Resumo: O presente estudo tem o escopo de analisar a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo nos delitos fiscais. Esta análise propõe realizar-se por meio de uma perspectiva criminológica, sustentando sempre uma aposição crítica em face das decisões de política criminal. Acredita-se que análises criminológicas do universo da delinqüência econômica são escassas e que este estudo pode auxiliar na compreensão dos mecanismos de seleção criminal, presentes no sistema punitivo contemporâneo. A existência de mecanismos seletivos refinados, como a extinção punitiva nos crimes tributários, aponta para a presença de outras forças e interesses que transcendem a lógica materialista. Estas outras variáveis parecem contribuir para uma leitura mais adequada do fenômeno seletivo. É por meio do arcabouço teórico representado pelos avanços da Criminologia Contemporânea, que se pretende trabalhar o objeto proposto.
Palavras-chave: Criminalidade Econômica. Direito Penal Tributário. Criminologia. Extinção punitiva pelo pagamento.
Abstract: The present study means to examine the extinction of punibility by payment the tribute in fiscal offenses. This analysis suggests taking place through a criminological perspective, always maintaining a critical opposition to the decisions of criminal policy. We assume that a criminological analysis of the universe of economic delinquency is unusual and that this study may help understanding the mechanisms of criminal selection current in the contemporary punitive system. The existence of sophisticated selective mechanisms, as the extinction of punibility in tributary crimes, points to the presence of other forces and interests that transcend the materialistic logic. These other variables seem to contribute to a more appropriate reading of the phenomenon of selection. It is through the theoretical framework represented by the improvements in Contemporary Criminology thought that this study aims to analyze the proposed object.
Keywords: Economic-Crime. Tributary Criminal Law. Criminology. Punitive Extinction by tax payment.
Súmario: 1. Introdução. 2. A tutela penal dos interesses difusos, o direito penal econômico e o direito penal tributário. 2.1. O direito penal secundário e o bem jurídico difuso. 2.2. O direito penal econômico, a sua natureza e o seu surgimento. 2.3 O direito penal tributário. 3. A extinção da punibilidade, pelo pagamento do tributo, nos crimes fiscais. 3.1. Natureza jurídica. 3.2. Aspectos normativos e jurisprudenciais. 4. Principais correntes do pensamento criminológico. 4.1. A criminologia positivista. 4.2. O labeling approach e o paradigma da reação social. 4.3. A criminologia crítica. 4.4. A contribuição de Sutherland. 4.5. David Garland e os avanços da criminologia contemporânea. 5. A construção de uma perspectiva criminológica. 6. A teoria materialista do desvio, a criminologia crítica, Sutherland e a expansão do direito penal econômico. 7. Os avanços da criminologia contemporânea, a complexidade do fenômeno punitivo e a análise criminológica da extinção da punibilidade nos crimes tributários.
1 INTRODUÇÃO
A sociedade pós-moderna, ou contemporânea, é marcada por profundas mudanças estruturais que alteraram, de forma importante, toda configuração das relações humanas. Estas mudanças têm provocado movimentos em todas as áreas de conhecimento, no direito não é diferente, e a emergência de novas relações sociais provoca a efervescência no mundo jurídico. Tema que tem movimentado os debates na dogmática penal atualmente é a questão da legitimidade de tutela em bens jurídicos difusos. Diálogos, tanto no Brasil, na América Latina, como no Velho Mundo, têm cuidado de problematizar se o Direito Penal deve ater-se a comportamentos que, em searas, como a econômica, a ambiental e a genética, causam danos a bens jurídicos difusos ou supraindividuais, de difícil demonstração empírica no que diz respeito ao nexo de causalidade entre a conduta e o dano.
Dentro deste panorama de tutela de interesses difusos, está a tutela penal da ordem econômica e nesta se encontra a tutela penal da ordem tributária que, no Brasil, hoje, se instrumentaliza pela Lei 8.137/90. Neste ponto, posicionamentos, quanto à constitucionalidade e a legitimidade do Direito Penal Tributário, têm sido defendidos com energia, surgindo, assim, diversas controversas em relação aos institutos que integram este ramo jurídico. Entre os institutos do Direito Penal Tributário que causam dissenso, o presente estudo delimitou como objeto a extinção da punibilidade, mediante o pagamento do tributo, prevista nos delitos fiscais. Este fenômeno tem provocado, na última década, além de uma enorme confusão legislativa e jurisprudencial, um intenso debate na seara acadêmica, sobretudo no âmbito penal.
