Resumo: O presente artigo aborda a relação entre o Orçamento e a efetivação dos direitos fundamentais garantidos na Constituição Federal, e de que forma o orçamento pode servir de uma importante ferramenta política e jurídica nesse sentido. Este artigo foi orientado pelo professor Ricardo Barreto de Andrade.
Abstract: This article is about the relationship between the Budget and the realization of the fundamental rights guaranteed by the Federal Constitution, and in what way can the budget serve as an important political and legal tool in this sense.
Sumário: 1. Introdução. 2. Orçamento. 3. Execução do Orçamento Público. 4. Mínimo existencial e prestações públicas. 5. Considerações Finais. Referências bibliográficas.
1. Introdução
O constitucionalismo brasileiro nos últimos anos vem dando destaque redobradoàs possibilidades de eficácia dos direitos fundamentais garantidos na Constituição de 1988, denominada apropriadamente de Constituição Cidadã. O presente artigo pretende encarar as diversas possibilidades de eficácia e aplicação dos direitos fundamentais (compreendidos aqui de maneira ampla) em relação com o orçamento e com o direito financeiro como um todo.
Diante do esquadro gritante de contradição entre as previsões programáticas da Constituição de 1988 para os direitos fundamentais de cada cidadão e a realidade pragmática de prestação estatal, temos a necessidade óbvia de criação de propostas e possibilidades jurídicas que nos ajudem a melhor compreender como se dá esse abismo e de que forma ele pode ser progressivamente superado.
Não é possível conceber o Estado moderno e suas atribuições complexas perante a sociedade sem um robusto e autônomo estudo das finanças estatais. As atividades financeiras do Estado estão inteiramente misturadas às realizações de seus serviços públicos. Segundo Carlos Valder do Nascimento,
“pode-se concluir que o Direito Financeiro é o conjunto sistemático de princípios e normas que regula a atividade financeira do Estado; no tocante aos seus orgãos executores e aos meios de obtenção de receitas. Assim, o conteúdo de suas relações jurídicas que engloba as finanças públicas, insere-se no campo do direito público. Cuida da disciplina do processo de financiamento das despesas efetivadas em função dos encargos cometidos aos órgãos públicos.”[1]
A parte que mais nos interessa no nosso recorte seria referente ao orçamento e ao planejamento financeiro do Estado. Mais especificamente, falaremos das relações entre essas atividades estatais e a efetivação dos direitos fundamentais previstos constitucionalmente.
O Brasil presenciou recentemente uma tendência de judicialização de demandas por políticas públicas e econômicas. A demanda pelo fornecimento público de medicamentos no Supremo Tribunal Federal é provavelmente a ramificação mais notável e estudada desse fenômeno, mas não é a única[2]. Também não é novidade a elaboração e disseminação desoluções jurídica dessas situações (notavelmente, a popularização da chamada “reserva do possível”). Por entender que esse tema já recebe atenção suficiente, nosso enfoque não recairá inteiramente sobre ele, embora se aproxime, em alguns momentos.
Os direitos fundamentais se dividem tradicionalmente em três ondas, ou gerações. Os primeiros seriam aqueles direitos fundamentais ligados historicamente ao liberalismo, e à uma suposta omissão por parte do Estado (direitos de liberdade e de propriedade, por exemplo), os segundos seriam direitos sociais, direitos de prestação estatal que garantisse as condições materiais para a efetivação daqueles direitos de primeira ordem[3]. É principalmente desses direitos sociais prestacionais de segunda geração que trataremos. Segundo Georges Basile, no entanto, para o direito financeiro não deveria haver esse tipo de diferenciação, já que o orçamento sempre deverá tratar de ações positivas, e nunca de omissões estatais. Além disso, a garantia de direitos de primeira e terceira geração precisam igualmente de atenção orçamentária, já que para garantir o direito à liberdade e à propriedade temos instituições estatais com recursos apropriadamente alocados[4].Ele não é o primeiro a chamar atenção para este fato.
