Resumo: o presente trabalho tendo como base o direito fundamental à propriedade pelo qual é assegurado o seu exercício pleno (usar, gozar e dispor da coisa) possui como finalidade analisar como este direito interfere na promoção e manutenção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado via o atendimento da função sociambiental da propriedade. Nesse sentido, se realizou um estudo bibliográfico dos principais textos doutrinários e legais relativos ao tema, empregando-se o método da hermenêutica-jurídica no desenvolvimento de uma abordagem sistêmica do objeto por meio da interpretação do real sentido desse direito e suas relações com os preceitos ambientais contidos no sitema jurídico brasileiro. Tal abordagem permitiu constatar que este direito quando exercido de modo consentâneo com as regras tuteladoras do meio ambiente ecologicamente equilibrado funciona como expressivo instrumento de garantia à sadia qualidade de vida e de efetivação do atual Estado Socioambiental de Direito.
Palavras-chave: Direito fundamental à propriedade. Função socioambiental da propriedade. Estado Socioambiental de Direito.
Sumário: 1. Introdução. 2. O Estado Socioambiental de Direito Brasileiro. 3. O direito de propriedade no ordenamento jurídico pátrio. 4. O exercício do direito de propriedade em face da sua função socioambiental. 5. Considerações finais.
1. Introdução
A atual Constituição Federal do Brasil destaca no artigo 225 a necessidade da atuação tanto do Poder Público quanto da coletividade para promoção do equilíbrio ecológico do meio ambiente, necessário para à sadia qualidade de vida da presente e futura geração; sem desconsiderar essa atuação conjuta, merece relevo a ação da coletividade em face da sua significativa interferência no meio ambiente em razão dos indivíduos que a constitui serem os titulares do que o ordenamento jurídico nacional considera como propriedade (bem/coisa sob a administração de um proprietário), cuja determinação material abrange também a apropriação da natureza, e aí dos recursos naturais, estando assim diretamente associada à questão da defesa ambiental.
Desta forma, o presente trabalho tem como objetivo central analisar juridicamente como o direito de propriedade albergado em nosso arcabouço jurídico interfere no alcance e na manutenção de um meio ambiente equilibrado, atentando-se para as principais disposições normativas relativas à essa temática e a relevância da positivação da função socioambiental como princípio jurídico norteador do exercício do direito de propriedade e sua contribuição para a efetivação do atual Estado Socioambiental de Direito Brasileiro.
Para consecusão desta análise se realizou um estudo bibliográfico das obras e diplomas normativos referenciais ao tema, tendo como método científico a hermenêutica jurídica com vistas na interpretação do real sentido do instituto da propriedade e suas relações dentro do sitema jurídico nacional.
2. O Estado Socioambiental de Direito Brasileiro
Os atuais Estados Nacionais cofiguram estruturas políticas resultantes do processo político-histórico da humanidade, cujas conjunturas edificaram primeiramente o Estado Liberal, posteriormente o Estado Social de Direito e mais recentemente o Estado Socioambiental de Direito.
Os Estados iniciamente buscaram a defesa e implementação de uma organização estatal voltada para assegurar precipuamente uma ordem jurídica, política e econômica das nações; formato que em face dos anseios e desafios da própria humanidade evoluiu para um modelo estatal fundamentado no crescimento econômico como solução para o progresso e garantia da qualidade de vida social, ou seja, o Estado Social de Direito. Todavia, apesar da preocupação com a sadia qualidade de vida da humanidade, tal modelo contraditóriamente ignorou à questão ambiental, dimensão diretamente associada ao desenvolvimento econômico, sobre a qual nos anos 70 a sociedade com base na deterioração dos recursos naturais que até então se notabilizou, atentou-se para necessidade de um novo paradigma constitucional consubstaciado na defesa do meio ambiente. Asseverando Silveira (2011) que a superação do Estado Social para um Estado Socioambiental foi fruto de uma crise ambiental e de avanços normativos compromissados com proteção do meio ambiente com finalidade de agregação de novos “contornos da dignidade humana”.