Percebe-se, no entanto, que tem prevalecido nesse debate, assim como, de um modo geral, em todo debate que envolve a tutela penal supraindividual, uma perspectiva predominantemente legal e dogmática. Por esta razão, entende-se que carecem compreensões que levem em conta a complexidade das estruturas sociais que circundam o sistema jurídico e envolvem o fenômeno punitivo. Deste modo, a presente pesquisa indaga a possibilidade de construir, ao lado do ponto de observação legal e dogmático, uma perspectiva de análise criminológica dos delitos econômicos, especialmente, do instituto da extinção da punibilidade, por meio do pagamento do tributo, nos crimes tributários[1].
O presente artigo propõe desenvolver-se no sentido de primeiramente contextualizar o leitor dentro do universo do direito penal secundário, do direito penal econômico e do direito penal tributário, chegando, em seguida, ao instituto da extinção punitiva, pelo pagamento, nos delitos fiscais. Busca-se, desta maneira, a delimitação do objeto a ser analisado. Após explicitar as mais relevantes noções normativas e jurisprudenciais deste instituto, procura-se traçar um panorama das principais correntes criminológicas, além de se demonstrar as expressões mais recentes da criminologia contemporânea, arcabouço teórico pelo qual se pretende realizar a investigação proposta.
Em um momento posterior, após sustentar-se e justificar-se a possibilidade de contribuição que um estudo criminológico pode oferecer ao tema, o artigo procura tecer possíveis aproximações entre o corpo teórico da criminologia e a criminalidade econômica, esboçando a construção de uma análise criminológica da extinção punitiva, pelo pagamento, nos crimes tributários. Objetiva-se, neste ponto, indicar como a análise deste instituto, sob a óptica de uma corrente criminológica sofisticada, pode contribuir para um entendimento particular sobre a lógica do sistema penal, contextualizada na realidade do espaço social que a envolve.
2 A TUTELA PENAL DOS INTERESSES DIFUSOS, O DIREITO PENAL ECÔNOMICO E O DIREITO PENAL TRIBUTÁRIO
2.1 O DIREITO PENAL SECUNDÁRIO E O BEM JURÍDICO DIFUSO
As profundas mudanças sociais, ocorridas no seio da sociedade pós-moderna, principalmente após a segunda metade do século XX, impactaram de forma significativa as perspectivas do direito penal. Neste cenário, o direito penal passou a confrontar-se com conflitos sociais emergentes e a consequente necessidade de proteção de bens jurídicos até então ignorados, os bens jurídicos supraindividuas. (SHIRAKI, 2010, p.09)
A globalização contemporânea, marcada pela integração e dinamismo econômicos e por significativos avanços tecnológicos nos sistemas produtivos e na comunicação, configura um cenário de riscos sociais[2] que parece transcender às possibilidades do direito penal tradicional. Novas formas de ilicitude, com características próprias, se desenvolvem, e fica impossível combater essas condutas com instrumentos da dogmática clássica. Normas penais que dizem respeito a bens jurídicos não individualizáveis, tais como previdência pública, livre concorrência, sistema financeiro, meio ambiente e ordem tributária, começam a surgir e estremecem as bases do direito penal ortodoxo. (SANZ DE OLIVEIRA E SILVA, 2006, p. 196) Diante deste movimento, é certo que o legislador se deixa levar pela sedutora ideia de pôr todo aparato burocrático das sanções criminais ao serviço dos mais diversos fins de política social. Assim, a legislação penal só tende a expandir. (FIGUEIREDO DIAS, 2006, p.16)
É a partir do desafio de flexibilizar os institutos penais clássicos, para conter os conflitos trazidos pelas novas configurações sociais, que se insurge a problemática dos bens jurídicos difusos. O direito penal hoje já não tem mais como alvo o delinquente inadaptado à sociedade, resultado da má distribuição de renda. A criminalidade apresenta-se diferente, pois se tornou coletiva e integrou-se ao sistema econômico, político e social. O bem jurídico, a ser tutelado pelo direito penal, portanto, não é mais o mesmo. (LEMOS JÚNIOR, 2006, p. 282.)
