Uma das grandes evoluções no procedimento cautelar brasileiro pode ser atribuída ao § 3º. do artigo 282, CPP, com a nova redação dada pela Lei 12.403/11, vez que promove nada mais nada menos do que o efetivo ingresso do contraditório para a regular decisão acerca de cautelares, encerrando uma tradição em que somente se trabalhava com a hipótese de atuação judicial “inaudita altera pars”.
O dispositivo sob comento estabelece uma regra e uma exceção. A regra é que o Juiz, antes de decidir sobre um pedido de cautelar, deve disponibilizar ao sujeito passivo da medida a possibilidade de contra – argumentar, inclusive fornecendo-lhe cópia do requerimento ou representação e demais peças consideradas necessárias. Já a exceção refere-se aos casos de urgência ou perigo de ineficácia da medida. Essa exceção é salutar porque realmente há cautelares que não admitem a aplicação do contraditório prévio, o que, obviamente, não impede a disponibilização de um contraditório diferido, postergado ou posticipado. Por exemplo, num caso de busca e apreensão ou de interceptação telefônica ou mesmo de decreto de uma prisão provisória (temporária ou preventiva). Imagine-se haver um contraditório prévio! Seria algo que beira o ridículo! Avisar o investigado de que a Polícia pretende ir à sua casa ou escritório efetuar uma devassa e pedir sua opinião prévia? Informar o suspeito de que se pretende interceptar seus telefones? Avisar o indiciado de que foi representada ou requerida sua temporária? Ou de que foi representada ou requerida sua preventiva? Um sistema processual que exigisse esse contraditório seria realmente algo inusitado. Teria talvez o benefício de acabar com a corrupção no que tange à venda de informações sigilosas, já que as informações chegariam aos interessados pelo próprio sistema altamente ingênuo.
Conforme salienta Câmara, é natural que as medidas cautelares revelem urgência e perigo de ineficácia acaso comunicadas previamente ao indiciado ou acusado, podendo-se antever que a aplicação do dispositivo será um tanto quanto limitada, tendo em vista certos casos como os acima mencionados. No entanto, o estabelecimento do contraditório no procedimento cautelar processual penal é, sem dúvida alguma, necessário e bem vindo, inclusive tendo em mira o “alinhamento do Código de Processo Penal com a Convenção Americana dos Direitos Humanos, vigente no Brasil desde 1992”. Também o autor afirma que mesmo nas cautelares em que não seja possível o contraditório prévio, dever-se-á implantar o contraditório diferido, oportunizando ao sujeito passivo da medida manifestar-se acerca de seu cabimento e legalidade com assistência de advogado. A adoção do contraditório postergado em casos excepcionais (urgência e perigo de ineficácia da medida) nos termos do artigo 282, § 3º., CPP, se justifica em virtude “dos interesses do Estado no exercício do jus persecutionis, manifestando-se imprescindível a tutela cautelar e para que ela não perca o denominado efeito surpresa (às vezes necessário para atender a fins processuais)”. Nessas condições, portanto, mostra-se “razoável a adoção do denominado contraditório diferido”. [1]
Malgrado isso, fato é que a regra agora é o estabelecimento do contraditório prévio para o deferimento da medida.
Ocorre que a redação do texto foi deveras raquítica ao ponto de que se pode dizer que se por um lado houve um grande progresso no procedimento cautelar brasileiro, a regulamentação do procedimento para a efetivação desse contraditório ora incorporado foi muito aquém das expectativas.
