Resumo: diante da complexidade e polêmica do tema, para que se possa bem trabalhar com a tentativa de flexibilizar o atual marco etário de incapacidade criminal, é mister promover breve escorço histórico acerca da condição do jovem indivíduo delitivo ao longo das legislações e diplomas normativos pátrios. Far-se-á a análise das disposições presentes desde as Ordenações (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), provenientes do direito europeu, perpassando pelo Código Criminal do Império de 1830, pelo Código Penal Republicano de 1890, traçando, ainda, alguns comentários sobre o Código de Menores de 1927, Código Penal de 1940, Constituição Federal de 1988 e Estatuto da Criança e do Adolescente. O objetivo é entender o desenvolvimento histórico dos sistemas e marcos adotados no ordenamento jurídico pátrio em todas as suas épocas, tecendo as devidas críticas em defesa da flexibilização do sistema hodiernamente adotado.
Palavras-chave: imputabilidade penal; desenvolvimento histórico; criança; adolescente; menor infrator.
Sumário: 1. Noções Proemiais 2. Brasil-Colônia 3. Período Imperial 4. Brasil-República 4.1. Código Penal dos Estados Unidos do Brasil – Decreto n. 847 de 1890 4.2. Código de Menores de 1927 – Código de Mello Mattos 4.3. Código Penal de 1940 – Decreto-Lei n. 2.848 4.4. Anteprojeto de 1969 5. Conclusões
1. NOÇÕES PROEMIAIS
A questão da responsabilização criminal do menor infrator é um tema de extrema polêmica e que tem sido apresentado com reiterada frequência ao corpo social. Muito se tem discutido acerca da diminuição do marco relativo à inimputabilidade daqueles que ainda não atingiram o limite etário dos 18 anos, mas que praticam condutas descritas em lei como crime ou contravenção penal. Entretanto, o debate tende a ser polarizado entre os ditos defensores dos direitos das crianças e adolescentes e os que tentam alterar a baliza de irresponsabilidade.
Para que seja possível defender a flexibilização do marco atualmente adotado, faz-se mister apresentar o desenvolvimento histórico do tratamento dispensado aos sujeitos delitivos não considerados adultos, demonstrando os marcos anteriormente adotados e os sistemas acolhidos ao longo do transcorrer temporal dentro do território nacional.
Após alguns anos como Curador de Menores e Diretor-Geral do Departamento de Presídios, Edgard Magalhães Noronha chegou à conclusão de que “o problema do menor infrator é dos mais graves que um povo tem que enfrentar e sua solução não é simples. Enquanto o maior sofrer privações, como poderá o menor subtrair-se aos seus efeitos?” [1].
Assim, acerca da possibilidade de responsabilizar criminalmente crianças e adolescentes, encontramos com o decorrer dos anos, em todo o mundo, desde as mais longínquas normas do direito romano[2], inúmeros e divergentes ordenamentos jurídicos, cada qual atribuindo uma idade como marco para imposição de penas. Contudo, não convém analisar, neste momento, o que se encontra disposto em legislações alienígenas e antigas, restringindo o presente estudo ao desenrolar da evolução histórica em território nacional, desde a colonização até o natimorto Código Penal de 1969, com breves notas acerca do vigente Estatuto da Criança e do Adolescente.
Este será o foco precípuo do presente trabalho, buscando evidenciar as mudanças implementadas em todo decorrer histórico, com a apresentação dos diplomas legislativos acerca da matéria e os entendimentos doutrinários que cercam o assunto, com atenção voltada à possibilidade de promover uma flexibilização do atual marco punitivo, para que o marco etário hodiernamente adotado passe a ser apenas uma presunção juris tantum de incapacidade, e não uma presunção absoluta. Quer-se, apenas, trazer a baila a discussão que deve ser realizada acerca da capacidade, consciência e autodeterminação daquele jovem que praticou uma conduta prevista em lei como crime ou contravenção, e a possibilidade de ser, portanto, atingido pelo aparato punitivo do Estado, submetendo-se ao Direito Penal.
2. BRASIL-COLÔNIA
No período colonial não havia uma codificação consolidada pátria, estando o território nacional regido pelas legislações e ordenações provenientes da metrópole, a qual estendia o seu âmbito de abrangência às terras coloniais americanas.
“Em relação ao período anterior a 1808, não há um registro sistemático, no Brasil, dos atos normativos que regiam a vida na Colônia, uma vez que os registros oficiais se encontravam em Portugal, aplicando-se ao Brasil as normas jurídicas gerais portuguesas e as específicas de administração da Colônia.
