Sumário: 1. Introdução. 2. Função do Direito Penal. 3. Crimes Sexuais. 4. Conclusões. Referências bibliográficas.
1. Introdução
Os crimes sexuais são, em sua generalidade, considerados especialmente hediondos (no sentido ontológico, não legalista). Injustificáveis por natureza, não se encaixam dentro do padrão aceitável de criminalidade inerente à vida em sociedade. São crimes que, mesmo quando as feridas corpóreas são de rápida recuperação, deixam em suas vítimas escaras psicológicas indeléveis.
A evolução do constitucionalismo nas últimas décadas, especialmente após a segunda guerra mundial (ou, no Brasil, após a redemocratização trazida pela Constituição de 1988), alterou o foco da atenção dos estudiosos do direito.
Com o reconhecimento de múltiplas dimensões dos direitos fundamentais – individual, social e solidária – o pós-positivismo, abandona a cultura legicêntrica e reaproxima o direito da moral levando ao reconhecimento da força normativa da constituição[1] e ao desenvolvimento de uma nova hermenêutica fundada na irradiação de valores constitucionais.
Os reflexos da constitucionalização do Direito no âmbito penal se dão, em primeiro lugar por um catálogo de garantias aos acusados (art.5º, CF), e, em segundo, na proibição de criminalizar determinadas condutas (proibição do excesso – ubermassverbot) aliada a imposição do dever de criminalizar outras (proibição de proteção deficiente – untermassverbot).
A disciplina jurídica dada a determinada infração, bem como a pena aplicável, não deve ir além nem ficar aquém do indispensável à proteção do valor constitucionais em questão.
No primeiro caso, haverá inconstitucionalidade por falta de razoabilidade ou proporcionalidade; no segundo, por omissão em atuar na forma reclamada pela Constituição.[2]
Adotando a regra da proporcionalidade nos termos propostos por Robert Alexy[3], toda medida restritiva de direitos fundamentais deve ser analisada em três etapas consecutivas e interdependentes: Adequação, Necessidade e, por fim, Proporcionalidade em sentido estrito.
Foi com essa fundamentação filosófica que em recente alteração do Código Penal a lei 12.015 de 2009, não sem atraso, modificou-se significativamente o tratamento dos crimes sexuais.
Faz-se desde logo a divisão semântica que servirá de legenda para o presente trabalho: continuará se chamando “Atentado Violento ao Pudor” a conduta de praticar atos libidinosos diversos da conjunção carnal, em detrimento de se referir ao art. 213, primeira parte e art. 213, segunda parte a todo momento, e deixando a rubrica“Estupro”, apenas para a conduta de constranger mulher, mediante violência ou grave ameaça, à conjunção carnal.
2. Finalidade do direito penal
Na doutrina brasileira há muito tem predominado o entendimento de que a finalidade precípua do Direito Penal é a proteção de bens jurídicos fundamentais.[4]
Na doutrina alienígena, Claus Roxin afirma que a função do Direito Penal consiste em:
“garantir aos cidadãos uma existência pacífica, livre e socialmente segura, sempre e quando estas metas não possam ser alcançadas com outras medidas político-sociais que afetem em menor medida a liberdade dos cidadãos. De modo que, em um Estado Democrático de Direito, as normas jurídico-penais devem perseguir somente o objetivo de assegurar aos cidadãos uma coexistência pacífica e livre, sob a garantia de todos os Direitos humanos.”
E conclui:
“podem-se definir os bens jurídicos como circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre, que garanta todos os Direitos humanos e civis de cada um na sociedade ou para o funcionamento de um sistema estatal que se baseia nestes objetivos”[5]
O bem jurídico, para um Direito Penal funcional em um Estado Democrático de Direito, não pode ser outro senão aquele filtrado por uma avaliação impregnada de valores constitucionais de âmbito e relevância maiores. Ou seja, é nas constituições que o Direito Penal deve encontrar os bens que deve proteger com suas sanções[6]
Nesse sentido, Luiz Regis Prado ensina que o bem jurídico deve estar sempre em compasso com o quadro axiológico vazado na Constituição e com o princípio do Estado Democrático e Social de Direito[7].