Embora tenhamos verificado melhorias significativas nas últimas décadas, é indiscutível que o Brasil tem índices sociais assustadores, com uma porção substanciosa de sua população vivendo com condições materiais abaixodaquelas que podemos considerar razoáveis para a manutenção uma vida digna. No entanto, é simplista demais dizer simplesmente que isso ocorre porque não há dinheiro o suficiente para realizar os serviços públicos necessários para solucionar todos os problemas. De fato, os montantes reservados para gastos sociais significam muitas vezes uma percentagem bem significativa dos gastos públicos, sem que isso se traduza na efetivação de direitos fundamentais mínimos para a população, no entanto. Muito disso se explica pela má qualidade do gasto público, mas esta explicação tampouco serviria de maneira absoluta e inteiramente satisfatória.
Já que não é possível conceber a atividade estatal sem a sua atividade financeira, a compreensão do fenômeno orçamentário em toda sua complexidade serve de interessante e crucial índex para a compreensão de algumas das insuficiências das prestações públicas à população. O Estado é um fato social de tanta complexidade que precisa ser compreendido em todas suas esferas se pretendemos dar às suas instituições práticas a sua maior adequação política possível, e a atividade financeira não pode continuar sendo vista como uma manifestação secundária e obscuramente técnica, incapaz de participar de instrumentalizações políticas relevantes.
2. Orçamento
Dentro da discussão da efetivação dos direitos sociais, a relevância do debate orçamentário é polêmico. Muitos duvidam de sua capacidade política instrumental efetiva, o que se reflete na relativa pouca discussão pública a seu respeito.
Pelo tratamento que o processo orçamentário recebe na Constituição Federal, podemos ver a importância que lhe é reservada. Ela determina um encadeamento lógico e sistemático ao planejamento da ação governamental. Altamente centralizado e integrado na sua concepção formal, esse processo compreende a definição do Plano Plurianual (PPA), da lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e da Lei Orçamentária Anual. O planejamento que se vê expresso através do PPA contém as ações futuras do governo, a estrutura da instrumentalização de seus recursos com determinados objetivos constitucionalmente definidos. Os planos e os programas de cada área do governo são elaborados de acordo com o plano plurianual vigente. Isso já explicita o caráter eminentemente político desse processo. José Matias-Pereira cita Gaston Jèze no sentido de que:“O orçamento é essencialmente um ato político. É um plano de ação.”[5]
Celso de Barros Correia Neto concebe uma maneira interessante de descrever o processo orçamentário e seu caráter jurídico, partindo do conceito-chave jurídico da aplicação-criação do direito positivo partir do nível mais geral e abstrato até o mais individual e concreto:[6]
“A mesma imagem também serve para ilustrar o processo de desenvolvimento da atividade financeira do Estado, que vem desde o estabelecimento das finalidades estatais mais gerais até a mais concreta efetivação do gasto. Chamaremos este caminho de “processo de positivação gasto público”, usando esta expressão na sua acepção mais ampla. A atividade financeira, focada especialmente sobre a vertente do gasto público, é tomada como uma sucessão de meios e metas, partindo dos níveis mais genéricos e abstratos até os individuais e concretos. Nesse sentido amplo, a atividade financeira estatal começa na Constituição Federal: a primeira e mais genérica previsão objetivos a serem perseguidos na atuação estatal. Toda e qualquer referência às tarefas estatais ou mais especialmente àquelas que, em princípio, impliquem dispêndio de receitas públicas estão compreendidas na atividade financeira do Estado, em sentido amplo.”
Além dos três níveis legislativos já mencionados, a dotação que ocorre com a Lei Orçamentária Anual ainda resulta em três níveis de sucessão normativa até a realização do gasto: empenho, liquidação e pagamento.Toda essa complexidade (que pode ser visualizada na forma de uma pirâmide progressivamente específica e concreta) denuncia a origem da concepção orçamentária estatal: controle. Coerentemente com a concepção do estado moderno se rechear de instrumentos que certifiquem a idoneidade de suas instituições e o uso adequado de seus recursos, o orçamento partilha dessa necessidade de se determinar sistematicamente a forma do gasto público, de forma que ele se dê da forma mais adequada possível. A princípio, esse formalismo não penetra tanto no conteúdo do gasto, nas decisões políticas que o plasmam.