Como Colônia portuguesa, o Brasil estava submetido às Ordenações do Reino, que eram as compilações de todas as leis vigentes em Portugal, mandadas fazer por alguns de seus monarcas e que passavam a constituir a base do direito vigente. São verdadeiras consolidações gerais, que servirão de molde para as codificações futuras (Código Civil, Comercial, Penal, Processual, etc).
Além dessa lei geral, os governadores-gerais e os vice-reis do Brasil estiveram submetidos aos Regimentos, que traçavam normas específicas para o Brasil, estabelecendo medidas a serem tomadas nas capitanias, tratamento dos índios, organização da defesa, disciplinamento do comércio, organização da justiça, normas de arrecadação, cuidados com os hospitais e igrejas, etc.”[3]
Após o descobrimento do Brasil, passou a vigorar as Ordenações Afonsinas, promulgadas em 1480, surtindo efeitos até que fossem promulgadas em 1520 as Ordenações Manuelinas, por D. Manuel I[4].
“Como é sabido, vigoravam, em matéria criminal, no Brasil as Ordenações Afonsinas, uma compilação publicada em 1446, sob o reinado de D. Afonso V, que D. Manuel I, em 1505 mandou rever, promulgando em definitivo em 1512 o corpo de leis que ficou conhecido como Ordenações Manuelinas.
Passando Portugal ao domínio da Espanha, por uma lei dada em Madri, aos 5 de junho de 1595, Felipe II resolveu reformar as Ordenações Manuelinas e ordenar nova receptação das normas e costumes jurídicos, confiando essa tarefa codificadora a Pedro Barbosa, Paulo Afonso, Jorge de Cabedo e Damião de Aguiar, considerados, na época, ilustres cultores da ciência jurídica.”[5]
Em momento seguinte, as relações jurídicas e interpessoais passaram a ser regidas pelas Ordenações Filipinas[6], as quais foram promulgadas por D. Filipe III em 1603, vigorando até o Código Criminal de 1830, sendo possibilitada a apenação de menores. Pode-se facilmente considerar que o sistema punitivo impingido ao menor infrator era severo, o que resta evidenciado pela seguinte passagem:
“De acordo com as Ordenações Filipinas, a imputabilidade penal iniciava-se aos sete anos, eximindo-se o menor da pena de morte e concedendo-lhe redução da pena. Entre dezessete e vinte e um anos havia um sistema de ‘jovem adulto’, o qual poderia até mesmo ser condenado à morte, ou, dependendo de certas circunstâncias, ter sua pena diminuída. A imputabilidade penal plena ficava para os maiores de vinte e um anos, a quem se cominava, inclusive, a pena de morte para certos delitos.
Antes de 1830, quando foi publicado o primeiro Código Penal do Brasil, as crianças e os jovens eram severamente punidos, sem muita diferenciação quanto aos adultos, a despeito do fato de que a menor idade constituísse um atenuante à pena, desde as origens do direito romano.
A adolescência confundia-se com a infância, que terminava em torno dos sete anos de idade, quando iniciava, sem transição, a idade adulta.” [7] (Grifou-se)
Um importante detalhe é que poderia ocorrer uma diminuição de pena, comparativamente ao que seria aplicada ao adulto. Era o sistema que compreendia o “jovem adulto”, estando configurada a imputabilidade penal àqueles que ultrapassassem a barreira dos 21 anos. Além disso, facultava-se ao magistrado a imposição de outras penas menores, diversas da pena de morte. Do texto original:
“Titulo CXXXV. Quando os menores serão punidos por os delictos, que fizerem.
Quando algum homem, ou mulher, que passar de vinte annos, commetter qualquer delicto, dar-lhe-ha a pena total, que lhe seria dada, se de vinte e cinco annos passasse.
E se fôr de idade de dezasete annos até vinte, ficará em arbítrio dos Julgadores dar-lhe a pena total ou diminuir-lha.
E em este caso olhará o Julgador o modo com que o delicto foi commettido, e as cincumstancias delle, e a pêssoa do menor; e se o achar em tanta malícia, que lhe pareça que merece total pena, dar-lhe-ha, posto que seja de morte natural.
E parecendo-lhe que a não merece, poder-lhe-ha diminuir, segundo a qualidade, ou simpleza, com que achar, que o delicto foi commettido.