O mestre de Coimbra, Figueiredo Dias, mencionando Goldschmidt e Wolf, esboça um conceito para o bem jurídico de índole coletiva[3], in verbis: “merece consideração o pensamento de Goldschmidt, segundo o qual o direito penal administrativo é iluminado por bens idéias e sem sujeito, por uma espécie de “bens secundários” relativamente à ordem jurídico-penal. Sobretudo quando este pensamento se liga à idéia de Wolf de que o que existe de específico no dano administrativo – e que caracteriza o respectivo ilícito – é a impossibilidade de sua referência a uma pessoa ou a uma coisa individual, sendo conseqüentemente imaterial. Nesse preciso sentido, não há um dano comparável como a modificação do mundo exterior, mas apenas a falta de cumprimento de uma atarefa imposta pelo estado no caso concreto. Por isso mesmo, melhor do que uma imaterialidade se falará da sua materialidade transnaturalística e transpessoal.” (FIGUEIREDO DIAS, 2006, p. 42-43)
Enquanto os bens jurídicos individuais correspondem à proteção de garantias e liberdades, os coletivos dizem respeito à proteção dos direitos sociais e da organização econômica. São bens de índole específica e autônoma que têm como critério reitor a ordem axiológica constitucional dos direitos sociais. Ainda, no ensinamento do mestre, o estudo dos bens jurídicos coletivos se revela como a questão-chave para se compreender a natureza de um novo direito penal, o direito penal secundário. (FIGUEIREDO DIAS, 2006, p.44-51)
A construção deste novo direito penal contemporâneo se mostra polêmica e controversa. Estudiosos renomados, à frente dos principais centros de pesquisa em dogmática penal ao redor de todo mundo, têm se dedicado a sustentar argumentos frente a legitimidade deste fenômeno, e a questão que se apresenta é a seguinte: até onde devem ir os limites desse novo direito penal que recém liberta-se dos moldes iluministas?
A qualidade e a dignidade do bem jurídico, protegido pela norma penal, como apontado acima, são as questões que estão no epicentro desta discussão. Fábio D’Ávila, neste diapasão, afirma que, em que pese as críticas que diuturnamente vem sofrendo esta categoria jurídica, a teoria do bem jurídico deve consistir no principal aporte teórico utilizado quando se trata de discutir a legitimidade em agir do direito penal. O autor considera este instrumento de análise teórica como uma contribuição inestimável para a discussão da proibição penal, ao passo em que a análise do bem jurídico deve ser a própria ratio em que se afirma a validade do direito penal. (D’AVILA, 2010, p. 14-16) Desta maneira, o debate que envolve a dignidade penal do bem jurídico difuso é, em verdade, o debate que diz permeia a legitimidade do direito penal secundário.
2.2 O DIREITO PENAL ECONÔMICO, A SUA NATUREZA E O SEU SURGIMENTO
O surgimento da ciência econômica moderna ocorreu, segundo consenso doutrinário, em 1776, com a publicação da obra “A riqueza das Nações”, de Adam Smith. Este momento marca a transição definitiva da economia feudal para a econômica capitalista. Smith sustenta as bases de uma economia liberal, nas quais os movimentos que constroem o mercado se dariam de forma espontânea. Para este autor, a indústria e o comércio deveriam ser totalmente livres, sem qualquer interferência estatal, guiados apenas pelo que chamou de “mão invisível”. (SMITH, 1983, p. 374-383)
Em que pese a importância histórica do surgimento do Estado Liberal para o desenvolvimento da economia, este modelo passou a sofrer sérias críticas a partir do século XIX. Os modos de produção, inerentes ao processo de industrialização, trouxeram desdobramentos sociais importantes, como a concentração de capital e as péssimas condições de vida dos trabalhadores. Estas consequências, produzidas pela industrialização, geraram uma série de movimentos e revoltas que ficaram conhecidas como reações socialistas. (FERREIRA DA COSTA, 2006, p. 339-341)
Pode-se dizer que este movimento, contrário à lógica liberal, teve início com as ideias de Stuart Mill e atingiu seu ápice em obras extremamente elaboradas, como a de Karl Marx. Em face deste contexto social de inquietação e descontentamento, as reações socialistas adquiririam grande projeção e acabaram por desestabilizar as bases ideológicas do Estado Liberal. Houve uma forte pressão no sentido de o Estado sair de sua posição inerte e passar a intervir na livre iniciativa do mercado, promovendo a igualdade material e protegendo os hipossuficientes.