No caso dos crimes sexuais, o bem jurídico genericamente tutelado é a Dignidade Sexual da Pessoa, sua liberdade ou autodeterminação no que tange à manifestação sexual.
Alberto Silva Franco subdivide a liberdade sexual em “liberdade dinâmica”, referente ao direito de se escolher o companheiro sexual e dispor livremente do seu corpo; e “liberdade estática”, concretizada no direito da pessoa de não se ver envolvida passivamente em ato sexual sem o seu desejo.[8]
Assim, seja a liberdade de escolha de parceiros, a liberdade de quando e como se relacionar sexualmente ou o direito de não engajar em atividade sexual sem desejar, a dignidade sexual extrai seu fundamento diretamente da dignidade da pessoa humana.
3. Evolução Histórico-Legislativa dos Crimes sexuais
O Direito não tem existência em si próprio. Ele existe na sociedade[9]. A sua causa material está nas relações da sociedade, nos acontecimentos mais importantes para a vida social.[10]
As normas jurídicas, portanto, devem se encontrar em conformidade com o anseio social, com as construções culturais e históricas de um povo.
As Ordenações Afonsinas e Manuelinas (período que se estendeu de 1521 até 1603), apesar de não terem tido vigência no Brasil, valem a menção de que puniam a prática do estupro com morte.
Iniciando o tratamento legislativo da matéria em Terrae Brasilis, as ordenações Filipinas diferenciavam o estupro, à época descrito como “aquele que forçosamente dormir com qualquer mulher, salvo se ganhe dinheiro por seu corpo ou seja escrava”, e o atentado violento ao pudor, previsto na conduta de “travar de alguma mulher, não sendo para dormir com ela”, apenado com até trinta dias de cadeia.
A moral da época reprovava com muito mais vigor a conduta de manter conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça (“forçosamente dormir”) do que a conduta de praticar atos libidinosos diversos da conjunção carnal (“não sendo para dormir com ela”).
O primeiro se punia com a Morte; o segundo, com trinta dias de cadeia.
No Código Criminal do Império (1830), o estupro passa a ser apenado com prisão celular de 3 a 12 anos, mais o dote da ofendida. O atentado violento, por sua vez, ao pudor recebe a seguinte descrição típica, digna de menção expressa:
“Art. 223. Quando houver simples offensa pessoal para fim libidinoso, causando dôr, ou algum mal corporeo a alguma mulher, sem que se verifique a copula carnal.
Penas – de prisão por um a seis mezes, e de multa correspondente á metade do tempo, além das em que incorrer o réo pela offensa.”
Mais uma vez a gradação entre o Estupro e o Atentado Violento ao pudor fica evidente, sendo aquele muito mais grave do que este.
Há cento e cinqüenta anos atrás, respeitava-se mais a taxatividade que hoje em dia.
No Código Penal Republicano (1890), segue-se a diferenciação das condutas, no entanto, elevou-se a pena do atentado violento ao pudor de um a seis meses para um a seis anos[11], inconvenientemente equiparando-o com o crime de estupro.
Diz-se “inconvenientemente”, pois doravante deixa de existir uma gradação valorativa entre as condutas, equiparando a conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça a qualquer conduta que cause ofensa pessoal para fim libidinoso[12].
Na redação inicial do Código Penal de 1940, a pena para o crime de estupro era de 3 a 8 anos de reclusão, enquanto a do atentado violento ao pudor era de 2 a 7, retornando-se a critérios semelhantes aos do código de 1830.
Contudo, a Lei 8.072 de 1990 – Lei dos Crimes Hediondos – elevou a pena do crime de estupro e a do atentado violento ao pudor para reclusão de 6 a 10 anos, novamente igualando a punição.
Entendendo ser excessiva tal punição em alguns casos, a doutrina e a jurisprudência já vinham propondo a atipicidade de condutas menos lesivas ao bem jurídico sexual, ou, em alguns casos, a subsunção à contravenção de importunação pública ao pudor.
