendimento do ilustre doutrinador MEIRELLES[6] sobre o poder de polícia:
“a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado”.
Da mesma forma que o ser que danificar uma área de preservação permanente pode ser responsabilizado na esfera penal por causa da Lei de Crimes Ambientais, o mesmo risco corre quem macula área em regeneração localizada na Mata Atlântica:
“Art. 38-A. Destruir ou danificar vegetação primária ou secundária, em estágio avançado ou médio de regeneração, do Bioma Mata Atlântica, ou utilizá-la com infringência das normas de proteção:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.
Parágrafo único. Se o crime for culposo, a pena será reduzida à metade”
8. Considerações finais
Conclui-se com ao final deste estudo que não há como se pensar no manejo do solo sem considerar todas as restrições ou limitações existentes no direito de propriedade.
Esse direito de propriedade, suscetível de transformações ou novas interpretações a partir dos vários contextos sociais, foi se amoldando aos grandes temas em debate ao longo do globo, quais sejam: a preservação do meio ambiente e o direito a terra aos que querem produzir.
Percebe-se que o Brasil, antenado com essa problemática, até pelas suas próprias características – detentor de uma fauna e uma flora riquíssimos, bem com foco de conflitos agrários – editou várias normas sobre o assunto, devendo, contudo, concretiza-las.
Informações Sobre o Autor
Gizelle Pimentel de Souza
Acadêmica de Direito da Universidade do Estado da Bahia – UNEB Campus III – Juazeiro-BA