Um primeiro aspecto diz respeito à dicção legal do proceder estabelecido ao Juiz quando recebe o pedido cautelar. Diz a lei que ele deve determinar “a intimação da parte contrária”. Mais uma vez o texto legal utiliza a palavra “parte”, pouco adequada para o Processo Penal e menos ainda para a situação ali enfocada onde existe, na verdade, tão somente um requerente de uma cautelar e o sujeito passivo potencial dessa medida acaso deferida judicialmente. Além disso, a lei é lacunosa quanto a esclarecer para que fim se faz esse intimação. Afinal a intimação se destina, como é de se concluir pela lógica (mas, não pela clareza legal), a chamar o sujeito passivo a juízo para contra – arrazoar o requerimento ou representação formulado? Esse parece ser o melhor entendimento, mas a lei não é clara, inclusive porque sequer estabelece um prazo para eventual manifestação defensiva. Então indaga-se: se, como parece, a intimação é para apresentação de uma defesa contra a adoção da cautelar pedida, qual prazo deverá ser aberto? Também a lei não faz menção, como deveria fazer, à necessidade de que essa defesa se dê por advogado constituído, dativo ou defensor público como corolário da ampla defesa no que tange ao aspecto da chamada defesa técnica. Seria de bom alvitre que o legislador houvesse mencionado isso, determinando que o Juiz, acaso a pessoa não apresentasse a defesa ou não tivesse advogado, deveria nomear um para elaborar as razões. Esse silêncio do legislador pode conduzir à interpretação, inadmissível num Estado de Direito que prima pelo contraditório, de que o silêncio do sujeito passivo da medida, não apresentando arrazoado ou não tendo advogado, pode funcionar como legitimação para que o Juiz decida sem a sua participação. Diante da esquálida dicção legal deve-se entender que: 1)Não sendo casos de urgência ou ineficácia da medida (exceções), o Juiz deve intimar o sujeito passivo da medida para ofertar defesa escrita; 2)Essa defesa deve ser elaborada por advogado constituído, nomeado ou dativo ou por Defensor Público em respeito à necessidade de “defesa técnica”; 3)Em caso de não manifestação do interessado ou de este não ter advogado, deverá o julgador nomear um profissional para esse fim, sob pena de nulidade da decisão futura acerca da cautelar por infração frontal ao Princípio do Contraditório ora abrigado pelo procedimento cautelar.
Sobre essa temática já se manifestou Luiz Flávio Gomes nos seguintes termos:
“O diploma legal comentado fala em ‘parte contrária’. Isso é criticável (s.m.j). Quem deve sempre (que possível) ser intimado é o indiciado ou acusado. O texto não foi claro quanto à forma da resposta do acusado ou indiciado (oral ou escrita). Sendo assim, nada impede que o juiz adote uma ou outra. Pode conferir um determinado prazo para resposta (escrita) ou marcar uma audiência para ouvir o acusado. O que compete ao juiz é garantir o contraditório e a ampla defesa”. [2]
Embora concordando com a crítica de Gomes à expressão “parte contrária” e com sua constatação da exigüidade textual a não definir a forma da resposta defensiva do indiciado ou acusado, é preciso deixar esclarecido que não é de se corroborar a conclusão do autor de que o Juiz poderá, em virtude da anemia do texto, optar por uma resposta escrita ou oral, reduzindo nesse segundo caso o exercício defensivo a uma simples audiência com oitiva do indiciado ou acusado em exercício praticamente isolado de autodefesa, ainda que assistido por advogado. A defesa plena somente pode perfazer-se com a satisfação de seus dois aspectos básicos (autodefesa e defesa técnica). [3] Ademais, entra em jogo a questão da igualdade processual ou da paridade de armas. Ora, quem elabora o requerimento ou representação pela cautelar é sempre alguém com formação técnica adequada (Ministério Público, Delegado de Polícia, Advogado do Querelante). Como poderia o imputado ficar à mercê desses operadores do Direito, sem a devida assistência de um defensor qualificado? Ainda que assistido por este, mas apenas apresentando uma resposta consistente em uma audiência oral, certamente haveria desequilíbrio na equação, na medida em que o pedido cautelar é, de regra, elaborado por escrito e, portanto, com tempo para reflexão mais acurada. Assim sendo, embora diante do silêncio da lei, entende-se que devem prevalecer os princípios constitucionais que regem a questão (contraditório, ampla defesa, igualdade processual, paridade de armas), os quais apontam para a necessidade da elaboração de uma defesa escrita e produzida por profissional do Direito.
Agora, quanto ao prazo para essa manifestação defensiva, nem o § 3º. do artigo 282, CPP, nem os artigos 798 a 800, CPP, são capazes de ofertar qualquer orientação razoável. Como já se disse, o artigo 282, § 3º., CPP, é silente. Já nos artigos 798 a 800, CPP, regulam-se os prazos no Processo Penal Brasileiro, mas ali se trata de contagem dos prazos, prazos dos cartorários, do Ministério Público, do Juiz para seus atos, sem, em qualquer momento, referir-se, por exemplo, a algum prazo geral para manifestação do réu ou investigado.
Considerando o abandono do intérprete à deriva quanto a esse tema outra opção não se apresenta senão a integração com o Processo Civil nos estritos termos do artigo 3º., CPP. Seria necessário encontrar um prazo razoável para a manifestação defensiva quanto aos pedidos de cautelares e esse prazo pode ser aquele previsto no artigo 802, CPC como prazo genérico para a resposta do requerido, qual seja, 5 (cinco) dias. [4]
Quanto à contagem desse prazo de cinco dias o próprio Código de Processo Penal pode ser aplicado, de forma que correrá em cartório e será contínuo e peremptório, não se interrompendo por férias, domingo ou feriado (artigo 798, “caput”, CPP). Como se trata de prazo processual e não penal, não se incluirá o dia do início, incluindo-se, contudo, o do vencimento (artigo 798, § 1º., CPP). Ainda na qualidade de prazo processual, quando terminar em domingo ou feriado, será prorrogado para o primeiro dia útil subsequente (artigo 798, § 2º., CPP). Também se pode dizer que correrá o prazo a partir da efetiva intimação do requerido ou do dia em que este se manifestar nos autos dando ciência inequívoca do pedido cautelar (artigo 798, § 5º., “a” e “c”, CPP).
Embora se possa utilizar o prazo previsto no artigo 802, CPC (cinco dias) na falta de manifestação do diploma Processual Penal, como já aventado acima, não se pode admitir que a passagem “in albis” do referido prazo signifique uma espécie de concordância ficta ou presumida do requerido e nem mesmo um exercício legítimo de seu direito constitucional ao silêncio. É que o direito ao silêncio, enquanto “direito” do imputado, não pode lhe tolher a ampla defesa e o contraditório. Ele não significa jamais um direito do imputado de abrir mão de seu direito à defesa. Ao reverso, constitui-se em um dos instrumentos de exercício legítimo desse direito de defesa (autodefesa). Pretende-se aqui deixar claramente consignado que outro dispositivo do Código de Processo Civil acerca das cautelares e contraditório é absolutamente inadequado e inaplicável na seara processual penal. Trata-se do disposto no artigo 803, CPC que determina que “não sendo contestado o pedido, presumir-se-ão aceitos pelo requerido, como verdadeiros, os fatos alegados pelo requerente”. Essa espécie de confissão ficta ou presumida é totalmente vedada no campo processual penal. Por isso é sempre necessária muita cautela quando se trabalha com a integração entre Processo Penal e Processo Civil, pois que há institutos e normas incompatíveis. No caso das cautelares processuais penais, como já consignado, deverá o Juiz, na inércia do requerido, nomear-lhe defensor para oferecimento das razões, sem as quais o procedimento decisório será nulo (nulidade esta absoluta na medida em que há lesão ao Princípio Constitucional do Contraditório e da Ampla Defesa – defesa técnica).
Ainda no que se refere aos prazos também é lacunoso o Código de Processo Penal quanto àquele disposto ao Juiz para proferir sua decisão após a manifestação defensiva. É lacunoso no artigo 282, § 3º., CPP, mas não o é no artigo 800, II, CPP, que estabelece um prazo de 5 (cinco) dias para decisões interlocutórias simples a ser contado a partir do termo de conclusão (artigo 800, § 1º., CPP). Aliás, esse prazo coincidente de cinco dias reforça ainda mais a tese de aplicabilidade do mesmo prazo estabelecido para manifestação defensiva por integração com o Código de Processo Civil (artigo 802, CPC).
Não resta dúvida de que a decisão sobre cautelares é interlocutória simples, sendo, aliás, um de seus exemplos mais frequentes, a decisão acerca de Prisão Preventiva, que nada mais é do que uma das cautelares processuais penais. Afinal, segundo Machado, são decisões interlocutórias simples aquelas que podem “encerrar algum incidente processual, sem julgamento do mérito”, exatamente porque “decidem questões puramente processuais”. [5]
Deixe-se a crítica de que o prazo para decisão de uma cautelar estabelecido pela regra geral do artigo 800, II, CPP, não parece condizente com o caráter de urgência e preventividade ínsito a todas as cautelares. Andaria melhor o legislador se houvesse estabelecido expressa e especificamente um prazo mais adequado, talvez seguindo o exemplo daquele conferido ao Juiz na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06 – artigo 18), de 48 horas.