Assim, o atual arcabouço constitucional brasileiro fulcrado na hodierna Constitução Federal de 1988 emerge como exemplo material da postulação de um Estado Socioambiental de Direito ao tutelar o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225) e dispor a defesa ambiental como princípio que deve ser observado pela atividade econômica e financeira nacional (artigo 170, inciso II), colocando a preservação do meio ambiente como norte para à efetivação dos direitos fundamentais; inclusive para o direito de propriedade que por sua natureza está extremamente ligado à causa ambiental. Pelo que o legislador ao discipliná-lo estabeleceu regras para o seu exercício em razão do seu intríseco aspecto socioambiental.
3. O direito de propriedade no ordenamento jurídico pátrio
De acordo com doutrina jurídica brasileira a determinação conceitual da propriedade constitui uma atividade complexa devido a sua peculiar variação, sobre a qual Silva (1997) assevera que é mais indicado referir-se a propriedades (em razão da existência da propriedade pública, privada, urbana e rural). Apesar do não oferecimento pela legislação nacional de um conceito específico desse direito, é consensual o entendimento de que consiste num direito individual ou direito subjetivo que assegura ao titular de um bem/coisa a sua exploração dentro dos limites dispostos na lei, dentre os quais menciona-se a sua íntima relação com a qualidade e conservação do meio ambiente.
Constitucionalmente, tal direito é disciplinado dentre o rol dos direitos fundamentais, pelo que o legislador positivou a sua garantia a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no País (artigo 5º, inciso XXII), estabelecendo-o também como princípio da ordem econômica (artigo 170, inciso II) e como instituto da política urbana e agrícola (nos respectivos artigos: 182, § 2º e 182 ao 191). Especificamente, é normatizado na Lei n. 10.406/02 (Código Civil de 2002), no Livro III – Direitos das Coisas, Título III (artigos 1228 ao 1377).
Desse modo, sobre esta abordagem infraconstitucional vale destacar as características gerais do direito de propriedade presentes no Código Civil. Tal diploma ao mesmo tempo em que anunciou os poderes de proprietário, dispôs sobre os elementos constitutivos da propriedade no artigo 1228 com a seguinte redação: “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”. As faculdades de usar, gozar, dispor e de reaver a coisa do possuidor ou detentor que a detém injustamente são exatamente os atributos que perfazem o direito de propriedade; usar (jus utendi) significa a prerrogativa que o dono tem de utilizar a coisa como lhe convém em conformidade com os preceitos legais, gozar (jus fruendi) corresponde a fruição do bem por meio da apropriação dos frutos naturais e civis e utilização econômica de seus produtos, o direito de dispor (jus abutendi) consiste na faculdade de tranferir ou alienar a coisa a outrém ou gravá-la de ônus, já rei vindicatio reflete o direito de exigir via ação reivindicatória o bem de quem a detém sem causa jurídica (injustamente).
Nesse sentido, depreende-se que mesmo o texto constitucional garantindo o pleno exercício ao direito de propriedade a todos que residem no país e apesar dos atributos deste direito tutelarem o interesse de seu titular, a sua efetivação não se dá de modo livre, ou seja, tão somente voltado para o interesse individual do proprietário; como aludido o seu titular deve exercê-lo em consonância com os comandos legais que buscam essencialmente o bem-estar da coletividade. E para o alcance deste intento, necessariamente o interesse individual não pode se sobrepor ao bem comum, deve a este se conjugar, através da observação do proprietário para o aspesto sociológico e ambiental inerente à propriedade.
4. O exercício do direito de propriedade em face da sua função socioambiental
Assim como ocorreu com o Estado que por meio dos anseios e tranformações sociais evoluiu para o atual estágio Socioambiental de Direito, o instituto da propriedade também sofreu altereções conforme o pensamento e a estrutura político-social predominante no decorrer histórico. Na civilização grega assumiu o caráter social, ou seja, era exercida para atender as necessidades de seu titular de modo consentâneo aos interesses da coletividade. Na civilização romana de forma inversa foi concebida como um direito absoluto, exclusivo e eterno, pelo qual o proprietário podia se utilizar ou não do bem de acordo tão somente com suas conveniências. Em seguida no período medieval volta a assumir ainda que inexpresivamente o seu aspecto solidário com o domínio útil da terra pelo vassalo no sistema feudal. No século XII, a propriedade através da atuação da Igreja Católica que teve como expoente Santo Tomaz de Aquino e posteriores encíclicas papais reassumiu o caráter grego, sendo sustentada a necessidade do Estado discipliná-la em atendimento do bem comum, ou seja, da sua função social.