Com a reforma dos crimes sexuais pela lei 12.015/09, houve a unificação normativa do estupro e do atentado violento ao pudor, sendo doravante os dois crimes previstos no art.213, com a seguinte redação:
“Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”
Não se pode deixar de consignar que a lei 12.015/09 perdeu uma excelente oportunidade de criar um tipo penal intermediário entre o Estupro/Atentado violento ao Pudor e a importunação pública ao pudor, que hoje tem servido de verdadeiro quebra-galho em casos limites.
4. A expressão Atos Libidinosos Diversos da Conjunção Carnal
A utilização da expressão “ato libidinoso diverso da conjunção carnal” constitui, antes de mais nada, um atentado violento ao princípio da taxatividade.
A amplitude dos vocábulos permite a subsunção de um excepcional leque de condutas em sua locução. Consequentemente, o subjetivismo do intérprete adquire força em demasia, permitindo ilações valorativas, que podem reduzir a eficácia da função garantista do tipo penal[13].
O espectro punitivo da locução sempre foi, e continua sendo, excessivamente amplo, possibilitando a subsunção de condutas que vão desde o beijo lascivo ao coito anal, apenando da mesma maneira ações cujos desvalores nem se comparam[14].
Nesse mesmo sentido, Alberto Silva Franco ensina:
“Estabelecer, no âmbito da punição, um estrito paralelismo entre o estupro e o atentado violento ao pudor constitui, sem dúvida, um absurdo jurídico. Enquanto o estupro apresenta uma área de significado devidamente delimitada (ataque, mediante violência ou grave ameaça, à liberdade sexual de uma mulher), o atentado violento ao pudor apresenta características de difícil apreensão, não apenas em face da pluralidade de manifestações com que a conduta libidinosa pode ter expressão, mas também em razão, não raro, da ambiguidade dessas manifestações”
Ainda que a pena do atentado violento ao pudor fosse inferior à pena cominada ao estupro, o simples fato de estabelecer uma punição única para tamanho nicho de possibilidades típicas seria suficiente para uma revisão legal.
Constantemente solapado, o princípio da taxatividade impõe ao legislador o dever de se utilizar de técnica correta e de uma linguagem rigorosa e uniforme na elaboração da lei penal[15].
Sabe-se impossível uma descrição precisa de todas condutas que violem a dignidade sexual, no entanto, é viável a separação das condutas que violem de forma gravíssima o bem jurídico, daquelas que o violam de forma menos grave.
Para tanto, necessário definir o que seria ato libidinoso.
Para a criminalística, ato libidinoso é todo aquele que vise satisfazer a luxúria de alguém. São ações que não visam a conjunção carnal, sendo, em grande parte, verdadeiros sucedâneos da cópula normal. Outros, entretanto, são apenas reflexos de perversões do autor do delito, manifestados no seu instinto sexual desviado.[16]
Entre os atos libidinosos, podem ser citados, como exemplos, a fellatio in ore, o cunnilingus, o pennilingus, o annilingus, o coito anal, o coito inter femora, a masturbação, os toques nas partes íntimas da vítima – ou fazer com que a vítima toque estas partes do agente, etc.
Já conjunção carnal, segundo Mestieri[17] evidencia três critérios para conceituação: restritivo, amplo e amplíssimo.
Restritivo é o critério que somente admite a conjunção carnal quando houver união sexual normal – cópula vaginal. O Conceito amplo aceita a conjunção carnal em coitos vaginais e anais. Por fim, amplíssimo é o critério que aceita a conjunção carnal no ato sexual normal, ou em qualquer sucedâneo dele.
As condutas que envolvem coito, como o anal e o oral, são, sem dúvida alguma, merecedoras de todo rigor penal. As condutas não invasivas, por sua vez, como o beijo, o toque lascivo, a exposição dos órgãos sexuais, e muitas outras, apesar de merecedoras de punição, são evidentemente mais brandas, dignas de uma punição proporcionalmente mais leve.