E quando o delinquente fôr menor de dezasete annos cumpridos, postoque o delicto mereça morte natural, em nenhum caso lhe será dada, mas ficará em arbítrio do Julgador dar-lhe outra menor pena.
E não sendo o delicto tal, em que caiba pena de morte natural, se guardará a disposição do Direito Comum.”[8]
Percebe-se, pois, um tratamento extremamente rigoroso por parte do Estado em relação ao sujeito delitivo que ainda se encontrava em tenra idade. Contudo, uma vantagem digna de nota é que poderia vir a ser analisada não só a idade como também circunstâncias e a possibilidade de compreensão acerca daquilo que havia sido cometido. Este é um ponto fulcral, uma vez que possibilita tópica e casuisticamente a busca da capacidade de compreensão e autodeterminação do infrator ao tempo que cometeu a sua conduta.
PERÍODO IMPERIAL
Em sete de setembro de 1822 ocorre a Proclamação da Independência do Brasil. Todavia, somente em 25 de março de 1824 é que será outorgada a Constituição do Império. Por imperativo constitucional, é idealizada a primeira codificação em matéria criminal do país, o qual somente teve existência jurídica em 16 de dezembro de 1830, sendo denominado de o Código Criminal do Império do Brasil.
Com o advento do Código Criminal de 1830, o qual fora amplamente influenciado pela codificação penal francesa de 1810, passou-se a adotar o “Sistema do Discernimento”, possibilitando que o maior de 14 (catorze) anos respondesse criminalmente, sendo recolhido às casas de correção, possibilitando-se, inclusive, a decretação de prisão perpétua. Na letra fria da lei da época:
“Art. 10. Tambem não se julgarão criminosos:
1º Os menores de quatorze annos. (Grifou-se) […]
Art. 13. Se se provar que os menores de quatorze annos, que tiverem commettido crimes, obraram com discernimento, deverão ser recolhidos ás casas de correção, pelo tempo que ao Juiz parecer, com tanto que o recolhimento não exceda á idade de dezasete annos.”[9]
Assim, caso o jovem apresentasse discernimento, embora ainda não contasse com 14 anos, havia uma restrição à reprimenda, pois não poderia o mesmo ficar preso por um elastério temporal superior aos seus dezessete anos. É o que corretamente descreveu Magalhães Noronha[10]: “O Código do Império declarava não criminoso o menor de 14 anos (art. 10), dizendo, entretanto, no art. 13, que se ele tivesse obrado com discernimento, podia ser recolhido à casa de correção, até os 17 anos”.
“O Código fixou a imputabilidade penal plena aos 14 anos de idade, estabelecendo, ainda, um sistema biopsicológico para a punição de crianças entre sete e quatorze anos. Entre sete e quatorze anos, os menores que agissem com discernimento poderiam ser considerados relativamente imputáveis, sendo passíveis de recolhimento às casas de correção, pelo tempo que o Juiz entendesse conveniente, contanto que o recolhimento não excedesse a idade de dezessete anos.”[11]
Havia, ainda, no Código Criminal do Império uma restrição à atividade punitiva estatal caso o jovem infrator ainda não gozasse de 21 anos completos, que era a vedação à imposição da pena de galés[12].
Sem dúvidas, não se pode olvidar que a sistemática codificadora significou um avanço[13] em sede de garantias e realizações de direitos[14], mesmo que de forma ainda embrionária e insipiente:
“A cidadania de dignidade brasileira muito ganhou com o Código Criminal de 1830. Por óbvio que nem sempre o diploma continha o que era de melhor cientificamente. Nesse aspecto, as críticas eram merecidas, não outras como as que se envolviam com a falsa premissa de aumento da criminalidade e os críticos buscavam destruir o caráter liberal do diploma criminal. […]
Como avanços de nossa primeira codificação, pode-se apontar: a) contemplado com a Constituição de 1824 (art. 179, ns. I e XI), o código de 1830 assegurou cidadania ao nullum crimen, nulla poena sine lege (arts. 1º e 33), com os atributos prospectivo e irretroativo da lex poenalis, para os crimes e para as penas.” [15]
Em relação ao jovem infrator, sem dúvidas, significou um verdadeiro avanço, tendo sido, inclusive, aumentada a idade de inimputabilidade. Um ponto digno de nota é a adoção do sistema do discernimento, sendo perquirida a consciência daquele novel indivíduo que praticou uma conduta criminosa ou contravencional, podendo, mesmo que estivesse aquém do marco etário posto, vir a se submeter ao tratamento penal, sendo recolhidos às Casas de Correção. Desta forma, não se fazia presente, uma presunção absoluta de incapacidade criminal[16], sendo feita a devida análise casuística para infligir, ou não, uma pena àquele jovem criminoso que desrespeitou as previsões legislativas.