Tal ideologia se firmou no século XX e influenciou os ordenamentos jurídicos da vários países como o brasileiro. Entretanto, a propriedade na construção e evolução da estrutura jurídica brasileira também sofreu mundanças estruturais, passando de um direito livre e exclusivamente individual para um direito cujo contéudo detém uma função social, dissertando Gonçalves (2008) que o perfil atual do direito de propriedade no direito brasileiro deixou de apresentar caractérísticas de direito absoluto e ilimitado para se transformar em um direito de finalidade social. Finalidade esta que conforme aludido em razão do atual Estado Socioambiental de Direito assume também o sentido ambiental intrínseco à propriedade, incidindo sobre esta o princípio da função socioambiental albergado pela legislação nacional.
O princípio da função socioambiental da propriedade emerge no sistema jurídico brasileiro como uma necessidade de se preservar o meio ambiente em nome da existência digna da humanidade, demandando uma ética socioambiental sobre a natureza. Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 ao garantir o direito de propriedade (artigo 5º, inciso XXII) estabelece também que esta propriedade deve atender a sua função social (artigo 5º, inciso III), tendo esta função como um princípio constitucional (artigo 170, inciso III), que em razão do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225) assume a dimensão ambiental, estando desta forma também previsto em âmbito infraconstitucional na seguinte disposição do Código Civil de 2002:
“Art. 1.228. (…)
§1º. O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.”
Desse modo, a propriedade deve ser administrada pelo seu titular em atendimento de seus interesses sem o comprometimento da qualidade e preservação do meio ambiente, seja a propriedade urbana ou rural, para as quais o legislador previu a observância do princípio da função socioambiental. Sobre a propriedade urbana a norma constitucional dispôs que “ a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor” (artigo 182, § 2º), o qual como prescreve a Lei Federal n.10.257/01 deve se pautar na diretriz de proteger, preservar e recuperar o meio ambiente natural e construído, o patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico (artigo 39 e artigo 2º, inciso XII); para a propriedade rural ponderou que:
“Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.”
Como se observa, tanto na propriedade urbana quanto na rural há a preocupação voltada para a questão ambiental; na primeira há uma garantia ecológica holística na medida em se tutela o meio ambiente nas suas diversas dimensões (natural, construído, paisagístico etc), na segunda mesmo se resguardando os aspectos da produção (aproveitamento racional e adequado) há a atenção para o aspecto social (ao se referir as relações de trabalho, proprietários e trabalhadores, bem como o aspecto ambiental (quando se destaca o manejo adequado dos recursos naturais e a preservação ambiental). Dessa forma, a função socioambiental da propriedade funciona como instrumento de tutela à conservação do meio ambiente, pois uma vez descumprida enseja a desconsideração do próprio direito pela ordem jurídica incidindo sobre a propriedade a intervenção mais severa do Estado na propriedade privada que é a desapropriação em nome do bem comum da coletividade.
Considerações finais
Por meio do estudo realizado constata-se que o instituto da propriedade apesar de ser garantido juridicamente não licencia uma administração livre, a fruição sobre o bem/coisa deve ser exercida em conssonância com os preceitos ambientais e sociais presente no sitema jurídico.
Entretanto, tal atuação não constitui uma limitação absoluta ao titular como se este somente possa agir em função do atendimento dos comandos ambientais em função única do interesse coletivo, contrariamente, deve o proprietário exercer seu direito tutelado constitucionalmente em proveito mesmo de sua própria qualidade de vida e fruição da propriedade alcançando por consequência o bem coletivo através da proteção do meio ambiente.
Assim, o direito de propriedade exercido com base na função socioambiental intríseca à propriedade funciona como um direito-dever já que é devido ao seu titular exercê-lo focado no bem comum em promoção da defesa ambiental, consubstanciando-se como mecanismo essencial para promoção do equilíbrio ambiental em garantia à existência humana com dignidade, e sobretudo, para concretização do atual Estado Socioambiental de Direito.
Informações Sobre o Autor
Manoel Nascimento de Souza
Graduado em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)