Num modelo de Estado Democrático de direito, sustentado por um princípio antropocêntrico, não teria sentido, nem cabimento, a cominação ou a aplicação de pena flagrantemente desproporcionada à gravidade do fato. Pena desse teor representa ofensa à condição humana atingindo-a, de modo contundente, na sua dignidade de pessoa.[18]
5. Da Regra da Proporcionalidade: Ubermassverbot x Untermassverbot
Dentro de uma realidade constitucional onde é dever do Estado não só se abster de condutas que violem da liberdade individual, mas também proporcionar meios para a promoção da igualdade substancial, bem como, e especialmente, proteger os indivíduos de ataques entre si, promovendo a dignidade da pessoa humana como valor central do ordenamento, bens jurídicos de dignidade constitucional axiologicamente ligados à Dignidade da pessoa humana não podem ficar sem proteção.
Ingo Wolfgang Sarlet, nesse sentido leciona:
“partindo-se de possível e prestigiada (embora não incontroversa) distinção entre uma dimensão negativa e positiva dos direitos fundamentais, convém relembrar que, na sua função como direitos de defesa, os direitos fundamentais constituem limites (negativos) à atuação do Poder Público, impedindo ingerências indevidas na esfera dos bens jurídicos fundamentais, ao passo que, atuando na sua função de deveres de proteção (imperativos de tutela), as normas de direitos fundamentais implicam uma atuação positiva do Estado, notadamente, obrigando-o a intervir (preventiva ou repressivamente) inclusive quando se tratar de agressão oriunda de outros particulares, dever este que – para além do expressamente previsto em alguns preceitos constitucionais contendo normas jusfundamentais – pode ser reconduzido ao princípio do Estado de Direito, na medida em quem o Estado é o detentor do monopólio, tanto da aplicação da força, quanto no âmbito da solução dos litígios entre os particulares.”[19]
Quando se trata de dignidade sexual, praticamente nenhuma conduta lesiva pode ser deixada à margem de punição uma vez que se trata de uma das principais manifestações da própria Dignidade da Pessoa Humana.
A regra da Proporcionalidade veda punição excessiva ou desproporcional em face do desvalor de ação ou do desvalor de resultado do fato punível[20], contudo, não se esgota na categoria de proibição de excesso, uma vez que, para que seja proporcional também não pode pecar pela proteção insuficiente.
Para Ingo W. Sarlet:
“Dessa perspectiva objetiva-valorativa dos direitos fundamentais surge uma eficácia Dirigente, no sentido de que conteriam uma ordem dirigida ao Estado incumbindo-o permanentemente da concretização e realização dos direitos fundamentais[21].”
Importante ressaltar que, postular pela criminalização de condutas violadoras da dignidade da pessoa humana em um menor grau não significa partilhar de uma concepção movida a toques de lei e ordem.
A assunção de uma postura garantista implica adotar uma posição contrária à intervenção jurídico-penal quando esta se revele constitucionalmente ilegítima; decidir pela solução mais favorável ao acusado, quando o banco de provas não indique no sentido contrário, revertendo a garantia da presunção de inocência que acompanha o acusado[22].
A realização de um projeto garantista passa por conferir aos direitos fundamentais um standard de garantias que os torne imunes da ação estatal arbitrária e, ao mesmo tempo, assegure-lhes, juridicamente, a necessária proteção frente a ameaças de terceiros. [23]
Existe uma dupla via da regra da proporcionalidade: de um lado a proibição do excesso (ubermassverbot); de outro, a proibição da proteção insuficiente (untermassverbot).
A exigibilidade da regra da proporcionalidade não decorre de qualquer dispositivo constitucional, mas da própria estrutura dos direitos fundamentais
Isso porque, uma vez que se admite que a grande maioria dos direitos fundamentais são princípios, no sentido defendido por Robert Alexy, forçoso admitir-se também, que são mandamentos de otimização, isto é, normas que obrigam que algo seja realizado na maior medida possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas.
Portanto, a análise da proporcionalidade é justamente a maneira de se aplicar esse dever de otimização ao caso concreto.[24]
Na lição de Alexy, a regra da proporcionalidade é constituída por três parciais: adequação (geeignetheit), necessidade (erforderlichkeit) e proporcionalidade em sentido estrito, (abwagungsgebotte).
