Resumo: O conceito de família passou por modificações que permitiram a passagem de uma visão focada exclusivamente nos aspectos formais do instituto para a sua definição instrumental, onde cada membro deve zelar pelo desenvolvimento da personalidade do outro. Deste novo conceito instalou-se a função social da família, cuja observância enseja a tutela estatal, fato que motivou a ampliação das entidades familiares. O casamento perdeu a característica de padrão configurador do instituto, o que propiciou o reconhecimento da união estável como um arranjo equivalente, de maneira a evidenciar maior valor ao elemento afetivo da relação. Neste contexto, a união estável foi reconhecida como entidade familiar pela Constituição Federal de 1988, dispondo da mesma proteção constitucional garantida em virtude do matrimônio, bem como sendo assegurado aos companheiros direitos iguais aos cônjuges, quando decorrentes do vínculo familiar.
Palavras-chave: União estável. Família. Constituição Federal.
Sumário: 1. Considerações iniciais. 2. Da concepção abstrata do homem à sua valoração pessoal; 3. A função social da família e sua ampliação no texto constitucional e 1988. 4.A união estável inserida no conceito instrumental de família. 5. Conclusão. Referências.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A invocação da igualdade carece de contornos específicos. Os homens, em suas mais variadas condições de existência, exigem um tratamento igualitário atento às suas peculiaridades, pautado nos emblemas da justiça social.
As necessidades da pessoa humana, uma vez percebidas e tuteladas de maneira especial, garantem a elevação da dignidade do homem ao primado de princípio máximo, conducente à satisfação dos direitos fundamentais dela advindos. Desta forma, a Constituição Federal de 1988, ao assimilar a valoração do homem em sua individualidade, coadunando-se com as transformações de mentalidades vivenciadas em nível mundial, assegurou a assistência à família na pessoa de cada membro que a integra, ratificando a promoção à dignidade humana no ordenamento jurídico brasileiro.
Considerando que emergem da família as relações de convivência mais intensas, o desenvolvimento prático dos sentimentos extraídos da afetividade mútua configura o cumprimento da função social da família, consubstanciado no respeito à dignidade dos seus membros. É nesta medida que se vincula a proteção estatal destinada à família, devendo cada integrante agir no fomento à dignificação do outro.
Da fixação deste novo conceito de família firmou-se o reconhecimento constitucional das uniões extramatrimoniais como espécies de família, garantindo-lhes uma proteção que não se fundamenta nas formalidades do Registro Civil. Assim, a união estável, enquanto entidade familiar que mantenha coesa as relações de afeto entre seus conviventes, legitima-se como destinatária de um tratamento equânime, de onde decorram efeitos típicos da convivência familiar.
2 Da concepção abstrata do homem à sua valoração pessoal
A primeira noção codificada de família no Brasil surgiu como inspiração das influências ideológicas da Revolução Francesa de 1789 no campo dogmático, tendo na figura de Napoleão Bonaparte o grande precursor dos modelos de Códigos que se expandiram por todo mundo burguês (HOBSBAWM, 2005).
Na época anterior à Revolução a sociedade francesa estava dividida em três Estados Gerais, que compunham a nobreza, o clero e o chamado Terceiro Estado, composto, dentre outros, pela burguesia que aspirava sua posição social em meio ao enaltecimento do status enquanto fator de diferenciação classista.
Afirma-se, dessa forma, que a causa matriz da Revolução Francesa foi justamente a motivação para a ruptura de uma estrutura social formalista e utópica, dando lugar para outra mais real. Assim, enquanto a burguesia detinha o dinheiro, o poder permanecia exclusivamente sob a égide da nobreza e do clero, que monopolizavam um cenário social incondizente com as mudanças que vinham ocorrendo. Neste sentido, conforme expõe Comparato (2003, p. 137),
“dos três estamentos que compunham a sociedade francesa, o clero e a nobreza não tinham, naquele momento histórico, a menor legitimidade para reivindicar para si a soberania, porque continuavam apegados a privilégios que oprimiam o povo humilde e restringiam a liberdade econômica dos burgueses.”
A maior aspiração dos revolucionários era por uma sociedade igualitária, onde todos os Estados fizessem parte de um mesmo todo e tivessem as mesmas chances de albergar degraus que eram destinados somente aos dois primeiros Estados. Afinal, a contradição saltava aos olhos ao se verificar que a burguesia, classe possuidora da maior quantidade de dinheiro, era relegada a uma posição social e política tão subalterna.
As declarações de direitos da Revolução Francesa exprimem com clareza a igualdade enquanto propósito dos revolucionários. Assim está expresso na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que “representa, por assim dizer, o atestado de óbito do Ancien Régime, constituído pela monarquia absoluta e pelos privilégios feudais” (COMPARATO, 2003, p. 146). Em seu artigo primeiro, a referida Carta dispõe: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum”.
O mesmo se pode extrair da Declaração de Direitos da Constituição de 1791, a qual, em seu art. 3º enuncia que “todos os homens são iguais pela natureza e perante a lei”. Ainda, torna-se deveras relevante para a compreensão do pensamento predominante na época a leitura do art. 3º da Declaração dos Direitos e Deveres do Homem e do Cidadão da Constituição de 1795, quando estatui que “a igualdade consiste em que a lei é a mesma para todos, quer proteja, quer puna. – A igualdade não admite distinções de nascimento nem hereditariedade de poderes”.
Desta forma, a classe revolucionária burguesa, nos moldes da concepção liberal, pregava a aplicação da lei de forma homogênea, enquanto que o Estado teria atuação mínima na sociedade, uma vez que a igualdade e a liberdade apregoadas pela Revolução dariam ao homem plena capacidade de reger-se conforme os mecanismos que lhe trouxessem satisfação pessoal. De acordo com o pensamento defendido por Hobsbawm (2005, p. 99):
“Para os franceses, bem como para seus numerosos simpatizantes no exterior, a libertação da França era simplesmente o primeiro passo para o triunfo universal da liberdade, uma atitude que levou facilmente à convicção de que era dever da pátria da revolução libertar todos os povos que gemiam debaixo da opressão e da tirania. Havia entre os revolucionários, moderados e extremistas, uma paixão generosa e genuinamente exaltada em difundir a liberdade; uma inabilidade genuína para separar a causa da nação francesa daquela de toda a humanidade escravizada.”
Ocorre, contudo, que a idéia de uma sociedade livre e igualitária acabou permeando os caminhos da abstração e do individualismo. A percepção das diversidades dos homens e de suas fraquezas acabou fugindo aos olhares da classe revolucionária, mascarada pelo sublema “igualdade” que trouxe a concepção abstrata do homem e toda uma imparcialidade frente às desigualdades sociais. Deste modo, à luz da lapidar doutrina de Sarmento (2010, p. 13), “o homem, ao qual se referiam as constituições e os códigos, era quase uma abstração metafísica, um ser desenraizado, e não a pessoa concreta, historicamente situada, portadora de anseios e necessidades reais”.
A democracia moderna, apregoada pelos revolucionários como caminho ideal para a extirpação do antigo regime, tinha como objetivo apenas a concessão de interesses da classe burguesa rica, sendo que “o espírito original da democracia moderna não foi, portanto, a defesa do povo pobre contra a minoria rica, mas sim a defesa dos proprietários ricos contra um regime de privilégios estamentais e de governo irresponsável” (COMPARATO, 2003, p. 50). É o que se aduz da leitura do magistério de Sarmento (2010, p. 8):
“Apesar do reconhecimento jurídico da igualdade formal entre as pessoas, não faltaram justificativas para a exclusão dos direitos políticos dos pobres, como a esboçada por Benjamin Constant, para o qual o lazer era indispensável para o exercício do poder, pois se trata de condição necessária à aquisição das “luzes”, e só os mais abastados tinham acesso ao lazer. Com isto, os Parlamentos tornaram-se a representação homogênea dos interesses da classe burguesa. Assim, não é de admirar que, neste contexto, a lei tenha se revestido de uma aparente neutralidade em relação aos conflitos distributivos, legitimando, sob o seu pálio, a dominação econômica exercida sobre as classes desfavorecidas.”