É somente, neste momento, quando o Estado começa a intervir nas atividades econômicas, que surge o direito econômico moderno, como disciplina autônoma. Existem vários marcos históricos para este ponto de transição e ruptura com o Estado Liberal, entre eles: a Primeira Guerra Mundial, a quebra da bolsa de Nova York, em 1929, e a Segunda Grande Guerra. Elementos, como as novas relações entre capital e trabalho, a revolução dos meios de transporte e produção, a complexidade dos mercados financeiros, entre outros, contribuíram, também, para o desenvolvimento da economia dirigida. A crise do modelo Liberal, que envolve todo esse momento histórico, leva o Estado a rever a sua postura passiva frente ao sistema econômico, e, diante disto, surge o dirigismo econômico. (FERREIRA DA COSTA, 2006, p. 342-343)
As Constituições do México, em 1917, e de Weimar, em 1919, se revelam as primeiras cartas políticas que conferem status constitucional tanto a este dirigismo quanto à promoção do bem-estar social pelo Estado. Razão pela qual ficaram conhecidas como constituições de vanguarda, que esboçaram as bases de um novo modelo. No Brasil, a intervenção do Estado na economia está ligada ao fenômeno da industrialização, ao surgimento das empresas estatais, à Constituição de 1988, ao desenvolvimento econômico e à abertura de mercado, principalmente após os anos 80. (POETA, 2010, p. 15-22)
Seguindo estas transições históricas, a “mão invisível” do modelo Liberal é sucedida pela interferência do Estado e é, por meio do direito econômico, de normas reguladoras de direitos e deveres no âmbito da economia, que o Estado vai intervir. Nesta intervenção, o Estado busca equacionar os interesses individuais liberais com os interesses públicos do novo modelo. Deste modo, o surgimento do Direito Econômico é, por conseguinte, o instrumento pelo qual o Estado vai romper com o dogma liberal da autorregulação. (POETA, 2010, p. 23-26)
Nas palavras de Martos Nuñez, “o direito econômico é o conjunto de normas jurídicas que instituem, modificam, proíbem ou restringem atividades econômicas dos particulares em favor do interesse geral da sociedade” (POETA, 2010, p. 23), sendo que o núcleo deste direito está na regulação da ordem econômica. A ordem econômica, compreendida em um sentido amplo, (NUÑEZ, 2010, p. 23) é o conjunto de normas que institucionaliza e regula as relações econômicas em um determinado ordenamento, englobando o sistema financeiro, o sistema cambial, o sistema de proteção aos consumidores e a ordem tributária.
Após serem esclarecidas a natureza jurídica e histórica do direito econômico, segue-se com a conceituação do direito penal econômico. Ambos os ramos jurídicos têm em comum o mesmo objeto de tutela, a ordem econômica, enquanto bem jurídico coletivo. No entanto, o direito penal econômico direciona todo aparato burocrático do sistema penal no sentido desta proteção, tipificando comportamentos que venham a agredir este bem jurídico e cominando sanções de natureza criminal.
Em face do crescimento das relações humanas e as transformações relativas à sua qualidade, no que tange à ordem econômica, à internacionalização destas relações e ao surgimento de inúmeras fraudes nesta seara, o Estado entendeu necessária a tão polêmica intervenção penal na ordem econômica.
Na compreensão do estudioso latino-americano Gustavo Barroetavena: “o direito penal econômico pode definir-se como a disciplina que, dentro do Direito Penal, cuida da análise daqueles comportamentos descritos nas leis penais, principalmente em leis penais em branco, que lesionam ou distorcem o ordenamento econômico em vigor. Seja em caráter geral ou em algumas de suas instituições em particular, colocando em risco sua própria existência” (BARROETAVENA, 2010, p.70)[4]
No dizer de Francisco de Assis Betti, “direito penal econômico é o conjunto de normas jurídico-penais que protegem a intervenção jurídica estatal na economia”. Nesse desiderato, “é o corpo normativo que protege a regulação legal da produção, distribuição e consumo de bens. (ASSIS BETTI, 2000, p.35)
2.3 O DIREITO PENAL TRIBUTÁRIO
Quanto à natureza jurídica do direito penal tributário, no ensinamento dos autores, Alécio Adão Lovatto e Susana Aires de Sousa, existem quatro correntes teóricas, quais sejam: a teoria administrativa, a tributária, a dualista e, por fim, a teoria penalista. A teoria administrativa entende que o ilícito fiscal preenche todas as características próprias do ilícito administrativo, desta maneira o direito penal tributário cuidaria, fundamentalmente, de infrações administrativas.
As condutas, reguladas pelo direito penal tributário, seriam ofensivas meramente a normas instrumentais, não havendo subversão ao ordenamento nem ofensa de bens jurídicos fundamentais, por isto a sua natureza administrativa. As infrações fiscais, ao atingirem bens coletivos do Estado, não teriam nada de semelhante com as infrações penais comuns, que atingem bens individuais, estas seriam imorais, enquanto aquelas, apenas infrações de ordem. Deste modo, as consequências jurídicas dos ilícitos tributários, pela óptica da teoria administrativa, deveriam ser apenas sanções pecuniárias e jamais, penas privativas de liberdade.
Segundo a teoria tributarista, o direito tributário possuiria uma unidade e especificidade que impediriam a sua desintegração em ramos autônomos. O direito penal tributário, por ser um ramo do direito tributário, seria parte integrante desta unidade, e a tipificação dos delitos fiscais, com a consequente cominação de penas, seria mera derivação do poder tributário do Estado. Sob a visão desta teoria, o direito penal tributário seria, por natureza, um direito tributário penal, e não ao contrário, na medida em que tem raízes tributárias e não, penais. (LOVATTO, 2000, p. 26-29; AIRES DE SOUZA, 2006, p. 241-255)
A teoria dualista propõe uma ponderação entre a teoria administrativa e a penal, ao entender que os delitos fiscais são ora de natureza criminal, ora de natureza administrativa. A leitura, tecida por esta teoria, é a de que existem infrações fiscais que violam interesses essenciais da vida em sociedade e, por possuírem relevância ética, se afastam das infrações administrativas comuns. De outro lado, existem infrações que carecem de dignidade penal e devem se situar no âmbito da ilicitude administrativa.
Por fim, temos a corrente teórica que percebe o direito penal tributário como direito dotado de natureza eminentemente penal. Para esta corrente, o direito penal tributário nada mais é do que um direito penal especial. A legislação penal especial tipifica as condutas que ofendem a ordem tributária e, com isto, configuram o direito penal tributário. No entanto, como ocorre com qualquer outra lei penal especial, estas normas se submetem totalmente às garantias e aos princípios previstos no Código Penal. Nesse diapasão, o direito penal tributário seria um ramo do direito penal estanque do direito tributário, já que não sanciona com penas as tipificações do Código Tributário, mas, apenas aquelas previstas em normas penais especiais. Vale dizer que a legislação pátria adota a corrente penalista, de modo que os delitos fiscais, no Brasil, se subsumem as normas e os princípios do direito penal e processual penal. (LOVATTO, 2000, p. 241-259)
Esclarecida a sua natureza, pode-se concluir que, em que pese algumas particularidades, ontologicamente o delito penal tributário não se diferencia do delito penal comum. O direito penal tributário é, neste desiderato, no entendimento de Emerson Lima Pinto, “o conjunto de normas que regulam os delitos tributários e as respectivas sanções”, sendo certo que o adjetivo “tributário” pretende apenas dizer que as normas penais, que fazem parte da disciplina matriz, colocam sob sua tutela matéria tributaria”. (LIMA PINTO, 2001, p. 26-34) O autor Roberto Decomain invoca Hector Villegas, ao conceituar o direito penal tributário como sendo a ciência que regula e estuda todo o concernente às infrações e sanções tributárias. (DECOMAIN, 1995, p.18)
Em face destes ensinamentos, observa-se que o direito penal tributário é um ramo da ciência penal que normatiza, estuda e aplica sanções àquelas condutas que agridem o sistema tributário nacional e são dignas de tutela penal. A sanção é a pena privativa de liberdade, e a proteção é feita pela tipificação precisa de comportamentos, positivos ou negativos, que se traduzem no não cumprimento das obrigações do cidadão, contribuinte, para com o Estado, fisco.