Como o processo orçamentário está envolto por circunstâncias altamente técnicas, uma linguagem e um caráter procedimental que dificultam a sua compreensão efetiva pelos meios de comunicação em massa e pela população em geral, ele acaba não aparecendo no debate político de grande escala com a evidência que merece. Como se fosse um debate reservado a técnicos iniciados, do qual a população não pode fazer parte. Por isso mesmo, são importantes medidas que ajudem a tornar o processo mais transparente e compreensível, de forma que processo tenha um feedback da própria sociedade. Claro que boa parte das discussões orçamentárias acontece num nível técnico altamente complexo, mas as escolhas e hierarquias que o estruturam e determinam partem de escolhas políticas que precisam ser explicitadas e debatidas plenamente, e não mantidas exclusivamente nos bastidores.
Afinal de contas, o tripé do processo orçamentário de planejamento, gerência e controle é um tripé de controle democrático. É um instrumento de auto-avaliação constante do Estado que o permite determinar suas prioridades e verificar viabilidades práticas. Apenas uma concepção de poder político e Estado altamente conservadora que implica numa exclusão da sociedade civil desse debate.
Para Hadad, o planejamento governamental precisa ser aberto para a sociedade, e sua negociação precisa assumir o conflito e reconhecer neles:
“a própria seiva da experiência e dos compromissos democráticos. As lutas, os conflitos, os dissídios, as dissidências são as formas pelas quais a liberdade se converte em liberdades públicas, em liberdades concretas. Assim, o compromisso democrático impõe a todas as etapas do processo de planejamento o fortalecimento de estruturas participativas e a negação dos procedimentos autoritários que inibem a criatividade e o espírito crítico.”[7]
Nesse sentido, temos no Brasil a questão emblemática do Orçamento Participativo, um mecanismo de gestão democrática de inclusão da sociedade civil no processo orçamentário (geralmente em menor escala, como a municipal). As metodologias são várias, mas o princípio é basicamente o da participação de delegados da população no estabelecimento de prioridades e metas da peça orçamentária municipal. Essa tendência está ligada, é claro, a determinados movimentos políticos e concepções de participação política que não dependam inteiramente da atuação Estatal como único âmbito tecnicamente competente e legítimo para tomar as decisões necessárias para o bem comum. É certamente interessante a perspectiva de se tornar mais pública e democrática a discussão orçamentária, embora diversas críticas seja suscitadas em relação à legitimidade e representatividade dessa participação (muitas vezes restrita a determinados grupos políticos pré-estabelecidos). Mas é difícil compreender de que maneira a experiência comunitária e reduzida do orçamento participativo tradicional poderia ser expandida para o âmbito nacional e federal[8].
O orçamento público, depois de aprovado pelo Poder Legislativo, transforma-se em lei, cabendo ao governo prestar contas à sociedade do que foi feito com os recursos utilizados, demonstrar que cumpriu as metas e os objetivos estabelecidos. Por tudo isso, José Matias-Pereira chega a afirmar de forma contundente que “o orçamento, depois da própria Constituição, apresenta-se como o ato mais importante da vida de uma nação.”[9]
Dentro do esquema maior de planejamento, o orçamento anual é o detalhamento de diretrizes de longo prazo. Mas como se dá a relação entre a empreitada constitucionalmente estabelecida de planejamento e controle financeiro e a necessidade de concretização de direitos sociais?
Ao elencar de maneira tão veemente os direitos fundamentais e sua necessária proteção estatal, a Constituição de 1988, de certa forma, explicita uma determinada hierarquia de valores e prioridades. No entanto, a Constituição não nos diz precisamente como efetivá-los, por mais programática que seja. A maneira de realizar esses valores (e direitos fundamentais) depende de uma concretização política gradual e altamente contingente. Esses atos concretos estatais sempre pressupõem um gasto. Nesse sentido, Basile Georges Christapoulosprocura derrubar a noção de que existe uma divisão entre um argumento jurídicos de direitos fundamentais e um argumento jurídico de interesse financeiro estatal. Robert Alexy sustenta que o primeiro podem ter mais peso do que o segundo[10]. Como se qualquer efetivação prática de direitos fundamentais fosse possível sem o direito financeiro e seu intermédio do aparelho estatal. Com essa mentalidade, se desconsidera o caráter político e instrumental do orçamento, da política fiscal e do planejamento estatal. Existe essa tendência imaginativa de se conceber um direito fundamental concretamente considerado como mais importante do que o interesse financeiro, secundário e abstrato, técnico. Mas um argumento jurídico de interesse financeiro estatal genuinamente forte não defende uma abstração formal e técnica, secundária, ele defende, em última instância, a capacidade prática do estado de efetivar suas políticas públicas planejadas.