Outra questão que fica em aberto na pobreza da dicção legal do artigo 282, § 3º., CPP, é se poderá haver ou não dilação probatória no exercício defensivo. Imagine-se que ao responder aos argumentos do requerimento ou representação o requerido pretenda produzir prova testemunhal ou de outra natureza. Teria ele direito a isso? Poderia requerer a designação de uma audiência para tanto?
O legislador processual penal é novamente silente de forma lamentável. No Código de Processo Civil, o artigo 802, CPC, é expresso ao estabelecer a possibilidade de produção de provas na contestação do pedido de cautelar [6], assim como em determinar a designação pelo Juiz de audiência de instrução e julgamento caso haja provas a serem produzidas (artigo 803, Parágrafo Único, CPC). [7]
Novamente se antevê ao menos duas possíveis correntes de pensamento acerca do tema:
a)Em vista do silencio ou imprevisão do Código de Processo Penal, bem como da característica de urgência e preventividade das medidas cautelares, característica essa que se agiganta na seara penal, não será possível qualquer dilação probatória, cabendo somente a possibilidade de que na resposta o requerido junte documentos;
b)Em homenagem à ampla defesa e ao contraditório, deve-se aplicar por integração o disposto no Código de Processo Civil, sendo possível a dilação probatória, inobstante a lacuna legal deixada pelo legislador na matéria processual penal.
Tendo em vista os princípios constitucionais que envolvem o tema, a opção “b” acima mencionada surge como a mais equilibrada. Afinal, não há por que diferenciar aprioristicamente a urgência ou preventividade existente no Processo Penal e no Processo Civil. Inclusive na seara penal já faz essa diferença de forma adequada o § 3º., do artigo 282, CPP para casos excepcionais, nos quais não será instalado o contraditório prévio, mas apenas se assegurará futuramente o contraditório diferido (casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida). Nesses casos a urgência mencionada é aquela não ordinária, comum a qualquer cautelar, mas uma urgência mais intensa, assim como o perigo de ineficácia blinda a possibilidade de contraditório sob pena de tornar inócua a decretação da cautelar. Nesse passo, resta claro que nos demais casos pretende o legislador que se atue com a cautela necessária para o deferimento de cautelares constritivas, concedendo o contraditório e a ampla defesa de forma a conferir-lhes o máximo possível de eficácia. Nem no Processo Penal, nem no Processo Civil, a urgência ou preventividade ordinárias legitimam o desprezo dos Princípios Constitucionais do Contraditório e da Ampla Defesa.
Fica ainda por resolver mais um problema. Havendo resposta do requerido e sendo aduzidas razões que não foram objeto de argumentação no pedido cautelar inicial, deverá o Juiz abrir prazo para o requerente da medida manifestar-se novamente? E mais, havendo requerimento de produção de provas pelo defensor, deverá o requerente ter direito também à produção de provas, manifestando-se novamente ao final da audiência de instrução porventura designada?
Obviamente o Código de Processo Penal não prevê nada disso. Por seu turno o Código de Processo Civil também não trata da matéria quando regula o procedimento cautelar em geral (artigos 796 a 812, CPC) , dando a entender que não haverá nova manifestação do requerente. Entretanto, no seu artigo 327 o Código de Processo Civil, prevê expressamente a nova manifestação do autor quando alegadas determinadas matérias (artigo 301, CPC) pelo réu, dispositivo este que poderia ser aplicado no campo cautelar em homenagem ao contraditório. Inclusive, se houver designação de audiência de instrução e julgamento é de se concluir com certeza que haverá debates antes da sentença (artigo 803, Parágrafo Único, CPC). Mas, nem sempre, como já assentado neste texto, os ditames Processuais Civis podem ser transplantados a fórceps para o Processo Penal. Portanto, resta solucionar a questão na seara adequada e considerando seus princípios e fundamentos especiais.
Pode-se afirmar que em sede processual penal o réu ou requerido (no caso) deve sempre falar e manifestar-se por último. Essa é a regra básica da defesa. Ora, quem se defende age sempre após a atuação agressiva. Conforme aduzem Moyano e Goulart, “a participação das partes no processo penal é iniciada, (…), com uma acusação, um ato de afronta, devendo se encerrar, necessariamente em um ato de resistência”. [8] Dessa forma, é possível concluir que em regra não deverá o Juiz conceder ao requerente a oportunidade de nova manifestação ou mesmo de dilação probatória. Mas, em casos excepcionais, havendo alguma produção de prova ou alegação defensiva que justifique a necessidade de uma resposta do requerente, tendo em vista a igualdade processual ou paridade de armas, poderá o Juiz conceder a este o direito de manifestar-se novamente ou mesmo produzir prova. No entanto, nesses casos excepcionais, não deve ser jamais abandonada a regra do direito de falar por último inerente ao exercício defensivo pleno. Desse modo, manifestando-se o requerente novamente, por fim deverá o Juiz abrir novo prazo à defesa para que esta encerre a dialética processual adequadamente. Isso vale também para a eventual audiência de instrução e julgamento em que haverá debates, devendo falar primeiro o requerente e por último o defensor.
É, porém, importante salientar que o STF, quando instado a manifestar-se sobre a matéria de alegações novas da defesa, deixou consignado que se deve aplicar ao Processo Penal por integração o disposto no artigo 327, CPC, abrindo-se prazo de dez dias para manifestação da acusação em respeito ao Princípio Contraditório que, de acordo com aquele E. Tribunal, “não é monopólio da defesa”. [9]Efetivamente não há como negar que realmente o contraditório “não é monopólio da defesa”, de modo que, conforme já consignado, haverá casos concretos em que o requerente deverá ter o direito de manifestar-se novamente a depender das matérias alegadas pela defesa. Inclusive, conforme também já consignado, em caso de audiência de instrução e julgamento agendada, deverá haver debates em que o requerente terá o direito de manifestar-se. O que não pode ocorrer é que, por descuido, se permita que o requerente fale por último e não o defensor. Havendo, portanto, nova manifestação do requerente em certos casos, o debate deve ser encerrado pela manifestação final do defensor. Retornando às conclusões de Moyano e Goulart, pode-se afirmar que este é um bom “meio termo”, apto a “dar abrigo à máxima efetividade do contraditório, sem descurar das exigências intrínsecas à ampla defesa”. [10]
Sabe-se que o Juiz pode conceder cautelares de ofício na fase processual (artigo 282, § 2º., CPP). Considerando esse fato, torna-se muito estranha a determinação de “intimação da parte contrária” para resposta prevista no artigo 282, § 3º., CPP. Isso porque é evidente que o Juiz não é “parte” em processo algum, sendo impossível vislumbrar alguma “parte contrária” a ele!
Agora resta saber o que fazer quando o Juiz decreta a cautelar de ofício no que tange a assegurar o direito ao contraditório.
Observando com atenção a escrita dada pelo legislador do artigo 282, § 3º., CPP, pode-se chegar à conclusão de que quando o Juiz decretar de ofício a cautelar, não haverá manifestação defensiva, já que a determinação de intimação da “parte contrária” está submetida ao recebimento pelo julgador do pedido de medida cautelar [11]Ora, inexistindo pedido, não há previsão de intimação para resposta defensiva. Realmente tal proceder seria bastante inusitado, pois o Juiz iria intimar a defesa a manifestar-se com que objetivo? Tentar convencê-lo a mudar sua convicção íntima, que não foi provocada por ninguém? Ademais, iria manifestar à defesa o quê? Sua intenção prévia de decretar a cautelar? Na verdade, o Juiz decreta a cautelar de ofício e ali é que expõe suas razões de decidir, não é um pedido, é uma determinação, uma decisão direta já tomada, de forma que somente seria mesmo possível um contraditório diferido ou o exercício do duplo grau de jurisdição.
Na doutrina assim já se manifestou sobre o tema Muccio:
“Nos casos de decretação de ofício, à evidência, dispensa-se a intimação, pois o juiz não antecipará nem comunicará que tem intenção de impor medida cautelar, mas que pode ser convencido em contrário”. [12]
Note-se que essa perplexidade sobre o exercício do contraditório nas decretações cautelares de ofício é mais um argumento a indicar a impropriedade da atuação do magistrado “ex officio” no Processo Penal. A situação indica claramente que o Juiz acaba assumindo uma condição de “parte” privilegiada no processo, infringindo flagrantemente o Sistema Acusatório integrante do Devido Processo Legal Substantivo. Mesmo que se possa exercer uma “contestação” diferida da decisão do magistrado isso não retira de cena o fato de que este atua como se fora um acusador, o qual ao mesmo tempo toma decisões cruciais no andamento processual. É até mesmo inviável falar-se em exercício sequer de um “contraditório diferido” porque para isso seria preciso admitir que o Juiz é “parte” no processo, integra o polo acusador, ainda que episodicamente, o que à obviedade não se coaduna com o Devido Processo Legal de índole acusatória.
Ponto importante também é a determinação legal de que o Juiz intime a “parte contrária” com “cópia do requerimento e das peças necessárias”. A cópia do requerimento é requisito básico para o devido exercício do contraditório e ampla defesa, já que constitui o chamado Princípio da Informação ou “Direito à Informação”. [13] A pessoa somente pode defender-se se sabe o teor daquilo que lhe é imputado. Mas, além do requerimento, deve o Juiz disponibilizar ao requerido “as peças necessárias”, ou seja, todos os documentos, depoimentos, laudos etc. que sejam mencionados no requerimento e que façam parte integrante do Inquérito Policial ou do Processo, as quais tenham alguma pertinência com o pedido cautelar, a fim de que, assim como o requerente da medida pode delas se utilizar também o possa o defensor. A lei é específica quanto à cópia integral do requerimento, mas utiliza uma expressão aberta e indeterminada quanto às demais peças a serem enviadas junto ao requerimento para que o defensor possa exercer seu mister. Nesse passo fala-se em “peças necessárias” sem a preocupação de proceder a uma melhor determinação. Essa redação aberta pode ser objeto de crítica. No entanto, entende-se que tal crítica seria descabida porque no caso realmente o legislador não poderia determinar pormenorizadamente quais seriam as peças necessárias em cada caso concreto de pedido cautelar, especialmente considerando o sistema multicautelar adotado pelo Código de Processo Penal e as características especiais de cada caso concreto. A escolha de uma expressão ampla foi acertada, pois que permite a adaptação a cada situação singular. Observe-se ainda que a lei afirma que os autos permanecerão em juízo (artigo 282, § 3º., “in fine”, CPP). E essa afirmação deve ser lida de forma a entender-se que os autos permanecerão em juízo à disposição do requerido e seu defensor. Ali estarão os autos para fins de livre consulta e extração de cópias, de modo que se a instrução feita pelo Juiz com as peças consideradas necessárias não for satisfatória, nada impedirá que o requerido e seu defensor tenham acesso à integra do que consta dos autos. A única limitação imposta é a de que os autos não poderão ser retirados com carga pelo defensor, o que parece também justo considerando a urgência do procedimento e na medida em que não se obsta o livre acesso e extração de cópias para exercício defensivo regular.
Um aspecto que chama a atenção é o de que em determinadas situações excepcionais o contraditório deverá ser posterior à decretação da medida (casos de urgência ou de perigo de ineficácia da cautelar). Nessas situações, considerando que a decisão foi já proferida “inaudita altera pars”, embora a lei somente mencione a cópia do requerimento para o indiciado ou acusado defender-se, será imprescindível que se instrua a intimação com cópia da decisão que determinou a cautela, pois somente assim estará plenamente satisfeito o Direito à Informação componente do contraditório e da ampla defesa. [14] Não somente o Princípio da Informação indica a correção desse entendimento, como também o permite a lei ordinária quando estabelece que seguirão com a intimação as “peças necessárias”. Ora, não há dúvida de que a decisão que decreta a medida a ser combatida é uma peça mais que necessária, imprescindível mesmo, ao exercício do contraditório e ampla defesa. Nesse ponto frise-se que o legislador também perdeu a oportunidade de deixar consignado na lei que nos casos excepcionais de urgência ou perigo de ineficácia, dever-se-ia implantar o contraditório posterior, bem como de estatuir a necessidade nesses casos de juntar cópia da decisão a ser combatida.
Em conclusão pode-se afirmar que embora sejam constatáveis alguns tropeços e omissões do legislador na regulamentação da matéria prevista no artigo 282, § 3º., CPP, tais falhas são, como se demonstrou, superáveis com o uso do bom senso, a aplicação dos princípios constitucionais e processuais que regem o tema e as normas que podem colmatar as lacunas da legislação processual penal. Dessa maneira resta induvidoso que o avanço consistente no estabelecimento do contraditório no procedimento cautelar processual penal supera em muito os equívocos que marcaram essa primeira evolução de tema tão relevante.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.