4. BRASIL-REPÚBLICA
Em 15 de novembro de 1889, ocorrera a Proclamação da República. Nesta oportunidade, diferentemente do que havia acontecido no período anterior, antes mesma da promulgação da Constituição Republicana do Brasil, fora promulgado em 11 de outubro de 1890 o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil (Decreto n. 847). Ou seja, a legislação penal antecedeu a Lei Fundamental do período. Isto é apenas uma característica da época, em que os textos constitucionais não tinham a relevância que lhe devia ser dada, não ocupando a centralidade dos sistemas jurídicos.
4.1. Código Penal dos Estados Unidos do Brasil – Decreto n. 847 de 1890
O Código Penal Republicano de 1890 adotou uma sistemática um pouco diversa, pois determinava a inimputabilidade absoluta aos menores de nove anos completos; aumentou, portanto, o marco anteriormente adotado. Para os maiores de nove e menores de quinze, procedia-se a uma análise acerca do discernimento para que fosse afirmada, ou não, a responsabilidade criminal. De acordo com o dispositivo da época[17]:
“Art. 27. Não são criminosos:
§ 1º Os menores de 9 annos completos;
§ 2º Os maiores de 9 e menores de 14, que obrarem sem discernimento;”
Desta forma, pode-se resumir que a responsabilidade penal ficou assim delineada:
“Irresponsável penalmente seria o menor com idade até nove anos. Quanto ao menor de quatorze anos e maior de nove anos, era adotado ainda o critério biopsicológico, fundado na idéia do “discernimento”, estabelecendo-se que ele se submeteria à avaliação do magistrado.”[18]
Com esta codificação criminal fora mantido o acertado sistema do discernimento, havendo apenas a exclusão apriorística e com presunção absoluta de incapacidade ao jovem infrator que ainda não tivesse completado 9 anos de idade. Além disso, aqueles que ainda não ultrapassassem a marca etária dos 14 anos poderiam vir a ser alvo de um estudo casuístico para que pudesse vir a ser considerado, ou não, capaz de responder criminalmente pela conduta praticada. Fica claro que o sistema do discernimento fez parte de significativa parcela histórica e legislativa do aparato punitivo relacionado ao tratamento a ser dispensado ao indivíduo delitivo.
4.2. Código de Menores de 1927 – Código de Mello Mattos
Esta situação perdurou até que dispositivo que tratava do tema foi revogado em 1921, mais especificamente, pela Lei n. 4.242, de janeiro de 1921, tendo sido abandonado o critério biopsicológico vigente desde o Código Penal de 1890. Nesta feita, passou-se a adotar um parâmetro objetivo. Esta lei representa o reflexo de um movimento mundial em favor do tratamento diferenciado do menor, não mais o considerando em mesmo nível e patamar que o adulto, devendo, assim, por derradeira consequência lógica, ser submetido a um tratamento diverso e especializado.
É o que se pode comprovar pelo art. 1º, do Decreto n. 17.943-A, de 12 de outubro de 1927[19], in verbis:
“DO OBJECTO E FIM DA LEI
Art. 1º O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 annos de idade, será submettido pela autoridade competente ás medidas de assistencia e protecção contidas neste Codigo.”
Com isso, inaugura-se uma nova era em que a “Política da Situação Irregular”[20] começa a ser paulatinamente substituída por um intento protetivo e garantista em relação aos indivíduos que gozassem de tenra idade. Havia, inclusive, um sistema de “serviço e proteção à infância abandonada e delinquente”[21], constando expressamente disposições acerca do tratamento a ser dispensado ao jovem que praticasse uma conduta descrita em lei como crime ou contravenção penal:
“DOS MENORES DELINQUENTES
Art. 68. O menor de 14 annos, indigitado autor ou cumplice de facto qualificado crime ou contravenção, não será submettido a processo penal de, especie alguma; a autoridade competente tomará sómente as informações precisas, registrando-as, sobre o facto punivel e seus agentes, o estado physico, mental e moral do menor, e a situação social, moral e economica dos paes ou tutor ou pessoa em cujo guarda viva.”[22]
Além disso, não se pode olvidar que:
“[…] a legislação das primeiras décadas do século XX respondia aos temores provenientes do aumento da criminalidade infantil e buscava proteger tanto a sociedade quanto a infância. As medidas propostas proporcionavam um maior controle da população nas ruas por meio de intervenção policial.
