Resumo: O presente artigo trata do recurso de apelação, sob o aspecto da extensão e profundidade de seu efeito devolutivo, delineados no art. 515 do Código de Processo Civil. Faz-se um estudo dos parágrafos 1º e 2º do art. 515 do CPC com a finalidade de demonstrar o quão ampla já era a profundidade do efeito devolutivo da apelação, passando a ser ainda mais, com o advento da Lei nº 10.352/2001, que introduziu o parágrafo 3º ao mencionado dispositivo legal, e diante das perspectivas ante o Projeto de Lei que institui o Novo Código de Processo Civil.
Sumário: 1. Introdução. 2. Efeito devolutivo da apelação: extensão e profundidade (Art. 515, parágrafos 1º e 2º do CPC). 2.1. Diferenças entre os parágrafos 1º e 2º do art. 515 do CPC. Significados de “questões” e “fundamentos”. 2.2. O art. 515, parágrafos 1º e 2º, do CPC e a sentença citra petita. 3. Validade do art. 515, parágrafo 3º, do CPC, frente ao princípio do duplo grau de jurisdição. 3.1. O princípio do duplo grau e a efetividade do processo. 3.2. A relação entre o art. 515, parágrafo 3º, do CPC e o art. 330, I, do CPC. 3.3. Art. 515, parágrafo 3º, e perspectivas frente à reforma do CPC. 3.4. O art. 515, parágrafo 3º, do CPC, e o princípio dispositivo. 4. Conclusão. 5. Referências bibliográficas.
Palavras-chave: Apelação. Efeito devolutivo. Princípio do Duplo grau de jurisdição. Flexibilização. Perspectivas frente a reforma do CPC.
1. INTRODUÇÃO
Por sua própria evolução histórica, o recurso de apelação caracteriza-se como recurso por excelência, de utilização mais difundida entre todos os recursos usualmente admitidos.
De fato, há um forte elemento de natureza psicológica na previsão e manutenção do recurso de apelação como o meio para exercício do inconformismo, pois é universalmente reconhecida a exigência do ser humano de se insurgir contra decisões desfavoráveis. O exercício desse inconformismo depende da estruturação do Poder Judiciário em níveis hierárquicos, de forma a permitir que um órgão possa rever decisões de outro. Por isso, ao conceito de recurso (e em especial da apelação) é ínsita a noção da existência do duplo grau de jurisdição.
O presente trabalho tem como objetivo o estudo do recurso de apelação, a começar da análise de seus requisitos de admissibilidade, adentrando nas especificidades do princípio do duplo grau de jurisdição e a relação desse princípio com a grande ampliação que foi dada pelo legislador ao efeito devolutivo do recurso, ampliação essa iniciada nos parágrafos 1º e 2º do art. 515 do CPC e posteriormente mais acentuada com o advento do parágrafo 3º do mesmo artigo.
Busca-se demonstrar que, ao ampliar a extensão do efeito devolutivo da apelação, optou o legislador pela celeridade. Nessa medida, situações análogas devem receber o mesmo tratamento. Sempre que a devolução dos autos à origem for desnecessária, porque a controvérsia já se encontra adequadamente reproduzida, o tribunal deverá examinar a pretensão formulada pelo autor, ainda que o juiz não o tenha feito.
Haverá tentativa de convencer os leitores de que a limitação ao princípio do duplo grau de jurisdição foi simplesmente ampliada, pois a abrangência da profundidade do efeito devolutivo da apelação (art. 515, §§ 1° e 2°) já implicava, em certa medida, supressão de um grau de jurisdição, sendo considerada por Barbosa Moreira como “amplíssima”.
Daí desponta a necessidade de se conjugar o princípio do duplo grau de jurisdição com o art. 515, par. 3º, do CPC, o qual permite que, ainda que não examinado o mérito em 1º grau, existe a possibilidade que tal se dê em sede de apelação, se presentes os requisitos legais.
Nessa perspectiva, será traçado paralelo com os artigos correspondentes previstos no Projeto de Lei nº 8046/2010, que institui o Novo Código de Processo Civil, demonstrando que a intenção de legislador é de fato permitir uma maior flexibilização do princípio do duplo grau de jurisdição, ampliando ainda mais o efeito devolutivo para que alcance também as questões de fato quando prontas para julgamento ou quando a parte não a puder ter alegado em primeira instância por motivo de força maior.
2. EFEITO DEVOLUTIVO DA APELAÇÃO: EXTENSÃO E PROFUNDIDADE (ART. 515, PARÁGRAFOS 1º E 2º DO CPC)
A extensão do efeito devolutivo determina-se pela extensão da impugnação: tantum devolutum quantum appellatum. É o que estabelece o dispositivo a ser comentado, quando defere ao tribunal “o conhecimento da matéria impugnada”.
O presente capítulo terá por objetivo o estudo do art. 515, parágrafos 1º e 2º, do CPC[1], os quais tratam do efeito devolutivo da apelação, sob os seus aspectos de extensão e profundidade. Para efeitos didáticos, faz-se necessária a transcrição do mencionado dispositivo:
“Art. 515. A apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada.
§ 1º Serão, porém, objeto de apreciação e julgamento pelo tribunal todas as questões suscitadas e discutidas no processo, ainda que a sentença não as tenha julgado por inteiro.
§ 2º Quando o pedido ou a defesa tiver mais de um fundamento e o juiz acolher apenas um deles, a apelação devolverá ao tribunal o conhecimento dos demais.”
A exata configuração do efeito devolutivo resulta na análise de dois aspectos: o primeiro concerne à extensão do efeito; o segundo, à sua profundidade. Delimitar a extensão do efeito devolutivo é precisar o que se submete, por força do recurso, ao julgamento do órgão ad quem; medir-lhe a profundidade é determinar com que matéria há de trabalhar o órgão ad quem para julgar[2].
Ainda segundo Barbosa Moreira, a decisão apelada tem o seu objeto: pode haver julgado o mérito da causa (sentença definitiva), ou matéria preliminar ao exame do mérito (sentença terminativa). Deve-se analisar se a decisão do tribunal cobrirá ou não área igual á coberta pela do juiz a quo. A questão é analisada aqui do ponto de vista horizontal[3].
Por outro lado, a decisão apelada tem os seus fundamentos: o órgão de primeiro grau, para decidir, precisou enfrentar e resolver questões, isto é, pontos duvidosos de fato e de direito suscitados pelas partes ou apreciados de ofício. Cumpre averiguar se todas essas questões, ou nem todas, devem ser reexaminadas pelo tribunal, para proceder, por sua vez, ao julgamento; ou ainda se, porventura, hão de ser examinadas questões que o órgão a quo, embora pudesse ou devesse apreciar, de fato não apreciou. Aqui o problema é tratado em perspectiva vertical[4].
No primeiro aspecto, o parágrafo 1º do art. 515 do CPC tem aplicação quanto à extensão do recurso de apelação, ampliando em caráter excepcional o campo de atuação do órgão ad quem. Isso ocorre quando as questões a que se refere a aludida norma estão (ou deveriam estar) contidas no dispositivo da sentença, como, por exemplo, quando o órgão a quo, ao decidir a lide, julga prejudicado algum pedido do autor em virtude de haver acolhido o pedido anterior. Interposto recurso de apelação pelo réu, o órgão ad quem, ao reformar a decisão de mérito que tinha julgado procedente o pedido do autor pelo primeiro fundamento apresentado, deverá analisar o subsidiário, formulado para o caso de rejeição do primeiro. Isso significa que o tribunal estará analisando pela primeira vez fundamento nunca antes apreciado pelo juiz em primeiro grau de jurisdição.
Num segundo aspecto, o parágrafo primeiro do art. 515 do CPC diz respeito à profundidade do efeito devolutivo da apelação. Sua função aqui é possibilitar o conhecimento pelo órgão ad quem de todos os elementos que estavam à disposição do órgão a quo no momento em que este proferiu a sentença. Por essa razão é que Barbosa Moreira destaca que o efeito devolutivo da apelação, em relação à profundidade, é “amplíssimo”[5].
Não se exige que as questões tenham sido decididas na sentença para que se opere a devolução ao órgão ad quem. Apesar de haver imposição legal para que todas as questões suscitadas pelas partes sejam analisadas e decididas pelo órgão jurisdicional (art. 458, II e III, CPC)[6], do ponto de vista prático as questões não resolvidas na sentença são devolvidas ao conhecimento do órgão ad quem, inexistindo prejuízo aos litigantes, salvo quando se referem a capítulos de mérito não julgados, caracterizando julgamento infra petita e, portanto, nulidade da decisão.
Portanto, como resulta dos parágrafos 1º e 2º do art. 515, a profundidade do efeito devolutivo não se cinge às questões efetivamente resolvidas na sentença apelada: abrange também as que nela poderiam tê-lo sido. Estão aí compreendidas:
a) as questões examináveis de ofício a cujo respeito o órgão a quo não se manifestou;
b) as questões que, não sendo examináveis de ofício, deixaram de ser apreciadas, a despeito de haverem sido suscitadas e discutidas pelas partes.
Se o autor invocara dois fundamentos para o pedido e o juiz o julgou procedente apenas por um deles, silenciando sobre o outro, ou repelindo-o expressamente, a apelação do réu, que pleiteia a declaração de improcedência, é suficiente para devolver ao tribunal o conhecimento de ambos os fundamentos. Caso entenda o tribunal que o pedido merece acolhida justamente pelo segundo fundamento, e não pelo primeiro, o tribunal deverá negar provimento ao recurso, confirmando a sentença na sua respectiva conclusão, mas fazendo a correção dos motivos. Também se o juiz julgou improcedente o pedido apenas à luz do fundamento a, omitindo-se quanto ao fundamento b, a apelação do autor permite ao tribunal julgar procedente o pedido, sendo o caso, quer pelo fundamento a, quer pelo fundamento b.
Daí a desnecessidade de a parte vencedora apelar, para ver examinado fundamento sobre o qual o juiz se omitiu. A profundidade do efeito devolutivo da apelação do vencido é suficiente para provocar ampla atividade cognitiva do tribunal sobre as questões debatidas em primeira instância.
Contudo, é importante relembrar que a devolutividade da apelação só abrange a causa de pedir deduzida na inicial, sendo inadmissível qualquer inovação. A profundidade desse efeito é ampla, mas, no que se refere à pretensão inicial, deve ser respeitado o limite objetivo da demanda.
2.1. Diferenças entre os parágrafos 1º e 2º do art. 515 do CPC. Significados de “questões” e “fundamentos”
É interessante buscar as diferenças entre os parágrafos 1º e 2º do art. 515 do CPC. O parágrafo 1º fala em “questões suscitadas e discutidas no processo”, dispondo que elas poderão ser examinadas pelo tribunal, “ainda que a sentença não as tenha julgado por inteiro”. O parágrafo 2º não fala em questões, mas em “fundamentos” do pedido e da defesa, estabelecendo que será o conhecimento devolvidos ao tribunal, mesmo que a sentença acolha apenas um deles.
À primeira vista não existe uma diferença nítida entre os parágrafos primeiro e segundo do citado dispositivo legal. Contudo, sabe-se que o legislador não elabora dispositivos inúteis. Portando, deve-se partir do pressuposto de que, em não havendo na lei preceitos ou palavras inúteis, existe, de fato, alguma diferença entre os parágrafos 1º e 2º do art. 515.
A solução parte inicialmente da distinção que se deve estabelecer entre os termos “questões” e “fundamentos”. Segundo Joana Carolina Lins Pereira[7],
“Questões são polêmicas suscitadas em torno de algum assunto no decorrer da lide. Surgem quando um fundamento, de fato ou de direito, invocado no pedido ou na defesa, é impugnado pela parte adversa. Vale dizer, os fundamentos ensejam questões quando são impugnados. Ambos – questões e fundamentos – podem dizer respeito apenas ao processo em si (as chamadas preliminares) ou a temas de fundo”.
Portanto, deve-se ter em mente que os fundamentos são as razões do pedido, da defesa ou da decisão judicial. As questões, de seu turno, surgem quando se levanta dúvida acerca de um, ou mais, dos fundamentos invocados. Nesse sentido, já lecionou Carnelutti[8] que
“Em cuanto la razón, ya sea de la pretensión o de la contestación, sea dudosa, surge uma cuestión, la cual, por tanto, es la duda acerca de uma razón (…) Por lo común la duda nace de lãs alegacionres opuestas de las partes (…); pero puede también, si no existe una carga de la alegación (…), ser planteada por el juez a si mismo.”
Assim fica mais fácil a leitura do parágrafo primeiro do art. 515 do CPC quando se entende que esse dispositivo cuida da devolução ao tribunal das dúvidas surgidas no processo, estabelecendo que poderão as mesmas ser objeto de conhecimento pelo órgão ad quem ainda que não tenham sido inteiramente solucionadas pelo juiz a quo. Tais dúvidas podem ter surgido em decorrência de impugnação da parte adversa ou por observação do próprio juiz.
Portanto, conforme destaca Joana Carolina Lins Pereira (2004), em tese, não seria necessário que no art. 515, parágrafo 1º, viesse especificado que somente se devolvem ao tribunal as questões “suscitadas e discutidas”. Consoante se verifica na lição de Carnelutti, um argumento somente é alçado à condição de “questão” quando se levanta dúvida sobre o mesmo (quando se discute acerca do mesmo). Assim, falar-se em questão “suscitada e discutida” configura verdadeiro pleonasmo[9], porquanto somente surge questão quando o argumento suscitado por uma das partes é impugnado (discutido) pela parte adversa.
Passa-se agora a uma análise mais detida do parágrafo 2º do art. 515. Tal preceito, como já falado, trata da devolução do conhecimento dos fundamentos invocados pelas partes no pedido e na defesa. A norma permite ao tribunal conhecer de fundamentos argüidos por qualquer das partes, ainda que o juízo singular não os tenha acolhido.
A devolução do conhecimento da causa ao tribunal é ampla, não obstante a existência do duplo grau de jurisdição, ainda que não como uma garantia constitucional[10]. Por essas razões, o tribunal deve julgar a causa com os mesmos elementos de que dispunha o juiz em primeira instância. Se o juiz não se valeu de todos os elementos, apesar de estarem ao seu alcance, não se poderá impedir ao tribunal deles se utilizar. É possível, inclusive, que o juiz singular não tenha dado à causa a solução mais justa precisamente em virtude de não haver se utilizado de um dos elementos de que dispunha – seja em razão de inexperiência ou de outras deficiências por ter-se omitido quanto a fundamento invocado por uma das partes e que constituía o verdadeiro esclarecimento para a solução do litígio.
Todavia, esclarece Joana Carolina Lins Pereira (2004) que a distinção entre os parágrafos 1º e 2º do art. 515 não reside propriamente no fato de o parágrafo 1º tratar de questões e o parágrafo 2º tratar de fundamentos, haja vista que a distinção entre fundamentos e questões é apenas de grau (aqueles, se impugnados, discutidos, transformam-se nestas). A principal diferença reside na atitude do julgador de primeira instância: omitir-se, não conhecendo, ou conhecer, porém, rejeitando. Em ambas as situações, há devolução das questões ou fundamentos ao órgão ad quem, independentemente de serem os mesmos renovados nas razões recursais, condicionando-se apenas à existência de recurso.
Já para Rodrigo Barioni (2007) a principal diferença entre questões e fundamentos consiste no fato de ser possível que um único fundamento contenha diversas questões a serem resolvidas. A recíproca, contudo, para o autor, não é verdadeira: não há questões que contenham diversos fundamentos. Isso implica outra importante diferença entre os temas: a solução das questões antecede, logicamente, a decisão de acolhimento ou rejeição dos fundamentos. Para se saber se determinado fundamento será acolhido, obrigatoriamente o juiz deverá ter julgado questões a ele pertinentes.
O referido autor traz exemplo citado por Sérgio Bermudes[11], demonstrando a diferença entre questões e fundamentos: ação de nulidade de ato jurídico, fundada na incapacidade do agente e na ilicitude do objeto. Pode ocorrer de a alegação de incapacidade do agente repousar em sentença de interdição e na existência de laudos médicos e outros documentos que denunciem a incapacidade no momento da prática do ato jurídico. Neste caso, se a sentença acolher o pedido do autor pelo primeiro fundamento, com base na sentença de interdição, o recurso de apelação interposto pelo réu devolverá ao órgão ad quem o exame de ambos os fundamentos (incapacidade do agente e ilicitude do objeto). Mais que isso, haverá devolução das questões relativas ao laudo médico e aos outros documentos, que não foram apreciados na sentença.
Concordamos com a posição da autora Joana Pereira, no sentido de que o legislador não cria palavras inúteis. Portanto, há que se traçar as diferenças entre questões e fundamentos, notadamente porque uma expressão consta do parágrafo 1º do art. 515 e a outra do parágrafo 2º. Contudo, a conclusão acerca desse tema específico não é o objetivo do presente trabalho, notadamente porque se demandaria divagações infindáveis até chegar-se à exaustão do assunto. Por ora, contentamo-nos em afirmar que nem no trato das questões, nem dos fundamentos, é necessário que haja impugnação expressa na apelação, desde que a sentença, ao apreciar as questões omissas ou “não julgadas por inteiro”, bem como os fundamentos rejeitados, atente-se aos limites da causa de pedir.
2.2. O art. 515, parágrafos 1º e 2º, do CPC e a sentença citra petita
Faz-se mister que um outro importante aspecto seja agora abordado.
O art. 515, parágrafos 1º e 2º, do CPC, se interpretados equivocadamente, dão margem à interpretação de que os tribunais estão autorizados a complementar sentença citra petita.
A sentença não é citra petita quando deixa de apreciar um fundamento, pois não está o juiz obrigado a se deter sobre cada argumento invocado pelas partes, como se quesitos fossem. O julgador, para formar o seu convencimento, utilizará os fundamentos que se lhe afigurem mais importantes, podendo rejeitar de maneira implícita os demais. É por essa razão que não se considera citra petita a sentença que não aprecia todos os fundamentos apresentados pelas partes. A expressão citra petita significa dizer que houve uma apreciação incompleta do pedido, entendido este como a pretensão do autor à concessão de provimento judicial que lhe outorgue algum bem jurídico indevidamente negado pelo réu.
Portanto, não constitui supressão de instância a possibilidade de o órgão ad quem examinar questões e fundamentos não enfrentados no juízo de primeira instância. Tal supressão haveria se o tribunal resolvesse apreciar pedidos omitidos na sentença atacada, ao invés de decretar a sua nulidade para que outra seja proferida.
A sentença proferida citra petita padece de error in procedendo. Se não suprida a falha mediante embargos de declaração, o caso é de anulação pelo tribunal, com devolução ao órgão a quo, para novo pronunciamento. De modo nenhum se pode aceitar que o art. 515, parágrafo 1º, autorize o órgão ad quem, no julgamento da apelação, a “completar” a sentença de primeiro grau, acrescentando-lhe novo(s) capítulo(s).
Em conclusão lógica, afigura-se desnecessária a interposição de embargos declaratórios para provocar a apreciação pelo juízo a quo de questão ou fundamento não apreciado. Consoante as disposições dos parágrafos 1º e 2º do art. 515 do CPC, são devolvidas ao tribunal as questões suscitadas e discutidas no processo, ainda que não integralmente decididas, bem assim os fundamentos, ainda que não acolhidos pela sentença.
No mesmo sentido, não é necessário que o apelante faça constar de suas razões recursais, ou o apelado das contra-razões, os fundamentos e questões não apreciados. Reitere-se que a profundidade do efeito devolutivo é amplíssima, sendo perfeitamente lícito ao tribunal mergulhar no processo para buscar na contestação ou na petição inicial fundamento que, embora não considerado relevante pelo recorrente e, por isso, não reiterado no apelo, pode ser considerado pelo tribunal como suficiente para ensejar a reforma da sentença vergastada.
3. Validade do art. 515, par. 3º, do CPC, frente ao princípio do duplo grau de jurisdição.
3.1. O princípio do duplo grau e a efetividade do processo
O parágrafo 3º do art. 515 do CPC[12], introduzido pela Lei nº 10.352 de 2001, abriu a oportunidade de o tribunal, em sede de julgamento de apelação interposta contra sentença que extinguiu o processo sem resolução do mérito, ao prover o recurso, decidir desde logo a lide.
Para efeitos didáticos, confira-se o teor do dispositivo:
“Art. 515. A apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada. (…)
§ 3º Nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito (artigo 267), o tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causa versar questão exclusivamente de direito e estiver em condições de imediato julgamento.”
Antes do advento dessa norma, negava-se a possibilidade de o tribunal decidir a lide sem que houvesse pronunciamento do órgão de primeiro grau a respeito, como se via na lição de Barbosa Moreira[13], anterior à referida alteração legislativa: “Se se trata de sentença terminativa – isto é, de decisão que pôs fim ao procedimento de primeiro grau sem julgar o mérito -, não é lícito ao órgão ad quem passar incontinenti ao exame deste, na hipótese de ser provida a apelação”. Limitava-se o tribunal, nesses casos, a exercer juízo rescindente, com a posterior remessa dos autos ao juízo a quo para julgamento do mérito.
Contudo, com a introdução do parágrafo 3º do art. 515 do CPC o tribunal não mais se limita a apreciar as matérias constantes no recurso da parte nem aquelas que a sentença haja julgado. Embora o ataque da apelação tenha de restringir-se à decisão que decretou a extinção do processo sem julgamento do mérito, ampliou-se o efeito devolutivo do recurso para permitir ao tribunal julgar diretamente a lide.
O parágrafo 3º do CPC interferiu na esfera do princípio dispositivo, à medida que conferiu ao tribunal competência para decidir não apenas matéria de mérito impugnada, mas também não-impugnada e nem decidida.
Apesar de o referido dispositivo possibilitar o julgamento de mérito diretamente pelo órgão ad quem, o que significa a impossibilidade de exame da lide pelo órgão a quo, não pode ser taxado de inconstitucional por violação ao princípio do duplo grau de jurisdição.
Conforme já exposto no Capítulo 2 supra, é plenamente possível limitar o duplo grau de jurisdição, com vistas a privilegiar a celeridade processual. E o que se persegue com a instituição do parágrafo 3º do art. 515 do CPC é agilizar a prestação jurisdicional. Assim, concordamos com a maior parte da doutrina que a norma em comento é constitucional.
Conforme já ponderamos acima, o fato de o duplo grau estar assegurado implicitamente na Constituição não o torna insuscetível de flexibilização em determinadas hipóteses. A própria Carta da República, em determinados casos, restringe o duplo grau de jurisdição. É o caso, por exemplo, das decisões proferidas nas ações de competência originária do STF (art. 102, I, CF). Também não há duplo grau nas decisões do tribunal Superior Eleitoral, irrecorríveis por força de dispositivo constitucional, salvo as que contrariarem a Carta Magna e as denegatórias de habeas corpus ou mandado de segurança (art. 121, par. 3º, da CF).
Atente-se ainda para a existência de outro princípio, também de índole constitucional, que não raras vezes contrapõe-se ao duplo grau de jurisdição: a efetividade do processo. É cediço que não se pode admitir o completo aniquilamento de um princípio constitucional em favor do outro. Portanto, a em determinadas situações a solução é flexibilizar um deles, em prol daquele que se afigura mais relevante no caso específico. Em suma, podem haver limitações ao duplo grau de jurisdição, em prol da preponderância da efetividade do processo.
Conforme explicita Barbosa Moreira[14], “o princípio do duplo grau, no sistema do atual estatuto, e independentemente da inovação trazida pela Lei nº 10.352, não reclama que só passem ao exame do tribunal as questões efetivamente resolvidas na primeira instância: fica satisfeito com a simples possibilidade de que essas questões fossem legitimamente apreciadas ali”.
E quando se fala em efetividade do processo é indispensável colacionar a lição do renomado professor Cândido Rangel Dinamarco[15], em seu livro “A instrumentalidade do processo”, ao dizer que:
“Ora é preciso adequar o processo ao cumprimento de toda essa sua complexa missão, para que ele não seja fonte perene de decepções somadas a decepções (“toda decepção é muito triste”), nem permite que com isso se desgaste a legitimidade do sistema. Desse lavor, hão de participar o processualista e o juiz e de ambos se espera, para que possam chegar a bom termo, uma racional mas decidida mudança de mentalidade. É preciso implantar um novo “método de pensamento”, rompendo definitivamente com as velhas posturas introspectivas do sistema e abrindo os olhos para a realidade da vida que passa fora do processo. É indispensável colher do mundo político e do social a essência dos valores ali vigorantes, seja para a interpretação das leis que temos postas, seja para com suficiente sensibilidade e espírito crítico chegar a novas soluções a propor; o juiz e o cientista do direito são cidadãos qualificados, de quem a sociedade espera um grau elevado de participação política, revelando as mazelas do direito positivo e levando aos centros de decisão política os frutos de sua experiência profissional, com propostas inovadoras. Sem a sua participação, franqueado fica o caminho para os casuísmos legislativos. Com a plena tomada de consciência teleológica, que se propõe, teremos as desejadas condições para orientar os rumos das condutas, seja no trato de casos concretos, seja na sistematização das normas e reconstrução do espírito do seu sistema, seja nessa esperada crítica.”
Entendemos que a introdução do parágrafo 3º ao art. 515 do CPC foi importante passo rumo à instrumentalidade do processo, uma vez que está em consonância com a chamada “realidade fora do processo” dita por Dinamarco, onde os jurisdicionados esperam pela solução eficaz de seus anseios. A possibilidade de o tribunal passar diretamente ao exame do mérito, sem necessidade de devolver o processo ao juízo a quo, sem dúvidas, resguarda muito mais garantias às partes, que verão os seus litígios solucionados com maior rapidez e ainda sem ferir o duplo grau de jurisdição, posto que a causa já se encontrava madura para julgamento em primeira instância.
Destaque-se ainda as palavras de Cândido Dinamarco[16], ao afirmar que
“(…) essa inovação atende ao desiderato de acelerar a outorga da tutela jurisdicional, rompendo com um histórico e prestigioso mito que ao longo dos séculos os processualistas alimentam sem discutir. Não há por que levar tão longe um princípio, como tradicionalmente se levava o do duplo grau nos termos em que ele sempre foi entendido, quando esse verdadeiro culto não for indispensável para preservar as balizas do processo justo e équo, fiel às exigências do devido processo legal.”
Portanto, é necessário que, estando em condições de fazê-lo, o órgão ad quem conclua que a apelação deve ser conhecida e, no mérito, provida para o fim de reformar-se a sentença. Contudo, não é em qualquer oportunidade que a demanda tenha sido extinta sem julgamento de mérito que o legislador autoriza o órgão ad quem a empregar o parágrafo 3º do art. 515 do CPC. Duas condições cumulativas foram impostas: (i) a causa versar questão exclusivamente de direito; e (ii) estiver em condições de imediato julgamento.
3.2 A relação entre o art. 515, parágrafo 3º, do CPC e o art. 330, I, do CPC[17].
As condições ditas acima se superpõem: a causa estará “em condições de imediato julgamento” sempre que já não haja necessidade de outras provas além das produzidas nos autos, pois só por exceção é concebível que se necessite de prova para resolver questão de direito. Na opinião de Barbosa Moreira[18], teria sido preferível que se adotasse, com as devidas adaptações, a fórmula relativa ao julgamento antecipado da lide constante do art. 330, inciso I: “quando a questão suscitada no recurso for unicamente de direito ou, sendo de direito e de fato, não houver necessidade de outras provas”.
Rodrigo Barioni (2007) já e enfático ao esclarecer que a causa deve versar sobre questão exclusivamente de direito. A interpretação desse requisito deve ser feita à luz do que dispõe o art. 330, I, primeira parte, do CPC, que estabelece o julgamento antecipado da lide “quando a questão de mérito for unicamente de direito”. A expressão questão unicamente de direito significa que os fatos debatidos na demanda devem ser incontroversos, isto é, não necessitam de dilação probatória. Nesse caso, como ensina Arruda Alvim[19], “a questão de mérito se resume na aplicação da lei ao caso concreto, já definido pela ausência de qualquer controvérsia em torno dos fatos, e, então, encontra aplicação a regra de que acerca do direito não se faz prova, por força da aplicação do princípio do iura novit curia (art. 330, I, 1ª fase)”.
O segundo requisito, cumulativamente estabelecido em lei, é que a causa esteja em condições de imediato julgamento. Isso significa que se o feito não estiver em condições de imediato julgamento, será defeso ao tribunal apreciar o mérito da causa. A título de exemplo, não se pode admitir que seja examinado o mérito quando sequer houve citação e a conseqüente abertura de oportunidade para o exercício do contraditório pelo réu. Assim, a norma adverte o tribunal que primeiro analise se o feito está em condições de imediato julgamento, para só depois adentrar na análise do mérito. Tal recomendação ganha relevo ao se considerar que, em se tratando de matéria exclusivamente de direito, às vezes até sumulada, estaria o tribunal autorizado a avançar sobre o mérito, ainda que não obedecido o contraditório em primeiro grau. Contudo, vigora no direito pátrio preceito constitucional que garante o contraditório e a ampla defesa, ainda que se trate de matéria exclusivamente de direito, de modo que, caso o feito não esteja em condições de julgamento, não é lícito ao tribunal aplicar o parágrafo 3º do art. 515 do CPC.
Nessa medida, ressalte-se a opinião de parte da doutrina[20], de que a nova regra tem a mesma abrangência do art. 330, inciso I, do Código: o juiz deve julgar antecipadamente, suprimindo a fase probatória, sempre que a questão de mérito for unicamente de direito ou, havendo controvérsia fática, as provas forem suficientes para formação de seu convencimento. Também o tribunal, afastada a carência, deve prosseguir no exame do mérito se presente qualquer dessas situações e não apenas se a matéria versar questão exclusivamente de direito.
Contudo, há autores como Eduardo Cambi[21] e Ricardo de Carvalho Aprigliano[22], que, muito embora reconheçam a necessidade do exame de fatos para solução de questões de direito, negam a incidência do parágrafo 3º se houver controvérsia fática, embora já encerrada a fase probatória[23].
Essa também é a opinião de Rodrigo Barioni[24], ao dispor que: “se, por exemplo, a ação versar sobre questão de fato e de direito, não será aplicável o disposto no parágrafo 3º do art. 515, ainda que o processo esteja maduro para julgamento. Isso representaria violação não apenas à literalidade da lei, passível de ação rescisória, como também aos princípios da imediação, da identidade física do juiz e às regras basilares de interpretação de normas excepcionais”.
Defendemos o entendimento de que o inteiro teor do inciso I do art. 330 do CPC deva ser utilizado para interpretar o art. 515, parágrafo 3º, do CPC. Não só quando a questão for unicamente de direito, mas também quando houver questões de fato em condições de imediato julgamento, isto é, quando as provas forem suficientes para a formação do convencimento, poderá o tribunal julgar o mérito da causa sem a necessidade de determinar o retorno dos autos para o juízo a quo[25]. Tal entendimento está em sintonia com os escopos sociais e políticos do processo tão bem defendidos por Cândido Rangel Dinamarco, contribuindo para o incremento de uma nova mentalidade na qual o processo serve para entregar o bem de vida tutelado a quem de direito e não para protelações desnecessárias em função de casuísmos legislativos.
Gleydson Kleber Lopes de Oliveira[26] vai ainda mais longe ao afirmar que, se a matéria de fato controvertida estiver comprovada nos autos, mercê de provas documentais ou orais, ou se não estiver comprovada, embora tenha sido facultada aos litigantes oportunidade para tanto, não existindo necessidade de realização de instrução probatória, o órgão ad quem pode, implementado o outro requisito (condições de imediato julgamento), ao prover a apelação contra sentença terminativa, apreciar desde logo o mérito da causa.
3.3. Art. 515, § 3º, e perspectivas frente à reforma do CPC
O entendimento de que matéria de fato, se pronta para julgamento, também pode ser decidida diretamente pelo tribunal, é incorporado no texto do projeto do novo CPC, conforme se confere da proposta de redação do art. 965, § 3º, possível futuro sucedâneo do dispositivo objeto do presente estudo:
“Art. 965. A apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada.
§ 3º. Se a causa versar sobre questão exclusivamente de direito ou estiver em condições de imediato julgamento, o tribunal deve decidir desde logo a lide quando:
I – reformar sentença fundada no art. 472;
II – declarar a nulidade de sentença por não observância dos limites do pedido;
III – declarar a nulidade de sentença por falta de fundamentação;
IV – reformar sentença que reconhecer a decadência ou a prescrição.”
Assim a substituição da conjunção e por ou significa poder se aplicar pelo tribunal ad quem o princípio da causa madura não somente quando se trata de questão de direito e a causa estiver em condições de imediato julgamento concomitantemente, mas também quando versar sobre questão de direito ou a causa estiver em condições de imediato julgamento. Isso significa dizer que, se a proposta for assim aprovada, poderá haver apreciação direta pelo tribunal de questão de fato que esteja em condições de pronto julgamento, a exemplo do que ocorre com o julgamento antecipado ou imediato da lide em primeira instância.
Tais propostas se definitivamente incorporadas ao texto do novo CPC caminharão no sentido de uma maior flexibilização do princípio do duplo grau de jurisdição e contribuirão de forma significativa para a busca pela efetividade do processo, que fundamenta a reforma do Código de Processo Civil.
3.4. O art. 515, parágrafo 3º, do CPC, e o princípio dispositivo
Diverge a doutrina sobre a necessidade de que haja pedido do apelante para julgamento da lide pelo tribunal. Alguns autores têm sustentado que esse requerimento é indispensável, sob o fundamento de que o parágrafo 3º não modificaria a interpretação do caput do art. 515, que consagra o princípio do tantum devolutum quantum appellatum e a apreciação do mérito pelo tribunal violaria o disposto no art. 2º do CPC[27].
Contudo, de acordo com Rodrigo Barioni (2007), com cuja opinião nos compactuamos, não assiste razão a esse posicionamento. Não parece correto afirmar que a possibilidade de o órgão ad quem julgar o mérito, prevista no art. 515,parágrafo 3º, do CPC, esteja condicionada a pedido expresso do apelante, pois tal requerimento não constitui a “matéria impugnada” mencionada no caput da norma. O recurso de apelação dirige-se contra a parte dispositiva da sentença.
O autor, quando propõe a demanda, pretende ver o mérito julgado. Nenhum autor espera que seu processo seja extinto sem análise do mérito. Assim, quando apela, é óbvio que pretende ver o mérito apreciado e, de preferência, com rapidez, sem delongas desnecessárias. E em se tratando de matéria exclusivamente de direito, ou de direito e de fato pronta para julgamento, a apreciação do mérito pelo tribunal constitui maior rapidez para o autor na obtenção do provimento perseguido desde a propositura da ação. E tal fato não contraria o princípio dispositivo, uma vez que o autor, ao propor a ação, pede expressamente para que o mérito seja julgado, reiterando essa formulação no recurso interposto contra a sentença terminativa. Desse modo, qualquer órgão do Poder Judiciário que aprecie a lide nos limites em que foi proposta estará agindo de acordo com o interesse do autor.
A norma, ao ampliar o efeito devolutivo do recurso de apelação, atribuiu ao tribunal competência funcional para julgar a lide. Originariamente, a competência para decidir a lide é do juiz de primeiro grau. Porém, se este não o fez por entender que o processo devesse ser extinto sem análise do mérito, a competência para decisão quanto ao mérito fica transferida ao tribunal, desde que preenchidos os requisitos do parágrafo 3º do art. 515, já estudados. Trata-se de juízo de exame e não de reexame da lide.
Após o estudo dos parágrafos 1º e 2º do art. 515, chega-se também à conclusão de que a limitação ao princípio do duplo grau de jurisdição foi simplesmente ampliada, pois a abrangência da profundidade do efeito devolutivo da apelação (art. 515, §§ 1° e 2°) já implicava, em certa medida, supressão de um grau de jurisdição, para os que assim entendem.
O fato de o tribunal poder analisar pela primeira vez o mérito da demanda em nada difere na essência da possibilidade de o tribunal analisar fundamentos e questões rejeitados ou nunca antes apreciados. É uma incongruência a aceitação dos dois primeiros parágrafos e a rejeição do terceiro, sob o fundamento da violação ao duplo grau de jurisdição.
Faz-se oportuna a citação de Cássio Scarpinella Bueno[28]:
“Certo que nenhum princípio (e aqui refiro-me, especificamente, aos chamados “princípios fundamentais do processo”), em si mesmo, é absoluto, tendendo a conviver com outros princípios, conflitantes, por definição, entre si, mas parece-me que o sentimento generalizado no processo civil de que “toda” decisão é recorrível – e recorrível aqui significa recorrível plenamente inclusive do ponto de vista dos fatos subjacentes à decisão – gera, quando menos, uma sensação de que a questão relativa à pesquisa relativa ao duplo grau de jurisdição tem que ser examinada também fora do ambiente normativo (isto é, fora do texto “escrito” e, mesmo, do “não escrito” da Constituição) e capturada a partir deste sentimento, tal qual ele é e enquanto ele é.
De qualquer sorte, para fins de exposição, não há razão para duvidar da constitucionalidade do art. 515, parágrafo 3º, do CPC, forte na sua inspiração de economia processual, que veio, vale a pena frisar, de ser expressada pelo texto da Constituição, com a EC 45/2004.”
Além disso, esse fenômeno de atribuir ao órgão ad quem competência funcional para julgar determinadas matérias, em virtude da simples interposição de recurso admissível, não é novidade no sistema brasileiro. Tem-se o exemplo das matérias de ordem pública, em que o tribunal está autorizado a apreciá-las primariamente, sem que se alegue ofensa ao princípio dispositivo ou ao duplo grau de jurisdição. Assim, o efeito devolutivo da apelação atribui competência para o julgamento não apenas da matéria impugnada, mas igualmente das demais questões devolvidas por força de lei.
É imperioso ainda destacar outro aspecto a justificar a dispensabilidade de requerimento do apelante para que o tribunal aprecie o mérito da causa. Tal aspecto é delineado por Athos Gusmão Carneiro[29], a enunciar que são de ordem pública e assim inderrogáveis pela vontade das partes, “os critérios de competência funcional, atributivos de competência a um juiz para praticar ‘determinados’ atos, ou para conhecer de uma causa em primeira instância, e a outros juízes para conhecê-la em segunda instância”. Daí se conclui que não há perquirir sobre a vontade do recorrente em ver julgada a lide diretamente pelo tribunal. De fato, como se trata de competência funcional – matéria de ordem pública – não poderá haver derrogação, seja pelo tribunal, seja pela apelante. Portanto, afastada a extinção, e preenchidos os requisitos legais, é dever do tribunal apreciar o mérito da causa, independentemente de pedido do apelante, do apelado, ou mesmo da vontade subjetiva dos julgadores.
4. CONCLUSÃO
Estudamos aqui, sem o objetivo de exaurir o tema por não ser o espaço adequado para tanto, o efeito devolutivo da apelação, que, por seu caráter amplíssimo, no dizer de Barbosa Moreira, chega a levantar questionamento sob sua afronta ao princípio do duplo grau de jurisdição, uma vez que o órgão ad quem está autorizado pelo legislador a apreciar questões e fundamentos não decididos pelo juízo a quo, nos limites da matéria impugnada (tantum devolutum quantum appellatum).
Além disso, o tribunal também poderá julgar o mérito nunca antes apreciado pelo juízo de primeira instância, quando reforma sentença que julgou o processo extinto sem resolução do mérito, desde que preenchidos os requisitos do parágrafo 3º do art. 515 do CPC. Assim, podemos concluir que efeito devolutivo da apelação, que já era amplo, passou a ser ainda mais, após a introdução do parágrafo 3º ao art. 515 do CPC. E passará a ser ainda mais se aprovado o texto do art. 965, § 3º, da proposta do Novo Código de Processo Civil, que autoriza também o julgamento direto pelo tribunal de questões de fato quando prontas ou maduras para julgamento.
Conforme explicita Barbosa Moreira[30], “o princípio do duplo grau, no sistema do atual estatuto, e independentemente da inovação trazida pela Lei nº 10.352, não reclama que só passem ao exame do tribunal as questões efetivamente resolvidas na primeira instância: fica satisfeito com a simples possibilidade de que essas questões fossem legitimamente apreciadas ali”.
Defendemos o entendimento de que o inteiro teor do inciso I do art. 330 do CPC deva ser utilizado para interpretar o art. 515, parágrafo 3º, do CPC. Não só quando a questão for unicamente de direito, mas também quando houver questões de fato em condições de imediato julgamento, poderá o tribunal julgar o mérito da causa sem a necessidade de determinar o retorno dos autos para o juízo a quo. Demonstrou-se ser esta também a intenção do legislador do projeto do novo CPC. Tal entendimento está em sintonia com os escopos sociais e políticos do processo tão bem defendidos por Cândido Rangel Dinamarco, contribuindo para o incremento de uma nova mentalidade na qual o processo serve para entregar o bem de vida tutelado a quem de direito e não para protelações desnecessárias em função de casuísmos legislativos.
Entendemos que a alteração feita com a edição da Lei nº 10.352/2001 foi importante passo rumo à instrumentalidade do processo, uma vez que está em consonância com a chamada “realidade fora do processo” dita por Dinamarco, onde os jurisdicionados esperam pela solução eficaz de seus anseios. A possibilidade de o tribunal passar diretamente ao exame do mérito, sem necessidade de devolver o processo ao juízo a quo, sem dúvidas, resguarda muito mais garantias às partes, que verão os seus litígios solucionado com maior rapidez e ainda sem ferir o duplo grau de jurisdição, posto que a causa já se encontrava madura para julgamento em primeira instância.
Informações Sobre o Autor
Juliana Fernandes Chacpe
Procuradora Federal. Especialista em Direito Processual Civil.