Embriaguez ao volante e mortes no trânsito: “novas” polêmicas, “antigas” discussões

Resumo: Análise do PLS n. 48/2011, do HC 107.801, e outras questões polêmicas relativas à embriaguez ao volante e mortes no trânsito


Segundo a Organização Mundial da Saúde, entre todos os países, o Brasil conta com o quinto maior número de mortes ocasionadas por acidentes de trânsito. Estudos da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego revelam que do total de acidentes de trânsito considerados, trinta por cento dos casos envolveram o uso de bebidas alcoólicas.


Se considerarmos os casos de acidente de trânsito que redundaram em resultado morte, os números são ainda mais alarmantes. O Ministério da Saúde relata que cinquenta por cento das mortes ocorridas por consequência de acidentes de trânsito estariam relacionadas à ingestão de bebidas alcoólicas por condutores de veículos automotores.


Diante destes dados alarmantes, o maior rigor da legislação penal de trânsito surge como primeira resposta para fazer frente ao crescente número de casos envolvendo embriaguez com resultado morte.


Contudo, o “Mapa da Violência de 2011 – Os Jovens do Brasil”, estudo resultante da parceria entre o Instituo Sangari e Ministério da Justiça, apurou os índices relativos a violência e a mortandade juvenil. Esta interessante pesquisa revelou que entre os anos de 1998, ano do início da vigência do Código de Trânsito Brasileiro, e 2008, houve um acréscimo nos números de casos de acidentes de trânsito com vítimas, de sete inteiros e setenta centésimos por cento. O resultado entre os jovens é ainda pior. Se considerarmos o mesmo período, o acréscimo é da ordem de vinte inteiros e quarenta centésimos por cento.


No detalhamento deste estudo se considerou três marcos ao logo do tempo. Em um primeiro período tivemos a chamada “Fase Pré-Código de Trânsito”, que compreendeu o período de tempo anterior à edição do diploma legal, ou seja, até o ano de 1996. Nesta fase, foi apurado que o índice de aumento do número de acidentes de trânsito com resultado morte de jovens chegou à ordem dos sete inteiros e vinte centésimos por cento. Já em um segundo momento, no período denominado de “Fase do Impacto do Código de 1997”, considerado até o ano de 2000, ocorreu sensível queda dos índices de mortalidade juvenil resultantes de acidentes de trânsito. Levando em conta todo período, houve diminuição do índice em quatorze inteiros e setenta centésimos por cento do total dos casos.


Os resultados obtidos no período de impacto do Código de Trânsito Brasileiro nos levariam a crer que o simples rigor da então nova lei penal solucionaria este problema nacional. Porém, como de fato ocorreu, o índice da mortalidade juvenil nos últimos anos vem crescendo a passos largos. Os estudos concluíram que na “Fase Pós-Código”, período compreendido entre os anos de 2000 a 2008, a taxa de crescimento anual da mortalidade chega à órbita de dois inteiros e um centésimo por cento.


Com o advento da Lei n. 9.503, de 23 de setembro de 1997, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro, passou a ser tipificada a “embriaguez ao volante” em seu artigo 306, que possuía a seguinte redação: “conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”.


À época desta redação do artigo 306, restou consolidado, na doutrina e na jurisprudência, que se tratava de um crime de perigo concreto, ou seja, para a sua configuração era necessária efetiva demonstração da exposição do bem jurídico a um perigo de dano. No que concerne à “embriaguez ao volante”, o entendimento era de que somente a partir do momento em que o embriagado conduzisse de modo anormal o veículo automotor é que estaria configurado o crime. Além disso, de acordo com a antiga redação do artigo 306, era admitido o chamado exame clínico para a constatação de embriaguez, uma vez que o tipo penal não exigia qualquer quantia mínima de álcool por litro de sangue do embriagado.


Sucede que, a Lei n. 11.705, de 19 de junho de 2008, popularmente conhecida como “Lei Seca”, alterou sensivelmente a redação do dispositivo em questão, in verbis: “conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”. Além de permitir que por ato administrativo “o Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo” (parágrafo único).


A nova disposição de infeliz redação foi duramente criticada pela doutrina, vez que pretendeu tornar a “embriaguez ao volante” em um crime de perigo abstrato, e assim, dispensaria a demonstração da exposição do bem jurídico a um efetivo perigo de dano. E ainda, ao estabelecer a elementar “concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas”, criou a exigência da comprovação do estado de embriaguez pelo exame pericial correspondente, vale dizer, exame hematológico. A detecção da embriaguez por outros métodos como o uso do etilômetro passou a ser admitida por força do estipulado no parágrafo único. Porém, é necessário dizer que o simples exame clínico não supre as novas exigências do tipo penal.


E o legislador penal pretende uma vez mais modificar a norma penal incriminadora da “embriaguez ao volante”, com a proposição do Projeto de Lei do Senado n. 48/2011, de autoria do Senador Ricardo Ferraço. Este projeto visa modificar a redação do artigo 306, Lei n. 9.503, de 30 de setembro de 1997 – Código de Trânsito Brasileiro, nos seguintes termos:


“Art. 306. Conduzir veículo automotor, sob influência de qualquer concentração de álcool ou substância psicoativa que determine dependência:


Penas – detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.


§ 1º Se da conduta resultar lesão corporal, aplica-se a pena de detenção, de 1(um) a 4 (quatro) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.


§ 2º Se da conduta resultar lesão corporal de natureza grave, aplica-se a pena de reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.


§ 3º Se da conduta resultar morte, aplica-se a pena de reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.


§ 4º Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) a 1/2 (metade) se a condução se dá:


I – sem possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação ou, ainda, se suspenso ou cassado o direito de dirigir;


II – com Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação de categoria diferente da do veículo que esteja conduzindo;


III – nas proximidades de escolas, hospitais, estações de embarque e desembarque de passageiros, ou onde haja grande movimentação ou concentração de pessoas;


IV – transportando menor, idoso, gestante ou pessoa que tenha seu discernimento reduzido;


V – no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros ou cargas;


VI – em veículos que exijam Carteira de Habilitação na categoria C, D ou E;


VII – em rodovias;


VIII – gerando perigo de dano.


§ 5º A caracterização do crime tipificado neste artigo poderá ser obtida:


I – mediante testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outros meios que, técnica ou cientificamente, permitam certificar o estado do condutor;


II – mediante prova testemunhal, imagens, vídeos ou a produção de quaisquer outras provas em direito admitidas”.


A predita proposição passou pelo crivo da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, sendo que o parecer da lavra do Senador Relator Vital do Rêgo, em decisão terminativa, votou pela aprovação Projeto de Lei.


Convém rememorar a clássica distinção entre crimes de dano e de perigo. Os primeiros são aqueles em que é exigido para a consumação do delito a efetiva lesão ou ofensa ao bem jurídico. Já os crimes de perigo, de modo geral, são aqueles em que a consumação ocorre com a mera criação de risco ao bem ou interesse jurídico tutelado pela norma penal, ou seja, sem a necessidade da ocorrência de efetivo dano.


Como se sabe, os crimes de perigo são classificados em crime de perigo concreto e crime de perigo abstrato. Perigo concreto é aquele em que se necessita a comprovação da exposição do bem ao risco proibido. Por outro lado, quando se está diante de um perigo abstrato, esta comprovação é dispensada, pelo que a lei presume o perigo.


Pela redação deste projeto de lei, uma vez mais o legislador pretende criar um crime de perigo abstrato. Segundo a proposição, na figura simples (“caput”) não seria necessária comprovação da exposição do bem jurídico tutelado pela norma penal ao risco. Caso o risco seja efetivo e comprovado incidirá para a hipótese a causa de aumento de pena prevista no inciso VIII do parágrafo quarto.


Nota-se que a presente proposição segue uma tendência de política criminal contemporânea, que propõe a criação ou manutenção de crimes de perigo abstrato sob o pretexto de evitar futuras lesões aos bens jurídicos tutelados pela norma penal.


Esta tendência de política criminal foi devidamente destacada na obra de Basileu Garcia:


“Nos dias de hoje, é cada vez maior a importância teórica dos crimes de perigo. Se antes a doutrina concebia um direito penal que agia preponderantemente de forma repressiva, ou seja, posteriormente à lesão a bens jurídicos, fala-se hoje também em atuação penal antecipatória, visando prevenir lesões, e não apenas apenar seus agentes” (GARCIA, B. Instituições de Direito Penal. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 1, tomo I, p. 271).


Contudo, a relação custo-benefício entre a previsão de crimes de perigo e a prevenção criminal ainda foi devidamente comprovada. Ademais, podemos cair no risco de adotarmos um Direito Penal meramente simbólico com bem advertiu Juarez Cirino dos Santos:


“A inibição de impulsos anti-sociais pela ameaça penal somente seria relevante no Direito Penal simbólico, destituído de eficácia instrumental e instituído para legitimação retórica do poder punitivo do Estado – mediante criação / difusão de imagens ilusórias de eficiência repressiva na psicologia do povo –, mas é absolutamente irrelevante no Direito Penal instrumental, cujo objeto é delimitado pela criminalidade comum, área de incidência exclusiva da repressão penal seletiva” (SANTOS, J. C. Direito Penal. 2ª ed., Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2007, p. 481-482).


À luz do princípio da ofensividade, para que uma conduta seja considerada crime, é exigida a presença, no mínimo, de um perigo concreto, real e efetivo de dano a um bem ou interesse penalmente relevante. Em uma de suas facetas o predito princípio visa “proibir a incriminação de condutas desviadas que não afetam qualquer bem jurídico” (BATISTA, N. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11ª ed., Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 94). Todavia, como analisou Eugenio Raúl Zaffaroni “tal princípio é quase sempre aceito em nível discursivo, mesmo que o próprio discurso o desvirtue ao abrir múltiplas possibilidades para racionalizar sua neutralização” (ZAFFARONI, E. R. Direito Penal Brasileiro I. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003, p. 226).


O projeto de lei pretende incriminar uma conduta incapaz de por si só colocar em perigo concreto o interesse jurídico que visa tutelar penalmente. Em outras palavras, ao propor transformá-lo em um crime de perigo abstrato, a norma penal incriminadora passará a descrever uma conduta incapaz de colocar em risco efetivo o bem jurídico. Em última análise, a presente proposição é inconstitucional, por violar o princípio da ofensividade.


Neste mesmo sentido já se manifestou Cezar Roberto Bitencourt, para quem:


“São inconstitucionais todos os chamados crimes de perigo abstrato, pois, no âmbito do Direito Penal de um Estado Democrático de Direito, somente se admite a existência de infração penal quando há efetivo, real e concreto perigo de lesão a um bem jurídico determinado (BITENCOURT, C. R. Tratado de Direito Penal. 16ª ed., São Paulo: Editora Saraiva, 2011, v. 1, p. 52).


De outra banda, a discussão acerca do elemento subjetivo da conduta no caso de embriaguez ao volante com resultado morte sempre rendeu polêmicas perante a opinião pública, além de acalorados debates na doutrina e jurisprudência. Afinal, o condutor embriagado de veículo automotor pratica homicídio culposo de trânsito ou homicídio doloso, com base na teoria da representação (dolo eventual)?


Distinguir o dolo eventual da culpa consciente sempre foi uma das tarefas mais árduas e ingratas do Direito Penal. A linha que difere uma modalidade de crime de outra é bem tênue, uma vez que tanto no dolo eventual como no caso de culpa consciente há a previsibilidade do resultado. Portanto, como distinguir o dolo eventual da culpa consciente? Existem fundamentalmente duas teorias que buscam traçar a distinção entre o dolo eventual e a culpa consciente.


A primeira teoria se atém essencialmente na probabilidade do resultado, ou seja, se a ocorrência do resultado for muito provável será o caso de dolo eventual, e, por outro lado, se a ocorrência deste for pouco provável estar-se-ia diante de um caso de culpa consciente. O conceito de maior ou menor probabilidade da conduta é fluido o suficiente para permitir casuísmos e o arbítrio estatal. Como se nota, a teoria da probabilidade despreza o elemento volitivo da conduta, que ao nosso juízo é indispensável para a correta distinção entre dolo eventual e culpa consciente.


Em sintonia com a atual teoria geral do crime de índole finalista, a teoria da vontade resolve com superioridade a questão. Ensinava com maestria Aníbal Bruno que: “o fato doloso e o fato culposo, que, segundo a doutrina tradicional, só se distinguem no campo da culpabilidade, separam-se, na teoria finalista, desde o momento inicial da ação” (BRUNO, A. Direito Penal. 5ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2003, tomo I, p. 189). Para esta teoria, além da análise acerca da probabilidade do resultado, há a necessidade de ser analisado o elemento volitivo da conduta. No dolo eventual, além do agente representar a probabilidade do resultado, concorda com a sua ocorrência. Ao contrário, no caso da culpa consciente, o agente representa a probabilidade do resultado, mas não desejando a sua ocorrência, calcula mal e age, produzindo o resultado.


Diante da tormentosa tarefa de distinguir estes institutos, Cezar Roberto Bitencourt leciona que:


“A distinção entre dolo eventual e culpa consciente resume-se à aceitação ou rejeição da possibilidade do resultado. Persistindo a dúvida entre um e outra, dever-se-á concluir pela solução menos grave, qual seja, pela culpa consciente, embora equivocadamente, não seja essa a orientação adotada na praxis forense” (BITENCOURT, C. R. Tratado de Direito Penal. 16ª ed., São Paulo: Editora Saraiva, 2011, v. 2, p. 343).


Recentemente, foi proferida importante decisão sobre o tema. A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do Habeas Corpus n. 107.801, desclassificou o caso para homicídio culposo (artigo 302, do Código de Trânsito Brasileiro), in verbis:


“PENAL. HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO QUALIFICADO A TÍTULO DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EMBRIAGUEZ ALCOÓLICA. ACTIO LIBERA IN CAUSA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO VOLITIVO. REVALORAÇÃO DOS FATOS QUE NÃO SE CONFUNDE COM REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. ORDEM CONCEDIDA.


1. A classificação do delito como doloso, implicando pena sobremodo onerosa e influindo na liberdade de ir e vir, mercê de alterar o procedimento da persecução penal em lesão à cláusula do due process of law, é reformável pela via do habeas corpus.


2. O homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB) prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção ante a embriaguez alcoólica eventual.


3. A embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo.


4. In casu, do exame da descrição dos fatos empregada nas razões de decidir da sentença e do acórdão do TJ/SP, não restou demonstrado que o paciente tenha ingerido bebidas alcoólicas no afã de produzir o resultado morte.


5. A doutrina clássica revela a virtude da sua justeza ao asseverar que “O anteprojeto Hungria e os modelos em que se inspirava resolviam muito melhor o assunto. O art. 31 e §§ 1º e 2º estabeleciam: ‘A embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos, ainda quando completa, não exclui a responsabilidade, salvo quando fortuita ou involuntária. § 1º. Se a embriaguez foi intencionalmente procurada para a prática do crime, o agente é punível a título de dolo; § 2º. Se, embora não preordenada, a embriaguez é voluntária e completa e o agente previu e podia prever que, em tal estado, poderia vir a cometer crime, a pena é aplicável a título de culpa, se a este título é punível o fato’ (Guilherme Souza Nucci, Código Penal Comentado, 5. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: RT, 2005, p. 243).


6. A revaloração jurídica dos fatos postos nas instâncias inferiores não se confunde com o revolvimento do conjunto fático probatório. Precedentes: HC 96.820/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 28/6/2011; RE 99.590, Rel. Min. Alfredo Buzaid, DJ de 6/4/1984; RE 122.011, relator o Ministro Moreira Alves, DJ de 17/8/1990.


7. A Lei nº 11.275/06 não se aplica ao caso em exame, porquanto não se revela Lex mitior, mas, ao revés, previu causa de aumento de pena para o crime sub judice e em tese praticado, configurado como homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB).


8. Concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao paciente para homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB), determinando a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba/SP”.


Malgrado estes posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais, o legislador penal ainda pretende apresentar uma outra proposição no mínimo inusitada. Segundo a imprensa, o Senador Ricardo Ferraço estuda com a sua assessoria a possibilidade de que fique estabelecido na legislação que qualquer motorista flagrado dirigindo alcoolizado, com as devidas provas, nos casos de morte, seja julgado por prática de homicídio doloso – com intenção de matar – e não homicídio culposo, ou seja, quando não há intenção de colocar a vida de terceiros em risco.


Caso a pretensão do legislador se torne projeto de lei, inevitavelmente estaremos diante de um flagrante caso de inconstitucionalidade. Pensemos na seguinte situação hipotética: um ciclista embriagado atropela uma vítima que morre. Este ciclista seria responsabilizado em tese por homicídio culposo (artigo 121, parágrafo terceiro, do Código Penal). Sob esta ótica, na eventualidade desta proposta, estar-se-ia violado o princípio constitucional da isonomia ou igualdade, vez que nada justifica este tratamento diferenciado.


Com a devida vênia, mas se esta ideia se transformar em proposição legislativa, e posteriormente lei, estar-se-ia diante de um verdadeiro arbítrio estatal. Quanto aos demais crimes culposos, passariam a serem considerados crimes dolosos? O que justifica este tratamento diferenciado para o caso de embriaguez ao volante com resultado morte?


Nem mesmo o argumento de que estaríamos diante de um caso de maior desvalor da ação parece convencer. Sendo o desvalor do resultado o mesmo, ou seja, a morte, esta exacerbação do tratamento penal ultrapassa os limites da necessidade. O legislador deve proteger os bens ou interesses jurídicos com o mínimo de sacrifício do direito de liberdade. Com efeito, a proposta, além de violar o princípio da isonomia ou igualdade, viola também o princípio da proporcionalidade.


Por outro lado, deve-se levar em conta que a possibilidade da coexistência de soluções judiciais díspares é matéria pertinente ao processo penal. A proposta esvaziaria o poder jurisdicional, pelo que subtrairia do juiz o dever-poder de apreciar o elemento subjetivo da conduta do agente. Pelos princípios da livre investigação das provas e da persuasão racional do juiz, cada caso deve ter o tratamento que merecer quanto à tipificação criminal. Diante das provas existentes no processo, cabe ao magistrado dar o colorido jurídico ao fato.


Neste sentido se manifestou Eugenio Raúl Zaffaroni:


“O limite entre o dolo eventual e a culpa com representação é um terreno movediço, embora mais no campo processual do que no penal. Em nossa ciência, o limite é dado pela aceitação ou rejeição da possibilidade de produção do resultado, e, no campo processual, configura um problema de prova que, em caso de dúvida sobre a aceitação ou rejeição da possibilidade de produção do resultado, imporá ao tribunal a consideração da existência de culpa, em razão do benefício da dúvida: in dubio pro reo”. (ZAFFARONI, E. R. Manual de Direito Penal brasileiro. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, v. 1, p. 431).


Por derradeiro, ao legislador penal não é dado desvirtuar a natureza dos institutos jurídicos consolidados. Parece ser ilógico e irreal o legislador pretender definir que casos que poderiam ser tipificados como crimes culposos, sejam considerados dolosos. Em última análise, seria o mesmo que pretender definir na lei que “o céu passará a ser considerado de cor vermelha”.


Ao que tudo indica, a doutrina e jurisprudência devem ficar em estado de alerta, uma vez que o legislador poderá propor novas leis que com absoluta certeza complicaram ainda mais a tarefa de aplicar a norma penal. Acreditamos que o legislador deve editar normas penais que estejam em harmonia com o ordenamento jurídico, e antes de pensar em um maior rigor penal, deve cobrar da Administração Pública a efetiva aplicação das leis já postas, ou seja, uma maior fiscalização a cargo dos agentes públicos competentes.


 


Referências bibliográficas:

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11ª ed., Rio de Janeiro: Revan, 2007.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 16ª ed., São Paulo: Editora Saraiva, 2011, v. 1 e 2.

BRUNO, Aníbal. Direito Penal. 5ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2003, tomo I.

GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 1, tomo I.

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. 2ª ed., Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2007.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Direito Penal Brasileiro I. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal brasileiro. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, v. 1.


Informações Sobre o Autor

David Pimentel Barbosa de Siena

Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura, Delegado de Polícia do Estado de São Paulo, Professor de Direito Penal da UniABC – Universidade do Grande ABC.


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