O sistema de proteção e assistência do Código de Menores submetia qualquer criança, por sua simples condição de pobreza, à ação da Justiça e da Assistência. A esfera jurídica era a protagonista na questão dos menores, por meio da ação jurídico-social dos Juízes de Menores.”[23]
Portanto, a partir de 1926 fica instituído o Código de Menores, Decreto Legislativo de 1º de dezembro daquele ano, impossibilitando a imposição de prisão ao menor de 18 anos que houvesse praticado um ato infracional. Este poderia ficar em uma casa de educação ou preservação até que atingisse os 21 anos, caso não ficasse sob custódia dos pais ou um responsável. Com isso, pode ser percebida uma grande aproximação entre o tratamento dispensado aos menores desta época ao que é dado nos dias atuais.
Ressalte-se a ruptura paradigmática procedida nestas três primeiras décadas do século XXI, pois, até então, a sistemática punitiva aplicável aos jovens infratores estava adstrita a uma busca da capacidade de autodeterminação e consciência que pudesse ter acerca do ato que estava a praticar. Não se pode olvidar que havia alguns limites etários absolutizados (sete e nove anos de idade), em que restava afastada a responsabilização de jovens criminosos, mas convém asseverar que são extremamente baixos. Com os susoditos diplomas normativos, passa a ser adotado um marco etário puramente objetivo, dispensando qualquer análise do discernimento que pudesse ter o sujeito em relação ao ato previsto em lei como crime ou contravenção penal que houvera praticado.
Passa a existir, pois, uma presunção de incapacidade do indivíduo que ainda não alcançou o marco etário estabelecido previamente em lei (leia-se: 18 anos). Deve-se ressaltar que esta é uma presunção absoluta, pois não admite prova em sentido contrário; basta, pois, que o indivíduo demonstra por meio de certidão de nascimento ou documento equivalente que ainda não alcançou a baliza etária estabelecida para que possa se furtar à responsabilização criminal pelo ato praticado, mesmo que já possua capacidade e consciência e isto reste devidamente demonstrado.
4.3. Código Penal de 1940 – Decreto-Lei n. 2.848
Em 07 de dezembro de 1940, é promulgado o atual Código Penal (Decreto-Lei n. 2.848), o qual apenas passou a viger em 1º de janeiro de 1942, adotando o sistema biológico da culpabilidade[24], presumindo, para o menor de 18 (dezoito) anos, de forma absoluta, pois não admite provas em sentido contrário, a inconsciência acerca do caráter ilícito do fato praticado e a incapacidade de determinar-se de acordo com tal entendimento.
O tema da responsabilidade criminal do menor infrator encontra tem sede não só legal como constitucional, havendo triplo tratamento da matéria no Código Penal (art. 27)[25], Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 104)[26] e na Constituição Federal de 1988 (art. 228)[27], respectivamente:
“Menores de dezoito anos
Art. 27 – Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Art. 104. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às medidas previstas nesta Lei.
Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.”
Assim, termina de consolidar a ideia de não mais ser possível atribuir penas stricto sensu ao menor que praticasse um ato infracional. Basta, pois, não ter 18 anos completos para não estar sujeito às disposições presentes no Código Penal. Não havia, diferentemente das legislações pretéritas, a devida preocupação com o discernimento do menor, tutelando-se o indivíduo independentemente da idade psicológica que apresentasse, meramente fundamentado na faixa etária.
4.4. Anteprojeto de 1969 – Nelson Hungria
Por fim, o natimorto Código de 1969 (Anteprojeto Nelson Hungria) tentava resgatar o anterior critério do discernimento – razão pela qual se pode constatar que sofrera duras críticas por parte da doutrina –, com o retorno da aplicação do sistema biopsicológico também aos menores de 18 anos, possibilitando uma redução de pena de 1/3 até a metade, caso o menor apresentasse entre 16 e 18 anos, no momento da prática delitiva, in verbis:
“Menores
Art. 33. O menor de dezoito anos é inimputável salvo se, já tendo completado dezesseis anos, revela suficiente desenvolvimento psíquico para entender o caráter ilícito do fato e determinar-se de acôrdo com êste entendimento. Neste caso, a pena aplicável é diminuída de um terço até a metade.