Por esses, e outros motivos, a importância do processo orçamentário na efetivação dos direitos sociais precisa ser substanciada e discutida. O mesmo Basile Georges Christopoulos defende que “É necessária uma mudança de rumo para incluir a discussão orçamentária como principal meio para as finalidades da administração pública.”[11]
3. Execução do Orçamento Público
Sobre a execução do orçamento, César de Moraes Sabbag escreve que ela permanece:
“um processo obscuro e antidemocrático, no qual faltam controles, transparência, eficiência e sobram instrumentos e disposições legais para conferir mais poder decisório ao Presidente da República e a órgãos administrativos.”[12]
A execução orçamentária nos reserva a espinhosa questão da discricionariedade de execução dos recursos públicos já reservados para determinada atividade. O site contas abertas reporta que em 2007 menos da metade das despesas previstas para o fundo do sistema penitenciário não foram destinadas pelo governo federal. R$ 202 milhões de reais deixaram de ser aplicados, dinheiro o suficiente para construir oito presídios de segurança máxima com capacidade para 200 pessoas.[13] Nesse caso, é fácil perceber que se trata de falta de interesse político, já que estamos falando de um dos assuntos menos populares para os eleitores. Mas como justificar a possibilidade dessa escolha política depois de já determinadas as diretrizes do orçamento, principalmente num caso de ações estatais tão urgentes, tão claramente relacionadas a direitos fundamentais?
Para Ana Paula de Barcellos, as escolhas em matéria de gasto público não são simplesmente questão de deliberação política, decorrente de ponderação de prioridades e escassez de recursos. Elas recebem, também, incidência de normas constitucionais. Para garantir sua efetividade, ela recomenda que exista o acesso a informações reais sobre a aplicação de recursos públicos e a definição de conseqüências a serem atribuídas pelo descumprimento destas normas constitucionais, ou para impedir o efeito contrário, ou para dar efeito ao resultado desejado[14]. O problema é a mentalidade insistente de que o orçamento é livremente determinado pelo poder público, sem muitas amarras, sem tanta vinculação ao que foi votado por leis orçamentárias.
Carlos Maurício Figueiredo destaca que a preocupação no Brasil precisa se deslocar um pouco da arrecadação tributária para o modo de realização das despesas públicas. [15]
A discrepância entre os gastos orçados e realizados não se refere apenas ao volume total de despesas previsto para cada função, mas também à distribuição. O espaço considerável de liberdade e discrição reservado ao Poder Executivo na execução da política orçamentária decorre, segundo José Matias-Pereira, do caráter autorizativo da lei orçamentária anual, da ausência de controles sobre os pedidos de crédito adicionais, assim como da falta de instrumentos eficientes e capacidade técnicas que permitam ao Legislativo controlar e fiscalizar a execução orçamentária. Essa situação leva a uma falta de transparência que facilita a ineficiência, a falta de informações fidedignas sobre o desempenho de certas áreas do governo e até a corrupção. Matias-Pereira propõe que o espaço das CMO (comissões mistas de orçamento) seja ocupado pela sociedade, de modo que pequenos grupos de interesse bem preparados não se façam facilmente valer sobre interesses genuinamente públicos. A transparência é vital para o fortalecimento do processo orçamentário como instrumento democrático de planejamento estatal e efetivação de direitos fundamentais.
Também é importante notar o papel exagerado que mantém o Poder Executivo na política orçamentária, em sobreposição aos outros poderes republicanos. Talvez seja mais um elemento decorrente da tendência centralizadora observada na política brasileira. Os mecanismos mais utilizados nessa restrição e redirecionamento das despesas pelo Poder Executivo consistem no contingenciamento das dotações orçamentárias e retenção dos recursos financeiros do caixa do Tesouro, além da inscrição de consideráveis compromissos em Restos a Pagar (permanecendo por anos e às vezes inteiramente negligenciados).
Em meio a debates sobre qual seria o caráter específico de vigência da lei orçamentária, muita esperança é depositada na possibilidade de legislação do orçamento impositivo, embora a PEC apresentada em seu favor em 2000 está empacada na Câmara dos Deputados. Com a sua aprovação, o contingenciamento de gastos estabelecidos por lei no orçamento teria que ser submetido ao Congresso para aprovação, com razões técnicas ou jurídicas discriminadas. Na legislação americana existe figura semelhante à essa prevista, a da rescission.
4. Mínimo existencial e prestações públicas
A doutrina brasileira tem se debruçado nos últimos anos com muita atenção ao assunto dos direitos fundamentais e da medida jurídica de sua aplicação prática. Ingo Wolfgang Sarlet deu sua valorosa contribuição com o livro A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Para ele, os direitos sociais prestacionais tem certos limites de eficácia. Ele nos oferece essa conclusão que serve de bom índice:
“(…) Em todas as situações em que o argumento da reserva de competência do Legislativo (assim como da separação de poderes e demais objeções aos direitos sociais na condição de direitos subjetivos a prestações) esbarrar no valor maior da vida e da dignidade da pessoa humana, ou nas hipóteses em que, na análise dos bens constitucionais colidentes (fundamentais, ou não) resultar a prevalência do direito social prestacional, poder-se-á sustentar, na esteira de Alexy e Canotilho, que, na esfera de um padrão mínimo existencial, haverá como reconhecer um direito subjetivo definitivo a prestações, admitindo-se, onde tal mínimo é ultrapassando, tão somente um direito subjetivo prima facie, já que – nesta seara – não há como resolver a problemática em termos deu tudo ou nada.”[16]
Por mais que esse esclarecimento seja precioso, ainda temos diversas zonas de penumbra conceitual, até mesmo na concepção do que seria mínimo existencial. Segundo Lobo Torres, a prestação do chamado mínimo existencialnão se encontra sob a reserva do possível, diferentemente dos direitos sociais. Esses direitos fundamentais não se encontrariam sob o critério do poder público, estando compreendidos dentro de garantias institucionais da liberdade.[17]
Maior complicação advém da mistura entre mínimo existencial e direitos sociais, como no caso das prestações de saúde após as emendas constitucionais vinculantes (ex. EC 29/2000). Nesses casos, a decisão judicial deve obrigar a implementação de políticas públicas, e não adjudicar bens públicos individualizados. Mesmo que não prevaleça a reserva do possível sobre o direito ao mínimo existencial, o mesmo não acontece com o princípio da reserva do orçamento, segundo Lobo Torres. A omissão estatal cabe aos instrumentos orçamentários regulares, e não ao Judiciário, que no máximo pode determinar aos poderes políticos a prática procedimental cabível.
Outra complexa situação é a de prestações não autorizadas no orçamento. O STJ já garantiu pagamento de despesas de tratamento médico no exterior mediante a fixação de indenização a posteriori. O mandado de injunção americano, sem equivalente atual no direito brasileiro, permite ao Judiciário vincular o Legislativo na realização do orçamento do ano seguinte em relação a direitos fundamentais sociais.
Mas qual é a liberdade do legislador ao constituir o orçamento, em se tratando de quanto será repassado aos gastos sociais? A nossa Constituição já traz em si uma série de vinculações obrigatórias da receita às despesas sociais, verdadeiras garantias constitucionais de financiamento dos direitos sociais, ou “orçamento mínimo social”.
Nesse sentido, temos:
a) Saúde {Art. 198, § 2o e 3o c/c ADCTArt. 77 )
– 15% da receita de todos os impostos arrecadados pelos Municípios
-12% da receita de todos os impostos arrecadados pelos Estados
-Percentual a ser estabelecido por Lei Complementar (ainda em
-discussão) para a União
b) Educação {Art. 212)
-25% da receita de todos os impostos arrecadados por cada Estado,
-Distrito Federal e Município brasileiro
-18% da receita de todos os impostos da União
-100% da Contribuição para o Salário Educação
c) Erradicação da Pobreza (ADCT arts. 80 e 82)
Municípios -> 0,5% do ISS sobre serviços supérfluos
Estados e DF -> 2% do ICMS sobre produtos e serviços supérfluos
União -* 5% do IPI sobre produtos supérfluos + Imposto sobre
Grandes Fortunas
d) Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT {art. 239, § Io e 3o)
60% da arrecadação das contribuições para o PIS14/PASEP15
e) Seguridade Social {art. 195)
• 100% da Cofins
• 100% da CSLL
100% das Contribuições Previdenciárias
f) Meio Ambiente {art. 177, § 4°)
• 100% da CIDE18
Além disso, é importante notar que entidades cujas atividades são consideradas de cunho social recebem desonerações constitucionais, ou renúncias fiscais (art. 150, VI, CF). É o caso de instituições educacionais, entidades sindicais e de assistência social.
Dessa forma se estabelece o orçamento mínimo social. Claro que o legislador e o executivo mantém largo espaço de manobra e discrição do que vão realizar concretamente, mas os recursos já se encontram largamente discriminados constitucionalmente. Ou seja, além da determinação programática e principiológica de defesa dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, a Constituição também determina de maneira mais concreta a relação inicial entre orçamento e direitos sociais. Segundo Fernando Scaff, essa previsão seria uma peculiaridade do constitucionalismo brasileiro, permitindo a efetivação dessas fontes de financiamento independente de qualquer intervenção judicial, servindo a qualquer governo de garantia de recursos orçamentários mínimos[18]. Entre outras coisas, esse modelo é o que permite a adoção do Sistema Único de Saúde (SUS).
Mas além dessas previsões legais, muito se discute sobre a possibilidade de controle de formulação e aplicação das políticas públicas necessárias para a realização do bem estar social constitucionalmente previsto. Fala-se da limitação da discricionariedade do legislador e do administrador nesse sentido. Em recente monografia,[19]José Marcos Rezende Andrade fala que podemos compreender três níveis diferentes de controle, o político-eleitoral, o controle legal e o controle jurisdicional, esferas diferentes de possibilidades de vinculação do poder público.
5. Considerações Finais
Ubiratan Moreira Delgado nos oferece uma reflexão detida e bem formulada sobre parte do nosso tema:
“Não resta dúvida que todos os direitos demandam custos, e que nem sempre existe possibilidade real de bancá-los nos casos concretos. Nem por isso se deve dar razão à corrente de pensamento político e econômico que preconiza o fim dos direitos econômicos, sociais e culturais. A reserva do possível deve ser enquadrada nos lindes da razoabilidade e da proporcionalidade, nunca interpretada como uma barreira intransponível para a garantia de um mínimo de efetividade à dimensão prestacional dos direitos.
A escassez de recursos não justifica a negação pura e simples de prestações que garantam um mínimo existencial involucrado no próprio conteúdo jurídico do direito à vida, como, por exemplo, uma habitação modesta, o acesso à água e à alimentação, a educação básica, um patamar mínimo de assistência médica. Diante da fome e da miséria prementes, todos os demais gastos orçamentários passam a ser supérfluos e extravagantes, com um viés de inconstitucionalidade.
É preciso que se diga que o legislador e o administrador não têm liberdade total sobre a elaboração e a execução orçamentária. A discricionariedade da conformação dos gastos públicos deve ser exercida de modo a não anular o dever constitucional de garantir um mínimo de dignidade aos indivíduos desassistidos, um núcleo de prestações indispensáveis a uma vida digna. O princípio da competência orçamentária do legislador não é absoluto e não pode servir de mote à inexigibilidade judicial de uma prestação social mínima.”[20]
Claro que existem limites materiais claros à vontade de instrumentalização política do orçamento, e muitas vezes é necessário exercitar cautela e comedimento ao imaginar que a participação democrática ou a vinculação legislativa vão ser capazes de melhorar o direcionamento e a qualidade do gasto público a ponto de sanar as infinitas insuficiências do nosso país. O fenômeno estatal é de uma complexidade incrível, e estamos sempre apenas formulando aproximações e tentativas sobre como realizar suas responsabilidades perante a população. No entanto, não podemos deixar de enfatizar que apenas derrubando certas barreiras conceituais preguiçosas e dando ao direito financeiro o seu espaço devido na discussão política é que podemos esperar uma maturação democrática necessária para a concretização constitucional mais plena possível. Um debate de prestações públicas que não inclua debate orçamentário não tem como passar da ficção.
Informações Sobre o Autor
Vinícius Portella Castro
Acadêmico de Direito da Universidade de Brasília – UnB.