Resumo: Este trabalho buscará a partir da análise dos principais conceitos apresentados na obra “Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua”, de Giorgio Agamben, quais sejam, os conceitos de vida nua, biopolítica, homo sacer, bando, sacro e poder soberano, demonstrar que a sociedade brasileira pode servir perfeitamente como objeto de análise a partir da perspectiva apresentada na obra mencionada, uma vez que nela se prioriza cada vez mais o discurso relativo à implementação de direitos e garantias fundamentais, entretanto permanece somente o aspecto discursivo, e assim, poderíamos dizer que o discurso normativo jurídico é meramente simbólico. Neste sentido, percebe-se uma verdadeira precarização da vida do brasileiro, em detrimento da ausência de pragmatismo na implementação de direitos fundamentais. Considerando isto, tentaremos demonstrar que a biopolítica está fundamentalmente ligada ao que concerne à precarização, como forma de legitimar as arbitrariedades do Estado.
Palavras-chave: precarização, homo sacer, vida nua, biopolítica.
Abstract: This study aims, from the analysis of the main concepts presented in the book “Homo Sacer: sovereign power and bare life”, by Giorgio Agamben, namely, the concepts of bare life, biopolitics, homo sacer, band, sacred and sovereign power, demonstrate that the Brazilian society can serve as an object of analysis from the perspective presented in the work mentioned, since in that it is gave the priority to the discourse on the implementation of fundamental rights and guarantees, however remains only in the aspect of discourse, and so we could say that the normative legal discourse is merely symbolic. In this sense, we can see a real deterioration of the brazilian life, considering the lack of pragmatism in the implementation of fundamental rights. Considering that, we will try to demonstrate that biopolitcs has a fundamental link in what concerns the precariousness, as a way to legitimate the arbitrariness of the state.
Keywords: precariousness, homo sacer, bare life, biopolitics.
Sumário: 1. Introdução. 2. O poder soberano e sua legitimação pela biopolítica. 3. O Homo Sacer e o Sacro como representações da vida nua. 4. O Estado de exceção: esfera espacial da vida nua. 5. O campo e o campo de concentração. 6. O bando, o bandido e os banidos. 7. O Homo Sacer brasileiro e seu alastramento: reflexos da vida nua na sociedade brasileira. 8. Conclusão.
1 INTRODUÇÃO
A obra Agambeniana “Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua” é de fundamental importância para o entendimento do funcionamento daquelas que se denominarão “sociedades de exceção” contemporâneas, sendo que os conceitos elaborados pelo autor, principalmente aqueles que justificam a existência da vida nua em tais sociedades, como por exemplo o conceito de bando e o próprio conceito de sacro, são peças chave que permitem fundamentar a presença do zoé nestes tipos de sociedade, que pode ser caracterizado pela seu eminente e exclusivo aspecto biológico, dissociado de qualquer valor ou importância perante a sociedade.
Poderíamos pensar tal perspectiva quando comparamos os aglomerados ou favelas brasileiras ao que o Giorgio Agambem denomina campo ou campo de concentração, considerando que em tais locais, a vida humana é perfeitamente matável e insacrificável. (AGAMBEN, 2007, p. 178)
As inúmeras críticas muito inteligentemente e sutilmente realçadas por Agamben deixam evidente que no contexto contemporâneo de produção normativa, a inclusão do indivíduo representativo da zoé, ou da simples vida destituída de qualquer valor, é feita através da exclusão, inclui-se excluindo. (AGAMBEN, 2007, p. 34)
A perspectiva da vida nua enunciada por Agamben tem como paradigma os campos de concentração que fizeram parte indissociável do contexto do Holocausto, dentro dos quais o ser denominado “humano” não representava mais qualquer tipo de humanidade, mas estava destituído de qualquer das qualidades que poderiam caracterizá-lo como tal.
Neste sentido, a vida nua pode ser representada na sociedade brasileira como a representação da própria ausência de concretização de direitos, a partir de normas substancialmente implementadas. Na realidade, o que se percebe na sociedade brasileira é que, apesar da existência de um ordenamento normativo tido como avançado, existe na realidade uma normatização simbólica, que visa dar apenas uma sensação de segurança em relação às intempéries sociais, mas que na realidade fica somente “no papel”. (GONTIJO, 2007, p. 5.892)
Passar-se-á a análise das conceituações apresentadas por Agamben, no sentido de demonstrar a localização da vida nua na sociedade brasileira.
2 O PODER SOBERANO E SUA LEGITIMAÇÃO PELA BIOPOLÍTICA
De acordo com a análise agambeniana apresentada, o conceito de poder soberano está correlacionado com a qualidade de vida nua do sujeito brasileiro e necessariamente impõe ao sujeito brasileiro esta condição. O poder soberano é que concede ao Estado, numa acepção ampla, a possibilidade de ditar a regra, e neste, a norma é aplicada por meio da exclusão, ou seja, o individuo se submete ao poder soberano na medida em que é excluído pelo mesmo do ordenamento normativo.
Para isto, o autor utiliza-se do conceito de soberania apresentado por Carl Schmitt, o qual diz que “soberano é aquele que decide sobre o Estado de exceção”. (AGAMBEM, 2007, p. 19). Justificando a existência do poder soberano como forma de controle do Estado de exceção, Agamben demonstrar que o conceito apresentado está intimamente relacionado com a vida e que confina a mesma. O autor ainda questiona que o soberano está ao mesmo tempo inserido e exteriorizado pelo ordenamento jurídico, visto que é ele quem decide sobre a validade ou não da lei no espaço do Estado.
Isto implica dizer que o poder soberano poderá ditar qualquer norma e qualquer comportamento dentro da sociedade, em virtude de estar o mesmo, ao mesmo tempo que presente em todo o ordenamento jurídico, fora dele. Esta presença-ausência se demonstra pelo simples fato de que, ao proclamar o Estado de Exceção, o soberano não se submete a mesma, mas é quem a determina.
Logo, em aplicação da teoria schmittiana, constata-se que “na sua concepção, o direito não é apto a decidir no caso concreto, assumindo essa função a soberania – logo, o soberano”. (CÂMARA, 2008, p. 1.047)
E é justamente pela Biopolítica que se torna possível o controle total e absoluto do Estado sobre os indivíduos. Nas palavras de Agamben, na “biopolítica moderna, soberano é aquele que decide sobre o valor ou sobre o desvalor da vida enquanto tal”. (AGAMBEN, 2007, p. 149)
A biopolítica se traduz então na verdadeira discricionariedade que possui o poder soberano do Estado de estabelecer se uma determinada vida vale a pena ser vivida, ou se a mesma pode ser eliminada sem que haja qualquer punibilidade envolvendo tal ato de homicídio. A vida nua dependente desta discricionariedade é uma vida sem qual valor e sem qualquer sentido político, tem apenas sentido fisiológico, enquanto corpo em mero funcionamento metabólico e biológico.
Percebendo que tal conceituação possui uma relação instrumental com as sociedades modernas (nosso foco se dará na sociedade brasileira), é que podemos entender o conceito de vida sacra, ou da elaboração da estrutura do Homo Sacer, como vida insacrificável e matável.
A “vida-morta” do Homo Sacer só é possível, só e manejável, se pensarmos a biopolítica como arcabouço de controle efetivo e permanente sobre a vida humana; em sendo assim, podemos enxergar nos Estados fascistas totalitários o verdadeiro Estado biopolítico.
Mas pode se questionar se já foi alcançado um nível absoluto de biopolítica, e a resposta a que felizmente chegamos é que não. Não, em detrimento do fato de que, se tal tipo de construção política se efetivasse, ela seria o berço de sua própria destruição, pois haveria inevitavelmente a extinção do biós como forma de vida política ativa.
Agamben (2007, p. 156-157) afirma categoricamente que
“As leis sobre a discriminação dos hebreus monopolizaram de modo quase exclusivo as atenções dos estudiosos da política racial do terceiro Reich; entretanto a sua plena compreensão só é possível se são restituídas ao contexto geral da legislação e da praxe do nacional-socialismo. Elas não se exaurem nem com as leis de Nuremberg, nem com a deportação nos campos e nem mesmo com a “solução final”: estes eventos exclusivos do nosso século [século XX] têm o seu fundamento na assunção incondicionada de uma tarefa biopolítica, na qual a vida e a política se identificam (“Política, ou seja, o dar forma à vida de um povo”); e apenas se são restituídas ao seu contexto “humanitário”é possível avaliar plenamente a sua desumanidade.” (grifo nosso)
È, portanto, só no momento em que há a consagração da biopolítica que se torna possível entender a vida como mera representação fisiológica, ou seja, a própria vida nua. E é só assim que se torna inteligível a sacralização da vida humana.
3 O HOMO SACER E O SACRO COMO REPRESENTAÇÕES DA VIDA NUA
Uma das análises conceituais realizada por Giorgio Agamben na obra em comento se refere à categorização romana Homo Sacer, o homem sacro por excelência, não por possuir um caráter de divindade, mas por estar completamente destituído de características humanas essenciais e comuns a qualquer outro indivíduo.
O sacro, segundo Agamben, se consubstancia no indivíduo que é impuro, e que por este motivo, não é nada além do que uma vida desnuda, uma vida fisiológica, e neste sentido, o autor se utilizará do exemplo do Homo Sacer romano para justificar que seu status perante a sociedade é de insacrificabilidade, mas que esta insacrificabilidade se resume meramente a um aspecto “sobre-natural” deste ser, que, apesar disso, é matável sem que disto decorra qualquer punibilidade. (AGAMBEN, 2007, p. 112)
O principal aspecto, portanto, que caracteriza o homem sacro é que o mesmo é insacrificável, e ao mesmo tempo matável na medida em que sua vida sacra é dúbia. Ao comentar sobre o homem sagrado, Enriquéz (2006, p. 7) diz que
“Assim, o homem dito autônomo, o homem sacralizado e sagrado dos tempos modernos, pode vir a ser como o Homo sacer do antigo direito romano, um indivíduo não sacrificável – pois isso significaria que ele ainda é parte da espécie humana –, mas sim um indivíduo passível de ser morto sem sanção”. (ENRIQUEZ, 2006, p. 7)
Agamben ainda demonstra que a sacralização deste homem impuro não é uma sacralização divinizadora, e utiliza-se do exemplo de que aqueles que são maus também são temidos em decorrência de certo aspecto de religiosidade, o que coloca este ser em uma zona de indistinção entre o profano e o sagrado, entre o temido e o venerado, motivo pelo qual o Agamben denotará a existência de uma ambivalência do sacro. (AGAMBEN, 2007, p. 93)
Pensando tais conceituações a partir do que vivemos na modernidade, pode ser dito que “os indivíduos deixaram de ser sujeitos de direito e passam a ser – no interior dessa biopolítica da população, analisada por Foucault como própria de fins do século 19 – corpo espécie, isto é, corpos trazidos pela mecânica do vivente limitados a seu estatuto vital”. (CAPONI, 2004, p. 450)
4 O ESTADO DE EXCEÇÃO: ESFERA ESPACIAL DA VIDA NUA
O Estado de exceção já se consolidou na realidade vivida como espaço no qual a vida é destituída de qualquer sentido, o espaço no qual ocorre a legitimação das práticas de “fisiologização” do indivíduo, no qual o Estado assume papel fundamental de consolidação dessa representação excludente-includente.
Na acepção agambieniana, o Estado de exceção possui inúmeras acepções, as quais se consolidam em contextos específicos. Na realidade, o estado de exceção se consolida na medida em que se constitui no espaço no qual a vida política zoé, a vida ativa e plena, é extinta, seja em detrimento de um bem maior qualquer do próprio Estado, seja porque qualquer indivíduo está sujeito as suas injunções da forma à qual aquele achar necessário.
Aliás, poderíamos trazer a tona o aspecto da necessidade exceptiva, ou seja, da necessidade[1] como justificadora do estado de exceção, como responsável pela consolidação do sujeito como vida nua, que não merece ser vivida.
O Estado de exceção é conceitualmente caracterizado como estrutura biopolítica originária na qual o Direito inclui em si o ser vivente por meio de sua própria suspensão. (AGAMBEN, 2004, p. 14) Ele expressa o limite existente entre uma ordem jurídica e uma ordem desjuridicizada.
Na contextualização do Estado de exceção no contexto dos Estados Modernos, pode se perceber que as próprias ordens constitucionais possibilitam a existência de dispositivos que permitam a substituição de uma ordem pautada pela legalidade em uma ordem embasada exclusivamente no poder executivo soberano.
Mesmo assim, esclarece-se que o conceito de Estado de exceção está diretamente ligado a algo excludente, cujo cerne está exatamente na exclusão de quaisquer garantias constitucionais em detrimento de uma alegada coesão estatal indiscutível. Entretanto, no contexto da modernidade, a exceção acabou se tornando regra em virtude do enorme aumento do poder do Estado e da exclusão do conceito de cidadania das constituições contemporâneas, exclusão esta que se deu na efetiva implementação da cidadania.
Agamben (2004, p. 15) explica que “à incerteza do conceito [estado de exceção] corresponde exatamente à incerteza terminológica. O presente estudo se servirá do sintagma ‘estado de exceção’ como termo técnico para o conjunto coerente de fenômenos jurídicos que se propõe a definir”.
Muito mais importante do que a terminologia utilizada para denominar uma determinada estrutura de construção de uma sociedade desjuridicizada, é apontar quais são as características essenciais deste Estado e que possibilitam identificá-lo como tal.
Importante mencionar que
“Desenvolvendo seu estudo a partir de um método genealógico similar ao de Foucault, o autor [Agamben] chega à conclusão de que em face do desenfreado avanço da “guerra civil mundial”, o estado de exceção tende a se afirmar como o paradigma de governo hegemônico na política contemporânea, mesmo nos regimes ditos democráticos. Essa transmissão de uma medida provisória e excepcional para uma técnica permanente de governo apresenta-se, desta forma, como um grau de indeterminação entre democracia e absolutismo. A exceção seria, portanto, paradoxal em um contexto de universalização formal dos direitos humanos (Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948) paripassu às violações de padrões humanitários em escala planetária.” (PEDRINHA, 2009) (grifo nosso)
Assim, aquilo que era previsto nos ordenamentos jurídicos para ser algo temporário, se torna o paradigma de Estado preponderante na contemporaneidade, com a ampliação exacerbada do poder soberano sobre a vida dos seres desprovidos de vida.
Conforme se verifica da análise realizada, “o Estado de exceção não é um direito espacial (como o direito de guerra), mas, enquanto suspensão da própria ordem jurídica, define seu patamar ou seu conceito-limite”.(AGAMBEN, 2004, p.15)
O Estado de Exceção é, portanto, a encarnação da biopolítica, do controle efetivo sobre o ser dito “humano” pelo poder soberano do Estado, cujo poder emana de si através de sua exclusão inclusiva na vida biológica do seres sacros.
5 O CAMPO E O CAMPO DE CONCENTRAÇÃO
Agamben sintetiza a idéia de que o campo é o paradigma biopolítico da sociedade moderna, “laboratório para a experimentação do domínio total”. (AGAMBEN, 2007, p. 126) Neste sentido, é possível perceber que é neste espaço que a vida nua pode ser encontrada em sua essência, e o espaço do campo é a representação interna do Estado de exceção.
Nos estados totalitários, o campo é se situa nos campos de concentração, local no qual a vida se torna efetivamente nua, onde ela está a mercê da vontade do Estado soberano, aquele que decide sobre o Estado de exceção.
Segundo Hannah Arendt (201, p. 240) o Estado totalitário tem como objetivo último a dominação total do homem, sendo que este se localiza no ápice da política moderna como objeto de submissão total e absoluta aos interesses estatais, independente de possuir uma vida matável.
Na atual conjuntura dos Estados Modernos, ou seja,
No sistema do Estado-nação, os ditos direitos sagrados e inalienáveis do homem mostram-se desprovidos de qualquer tutela e de qualquer realidade no mesmo instante em que não seja possível configurá-los como direitos dos cidadãos de um Estado.(AGAMBEN, 2007, p. 133)
E por mais intrigante que isto possa parecer, a ascensão dos grandes regimes totalitários do século XX seu deu em um contexto de expansão dos Direitos Humanos. Após a queda dos regimes fascista e nazista em 1945, temos a edição da Declaração Universal dos Direitos Humanos, propagando aqueles que deveriam ser os direitos mínimos de cada ser vivente e atuante, frutos de uma conquista histórica.
Mas o alastramento do campo, ao contrário de regredir com a expansão das idéias de justiça, igualdade, liberdade, enfim, com os ideais que já haviam sido propostos na Revolução Francesa de 1789, expande seus domínios de forma alarmante, numa clara demonstração de que os direitos conquistados ao longo da história nada mais são do que “direitos de fachada”.
O alastramento da vida nua e a concomitante invasão do espaço pelos campos é decorrência da inexistência de preocupação em tornar efetivos os direitos e garantias fundamentais esboçados e supostamente garantidos pelas lutas a favor do ser humano.
André Duarte (2007) nos alerta para o fato de que
“Não estamos aí diante de novos campos de extermínio? O preso, o favelado, o migrante e o imigrante, em suma, o pobre e o miserável das modernas democracias liberais ou dos velhos redutos autoritários constituem outras tantas figuras que confirmam o caráter biopolítico e aporético da política contemporânea (…)”. (grifo nosso)
Se pensarmos bem, os espaços de constituição e consolidação da vida nua na contemporaneidade se resumem a verdadeiros contingentes humanos desprovidos de qualquer tipo de humanidade, devendo esta ser entendida em seu mais amplo significado. O zóe está no auge de sua exploração viva nestes espaços, e este ser não vive, sobrevive.
E neste sentido, podemos analisar o papel do bando, o “band-ido”, o “ban-ido” de uma biós plena.
5 O BANDO, O BANDIDO E OS BANIDOS
Considerando uma análise histórica do surgimento do Homo Sacer, Agamben sugere a existência de um “primo” do mesmo na antiguidade germânica e escandinava, cuja representação se dá através do bandido, naquele que está fora do ordenamento.
Ao contrário do Homo Sacer que deveria estar submetido a uma ordem jurídica e a um juízo, o bandido (lobo) poderia ser morto, mesmo estando fora deste ordenamento.
E referindo-se ao contexto medieval, o autor menciona também a existência do bando, bandido morto-vivo, como figura que representaria as mesmas características, no que se refere à vida nua do Homo Sacer. (AGAMBEN, 2007, p. 111)
A representação do bandido como lobo tinha o objetivo de mesclar as figuras do animal e do ser humano, de forma que este se torna uma aberração frente à sociedade e passa a ser visto como coisa diferente.
Sua vida não faz mais sentido, uma vez que não é só humano. Por isto, este lobo-homem é banido, bandido, pois não está mais em uma situação de normalidade perante todos os outros indivíduos que compõem a sociedade.
Esta zona de indiscernibilidade da vida no bando reflete a estrutura politizante da vida nua, na medida em que coloca esta vida em uma situação de total abandono. Esta configuração da vida biologicizada do ser dito humano pode ser entendida epistemologicamente. Conforme Agamben (2007, p. 117) elucida,
“Torna-se assim compreensível a ambigüidade semântica, já anteriormente registrada, pela qual in bando, a bandono significam originalmente em italiano tanto “à mercê de…” quanto “a seu talante, livremente” (como expressão correre a bandono), e bandido significa tanto “excluído, banido”, quanto “aberto a todos, livre” (como em mensa bandita e redina bandita). O bando é propriamente a força, simultaneamente atrativa e repulsiva, que liga os dois pólos da exceção soberana: a vida nua e o poder, o homo sacer e o soberano.”
Analisando as aproximações feitas, percebe-se uma nítida relação entre o regime estabelecido pelo poder soberano ao se legitimar a existência de um bando e a subsistência de uma vida nua pautada somente em si mesma, na sua vivência destituída de significação, ou de qualificação.
As conseqüências dessa bandonização do ser humano se refletem na própria construção e consolidação das sociedades contemporâneas do pós segunda guerra mundial, mesmo se pensarmos que tornar os campos de concentração uma regra constitui-se uma característica intrínseca dos regimes totalitários.
Aliás, é no bando que os campos de concentração se estabelecem, que se legitimam e que passam a constituir a forma de organização primordial e regular de uma determinada sociedade.
Portanto, percebe-se que há uma nítida relação entre o homo sacer e o bando, haja vista este estar necessariamente vinculado àquele, como representação do banimento inclusivo e ao mesmo tempo exclusivo do corpo político soberano.
5 O HOMO SACER BRASILEIRO E SEU ALASTRAMENTO: REFLEXOS DA VIDA NUA NA SOCIEDADE BRASILEIRA
A partir da análise feita dos conceitos apresentados por Giorgio Agamben, é notório que a sociedade brasileira está repleta de campos de concentração, campos de extermínio e campos de alastramento de vidas nuas, às quais não possuem qualquer perspectiva de vida que deve e merece ser vivida.
Ao contrário, o direito, que deveria representar a consecução de direitos fundamentais, é conivente com a situação degradante de parcelas da sociedade, manipulando a regra, e consumando o status daquilo que deveria ser exceção como regra.
Tomemos como exemplo o artigo 5º, caput da Constituição da República, que expressa literalmente:
“Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (…)”
Tal dispositivo expressa o princípio da igualdade ou da isonomia, e reflete que todos os brasileiros devem estar em patamares isonômicos de direitos. Mas tais patamares devem ser entendidos a partir da subdivisão do princípio da igualdade em princípio da igualdade formal e princípio da igualdade material.
O princípio da igualdade formal está preocupado apenas coma reprodução simbólica da igualdade no texto constitucional, não importando o aspecto pragmático do mesmo. Ou seja, tem-se uma ficção na qual supõe-se que, a partir do momento em que a Constituição elenca em seu texto tal princípio, o mesmo será cumprido.
Já a igualdade material se reflete no tratamento efetivo dado aos supostos cidadãos pertencentes à sociedade brasileira. A igualdade, neste sentido, se concretiza na medida em que atendem-se as necessidades dos indivíduos conforme se demandam as mesmas. Ou seja, tal vertente principiológica se reflete no velho jargão “tratar aos iguais igualmente, e aos desiguais desigualmente”.
Como se percebe, há uma regulamentação da exceção como forma de justificar uma igualdade inexistente, igualdade esta que serve somente como meio de manter uma conivência a partir de metanarrativas constitucionalizadas.
Conforme mencionam Lucas de Alvarenga Gontijo e Adalberto Arcelo (2009, p. 5.891)
“[No entanto], experimentou-se no Brasil da redemocratização a mesma sina que muitas outras populações experimentaram. Uma vez reconhecidos os direitos cravados no asfalto das manifestações de rua, muitas vezes a custo de sangue, instaurou-se os mecanismos da legislação simbólica, que vinha reconhecendo os direitos conquistados e, por este mesmo motivo, arrefecendo as movimentações sociais.”
Ou seja, a partir de direitos supostamente conquistados, constroem-se bandos, bandidos, desiguais na sua integridade que não merecem ser igualizados perante a sociedade. Assim, se tornam reféns de suas próprias diferenças. A sociedade legitima a existência de diversos homines sacris, são igualados pelas suas desigualdades.
Podemos pensar a consecução de tal situação de exceção quando analisamos a título de exemplo, o que dispõe o artigo 1.240 do Novo Código Civil brasileiro. Diz o dispositivo o que
“Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.”
Na realidade, quando se verifica o conteúdo de tal dispositivo, percebe-se que há uma verdadeira institucionalização dos campos de concentração, e a consubstanciação do estado de exceção por meio da regulamentação dos espaços de favela.
Os amontoados de seres supostamente humanos, destituídos de um espaço salubre, vivendo na miséria e à mercê de uma vida sacralizada são o reflexo da positivação simbólica de instrumentos de manutenção e consolidação dessa exceção massacrante.
O objetivo claramente verificado no dispositivo mencionado acima é o seguinte: como o homo sacer brasileiro, a zoé em sua mais pura representação possui apenas aquele espaço de sobrevivência, vamos incluí-lo no mesmo, como forma de excluí-lo de todo o resto da sociedade, assim como o lobo-homem é excluído de seu meio através de sua inclusão como elemento estranho.
A regulamentação das favelas brasileiras através do dispositivo mencionado acima, que permite, ou seja, sacraliza a possibilidade de se adquirir pelo instituto da usucapião imóvel urbano que esteja dentro dos limites métricos estabelecidos pela própria legislação é uma constatação de que a efetivação de direitos e garantias fundamentais está longe de ser um dos objetivos do Estado brasileiro.
Estes espaços de frutificação da vida nua são garantidos e mantidos pelo Estado, fato este demonstrável pela (talvez) simples vedação que o dispositivo faz a que o homo sacer favelado possa ter outro imóvel. Ou seja, esta vida nua deve ser necessariamente mantida neste espaço de exceção, não é possível que ela possa exercer plenamente sua cidadania.
“A vida nua do homo sacer é enxergada tão-somente sob a ótica da zoé, dado que o poder soberano assim o decidiu, transformando o indivíduo e excluindo-o dos alcances da jurisdição humana e divina. Essa dupla exclusão da jurisdição faz surgir uma zona de indistinção, estabelecida entre o estado fático e o estado de direito, que constitui alicerce para construção de um espaço político do Ocidente, o Estado de Exceção.” (FURBINO; SIlVEIRA, 2010)
Fica claro, a partir da análise do dispositivo legal acima mencionado, que houve a constitucionalização efetiva da exceção como regra; da exceção, ou aquilo que deveria ser considerado como exceção, passa a ser a regra num contexto em que o discurso dominante se estrutura na consecução do tão aclamado Estado Democrático de Direito.
O Direito é, então, o elemento que solidifica tal ordem, a partir do momento em que permite que a mesma se efetive no seio do Estado. A norma constitui-se no elemento fundamental que dá embasamento para que o campo se dissemine e para que aquilo que deveria ser a exceção se torne o nomós que rege tal estrutura.
Com isto, o próprio Direito exclui a possibilidade de a vida nua possuir direitos, e é justamente por isto que esta vida é nua.
“A esse “corpo espécie” não lhe correspondem outros direitos mais que sua natalidade, sua reprodução e sua morte. Ela pertence inteiramente ao registro do biológico, da pura corporeidade. Conseqüentemente, suas conquistas e lutas prescindem de argumentos e devem estar fundados na aceitação passiva de ordens ou na violência e na força.” (CAPONI, 2004, p. 453) (grifo nosso)
A biopolítica é, portanto, o meio pelo qual o indivíduo se torna uma apenas uma vida desnuda, controlada e subjugada, diminuída ao alicerce mais insalubre de sobrevivência através da conivência, ou melhor, da permissão de consolidação de tal estrutura excipiente pelo Estado.
6 CONCLUSÃO
As estruturas consolidadas de controle e manutenção do controle na sociedade brasileira refletem exatamente a existência de uma biopolítica baseada na exclusão-inclusão do sujeito vivente.
A inclusão se confunde com a exclusão, uma vez que este sujeito destituído de vida plena, da biós, da vida que valha a pena ser vivida, é incluído no seio de uma exceção excludente, gerada pelo controle do Estado sobre esta vida destituída de significado, vida fisiológica.
Pretendeu-se neste trabalho não a apresentação de soluções para um problema que, como já foi dito, se auto-regulamentou e se auto-legitimou na sociedade brasileira por meio da conivência e da ausência de medidas efetivamente garantidoras de Direitos Humanos, mas a constatação de que há uma realidade avassaladora que nos permeia.
Desta maneira, esta realidade se solidifica cada vez mais embasada em instrumentos de controle e de garantias da permanência desta subcidadania. (GONTIJO; ARCELO, 2009, p. 5.898)
O jogo é posto, e a maneira de jogar é conduzida pelo poder soberano do Estado, que mantém o status quo da maneira que mais lhe aprouver. Aliás, se pensarmos bem, tal estrutura é composta por um jogo já dado, no qual as escolhas estão inconscientemente colocadas aos sujeitos. Resta apenas jogar conforme se é conduzido.
Informações Sobre o Autor
Thiago Penzin Alves Martins
Mestrando em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e graduando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bolsista do CNPQ.