Art. 34. Os menores de dezesseis anos, bem como os menores de dezoito e maiores de dezesseis inimputáveis, ficam sujeitos às medidas educativas, curativas ou disciplinares determinadas em legislação especial.”[28]
É possível constatar que se consagrava uma presunção de inculpabilidade relativa, tal qual defendida pelo presente trabalho, possibilitando a perquirição da consciência e capacidade de entendimento, em cada caso concreto, diante da análise das circunstancias e do sujeito infrator. A aproximação resume-se a este ponto, pois havia a prévia delimitação de incapacidade pelo sujeito que ainda não havia completado dezesseis anos, diferentemente da flexibilização que aqui está sendo proposta, a qual não traz uma amarra apriorística quanto à idade, restringindo-se apenas à perquirição da capacidade e consciência do sujeito delitivo no caso concreto.
5. CONCLUSÕES
Diante de tudo quanto fora exposto, pode-se chegar às seguintes ilações:
a) Durante um longo período, do descobrimento até a confecção das primeiras codificações pátrias, submetia-se o Brasil aos regramentos provenientes da Metrópole, sendo acolhidas e aplicadas na Colônia as Ordenações (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), até mesmo porque os registros oficiais permaneciam em Portugal. Em matéria criminal pode-se dizer que nas Ordenações Filipinas o marco etário de irresponsabilidade penal fora delimitado nos sete anos de idade, havendo ainda os sujeitos que era considerados como “jovens adultos” (entre dezessete e vinte e um anos), podendo vir a ser condenado à morte ou ter sua pena diminuída, de acordo com as circunstâncias do caso concreto.
b) Com o Código Criminal de 1830, por influência francesa, passa a ser acolhido o Sistema do Discernimento, ao determinar que o menor de quatorze anos não seria julgado criminoso, mas que, se restar provado que os indivíduos abaixo deste marco etário “obraram com discernimento”, nas exatas palavras do código, deveriam ser objeto de recolhimento às casas de correção. Contudo, em tais casos, ficavam recolhidos até que completassem dezessete anos. Aos sujeitos que já tivessem ultrapassado o limite legal dos quatorze anos, aplicava-se, inclusive, a pena de prisão perpétua.
c) A proclamação da república fez com que houvesse uma reforma em matéria criminal. Fora editado o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, com adoção de uma sistemática diversa. Adotava-se a inimputabilidade absoluta aos menores de nove anos completos. Aos maiores de nove e menores de quinze, era feito um estudo do discernimento, possibilitando-se, ou não, a responsabilização do jovem. Restava ainda mantido o sistema do discernimento aos maiores de nove anos de idade. De forma acertada, era feita uma análise do indivíduo para saber se tinha condições psíquicas de vir a ser responsabilizado pela conduta criminosa ou contravencional que viesse a praticar.
Tal sistema fora reformado pela legislação específica (Código de Menores), em que passou a ser impossibilitada a imposição de prisão ao menor de dezoito anos; era apenas possível colocá-lo em casa de educação ou preservação até que alcançasse os vinte anos, caso não ficasse com os pais ou responsáveis.
d) Com o Código Penal de 1940, adota-se o sistema biológico da culpabilidade para o menor infrator. Com isso, equivocadamente, presume-se para o menor de dezoito anos a incapacidade e consciência acerca do caráter ilícito da conduta que está a praticar, afastando-o, de forma açodada e apriorística da devida responsabilização penal que poderia lhe ser impingida, caso fosse demonstrada a capacidade de autodeterminação. É uma presunção legal e absoluta, não admitindo prova em sentido contrário.
Assim, afasta-se, por completo, o jovem da escorreita análise que deveria ser feita acerca do seu nível de compreensão e discernimento. Tal sistema fora mantido com a Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
e) É importantíssimo ressaltar que é mister combater o descolamento do Código Penal e do seu sistema punitivo aos jovens infratores da realidade social circundante. São cada vez maiores os níveis de informação e responsabilidade aos quais os indivíduos que ainda não atingiram o marco legal penalmente adotado estão submetidos, não mais sendo possível entender que não possam ter a sua capacidade, consciência e autodeterminação analisadas para que se possa constatar a possibilidade, ou não, de jungi-los ao aparato punitivo estatal estampado na legislação criminal, com as suas consequentes penas.
Informações Sobre o Autor
Daniel Melo Garcia
Advogado; Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia; Membro associado do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito