Resumo: O presente artigo tem por finalidade efetivar uma abordagem histórica da cidadania no Brasil. Para tanto, optou-se por enfatizar três únicos aspectos: o horizonte colonial, a cidadania no Estado recente e o horizonte republicano. Ao evidenciar cada um desses momentos, busca-se identificar características marcantes na concepção da cidadania brasileira, que possam auxiliar a sua compreensão, não como um conceito estático, mas como produto histórico da realidade brasileira.
Palavras-chave: História, Cidadania, Brasil.
Sumário: 1 Considerações iniciais; 2 O horizonte colonial; 3 A cidadania no Estado recente; 4 O horizonte republicano; 5 Considerações Finais; 6 Bibliografia.
1 Considerações Iniciais
A Cidadania, proporcionalmente à sua importância histórica, é um dos temas mais controversos para o estudo, em qualquer situação. Em cada local, em cada momento da história, a depender da relação entre Estado e cidadão (mais repressiva ou mais democrática), o seu conceito possui um delineamento próprio e características peculiares. Assim, inevitavelmente, a cidadania é uma construção social e histórica.
Apesar de a cidadania viabilizar diversos contextos interessantes ao debate doutrinário, a pesquisa ora desenvolvida foca-se, apenas, no seu desenvolvimento histórico no Brasil, que, por si só, é passível das mais distintas compreensões.
De todos os inúmeros momentos passíveis de discussão, na órbita da cidadania, o artigo em tela se incumbe de, ao menos, três, sendo eles: o horizonte colonial, a cidadania no Estado recente e, por fim, o horizonte republicano.
O certo é que a cidadania no Brasil não tem, nunca teve e nunca terá um conceito fixo e definitivo. Este trabalho, no enfoque a que se propõe, de certa forma, evidencia essa realidade, como será observado.
2 Horizonte colonial
Não se pode fugir da genealogia da cidadania de cada Estado. O “peso do passado”, na análise de Carvalho, quando se debruça no horizonte colonial brasileiro, explica uma das razões pelas quais há dificuldade em se visualizar a construção cidadã do Brasil. Nesse período histórico (entre 1500 e 1822), os lusitanos estabeleceram formalmente um país com uma “[…] unidade territorial, linguística e religiosa […]”. Todavia, deixaram-no analfabeto e escravocrata, economicamente latifundiário, monoculturista e com um Estado Absolutista[1]. Na perspectiva do autor, foram séculos sem cidadania.
Em verdade, não se pode dizer que o Brasil fora descoberto. O Brasil fora invadido e conquistado. Não é incorreto adotar a expressão “invasão bárbara” dos historiadores, que tanto a utilizam para explicar a queda de Roma e a formatação do feudalismo. Aqui, os fatos históricos são ricos em demonstrar um confronto entre duas culturas distintas: a europeia e a ameríndia. Esta última tão complexa quanto a primeira, com suas próprias ordenações jurídicas e religiões. Os conquistadores ibéricos literalmente deixaram os povos nativos, belicamente inferiores, entre a cruz e a espada, a partir do momento em que a religião e a força[2] foram instrumentos eficazes na conquista do território americano[3].
Na amálgama que foi a experiência brasileira, não se pode olvidar que a escravidão é um fator de relevância no entendimento de nossa cidadania. Como a Metrópole impunha à colônia a monocultura para solucionar o grande problema da demanda do velho continente, fornecendo-lhe matérias primas, era necessário, para tanto, grandes extensões de terra e a mão-de-obra escrava predominantemente africana (o fim da escravidão indígena se deu formalmente em meados do século XVIII). Configurou-se, portanto, o conhecido latifúndio monocultor escravocrata.
A má distribuição de terras era outro fator excludente. A concessão de terras, no Brasil Colônia, se dava a um número irrisório de pessoas, com objetivo de se implantar engenhos de açúcar. Os engenhos do norte de Alagoas, por exemplo, então vinculadas à Capitania de Pernambuco, pertenciam a uma só família[4].O que se pode verificar é que a Colonização do Brasil começou efetivamente pela
“[…] organização das capitanias hereditárias, sistema que constitui na divisão do território colonial em doze porções irregulares, todas confrontando com o oceano, e sua doação a particulares (escolhidos entre a melhor gente), que estivessem decididos a morar no Brasil e fossem suficientes ricos para colonizá-los e defendê-los[5] .”
A cidadania, no mundo colonial, era subtraída de quase toda população. Se houvesse a possibilidade de mensurar níveis de afastamento da cidadania, não seria demasiado forçado dizer que o escravo africano foi o mais afetado. Entende Carvalho que a escravidão foi o “fator mais negativo para a cidadania”[6]. Importados desde 1550, sua prática terminou formalmente em 1850, décadas após a independência. Havia, até 1822, cerca de três milhões de escravos; já na independência, numa população de cinco milhões de pessoas, estavam incluídos 800 mil índios e hum milhão de escravos.
Os povos submetidos, no entanto, não se caracterizaram pela passividade registrada pela historiografia conservadora. O período em que vigeu a escravidão registra-se greves, motins, organização de sociedades civis e sindicatos, resistência dos indígenas nos aldeamentos missionários no século XVII, movimentos de escravos urbanos, como o de Salvador, e a criação de comunidades de escravos fugidos, como o emblemático Quilombo[7] dos Palmares. Este último foi modelo de organização de resistência vitoriosa que se difundiu em quase todo território, reinventando a liberdade[8].
De qualquer forma, na colônia, com características mercantilistas, a concepção de quem era cidadão assemelhava-se, de certa forma, com a grega. Uns poucos eram entendidos cidadãos em detrimento do total da população. Essa ideia é reforçada pela seguinte colocação:
Se, para o grego, cidadania era sinônimo de homem ético e os atos de comércio considerados inadequados ao exercício da cidadania, no império português estava associado com prestígio social. E, no caso da colônia, prestígio associava-se com os interesses mercantis e significava atender de preferência sem questionamentos, os interesses do rei e nobrezas portugueses[9].
Cidadão era, então, o português ou o protegido pelo rei. Todavia, o cidadão era muito mais súdito do que cidadão. O escravo era coisa e, como tal, não participava da “escala social”; estava, inclusive, em piores condições que o escravo grego, que não era animalizado, uma vez que, para Aristóteles, o escravo não perdia a natureza humana[10].
Se o escravo era explorado pelo seu senhor, este, não obstante, também não era cidadão. O colonizador era tão somente o organizador da produção, uma ponte indispensável entre a mercadoria e a metrópole. Eram os fidalgos verdadeiramente os que detinham a gestão estatal e legislavam sobre o que fosse público e privado. Restava ao colonizador-súdito o poder de influenciar a administração local. A colônia, nesse panorama, tinha um único objetivo: o de ser explorado, e assim ocorreu até a chegada da família real, em 1808.
3 A cidadania no recente Estado
A independência veio com o processo de transformação do senhor de engenho em cidadão. O senhor de engenho sempre esteve sob as diretrizes da metrópole, e, com a independência, necessitou preocupar-se com o comércio e qualquer necessidade da nação nascida, primordialmente com a sua reorganização política em razão dos conflitos nas diversas províncias. O fato de o senhor de engenho, autor dos atos jurídicos no âmbito privado, ter ficado sem poder de decisão na esfera pública, foi apontado por Fernandes como um dos motivos por que houve “atraso” econômico do capitalismo brasileiro nas primeiras décadas depois da independência[11].
Assim, nossa pequena elite estaria inabilitada em governar; muita mais preocupada na defesa da propriedade privada e na manutenção da mão-de-obra escrava; estaria desprovida de uma visão panorâmica relevante para organizar o Estado enquanto nação e transformar a sociedade, ainda colonial, em sociedade nacional. Houve a necessidade, portanto, de se repensar a nação além das fronteiras limitadas do engenho, pois, a prática de governar, precisava do “[…] alargamento das esferas psicossociais da realidade”[12].
A consolidação efetiva de nossa independência ocorreu entre 1840 e 1850, por meio do Estado unitário, que se expressava por uma monarquia política centralizada, mas administrativamente descentralizada. Até a proclamação da República, a nação em construção será norteada por peculiares princípios de “Ordem e Civilização”[13], que beneficiarão a camada social entendida civilizada, como latifundiários, comerciantes e funcionários públicos, e esquecerão convenientemente os escravos e os pobres.
Não obstante, não se pode olvidar de como a construção da cidadania está unida umbilicalmente à construção de uma nação e de um Estado. A cidadania está ligada a uma identidade que une as pessoas, como a tradição, a religião, ou língua; da mesma forma, prende-se a uma construção de nacionalidade ou, juridicamente, na formação de um estado. Por esta razão, sentir-se pertencer à nação é elemento sem o qual não se construiria um Estado. Sentir-se parte é, pois, condição para a construção da cidadania[14].
A problemática, no entanto, está em se alcançar este patamar de identificação nacional. Mesmo porque é esta mesma sociedade que, livre da tutela dirigente lusitana, manteve as discrepâncias sociais anteriores e, como se ainda colonizado estivesse, continuou a cultuar os “ares” europeus. Em verdade, no Brasil, o Estado nasce antes da nação. O Estado nasce por um parto “cesariano”, por vontade da pequena elite portuguesa que nos negociou com o Império inglês e com nossa própria elite. Assim, logramos alcançar a nossa independência pagando a Portugal, a título de ressarcimento, dois milhões de libras esterlinas[15].
Por causa também desse “civilizado” processo de independência, não construímos, até aqui, uma nação autêntica nem uma identidade própria. Somente com a Guerra do Paraguai, em 1865, no entendimento de José Murilo de Carvalho, experimentaremos uma manifestação de identidade brasileira, um reconhecimento do Brasil enquanto nação. Pelas palavras do autor,
“As guerras são fatores importantes na criação de identidades nacionais. A do Paraguai teve sem dúvida este efeito. Para muitos brasileiros, a idéia de pátria não tinha materialidade, mesmo após a independência. Vimos que existiam no máximo identidades regionais. A guerra veio alterar a situação. De repente havia um estrangeiro inimigo que, por oposição, gerava o sentimento de identidade brasileira. São abundantes as indicações do surgimento dessa nova identidade, mesmo que ainda em esboço. Podem-se mencionar a apresentação de milhares de voluntários no início da guerra, a valorização do hino e da bandeira, as canções e poesias populares. Caso marcante foi o de Jovita Feitosa, mulher que se vestiu de homem para ir à guerra a fim de vingar as mulheres brasileiras injuriadas pelos paraguaios. Foi exaltada como a Joana d’Arc nacional. Lutaram no Paraguai cerca de 135 mil brasileiros, muitos deles negros, inclusive libertos[16].”
Essa experiência não poderia desconstruir séculos de uma cultura sem inserção, embora tenha alavancado um caminho própria de identidade. Não havia possibilidade de integração dos marginalizados. Estes não poderiam fazer parte “na construção da sociedade nacional”, razão por que não poderiam ser identificados como cidadãos[17]. Como declarar o escravo negro cidadão, ainda que nascido no Brasil? Declará-lo cidadão seria o mesmo que libertá-lo. Como propriedade de “natureza especial”, o escravo não tinha pátria ou nacionalidade; não poderia participar civilmente da sociedade, muito menos politicamente.
4 Horizonte republicano
A nossa Proclamação da República foi tão singular quanto nossa Independência, uma vez que, para a população, não apresentou expressivamente mudança alguma. O povo acordou sendo surpreendido com a mudança de regime. Isso se deu pela ausência de participação popular, tendo em vista sua característica elitista e nada democrática. Inconveniente histórico é constatar que, mesmo sem o elemento povo, a república veio, ainda, pelo improviso: os militares conspiraram com os civis pouco antes do golpe[18].
A participação popular, até o fim da primeira República, era combalida. Não havia um povo politicamente organizado, por isso era vaga a ideia de sentimento nacional. A elite era a protagonista do cenário político. Cabia ao povo o pequeno papel de coadjuvante, razão por que assistia a tudo passivamente.
A participação político-popular do Império à República foi inexpressiva, ainda que, segundo Carvalho, fosse, às vezes, tão expressiva quanto a europeia. Constata-se que votaram, entre esses dois períodos, tão somente 13% da população, e, esta, a que era livre. No ano de 1881, o analfabeto foi privado do direito de votar. Entre o início e o fim da Primeira República, aqueles que votaram não passaram de 5,6% do todo populacional. Vê-se décadas de uma gestão, seja imperial, seja republicana, sem o elemento povo[19].
Somente a partir da segunda década do século XX[20], houve significativa mudança no cenário político. Fatos internos, como a crescente urbanização, a industrialização e o correspondente aumento da classe operária, o nascimento do partido comunista, a Semana de arte Moderna, e acontecimentos externos, como a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, modificaram econômica e politicamente o Brasil. Neste contexto, e com a chegada dos anos 30, emerge, nacionalmente, os direitos sociais[21]. Não se pode olvidar da criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, assim como a Consolidação das Leis do Trabalho, em 1943.
Tudo isso, no entanto, não foram conquistas populares. Como dissemos, o povo assistia a tudo sem o protagonismo devido. Os direitos sociais vieram como forma de concessões dos Governos ditatoriais, temendo que as experiências do operariado europeu pudessem ocorrer justamente aqui; então, vieram a doses calculadas. Facilmente visualiza-se essa tendência quando os sindicatos foram legalizados, mas passaram a ser vinculados ao Estado, de aspiração fascista. Nesse panorama, houve retrocessos políticos. Vargas, em 1937, instaura uma ditadura que ficou conhecida como Estado Novo, e que se estendeu até 1945. Entretanto, entre 1945 e 1964, o Brasil experimentou sua primeira experiência democrática, conhecida, sobretudo, pelo populismo e o nacionalismo. No entanto, o fôlego brasileiro, por um ambiente democrático, se mostrou breve, e, a partir do golpe militar de 1964, inaugura um período histórico sombrio do ponto de vista dos direitos civis e políticos: ocorreram perseguições, cassações dos direitos políticos, além de torturas, sequestros e homicídios contra os líderes sociais, políticos e religiosos. Tornaram-se conhecidos os Atos Institucionais (AIs), instrumentos normativos muito utilizados para o cerceamento dos direitos e princípios fundamentais.
Peculiarmente, os direitos sociais brasileiros melhoraram no período em que democracia não tinha voz. Vemos que foram criados, por exemplo, o Instituto Nacional de Previdência Nacional (INPS), o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural)[22], entre outros.
O cenário sociopolítico do Brasil se modifica, fazendo enfraquecer o regime militar. Setores variados da sociedade, como os artistas, os intelectuais, toda população em si, pressionaram pela volta da democracia. Os militares, como é de costume brasileiro, desde a independência, deixam o poder de maneira negociada, em 1985. A sociedade não se fez por rogar: houve a criação de novos partidos e de uma nova Constituição, que foi promulgada no ano de 1980. Esta Constituição, por sua vez, torna-se conhecida, pelas palavras de Ulysses Guimarães, como a “Constituição Cidadã”.
As conquistas políticas, civis e sociais, no entanto, não poderiam, em um passe de mágica, desfazer séculos de políticas públicas alheias ao público. Muito embora isso seja um fato, não se pode negar a peculiaridade brasileira no que toca à construção histórica de nossa cidadania. Como veremos mais adiante, neste estudo, os direitos sociais surgem no Brasil, diferente de outros países, primeiro do que os direitos civis e políticos, e justamente quando havia regimes autoritários, quase nunca interessados em se discutir a cidadania em suas mais diversas ramificações.
5 Considerações Finais
Por tudo quanto exposto, reconhece-se a importância de se efetivar um estudo direcionado da evolução da cidadania no Brasil, como, de fato, foi proposto neste artigo, ao se selecionar três momentos específicos para o alcance das finalidades propostas: o horizonte colonial, a cidadania no Estado recente e, por fim, o horizonte republicano.
Destaca-se, nesses termos, que foi possível constatar a natureza histórica da cidadania, em solo pátrio, uma vez que em cada um dos momentos evidenciados apresentava-se com características próprias, refletindo, de certa maneira, as tendências sociais, políticas e estatais da época.
Assim, ficou demonstrado que o conceito de cidadania no Brasil possui um delineamento próprio e características peculiares, sendo, inevitavelmente, como já delineado, uma construção social e histórica, o que descarta a criação de um conceito fixo e definitivo sobre esse objeto.
No mais, esse trabalho, de certa forma, se propôs a evidenciar essa realidade, no contexto brasileiro, que, afinal, foi feito.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Álvaro de Azevedo Alves Brito
Advogado. Escritor. Especialista em Direito do Estado pelo Jus Podivm