Essa regra, em especial no direito penal, impõe-se como um filtro necessário aos imperativos de tutela para que possam materializar-se no mundo normativo infraconstitucional.[25]
A análise de cada uma dessas parciais tem aplicação sucessiva e complementar de modo que, apenas se analisa a adequação da medida após comprovada a sua necessidade, do mesmo modo que apenas se analisa a sua proporcionalidade se comprovada a sua adequação.
Um ato estatal limitador um direito fundamental somente será necessário quando a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido.[26]
O exame de necessidade guarda muita conexão com o exame de subsidiariedade do direito penal, isto é, da mesma forma que se exige a utilização do direito penal apenas como ultima ratio, somente será necessária a intervenção penal quando nenhum outro meio de controle social promover com a mesma intensidade o bem jurídico. Uma vez comprovada a necessidade da atuação, a pena deve ser a mais branda possível dentre aquelas que promovam com a mesma intensidade o bem jurídico.
Adequado[27], por sua vez, não é somente o meio com cuja utilização um objetivo é alcançado, mas também o meio com cuja utilização a realização de um objetivo é fomentada, promovida, ainda que o objetivo não seja completamente realizado[28]. Dessa forma, uma medida pode ser considerada inadequada se sua utilização não contribuir em nada para fomentar a realização do objetivo pretendido.[29]
Nesses termos, diante da sempre presente ponderação entre o interesse geral de liberdade e a proteção de bens jurídicos, a criminalização de uma conduta somente será adequada quando fomentar a sua abstenção (prevenção geral positiva).
Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito consiste no sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva.
No âmbito penal, a restrição quase sempre se refere à Liberdade do indivíduo que praticou a ação proibida. Em contrapartida, o direito fundamental a ser promovido é justamente aquele violado pela ação criminosa.[30]
Vencidas todas as parciais e constatando que pesa sobre o Estado um dever de proteção, isto é, a partir do momento que se compreende que a Constituição proíbe que se desça abaixo de um mínimo de proteção, a proporcionalidade joga como proibição de proteção deficiente[31].
Medidas de cunho penal não podem ser vistas necessariamente como contrárias ao Estado Democrático de Direito. Ao revés, podem ser necessárias para o alcance dos objetivos inerentes a esse modelo de organização social.
Dentro desse conceito de proporcionalidade, proíbe-se a ação exacerbada do Estado bem como a omissão deste em proteger determinados bens e valores, fundamentais à vida em sociedade.
É em razão da proporcionalidade como proibição de proteção deficiente que não se pode aceitar o abandono punitivo de condutas lesivas à dignidade sexual em menor gravidade, como o toque lascivo e congêneres.
Contudo, também em função da proporcionalidade, mas como proibição do excesso, aplicar uma pena mínima de 6 (seis) anos a todos atos libidinosos diversos da conjunção carnal, indiscriminadamente, afigura-se igualmente desproporcional.
Sempre preciso, Alberto Silva Franco ensina que além de jurídica, a exigência da proporcionalidade também é “requisito material da prevenção, pois somente penas proporcionadas à gravidade dos delitos e à sua valoração social estão em condições de motivar os cidadãos ao respeito à norma”[32]
Na jurisprudência nacional, o Supremo Tribunal Federal[33] vem se utilizando cada vez mais dos conceitos de proibição de proteção insuficiente como razão de decidir no RE 418.376 (D.J. 23/03/2007) e em debates na ADIN 3112 (D.J. 26/10/2007) e na ADIN 3510, ainda pendente de decisão (j. 29/05/2008).
6. Conclusões
Nos termos da atual legislação aquele que “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” pratica o crime de Estupro.
Apena é de no mínimo seis, e no máximo dez anos de reclusão, na forma simples.
A locução “praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, assim como sua predecessora “ato libidinoso diverso da conjunção carnal” subsume-se a um vasto espectro de condutas, desde a mais singela à mais gravosa.
No entanto, a pena aplicada, em grande parte das vezes, é a mesma para qualquer uma.