Portanto, a dispensa de um tratamento isonômico não deve ser ofertada de maneira indistinta, correndo-se o risco de criar uma maior quantidade de privilégios para os segmentos mais favorecidos e contribuindo para que as pessoas menos favorecidas sejam cada vez mais assoladas pela má situação em que se encontram. A distribuição de direitos deve ser promovida aos desiguais na medida de suas desigualdades, uma vez que “tratar igualmente desiguais, ou desigualmente iguais, importaria em injustiça e em violação da própria igualdade. Dar ao menor o tratamento dado ao maior, e vice-versa, seria flagrante injustiça e desigualização, no fundo” (FERREIRA FILHO, 2008, p. 116). Esta é a concepção presente do princípio da igualdade, no qual, segundo ensinamento de Moraes (2007, p. 83),
“o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito, sem que se esqueça, porém, como ressalvado por Fábio Konder Comparato, que as chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade de condições sociais, meta a ser alcançada não só por meio de leis, mas também pela aplicação de políticas ou programas de ação estatal […].”
Desta forma, busca-se legitimar uma discriminação lícita entre as classes sociais que necessitam de atenção especial por parte do Estado e da sociedade como um todo (ROTHENBURG, 2009), de maneira que “a diferenciação ‘compensa’ a desigualdade e por isso serve a uma finalidade de igualização” (FERREIRA FILHO, 2008, p. 116).
A igualdade, neste patamar, deve atuar em conjunto com as diferenças, considerando-as enquanto fator de distribuição de justiça, seguindo as veias do pensamento aristotélico (SAMPAIO JÚNIOR, 2009). É assim que o princípio da proporcionalidade (ou razoabilidade) irá coadunar-se com o princípio da isonomia, este último, conforme aduz Sampaio Júnior (2009), achando-se incrustado no primeiro, formando uma “igualdade proporcional”, de forma que qualquer discriminação deverá ser sopesada, tomando-se como elementos de ponderação os direitos fundamentais atingidos e a igualdade formal (de direito). Somente quando verificado que esta não resta limitada de maneira desproporcional, estar-se-á aplicando eficazmente a igualdade material (de fato). Neste sentido, eminentes são as palavras de Santos (2009, p. 18, grifo nosso):
“O multiculturalismo progressista pressupõe que o princípio da igualdade seja prosseguido de par com o princípio do reconhecimento da diferença. A hermenêutica diatópica pressupõe a aceitação do seguinte imperativo transcultural: temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.”
Assim, deve haver proporcionalidade entre o motivo fundador da desigualdade e o privilégio auferido, não podendo a discriminação “prejudicar desproporcionalmente os discriminados desfavoravelmente ou beneficiar desproporcionalmente os discriminados favoravelmente” (ROTHENBURG, 2009, p. 355). Sendo assim, nenhum tratamento diferenciado estará em conformidade com os valores propugnados pela Constituição Federal, salvo se o seu destinatário realmente possuir mais necessidades a serem tuteladas, objetivando a igualdade substancial entre os membros de uma sociedade multifacetada e evitando-se, a contrario sensu, a arbitrariedade de medidas protetivas.
Desta forma, “se a diferenciação é arbitrária, se ela não se coaduna com a natureza da desigualdade, não leva ela à igualdade, mas ao privilégio, a uma discriminação” (FERREIRA FILHO, 2008, p. 116). Alexy (1999, p. 77-78) sintetizou o princípio da proporcionalidade em uma lei de ponderação que elucida muito bem o exposto: “quanto mais intensiva é uma intervenção em um direito fundamental tanto mais graves devem ser as razões que a justificam”. Moraes (2007, p. 83) também procurou relacionar a razoabilidade e a proporcionalidade como parâmetros de ponderação das diferenças a serem tuteladas, levando em consideração os fins almejados pelo Estado e ditados na Carta Magna como direitos e garantias constitucionais:
“Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos. Assim, os tratamentos normativos diferenciados são compatíveis com a Constituição Federal quando verificada a existência de uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado.”
Esta percepção começou a ser manifestada em meados do século do século XIX, com o crescente acúmulo de riquezas nas mãos de poucos, em decorrência do contínuo processo de industrialização (NEVARES, 2004), de onde se pode então verificar que “cada progresso na produção é ao mesmo tempo um retrocesso na condição da classe oprimida, isto é, da imensa maioria” (ENGELS, 2009, p. 218).
Com isto, as revoltas do proletariado passaram a clamar por uma revisão da vigente concepção de igualdade, bem como de uma maior participação do Estado nos problemas sociais, já que não dependia das próprias pessoas solucioná-los, uma vez que estas mesmas, ou a grande maioria delas, eram as vítimas de um sistema que não se coadunava com a realidade social. Sob este prisma, “a industrialização, realizada sob o signo do laissez faire, laissez passer, acentuara o quadro de exploração do homem pelo homem, problema que o Estado liberal não tinha como resolver” (SARMENTO, 2010, p. 15). Essa isonomia, segundo se verifica da lição de Comparato (2003, p. 52-53),
“cedo revelou-se uma pomposa inutilidade para a legião crescente de trabalhadores, compelidos a se empregarem nas empresas capitalistas. Patrões e operários eram considerados, pela majestade da lei, como contratantes perfeitamente iguais em direitos, com inteira liberdade para estipular o salário e as demais condições de trabalho. Fora da relação de emprego assalariado, a lei assegurava imparcialidade a todos, ricos e pobres, jovens e anciãos, homens e mulheres, a possibilidade jurídica de prover livremente à sua subsistência e enfrentar as adversidades da vida, mediante um comportamento disciplinado e o hábito da poupança. O resultado dessa atomização social, como não poderia deixar de ser, foi a brutal pauperização das massas proletárias, já na primeira metade do século XIX. Ela acabou, afinal, por suscitar a indignação dos espíritos bem formados e por provocar a indispensável organização da classe trabalhadora.”
A par disso, observa-se a difundida tendência da legislação trabalhista em proteger o empregado, a dita parte hipossuficiente do contrato, fenômeno iniciado no século XIX e que chegou ao ápice com as novas Constituições do pós-Primeira Guerra Mundial (SARMENTO, 2010). Assim, o princípio protetor, alicerce do Direito do Trabalho, é aplicado através da regra in dubio pro operarium, ou seja, na dúvida, pelo trabalhador. Havendo conflito na interpretação da norma trabalhista, deve prevalecer aquela que assegura mais direitos ao empregado, parte que dispõe de menos recursos. A desigualdade, portanto, eleva o trabalhador à posição de sujeito portador de atenção especial por parte do Estado, e a noção de ser abstrato passa a configurar injustiça no que se refere ao tratamento dispensado à parte menos provida de recursos.
Esta nova concepção de isonomia com enfoque para as desigualdades sociais encontra suporte no dever de solidariedade, preconizado no art. 3°, I da Carta Magna, constituído como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. A Constituição Federal prevê, a título de exemplo, benefício assistencial aos deficientes físicos e aos idosos que comprovem incapacidade de prover sua própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, garantindo aos mesmos o recebimento de um salário mínimo mensal (art. 203, V). É o que aponta os ensinamentos de Barcellos (2002, p. 184-185):
“Além do seguro-desemprego, devido a qualquer trabalhador, a Constituição identificou, da experiência concreta da sociedade brasileira, dois grupos carentes de uma proteção específica: os idosos e os deficientes físicos. A dificuldade encontrada pelo deficiente para integrar-se ao mercado de trabalho é notória e dispensa comentários. Trata-se de uma situação de desigualdade de chances que decorre da própria natureza das coisas, solicitando a intervenção estatal para fazer valer a dignidade desses indivíduos.”
Assim, ao consagrar as diferenças humanas como expoente de individualização de direitos, a concepção abstrata do homem, apática em meio a um desnível de privilégios e prejuízos, cedeu lugar à valoração da pessoa humana. O Código Civil brasileiro de 1916 já não satisfazia em matéria de direito privado, perdendo pouco a pouco a sua esfera de incidência, até que o advento do homem enquanto pessoa, consolidado pela Constituição Federal de 1988 através do principio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1°, III), significou para a sociedade um novo cenário de intervencionismo estatal, agora mais adequado às peculiares exigências de cada camada social. Neste sentido, segundo Sarlet (2009, p. 58), “a dignidade constitui atributo da pessoa humana individualmente considerada, e não de um ser ideal ou abstrato, razão pela qual não se deverá confundir as noções de dignidade da pessoa e de dignidade humana, quando esta for referida à humanidade como um todo”.
É a atenção principal à individualidade humana, às diferentes necessidades que afligem o homem, que o faz ser colocado como foco de proteção no Texto Constitucional, conforme se extrai do discorrido por Nevares (2004, p. 28-29):
“Mais importante do que a mudança de locus do centro da normativa do Direito Privado é a mudança da ratio que a atual Carta Magna introduziu no mesmo. Ao estabelecer como fundamento da República a dignidade da pessoa humana, o constituinte opta por superar o individualismo, isto é, a concepção abstrata do homem, e passa a eleger a pessoa, na sua dimensão humana, como centro da tutela do ordenamento jurídico. Nas palavras de Vicenzo Scalizi, a pessoa que a Constituição eleva a valor de vértice do ordenamento jurídico não é mais o codificado sujeito de direito, formal e abstrato, apreciável somente em termos patrimoniais e mais propriamente econômico-produtivos, mas sim o sujeito histórico-real, considerado não só na multiplicidade de suas explicações e manifestações ativas, como também em suas variadas e diversas necessidades, interesses, exigências, qualidades individuais, condições econômicas, posições sociais e, como tal, devendo ser considerado como portador de valores essenciais (dignidade, segurança, igualdade, liberdade) e fundamentais instâncias de promoção e desenvolvimento da pessoa (saúde, trabalho, educação).”
Se o enfoque dado ao homem transmutou-se para a sua pessoa de forma individualizada, não poderia ser diferente com a família onde o mesmo encontra-se inserido e faz parte enquanto membro de uma comunidade. Atendendo ao princípio da dignidade da pessoa humana, a família passa a ser caracterizada através do propósito de promoção do desenvolvimento de seus componentes, afastando-se das finalidades religiosas, econômicas e políticas que configuravam o conceito atribuído à instituição, e proporcionando espaço para o predomínio da afetividade enquanto razão essencial do vínculo familiar. Portanto, “de fim em si mesmo, do qual não se questionava as razões de ser, a entidade passou a ser meio de realização da dignidade e das potencialidades de seus membros” (GAMA; GUERRA, 2007, p. 119).
Aquele interesse predominante no instituto, em detrimento de seus componentes, justificado pela “paz doméstica”, que impediria o rompimento da família através da indissolubilidade do vínculo matrimonial, bem como da chefia exercida pelo marido (NEVARES, 2004; TEPEDINO, 2008), seria derrubado por uma maior valoração de cada ente familiar enquanto encarregado de cumprir o seu papel frente à conservação da dignidade dos seus membros, uma vez que, “para formar uma família, o que importa não é o vínculo legal, mas a existência de um elemento chamado afetividade recíproca de seus membros” (KRELL, 2008, p. 64). Ainda, sob o valoroso magistério de Madaleno (2008, p. 66), “o afeto é a mola propulsora dos laços familiares e das relações interpessoais movidas pelo sentimento e pelo amor, para ao fim e ao cabo dar sentido e dignidade à existência humana”.
Se, por um lado, esta nova concepção introduz um papel a ser cumprido pelas famílias para que possam moldar-se a tal conceito, por outro, amplia o leque para que outros grupamentos sociais – alheios à tradicional visão de família composta por um homem e uma mulher unidos pelo matrimônio –, ganhem notoriedade, enquanto fundados na affectio e na prática mútua de auxílio.
3 A função social da família e sua ampliação no Texto Constitucional de 1988
O homem, enquanto membro de uma sociedade, é suscetível à reprodução dos valores, costumes e toda a ideologia transmitida pela mesma. E esta, ao sofrer mudanças em sua estrutura, em sua base social, política ou econômica, opera gradualmente no indivíduo modificações em sua forma de valorar conceitos, passando a questioná-los como eficazes na solução dos mais diversos problemas que as mutações sociais desencadeiam. Desta forma,
“a essência do ser humano é evolutiva, porque a personalidade de cada indivíduo, isto é, o seu ser próprio, é sempre, na duração de sua vida, algo de incompleto e inacabado, uma realidade em contínua transformação. Toda pessoa é um sujeito em processo de vir-a-ser” (COMPARATO, 2003, p. 29-30).
De fato, o homem nunca pode ser visto em uma posição singular; nenhuma ação humana é fruto de uma essência individual, mas de uma incorporação, ainda que involuntária, de idéias externas, as quais o indivíduo afunila conforme aquilo que melhor satisfaz aos seus anseios e molda-se com base na absorção de elementos sócio-temporais. Esta idéia foi muito bem elucidada por Carr (1976, p. 31-32):
“Logo que nascemos, o mundo começa a agir sobre nós e a transformar-nos de unidades meramente biológicas em unidades sociais. Todo ser humano em qualquer estágio da história ou da pré-história nasce numa sociedade e, desde seus primeiros anos, é moldado por essa sociedade. A língua que ele fala não é uma herança individual, mas uma aquisição social do grupo no qual ele cresce. Ambos, língua e meio, ajudam a determinar o caráter de seu pensamento; suas primeiras idéias são provenientes de outras.”
Assim, no período subseqüente à Revolução Francesa, quando se operou na sociedade a era das indústrias, instalou-se uma crise de identidade, uma vez que já não cabia uma concepção unificada de homem em um universo social que já demonstrava diversidades tão marcantes. Desta forma, o novo modelo de sociedade exigia que o homem se adequasse aos seus ditames atuais, que se encaixasse com a proposta que as mutações vinham oferecer.
No século XX, a sociedade do pós-Segunda Guerra Mundial vivia sob o horror do holocausto nazista e da opressão dos regimes fascistas, atormentados com a idéia da adoção, por milhares de pessoas, do anti-semitismo como proposta de política de governo tida como eficaz. Neste panorama, “ao final da Segunda Guerra Mundial, emerge a grande crítica e o repúdio à concepção positivista de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos, confinado à ótica meramente formal” (PIOVESAN, 2008, p. 28). Não era outra, portanto, a necessidade primordial do mundo, senão a elevação da dignidade do homem ao máximo grau de proteção, tanto no âmbito internacional, quanto no âmbito interno, como medida de apaziguamento da tensão social e do trauma nazi-fascista. Assim,
“ao emergir da 2ª Guerra Mundial, após três lustros de massacres e atrocidades de toda a sorte, iniciados com o fortalecimento do totalitarismo estatal nos anos 30, a humanidade compreendeu, mais do que em qualquer época da História, o valor supremo da dignidade humana” (COMPARATO, 2003, p. 55).
A criação da Organização das Nações Unidas (ONU), bem como a assinatura de Declarações e Pactos internacionais demonstrava que “o reconhecimento do dever de respeitar e promover a dignidade da pessoa humana – embora o conteúdo dessa afirmação ainda hoje seja objeto de acirradas disputas – parecia ser o único ponto de acordo teórico entre os países divididos pela Guerra Fria” (BARCELLOS, 2002, p. 111). Esta importância concedida e reconhecida internacionalmente à dignidade do homem obteve respaldo nos Textos Constitucionais de várias nações, o que proporcionou a elevação da sua proteção ao âmbito jurídico, como bem destaca Barcellos (2002, p. 109-110, grifo da autora):
“A reação à barbárie do nazismo e dos fascismos em geral levou, no pós-guerra, à consagração da dignidade da pessoa humana no plano internacional e interno como valor máximo dos ordenamentos jurídicos e princípio orientador da atuação estatal e dos organismos internacionais. Diversos países cuidaram de introduzir em suas Constituições a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado que se criava ou recriava (Alemanha, Portugal e Espanha, e.g., em suas novas Cartas; a Bélgica tratou do tema através de emenda à Constituição), juridicizando, com estatura constitucional, o tema.”
O homem, ainda que inserido em um corpo social e influenciado por valorações externas, é um ser único, na medida em que cabe a ele filtrar e trazer para a sua formação pessoal as idéias afloradas na sociedade, na proporção que lhe aprouver (NEVARES, 2004). Nesta vereda, conforme esclarece Krell (2008, p. 70), “cada consciência pessoal é influenciada pelo meio, pela educação, enfim, pela cultura do indivíduo que vê as regras morais objetivas ou genéricas, mas sempre sob um prisma próprio e particular”. Portanto, a idéia abstrata do indivíduo desagrega-se e perde terreno, quando o foco passa a ser o homem enquanto pessoa, possuidor de peculiaridades que o desiguala dos seus demais conviventes.
Da mesma forma, a família também absorve as mudanças sociais e modificações nas mentalidades, o que reflete, de forma basilar, no papel que passa a desempenhar e na sua conseqüente visão perante a sociedade, esta que, evidenciada por diversos estilos de vida, opiniões e padrões comportamentais, acaba mostrando-se como “uma conseqüência da interação de vários indivíduos distintos, arraigados em suas idiossincrasias, integrantes das mais diversas camadas sociais, regidos por preceitos morais e costumes diversos” (KRELL, 2008, p. 66).
Neste sentido, valiosos são os apontamentos de Engels (2009), que, ao utilizar-se de um estudo embasado nas pesquisas de campo realizadas por Lewis Henry Morgan, faz referência ao relato do cientista e historiador americano: “Morgan diz: ‘A família é um princípio ativo. Nunca permanece estacionária, mas passa de uma forma interior a uma forma superior, à medida que a sociedade evolui de uma condição inferior para outra superior” (ENGELS, 2009, p. 45). Mais adiante, conclui, ainda citando o seu referencial teórico: “A família é produto do sistema social e refletirá sua cultura” (ENGELS, 2009, p. 106).
No que pertine à conceituação da família, o meio sócio-temporal também exerce influência, conforme explica Krell (2008, p. 24-25):
“A história nos revela que cada fase da humanidade se revestiu de características próprias delineando determinados e diferentes conceitos de família, onde as influências do tempo, do meio social e da moral de cada época contribuíram para que os conceitos se modificassem. Atualmente, a constituição da família não se adapta àquela velha fórmula burguesa, nem tampouco está completamente desagregada ou desprestigiada como querem alguns. Simplesmente se reveste de novas características, na revalorização dos núcleos familiares.”
É assim que, pautada nas mutações introduzidas pela sociedade, bem como em uma ressignificação da moral vigente enquanto norma de conduta, a família passa a ser tutelada não mais pelo seu aspecto de instituição puramente formal, mas como uma entidade capaz de propiciar o afloramento de melhorias em cada um de seus membros. Neste segmento, Cavalcanti (2001, p. 58) aponta para esta mudança de perspectiva verificada nos contornos da instituição familiar:
“Entre as várias transformações, que presenciamos na sociedade contemporânea, sobressai a mudança desse modelo de família, que aos poucos deixa de ser patriarcal para assumir uma nova forma. De fato, considerando que se vem construindo entre nós, como no restante do mundo, um sistema no qual a igualdade de todos os seus membros seja buscada, em muitos aspectos, até onde se faça possível obtê-la, não será difícil denominar igualitária essa nova família cujos contornos já é possível divisar no horizonte.”
Deste modo, o fundamento da proteção familiar que passou a ser concedida pelo Estado encontra-se presente no princípio da dignidade da pessoa humana, de forma que tal proteção visa incentivar a promoção da dignidade entre os integrantes da família.
Destarte, promover o desenvolvimento da personalidade dos componentes de uma entidade familiar traduz-se em medida que configura proteção à dignidade do indivíduo, enaltecendo o seu status no ordenamento jurídico brasileiro, de modo que “essa proteção visa à pessoa concreta de cada um dos membros, e não a uma abstrata ‘comunidade familiar’” (GAMA; GUERRA, 2007, p. 122).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948[1] trouxe em seu bojo a defesa da igualdade de todos em dignidade e direitos (artigo I), reconhecendo, ainda, em seu preâmbulo, a dignidade inerente a todos os membros da família humana e seus direitos iguais e inalienáveis como fundamento da liberdade, da justiça e da paz do mundo. São estas também as palavras que se encontram presentes no preâmbulo do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966[2].
Ademais, a supramencionada Declaração de 1948 dispõe ser a família o núcleo natural e fundamental da sociedade, possuindo direito à proteção desta e do Estado (artigo XVI, 3). No mesmo teor é o enunciado do artigo 17, alínea 1 da Convenção Americana de Direitos Humanos[3]. O mesmo amparo também foi registrado no artigo 23, alínea 1 do supracitado Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966, demonstrando, com isto, a internacionalização da proteção assegurada à família, ancorada na valorização da dignidade da pessoa humana.
O princípio da dignidade da pessoa humana faz parte da essência do homem, estando a ela atrelado de forma intrínseca, diferentemente dos aspectos específicos da existência humana, tais como a integridade física, a intimidade, a vida e a propriedade. Este passa a ser então definido “como constituindo o valor próprio que identifica o ser humano como tal” (SARLET, 2009, p. 45).
O princípio ora em análise é a base de sustentação dos direitos fundamentais, sendo que todos estes direitos, “em maior ou menor medida, podem ser considerados como concretizações ou exteriorizações suas” (SARMENTO, 2010, p. 89). O seu valor “impõe-se como núcleo básico e informador de todo o ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional” (PIOVESAN, 2008, p. 27). Assim, se os direitos fundamentais constituem explicitações da dignidade da pessoa, sendo que cada direito fundamental possui uma carga reflexiva desta dignidade, o não-reconhecimento à pessoa humana dos seus direitos fundamentais constitui a própria negação da sua dignidade (SARLET, 2009).
Desta forma, a dignidade da pessoa humana não deve ser encarada como um direito fundamental, uma vez que ela própria é que propicia a existência de tais direitos. Pensar em um direito à dignidade é o mesmo que “considerar o direito a reconhecimento, respeito, proteção e até mesmo promoção e desenvolvimento da dignidade” (SARLET, 2009, p. 78). É um direito a ter direitos, um princípio prévio e anterior à concepção codificada de direito, já que vinculada à própria existência humana, e não simplesmente a um ordenamento de normas protetivas. Sua incidência, hoje, encontra-se amparada em território nacional pela Carta Constitucional de 1988, porém a sua origem é metajurídica.
Assim, também não merece respaldo a noção de concessão da dignidade da pessoa humana pelo Estado, uma vez que o homem, por natureza, detém a qualidade de ser digno. Cabe às autoridades, por seu turno, fomentar práticas que viabilizem a manutenção da dignidade de cada indivíduo, concretizada através dos seus direitos fundamentais, como os direitos individuais e coletivos, os direitos sociais e os direitos políticos, dispostos respectivamente nos Capítulos I, II e IV do Título II da Constituição Federal – Dos Direitos e Garantias Fundamentais. Deste modo, “terá respeitada sua dignidade o indivíduo cujos direitos fundamentais forem observados e realizados, ainda que a dignidade não se esgote neles” (BARCELLOS, 2002, p. 110-111).
Portanto, a atuação estatal deve versar no sentido tanto de preservar, como de promover a dignidade dos indivíduos, buscando formas de respaldar este princípio comum a toda e qualquer pessoa, inibindo a ação de quem porventura possa prejudicá-lo, bem como delimitando sanções para as práticas que venham a ferir a dignidade de outrem, atuando como uma espécie de “Sinal de Pare” (LADEUR; AUGSBERG, 2008, p. 10-12 apud SARLET, 2009, p. 53) a qualquer interferência em sua órbita de incidência (SARLET, 2009; SARMENTO, 2010).
O Estado, então, tornou-se o grande condutor do homem na satisfação de sua dignidade, posto que o indivíduo, sozinho, não dispõe de meios capazes de efetivar o seu gozo, nem tampouco de reprimir um atentado que ameace a eficácia do princípio. Esta intervenção estatal, conforme já expomos oportunamente, caracteriza-se como fruto de uma maior valoração da pessoa humana e de uma necessidade permanente de tutela de seus direitos fundamentais, em detrimento de uma concepção abstrata do homem que já não atendia ao novo cenário de mudanças, onde as diferenças sociais restavam cada vez mais evidentes. “O titular desses direitos, com efeito, não é o ser humano abstrato, com o qual o capitalismo sempre conviveu maravilhosamente. É o conjunto dos grupos sociais esmagados pela miséria, a doença, a fome e a marginalização” (COMPARATO, 2003, p. 53).
Embora as prestações estatais sejam de fundamental importância para assegurar a efetivação dos direitos fundamentais dos indivíduos e a conseqüente proteção da sua dignidade, torna-se necessário a coexistência do respeito mútuo e igualitário entre os homens, evitando-se a desordem social e o assoberbamento do Estado na resolução dos conflitos, abrigando-o à adoção de medidas coercitivas.
Exatamente pela previsão da igualdade de todos, presente, em um primeiro momento, na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (art. 1º), e, em esfera nacional, na Constituição Federal (art. 5º, caput), deve-se levar em consideração o caráter social do princípio da dignidade da pessoa humana. Ora, se todos são iguais na mesma proporção de direitos, para que se mantenha coesa e equilibrada a sociedade na qual vivem, não há que se falar em subjugamento da dignidade de um indivíduo em detrimento de outro, de forma que todos promovam o respeito aos direitos fundamentais dos seus conviventes com reciprocidade. Portanto, corroborando com o ensinamento de Habermas (2001, p. 62 apud SARLET, 2009, p. 60-61, grifo do autor), “a dignidade da pessoa, numa acepção rigorosamente moral e jurídica, encontra-se vinculada à simetria das relações humanas, de tal sorte que a sua intangibilidade resulta justamente das relações interpessoais marcadas pela recíproca consideração e respeito”.
É nesse patamar que a família, então, passa a funcionar como uma fortaleza, visto que o desenvolvimento da personalidade de cada um de seus membros, com respeito aos seus direitos fundamentais, visa à proteção da dignidade que lhes é auferida constitucionalmente. Portanto, “a família passou a servir como espaço e instrumento de proteção à dignidade da pessoa, de tal sorte que, todas as esparsas disposições pertinentes ao Direito de Família devem ser focadas sob a luz do Direito Constitucional” (MADALENO, 2008, p. 20). Se todos são igualmente dignos, tal dignidade deve ser igualmente assegurada a todos pelo Estado, e na família não poderia ser diferente. Discorrendo acerca deste assunto, expõem Gama e Guerra (2007, p. 120):
“A dignidade da pessoa humana, alçada ao topo da pirâmide normativa do ordenamento jurídico brasileiro, encontra na família o solo apropriado para seu enraizamento e desenvolvimento, o que justifica a ordem constitucional no sentido de que o Estado dê especial e efetiva proteção às famílias, independentemente de sua espécie. Busca-se desenvolver o que é mais relevante entre os familiares: o projeto familiar fulcrado no afeto, solidariedade, confiança, respeito, colaboração, união, de modo a propiciar o pleno e melhor desenvolvimento da pessoa de cada integrante, inclusive sob o prisma dos valores morais, éticos e sociais.”
A Constituição Federal, ao dispensar proteção a cada um dos membros que compõem o corpo familiar (art. 226, § 8°), estabelece à família, para que lhe seja conferida a tutela, o dever de proporcionar o desenvolvimento pessoal de seus membros. Opera-se então, no texto constitucional, a concepção instrumental de família (NEVARES, 2004; TEPEDINO, 2008), passando “da família instituição, protegida por si só, pelo simples fato de ter sido constituída através do casamento, para a família instrumento, entendida como formação social que tem em vista a pessoa de seus componentes” (NEVARES, 2004, p. 68).
Neste sentido, valiosos são os apontamentos de Tepedino (2008, p. 395, grifo nosso), demonstrando o seu vasto entendimento acerca do assunto:
“À família, no direito positivo brasileiro, é atribuída proteção especial na medida em que a Constituição entrevê o seu importantíssimo papel na promoção da dignidade humana. Sua tutela privilegiada, entretanto, é condicionada ao atendimento desta mesma função. Por isso mesmo, o exame da disciplina jurídica das entidades familiares depende da concreta verificação do entendimento desse pressuposto finalístico: merecerá tutela jurídica e especial proteção do Estado a entidade familiar que efetivamente promova a dignidade e a realização da personalidade de seus componentes.”
Assim, a família, bem como outros institutos do Direito Civil, passou a adquirir uma função social, “permitindo a plena realização moral e material de seus membros, em prol de toda a sociedade” (GAMA; GUERRA, 2007, p. 123), de forma que o atendimento a esta função social passa a ser o expoente que irá definir se a instituição merece ou não tutela por parte do Estado, na medida em que deverá contribuir para que as exigências sociais possam ser atendidas. Desta maneira, “partindo do pressuposto que o Direito é um produto cultural e fruto dos anseios de determinada sociedade, resulta, como óbvio, que todo instituto jurídico é criado e tem um fim determinado a cumprir” (GAMA; GUERRA, 2007, p. 126).
Com isto, foi albergado na Constituição Federal de 1988 o dever de cumprimento da função social da propriedade (art. 5º, XXIII), o qual, se não observado, poderá ensejar a aplicação do procedimento previsto para a desapropriação do imóvel para fins de reforma agrária (CF, art. 184).
Mostrando-se como um reflexo desta positivação constitucional referente à propriedade, a função social do contrato está prevista no art. 421 do Código Civil de 2002, agindo como limitadora do princípio da autonomia da vontade nos contratos, de forma a garantir a proteção aos interesses da coletividade e à regulamentação contratual embasada nos princípios da boa fé e probidade (art. 422/CC).
Nesta perspectiva, a função social da família vem para demonstrar que esta não se apresenta mais à sociedade como um “fim em si mesmo” (GAMA; GUERRA, 2007, p. 117), mas como um lugar propício ao desenvolvimento de sentimentos mútuos entre os seus membros, qualificadores de suas personalidades. Portanto, cada entidade familiar deve ser protegida “na medida em que seja capaz de proporcionar um lugar privilegiado para a boa vivência e dignificação de seus membros” (GAMA; GUERRA, 2007, p. 128).
A Constituição Federal de 1988, em sua “busca incessante da adequação do ordenamento jurídico à realidade social e cultural” (GAMA, 2001, p. 89), ao trazer para a família a função social de promover o desenvolvimento da personalidade de cada um de seus membros, com vistas à proteção de sua dignidade, introduziu no seu texto uma concepção plural do instituto, que reconhece a união estável formada entre um homem e uma mulher, bem como a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (família monoparental) como entidades familiares (art. 226, §§ 3º e 4º/CF), funcionando o texto constitucional como uma espécie de “divisor de águas em matéria de Direito de Família” (MARTINEZ, 2008, p. 151).
Com isto, o casamento perde o seu papel de único legitimador do núcleo familiar e a família ganha um fundamento instrumental, longe da superficialidade de uma acepção formal e elitista.
4 A união estável inserida no conceito instrumental de família
A concepção instrumental de família, arraigada em um quadro de mudanças sociais que levaram o constituinte de 1988 a elevar a instituição familiar à base da sociedade, conferiu proteção ao instituto na pessoa de cada um de seus membros, em atendimento ao princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República.
Ao mesmo tempo, a proteção estatal destinada à família passou a estimular entre cada componente do núcleo familiar o desenvolvimento da personalidade e qualidade de vida dos outros integrantes. Ora, em um organismo social constituído por um homem, uma mulher e uma criança, onde reina o companheirismo e a colaboração mútuos, além da presença cotidiana do amor e da solidariedade que marcam as relações entre os conviventes, não estará presente a função social da família que lhe confere o poder de proteção estatal? O simples fato deste núcleo familiar não ter sido constituído perante os rigores do matrimônio não impede o Estado de abarcá-lo enquanto entidade carecedora de tutela. Neste sentido, conforme sustenta Krell (2008, p. 25):
“As pessoas compartilham a cumplicidade e solidariedade familiar, não porque lhes foi imposto pela norma do contrato bilateral, mas porque tal sentimento de afetividade recíproca já se encontra implícito na união entre homens e mulheres com o fim de constituir família.”
Assim sendo, não há mais que se falar na equiparação dos conceitos de família e casamento, longe de aproximá-los enquanto sinônimos, de maneira que “a preocupação da maioria dos juristas em se apegar a conceitos rígidos, tradicionais, não observando as mudanças ocorridas no âmago da sociedade, na célula básica social, não pode prevalecer em detrimento do reconhecimento de novas noções” (GAMA, 2001, p. 43). Destarte, a intrínseca ligação entre a instituição da família e o matrimônio dá-se em virtude da primeira ser o gênero, e o segundo, uma de suas espécies, de acordo com o que aponta Fachin (2008, p. 272):
“A família, entretanto, é realidade mais ampla que esse dado formal, a ele não se aprisionando. O engessamento pretendido pela construção da família no direito em uma seara de abstração foi progressivamente se deslegitimando, ante a insuficiência do modelo unitário – centrado no casamento – para atender às demandas da sociedade. A família é, efetivamente, realidade sociológica, que, antecede o direito, não sendo possível aprisioná-la a conceitos ou modelos fechados e formalmente instituídos. Essa família como realidade sociológica é plural, como plurais são as aspirações afetivas que instituem o fenômeno familiar.”
O pluralismo familiar ganha respaldo com o advento da Constituição Federal de 1988, e o § 3° do art. 226 da Carta Magna mostra-se fundamental, ao reconhecer a união estável formada por um homem e uma mulher como entidade familiar. Deste modo, “amplia-se o espectro das famílias protegidas pelo Estado ao deixar a Constituição Federal de acolher com exclusividade apenas a família instituída pelas justas núpcias, e estender seu braço protetor para a união estável” (MADALENO, 2008, p. 763).
Ante a sua longa existência no curso da história, o legislador resolve finalmente “abrir os olhos” para as transformações vivenciadas no seio da sociedade e atentar para o crescimento de projeção que o companheirismo adquiriu ao longo dos anos, incluindo-o, pois, no rol das entidades familiares. Nessa perspectiva, cabe destacar as emblemáticas palavras de Madaleno (2008, p. 06):
“[…] uma das espécies de família reconhecida pela Constituição Federal é a constituída pelo casamento, mas que não se manteve isolada diante da evolução social da família brasileira que viu constitucionalizada como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher. A união estável não concorre com o casamento, como uma forma, “superior” ou “inferior” de entidade familiar, mas representa sim, apenas mais uma opção a ser tomada.”
Se as mutações sociais refletiram decisivamente no conceito de família, o regime de governo adotado no país também foi parte integrante no trajeto. E em uma nação constituída em Estado Democrático de Direito (art. 1°, caput/CF), nada mais cabível do que a adoção de uma concepção pluralista de família, onde haja o reconhecimento constitucional de entidades familiares extramatrimoniais, em detrimento dos arcaísmos autoritários, materialistas, patrimonialistas e individualistas que permearam o âmbito de atuação exclusiva da dita família legítima, porque fundada nas formalidades do casamento. Ressalte-se ainda que, conforme lembra Comparato (2003, p. 231), “outro traço saliente da Declaração Universal de 1948 é a afirmação da democracia como único regime político compatível com o pleno respeito aos direitos humanos (arts. XXI e XXIX, alínea 2)”.
É fato que manter um convívio grupal harmonioso é um desafio. E, na família, onde a dependência atinge o seu extremo, as relações são contínuas e revelam uma intensidade bem maior do que em qualquer outra formação social, a prática e o cultivo de valores, como a solidariedade, o respeito, a compreensão, a paciência, o carinho e o perdão, “sentimentos íntimos que unem seus membros e que não são expressos na literalidade da certidão” (KRELL, 2008, p. 64), denotam o real significado do núcleo familiar, sendo que em cada membro deverá residir a virtude de superar as dificuldades de uma convivência diária, trilhando caminhos que levem à promoção da dignidade de cada pessoa que compõe a família. Perfilhando este entendimento, analisa Martinez (2008, p. 151): “Às vezes, referindo-se a um ambiente de trabalho ou de lazer, as pessoas dizem que o seu escritório, o seu clube recreativo ou seu outro espaço em que se reúnem pessoas, constituem uma ‘família’. Porque presente a solidariedade, a amizade e a fraternidade”. Ainda neste sentido, é a sábia lição de Fachin (2008, p. 324, grifo do autor):
“A família contemporânea constitucionalizada afasta-se do standart talhado em séculos passados. É o afeto o elemento unificador dessa família em busca do novo milênio. Os laços de família, conforme grafava Cecília Meireles, afastam-se dos tradicionais critérios patrimoniais e biológicos, edificando-se sobre os vínculos de amor e de afeição que aportam como os verdadeiros elementos solidificadores da unidade familiar.”
Com esta compreensão, firma-se a noção de família enquanto instrumento propiciador do desenvolvimento da personalidade dos seus membros, expandindo o alcance das entidades familiares, uma vez portadoras de tal finalidade. Deste modo, a união estável passa a integrar o elenco da cadeia familiar, mas não como coadjuvante, e sim, no papel de co-protagonista, ao lado das demais entidades da família, conforme se extrai do exposto por Gama e Guerra (2007, p. 131):
“Assim, na medida em que a “união estável” também era capaz de criar um locus privilegiado de desenvolvimento dos companheiros e daqueles em seu entorno (filhos, outros parentes, amigos e até terceiros que negociem com os conviventes, muitas vezes os tendo como casados), surgiu a necessidade de aproximá-la do casamento, concedendo-lhes diversas proteções a ele relativas, de forma a se garantir, na prática, a proteção dessa comunidade capaz de atender à função social almejada pela Constituição à entidade familiar.”
Desta forma, a proteção indistinta dispensada a cada entidade familiar, sem privilégios ou discriminações relacionados à maneira pela qual foi constituída, desconsiderando qualquer formalismo como justificativa para uma unicidade de tutela estatal, revela que o direito fundamental à igualdade estará assegurado não só no âmbito das famílias, mas no ordenamento jurídico como um todo. Sendo assim, “todos os seres humanos, apesar das inúmeras diferenças biológicas e culturais que os distinguem entre si, merecem igual respeito, como únicos entes capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza” (COMPARATO, 2003, p. 1).
Este tratamento isonômico dispensado às modalidades familiares traduz-se em um fomento à dignidade humana não só dos membros de uma família institucionalizada pelo casamento, mas também daqueles que optaram por uma união informal. Tratar a todos de maneira igualitária é promover o respeito à sua dignidade, idéia exposta, em termos gerais, por Sarlet (2009, p. 96):
“Assim, constitui pressuposto essencial para o respeito da dignidade da pessoa humana a garantia da isonomia de todos os seres humanos, que, portanto, não podem ser submetidos a tratamento discriminatório e arbitrário, razão pela qual não podem ser toleradas a escravidão, a discriminação racial, perseguições por motivos de religião, sexo, enfim, toda e qualquer ofensa ao princípio isonômico na sua dupla dimensão formal e material.”
Da mesma forma, o direito de escolher a entidade familiar que melhor satisfaça às exigências pessoais do indivíduo, encontra amparo no direito fundamental à liberdade, uma vez que “cada um está livre para escolher a forma de constituição de família que melhor lhe aprouver, não podendo haver preterição de direitos em virtude de tal escolha” (NEVARES, 2004, p. 202). A autonomia privada do indivíduo, caracterizada como componente nuclear da liberdade, sustenta, de igual modo, a razão pela qual cabe à esfera de competência de cada um a gerência de sua vida íntima, incluindo-se aí o modelo de arranjo familiar adotado. Sarmento (2010, p. 154) explica que essa autonomia significa
“o poder do sujeito de auto-regulamentar seus próprios interesses, de “auto-governo de sua esfera jurídica”, e tem como matriz a concepção de ser humano como agente moral, dotado de razão, capaz de decidir o que é bom ou ruim para si, e que deve ter liberdade para guiar-se de acordo com estas escolhas, desde que elas não perturbem os direitos de terceiros nem violem outros valores relevantes da comunidade.”
De fato, seria incongruente à nova concepção de família enquanto instrumento mantenedor de valores que promovem o desenvolvimento de seus membros, a imposição de uma única entidade familiar a ser seguida, quando já se ultrapassou esta visão simplista de família.
Portanto, protegidos os direitos fundamentais à igualdade e à liberdade no âmbito das entidades familiares, promovida estará a dignidade das pessoas que as integram. No sentido inverso, se a dignidade da pessoa humana é igual para todos, todas as entidades familiares devem ter o mesmo grau de proteção, assim como cada ser humano deve ser detentor de autonomia que lhe capacite a “formatar a sua existência e ser, portanto, sujeito de direitos” (SARLET, 2009, p. 94).
Assim, a igualdade e a liberdade, ancoradas pela dignidade da pessoa humana, denotam os fundamentos constitucionais para que se dê a efetivação da tutela estatal presente no âmbito familiar, independente do modo pelo qual foi constituída a família, conforme destaca Krell (2008, p. 81, grifo da autora):
“Com Paulo Lôbo, podemos classificar em três os princípios constitucionais referentes às relações familiares: o princípio da dignidade da pessoa humana, concebido como estruturante nas relações familiares; o princípio da liberdade, que consiste no livre poder de escolha ou mesmo autonomia na constituição, realização e extinção da entidade familiar, na livre definição dos modelos educacionais, na livre formação dos filhos, desde que se tenha observado os limites da dignidade da pessoa humana. E, por fim, o princípio da igualdade nas relações, isto é, na paridade de direitos entre os cônjuges ou companheiros e entre os filhos.”
A garantia constitucional de assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram repousa na proteção e promoção dos direitos fundamentais dos seus membros, cuja efetivação constitui fator primordial na consagração do macroprincípio da dignidade da pessoa humana a todas as espécies de família. Nesta direção, é a ilustre doutrina de Dias (2009, p. 62):
“A dignidade da pessoa humana encontra na família o solo apropriado para florescer. A ordem constitucional dá-lhe especial proteção independentemente de sua origem. A multiplicação das entidades familiares preserva e desenvolve as qualidades mais relevantes entre os familiares – o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum –, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada partícipe com base em ideais pluralistas, solidaristas, democráticos e humanistas.”
Não obstante o avanço trazido por meio do “aval constitucional” (MADALENO, 2008, p. 763) para o reconhecimento do companheirismo como entidade familiar, o próprio § 3° do art. 226 da Lei Maior acabou servindo de sustentáculo para a defesa do casamento como instituto superior aos demais, pelo fato de promover, na parte final do referido dispositivo, a facilitação da conversão da união estável em casamento. Partidário desta opinião, Gama (2001, p. 88) expõe seu posicionamento acerca da exegese do artigo em comento:
“Outro aspecto implícito na norma contida no dispositivo constitucional ora comentado é o da prevalência do casamento sobre o companheirismo, pois do contrário estar-se-ia desestimulando a conversão prevista na Constituição Federal. Ou seja, a Constituição Federal fez uma opção clara: o casamento ainda é (e, diga-se en passant,com razão) a espécie de família hierarquicamente superior às demais quanto à outorga de vantagens para os partícipes, em suas relações internas (efeitos intrínsecos da união matrimonial), caso contrário haveria a equiparação entre os dois institutos formadores da família através da união sexual entre o homem e a mulher.”
Sem dúvida, casamento e união estável encerram entidades familiares distintas. A primeira caracteriza-se por ensejar um ato formal e solene, exigindo uma série de rigores para que seja efetuada a sua habilitação. Já a união estável é uma sociedade de fato, formada espontaneamente, na qual reside o fenômeno da informalidade como regra. Se a forma de constituição de cada uma delas evidencia contrastes tão marcantes, a sua regulamentação também refletirá essas diferenças.
De fato, não há como aplicar o mesmo estatuto normativo a essas duas espécies de família, uma vez que as suas peculiaridades afastam certas possibilidades de um tratamento normativo igualitário (NEVARES, 2004). Mais uma vez, deve-se entender o real sentido do princípio da isonomia, levando-se em consideração, também, as desigualdades e tratando-as de forma proporcionalmente distinta, a fim de que haja distribuição equânime de justiça.
Sobre este aspecto, percebe-se que o casamento gera uma maior segurança jurídica nas relações dos cônjuges com a sociedade, quando comparadas com as relações dos companheiros que mantenham uma união estável. Isto se dá devido ao fato de que o matrimônio já nasce estável, estabelecendo “a priori os seus efeitos, bastando que o ato seja celebrado” (NEVARES, 2004, p. 202). A conversão, prevista na parte final do art. 226 da Constituição Federal, mostra-se, portanto, como uma forma que visa disseminar a segurança jurídica nas relações familiares, insurgindo, conseqüentemente, na facilitação ao casamento (ANTONINI, 2010; TEPEDINO, 2008). Assim, à guisa do ensinamento de Canotilho (1999, p. 73), “a experiência comum revela que as pessoas exigem fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência aos actos dos poderes públicos, de forma a poderem orientar a sua vida de forma segura, previsível e calculável”.
Na união estável, por ser esta uma situação fática, a verificação da constituição dá-se somente a posteriori, já que não existe nenhum documento instituído com a finalidade de registrar quando se deu o início da convivência. Daí a importância da reunião probatória para assegurar a efetividade da segurança jurídica no que tange às relações travadas entre os companheiros e demais membros da sociedade, pois, conforme alude Nevares (2004, p. 206),
“como exigir que terceiros saibam que o seu partícipe num negócio jurídico vive em união estável e, dessa forma, reclamar pela autorização do consorte? Impossível. A recíproca, no entanto, não é verdadeira para os casados, que celebram um ato formal, perante o juiz, que será devidamente registrado.”
Consideradas as diferenças entre as duas entidades familiares em questão, o fato de o casamento ensejar maior segurança no que se reporta às relações jurídicas não lhe confere uma posição de superioridade na cadeia familiar, nem tampouco traduz a intenção do constituinte em dar prevalência ao instituto, ao prever a facilitação da conversão da união estável para o casamento. Se houvesse tal hierarquia, a Constituição asseguraria maior proteção aos membros da família fundada no matrimônio, e conseqüentemente, escalonaria os níveis de dignidade das entidades familiares, relegando um grau menor ao companheirismo.
Diversamente, o texto constitucional promoveu igual proteção a todos os membros da família. E, concebendo família em um conceito lato sensu, englobando esta, tanto o casamento, quanto as uniões estáveis formadas por um homem e uma mulher, bem como as famílias monoparentais, “a Carta Magna, ao determinar que a família tem especial proteção do Estado, em seu art. 226, caput, não estabelece diferenciações quanto à maneira pela qual a comunidade familiar foi constituída” (NEVARES, 2004, p. 237).
Ainda, se o Estado garante assistência à família na medida em que esta contribui para o desenvolvimento da personalidade de cada um dos que a integram, “como é possível dizer que o casamento é entidade familiar superior se todos os organismos sociais que constituem a família têm a mesma função, qual seja, promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros?” (NEVARES, 2004, p. 201).
Para garantir a eficácia na aplicação do principio da isonomia às relações que tem como foco as espécies de família, não basta somente levar em consideração as particularidades que as afastam, mas também, e, sobretudo, os pontos em que se identificam, sobre os quais recairão a todas as entidades familiares os mesmos direitos. É o que se extrai da brilhante análise desenvolvida por Tepedino (2008, p. 408, grifo nosso):
“Aí está o cerne da questão: os efeitos jurídicos que decorrem do ato solene consubstanciado pelo casamento, cujo substrato axiológico vincula-se ao estado civil e à segurança que as relações sociais reclamam, não podem se aplicar à união estável por diversidade de ratio. À união estável, como entidade familiar, aplicam-se, em contraponto, todos os efeitos jurídicos próprios da família, não diferenciando o constituinte, para efeito de proteção do Estado (e, portanto, para todos os efeitos legais, sendo certo que as normas jurídicas são emanação do poder estatal), a entidade familiar constituída do casamento daquela constituída pela conduta espontânea e continuada dos companheiros, não fundada no matrimônio. Trata-se de identificar a ratio das normas que se pretende interpretar. Quando informadas por princípios relativos à solenidade do casamento, não há que se estendê-las às entidades familiares extramatrimoniais. Quando informadas por princípios próprios da convivência familiar, vinculada à solidariedade dos seus componentes, aí, sim, indubitavelmente, a não aplicação de tais regras contraria o ditame constitucional.”
Desta forma, a facilitação na conversão da união estável para o casamento, disposta no art. 226, § 3°, in fine, da Constituição Federal, deve ser interpretada de forma teleológica, buscando investigar a finalidade que o constituinte pretendeu dar à norma. A regra não demonstra uma preterição ao instituto do matrimônio em detrimento do companheirismo: ao contrário, busca descomplicar o trâmite da transformação de uma situação fática para outra formal, atingindo aqueles conviventes que desejarem obter os direitos garantidos pela segurança jurídica que o casamento lhes confere, já que é função do Estado de direito garantir a segurança e a confiança aos seus membros.
Seguindo este entendimento acerca da interpretação do art. 226, § 3°, in fine do Estatuto Supremo, Lôbo (2005, grifo nosso) destaca que o dispositivo, diferentemente de impor requisito para a subordinação da validade ou eficácia da união estável à sua conversão em casamento
“configura muito mais comando ao legislador infraconstitucional para que remova os obstáculos e dificuldades para os companheiros que desejem casar-se, se quiserem, a exemplo da dispensa da solenidade de celebração. Em face dos companheiros, apresenta-se como uma norma de indução. Contudo, para os que desejarem permanecer em união estável, a tutela constitucional é completa, segundo o princípio de igualdade que se conferiu a todas as entidades familiares. Não pode o legislador infraconstitucional estabelecer dificuldades ou requisitos onerosos para ser concebida a união estável, pois facilitar uma situação não significa dificultar outra.”
O deputado Sérgio Barradas Carneiro (2007, p. 11), em justificativa ao Projeto de Lei nº 2.285/2007 – Estatuto das Famílias –, sustenta defesa no sentido de que o dispositivo constitucional que trata da conversão da união estável em casamento, nada mais é do que uma faculdade garantidora da liberdade que passa a ser concedida ao casal para, ao seu bel-prazer, transformar uma união informal em instituição matrimonial:
“Quando a Constituição se dirige ao legislador para que facilite a conversão da união estável para o casamento, não institui aquela em estágio provisório do segundo. Ao contrário, a Constituição assegura a liberdade dos conviventes de permanecerem em união estável ou a converterem em casamento.”
Se, por um lado, a constituição informal da união estável enseja um tratamento diferenciado ao instituto em determinadas situações, como forma de se assegurar a manutenção da segurança jurídica, por outro, não deve culminar em um fator de segregação de direitos comuns. Desta forma, contribuir-se-á para a inviolabilidade da dignidade humana, tanto na pessoa do cônjuge, como do companheiro.
5 conclusão
O homem é um ser social. E, por ser social, é também um ser evolutivo, cuja mentalidade progride concomitantemente com as mutações oriundas da sociedade na qual se desenvolve. É esta sociedade, portanto, que irá definir os (novos) contornos modeladores dos conceitos que o homem incorpora ao longo do tempo, sendo estes constantemente adaptados para as novas valorações que o processo evolutivo desencadeia.
De um ser abstrato, visto unicamente sob as lentes de uma igualdade formal, o homem passou a ser concebido como uma criatura peculiar, diversificada, que possui necessidades especiais a serem tuteladas por meio da chancela estatal. Todavia, esta concepção não se produziu autonomamente no seio social: a influência dos acontecimentos históricos, mormente a partir do século XIX, com a massificação das indústrias e a conseqüente concentração de riqueza, perpassando pelo genocídio nazista implantado no século XX, mostrou-se preponderante no curso de percepção da condição humana, estimulando o enfoque para a dignidade do indivíduo.
Ora, se os fatos históricos geram mudanças na sociedade, o direito, como produto dos valores sociais, atrairá diretamente para si todas estas mutações, repercutindo na maneira de conceituar e legislar acerca dos institutos jurídicos que regem as relações sociais.
Neste contexto, o instituto da família manteve durante muito tempo os caracteres advindos da concepção abstrata de homem que governava a sociedade, de modo que a configuração de uma família restava completa com a satisfação exclusiva do critério norteador da antiga conceituação do instituto: a formalização através do registro civil.
Contudo, a transformação na mentalidade humana propiciou o entendimento no sentido de que o objetivo de constituir uma família não se encerra com a obtenção de um documento comprobatório da sua existência. É a afetividade o combustível essencial para o convívio harmonioso dos membros familiares, para a manutenção sadia de uma família. E o novo conceito do instituto pautou-se no emblema do afeto para retirar do casamento o sinônimo exclusivo de família, tornando plural a sua concepção.
Neste sentido, obedecendo à trajetória evolutiva social, o ordenamento jurídico brasileiro trouxe a consolidação da visão plural da família, através do texto introduzido na Constituição Federal de 1988, a qual garantiu assistência estatal à família na pessoa de cada membro que a integra, estendendo o manto protetor à união estável entre homem e mulher.
O reconhecimento constitucional da união estável como entidade da família levou à consagração do afeto como embasador da demonstração do vínculo familiar. Com isto, o atual conceito do instituto não mais evoca a unicidade do matrimônio, uma vez que a afetividade não é privilégio dos que resolveram optar pela formalização da união. Antagonicamente, a concepção instrumental ora conferida à família impõe que cada membro promova ao desenvolvimento da personalidade do outro, evidenciando a importância da preservação da dignidade da pessoa humana alçada a nível constitucional, além de cumprir com a denominada função social da família.
Deste modo, promover o desenvolvimento da personalidade é estimular o afeto, e afeto, por sua vez, tornou-se a palavra-chave para o conceito de família que passou a imperar.
No entanto, o reconhecimento constitucional da união estável como espécie de família não deve servir de suporte para a apreensão da idéia de que este arranjo familiar iguala-se completamente aos demais. Do mesmo modo, esta conclusão não deve servir de óbice para que se perceba que a distribuição de direitos, quando advindos do vínculo familiar, deve ser ofertada na mesma medida a todos que se uniram com o propósito de constituir uma família.
Logo, não se pode asseverar que o estímulo à facilitação da conversão da união estável para o casamento, prevista na parte final do § 3º do art. 226 da Carta Magna, significou a afirmação da superioridade deste em detrimento daquela. O que houve, na realidade, foi a corroboração das diferenças atinentes ao modo de constituição entre as duas entidades familiares, bem como a obediência à segurança jurídica que o Estado é obrigado a ofertar à sociedade.
Os direitos oriundos da relação familiar entre os membros de cada espécie de família, estes sim, merecem permanecer pareados, indistinguíveis, inseparáveis. A família é o gênero, e, portanto, os direitos decorrem desse gênero. Descabe atribuir garantias diversificadas em virtude das espécies familiares.
Informações Sobre o Autor
Letícia Moreira de Martini
Advogada.