No exame da Necessidade, a criminalização da conduta de violar a dignidade sexual alheia, com o objetivo de se proteger tal bem jurídico é inegavelmente capaz de fomentar sua não violação, colaborando para que tal objetivo seja alcançado.
No exame de Adequação não se tem tanta certeza da imprescindibilidade de pena tão gravosa para um espectro tamanho de condutas. Nesse ponto divide-se o atentado violento ao pudor, crime violento contra a dignidade sexual, e a atentado ao pudor, conduta passível de reprimenda, mas cuja pena deve ser menor.
Assim, no que toca as condutas não violentas nem degradantes, a pena aplicada, bem como a nomenclatura (que por si só é prejudicial), são excessivas vis a vis às idôneas à promoção do bem jurídico.
Por fim, na análise da proporcionalidade em sentido estrito também falharia tal generalização de condutas sexuais, pois uma pena inferior seria suficientemente eficaz para proteger o bem jurídico dessas lesões menores.
Cezar Roberto Bittencourt sustenta a possibilidade de desclassificação do crime para a contravenção de importunação ofensiva ao pudor (art.61 da Lei de Contravenções Penais) quando a ofensa ao bem jurídico não for de grande monta.
Contudo, nas hipóteses em que estiverem ausentes as elementares referentes ao local, “deve ser declarada a inconstitucionalidade da cominação legal, sem redução de texto, por violar os princípios da proporcionalidade, razoabilidade e da lesividade ao bem jurídico”[34]–[35].
Concorda-se com a premissa, mas não com a conclusão.
Com a devida permissão, haveria no caso uma proteção deficiente do bem jurídico, uma vez que, se a conduta não ocorrer em local público ou de acesso ao público, na impossibilidade da punição por atentado violento ao pudor (hoje estupro), o fato seria atípico, o que é inaceitável.[36]
Lênio Luiz Streck advoga a tese de que no momento em que a lei dos crimes hediondos elevou a tal patamar o atentado violento ao pudor, por uma questão hermenêutica apenas as condutas ontologicamente hediondas configurariam o tipo. Caso assim não o seja, estar-se-ia diante da atipicidade da conduta.
Igualmente inaceitável por violação à proibição de proteção deficiente, inerente ao princípios da proporcionalidade.
Outra opção, seria a mutação do conceito de conjunção carnal para outro mais amplo.
Isso porque, como visto alhures, há muito se entende por conjunção carnal a “introdução ainda que parcial do pênis na vagina”. No entanto, é de se reconhecer que tal conceito vem sendo repetido desde uma época onde o sexo anal e oral era visto como sodomia, por vezes até mesmo criminalizado[37].
Hoje conjunção carnal poderia ser entendida como “todo ato que envolva penetração”, seja do pênis, artefatos substitutivos ou mesmo dos dedos, nas partes íntimas, visando satisfação da lascívia. Nessa toada, atos diversos da conjunção carnal seriam todos os restantes que visassem o mesmo objetivo.
Assim, com a aplicação de pena inferior ao atentado violento ao pudor em comparação com o estupro, estaria respeitada a proporcionalidade, desde que também houvesse gradação quando o atentado ao pudor não fosse violento (ainda que tal gradação viesse mediante a previsão de um tipo privilegiado). No entanto, com a unificação normativa desses crimes, tal solução já não é mais possível.
Apesar de assistemática, entende-se por necessária uma reforma pontual na legislação penal, criando-se o “Atentado ao pudor”, tipo autônomo, com a seguinte redação:
“Art.213-A – Praticar ato libidinoso que não envolva coito, sem consentimento da vítima:
Pena – um a dois anos de detenção, mais multa.”
Com a superação do Estado Liberal pelo Estado Democrático de Direito, o Direito penal não deve ser mínimo nem máximo, mas proporcional, de modo que, as penas devem as estritamente necessárias e suficientes para promover a tutela do bem jurídico, individualizadas no maior grau possível.
Informações Sobre o Autor
Fernando Antunes Soubhia
Professor de Direito Penal na Universidade de Cuiabá. Graduado e pós-graduado pela PUC/SP. Especialista em Direito Penal e em Direito Constitucional.