No Brasil, hoje, a norma que regula este ramo jurídico e tipifica os delitos fiscais é a Lei 8.137/90, que revogou a Lei 4.729/65. O antigo diploma tinha algumas particularidades e diferenças frente a nova Lei. A norma de 1965, primeira previsão penal da sonegação fiscal, trazia figuras típicas que já estavam descritas no Código Penal da época, todavia o entendimento desenvolvido foi de que as fraudes fiscais não se enquadravam nos conceitos gerais do Código Penal, apesar de se subsumirem igualmente a ele. Outra particularidade é de que a lei antiga não definia delito fiscal, limitando-se, apenas, a trazer um rol exemplificativo, por meio de uma técnica legislativa ultrapassada. (LIMA PINTO, 2001, p. 70-71) Diversa é a técnica utilizada pela Lei 8.137/90, que considera como delitos contra a ordem tributária duas situações fáticas precisas e distintas: a primeira é “suprimir tributo ou contribuição ou acessório”, mediante as condutas que consigna como “supressão” ou “redução”, e a segunda é a previsão, numerus clausus, das condutas que podem levar à sonegação. (CORRÊA, 1994, p. 71-74) Os avanços da nova regulamentação podem ser observados com clareza. As situações fáticas, acima descritas, que se traduzem nos crimes tributários, estão dispostas nos art. 1º e 2º, da Lei 8.137/90.
3 A EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE, PELO PAGAMENTO DO TRIBUTO, NOS CRIMES FISCAIS
3.1 NATUREZA JURÍDICA
No que tange à natureza jurídica das causas de extinção da punibilidade, dentro da concepção analítica tripartida do fato delituoso, Luiz Régiz Prado, em relação às causas de extinção da punibilidade, leciona que o elemento da punibilidade seria externo à construção do conceito de crime. Com a realização de um injusto culpável, o direito de punir do Estado torna-se concreto, e surge a categoria da punibilidade. Entretanto, a punibilidade seria uma condicionante ou um pressuposto da consequência jurídica do delito, não fazendo parte da noção de delito propriamente dita. Enquanto elemento, alocado entre o injusto culpável e a reação do Estado, a punibilidade pode ser extinta quando sobrevierem determinadas causas que eliminem a possibilidade jurídica de imposição do jus puniendi. (REGIS PRADO, 2004, p.426)
Sobre as causas de extinção da punibilidade, o pesquisador Andrei Schmid discorre que, in verbis: “São causas extintivas da punibilidade os atos ou fatos que impedem a aplicação da sanção penal, podendo ocorrer de eventos naturais, da vontade do Estado ou da vontade do ofendido ou do agente. Podem ocorrer, ainda, durante ou após o fato” (SCHMMIDT, 2003, p. 43-45)
Ainda a esse respeito, Schmidt esclarece que as causas de extinção da punibilidade podem ser cogentes ou discricionárias. No primeiro caso, são impostas pela lei e, no segundo, aplicadas pela discricionariedade do juiz. A concessão de perdão judicial seria uma situação de causa extintiva discricionária, e a extinção da punibilidade pelo pagamento nos crimes tributários seria exemplo de causa extintiva cogente, uma vez que é, objetivamente, prevista pela legislação. (SCHMMIDT, 2003, p. 59-65)
Na compreensão de Andreas Eisele, punibilidade seria a concreta possibilidade jurídica de o Estado aplicar ou executar uma sanção, em face do sujeito ativo de um crime. Já as causas de extinção da punibilidade seriam decisões de política criminal que prevêem hipóteses de fatos que podem ocorrer após a realização do crime, cuja ocorrência afasta a possibilidade de uma pena ao sujeito ativo de um crime. (EISELE, 2002, p. 106)
Buscando a compreensão deste instituto na melhor doutrina alemã, lança-se mão dos ensinamentos de Hassemer e Von Liszt. Segundo Hassemer, entre o injusto culpável e as consequências jurídico-penais do crime, existiria um estágio reservado às decisões de política criminal. Deste modo, nos últimos estágios da estrutura punitiva, se expressa a vontade do legislador penal de não reagir com pena frente a qualquer comportamento culpável. Neste sentido, as causas de extinção da punibilidade ocorrem quando, apesar de existir um comportamento ilícito e culpável, considera-se conveniente renunciar à pena. Assim como a falta de pressupostos e outros obstáculos à pena, as causas extintivas da pena são frequentemente excluídas da estrutura do conceito de delito, por possuírem, como característica, a autonomia e a independência frente a culpabilidade. (HASSEMER, 1894, p. 300-302)
O autor Von Liszt conceitua as circunstâncias extintivas da pena como a existência de fatos que ocorrem depois da prática de uma ação punível e que conferem o efeito previsto em lei de aniquilar o direito à pena já originado.
Sobre esse tema, nas palavras do autor: “em uma série de casos, o legislador faz depender a efetividade da sanção penal da existência de circunstâncias externas, independentes do fato punível em si mesmo […] quando ocorrerem estas circunstâncias, não é possível que nasça a ação penal pública, pois o fato passa a ser, nos termos da lei, impunível.” (LISZT , 1999, p. 458)[5]
Nesse diapasão, em alguns casos, o legislador faz a efetividade de a sanção penal desaparecer diante da existência de circunstâncias externas ao delito. O autor esclarece, ainda, a distinção entre as circunstâncias extintivas da pena e as condições de procedibilidade, que pertencem ao direito processual. As primeiras se ligam a repulsa da punibilidade e segunda, à repulsa da acusação do sujeito ativo do delito. (LISZT , 1999, p. 457-470)
3.2 ASPECTOS NORMATIVOS E JURISPRUDENCIAIS
O primeiro diploma legal que previu a extinção da punibilidade, pelo pagamento do tributo, nos crimes fiscais foi a Lei n. 4.357/64, que regulava a apropriação indébita. Esta norma dispunha, em seu art. 11, a extinção da pretensão punitiva, quando o tributo fosse quitado antes do início do procedimento fiscal. Logo após, o art. 5º, do Decreto-lei n. 1.060/69, estendeu a medida para toda forma de sonegação fiscal, além de modificar o diploma de 64, determinando que, para fins de extinção da punibilidade, o pagamento do tributo poderia ser feito até a decisão da primeira instância administrativa.
Posteriormente, surgiu, então, a Lei 8.137/90, que regula e tipifica, atualmente, os delitos fiscais. Este diploma legal tratou da extinção da punibilidade em seu art. 14, prevendo que o pagamento do tributo, incluindo os acessórios, realizado antes do recebimento da denúncia, tinha o condão de extinguir a pretensão punitiva estatal. No entanto, um ano após, a Lei 8.383/91, em seu art. 98, revogou todas as disposições normativas pretéritas, que previam a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, acabando com esta possibilidade.
Porém, na sequência, a Lei n. 9.249/95, em seu art. 34, trouxe de volta o instituto da extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, novamente, se realizado até o recebimento da denúncia. Frente a esse panorama legislativo, importante apontar que o STJ, no julgado do HC n. 9.909/PE, estendeu o benefício da extinção punitiva àqueles que aderiam ao parcelamento do débito tributário antes da denúncia, considerando a ausência de justa causa para a ação penal.
A referida decisão do STJ causou grande impacto, e a Lei 9.964/00, em seu art. 15, veio regular a situação daqueles que se submetiam ao programa de parcelamento do débito tributário. Esta Lei, porém, previu não a extinção, mas, a suspensão da pretensão punitiva frente a submissão do sujeito ativo do delito fiscal ao programa REFIS de moratória, antes do recebimento da denúncia, já, em relação ao pagamento integral, nada foi alterado.
Em 2003, a Lei n 10.684, REFIS 2, em seu art. 9, caput, tratou, novamente, do tema da suspensão da punibilidade dos crimes tributários diante da inclusão do sujeito ativo do delito no programa de parcelamento, no entanto, desta vez, a norma não mencionou o aspecto temporal, e a medida passou a ser legal, independentemente se antes ou depois do recebimento da denúncia. No mesmo art. 9, parágrafo 2, esta lei regulou a extinção da punibilidade pelo pagamento integral do débito e, do mesmo modo, não fez qualquer previsão quanto ao recebimento da denúncia, podendo a extinção pelo pagamento ocorrer a qualquer tempo. Esse entendimento de extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo a qualquer tempo foi sedimentado em paradigmáticas decisões do STF, como, por exemplo, o HC n 81.929/RJ e o HC n. 85.452/SP.
Seguindo-se esta digressão histórica, em 2006, foi criado o Programa de Parcelamento de Débitos Tributários REFIS III, que nada alterou em nosso objeto de pesquisa, e, em 2009, surgiu o RESIS IV, ou REFIS da crise que, traduzido na Lei 11.941/09, tratou da extinção da punibilidade nos art. 68 e 69. O diploma de 2009, no art. 68, limita a suspensão punitiva apenas aos débitos, objeto da concessão de parcelamento. Desse modo, mesmo que o contribuinte estivesse incluído no programa de moratória, a pretensão punitiva não seria suspensa em relação aos débitos que estivessem de fora do parcelamento. O entendimento pacífico é de que o art. 68, da Lei 11.941/09, revogou o caput do art. 9, da Lei 10.684/03.
Ainda, no que concerne ao diploma de 2009, percebe-se que o art. 69 concedeu a possibilidade extintiva da punibilidade pelo pagamento apenas às hipóteses submetidas ao anterior parcelamento, havendo, portanto, uma retração do instituto. Para fins penais, a controvérsia, instalada neste ponto, foi o seguinte questionamento: se o art. 69, da Lei 11.941/09, tivesse revogado o § 2, do art. 9, da Lei 10.684/03. A interpretação predominante tem sido no sentido de que não ter havido revogação. Entende-se que a legislação de 2009 trata de situação diversa, já que dispõe apenas sobre os débitos que foram objeto de parcelamento, enquanto o § 2, do art. 9, da Lei 10.684/03, é mais amplo e se aplica a todos os débitos, ainda que não submetidos ao regime de parcelamento. Ademais, o § 2, do art. 9, da Lei 10.684/03, é de natureza permanente, ao passo que o art. 69, da Lei 11.941/09, é de natureza temporária, não havendo, assim, que falar em revogação.
Nesse ponto, É importante apontar a Ação Direta de Inconstitucionalidade, proposta pelo Procurador-Geral da República, referente a essa matéria. A ADIN 3002-7 indagava a constitucionalidade do caput do art. 9, da Lei 10.684/03, que, como vimos, foi revogado pelo art. 68, da Lei 11.941/09. Ressaltamos, ainda, que a referida ADIN não tratava do § 2 do mesmo art. 9 que, como analisado, permanece em vigor. A ação, proposta pelo Procurador-Geral da República, questionava matéria referente à suspensão pelo parcelamento e não à extinção pelo pagamento.
Como se não bastassem as controvérsias já existentes nesta seara, em 2011, foi publicada a Lei 12.382 que reascendeu a polêmica sobre a extinção da punibilidade nos crimes tributários. Desta vez, a questão vem regulada em um artigo isolado da lei que trata do salário mínimo. O art. 6, da referida lei, em seu § 4, regula a suspensão da pretensão punitiva pela aderência do agente ativo do delito fiscal ao Programa de Parcelamento e, desta vez, menciona que o pedido de inclusão no parcelamento deve ser feito antes do recebimento da denúncia. Esta disposição faz retomar todo o debate que envolve o marco processual do recebimento da denúncia.
Diante desta recente disposição normativa, cabe esclarecer que a sua melhor interpretação tem sido no sentido de que ela afeta apenas a suspensão punitiva pelo parcelamento e não, a extinção pelo pagamento. Consequentemente, no que tange aos crimes tributários, hoje, têm-se duas situações distintas. A primeira é quanto à suspensão da pretensão punitiva do Estado, que ocorre com o pedido de inclusão do agente ativo do delito no programa de parcelamento, efetuado antes do recebimento da denúncia. Vige, então, no que concerne à suspensão punitiva, o § 4, do art. 6, da Lei 12.382/11. A segunda situação é no que se refere à extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido, efetuado pelo agente ativo do crime fiscal. Nessa situação, permanece vigendo, ainda, a disposição do o § 2, do art. 9, da Lei 10.684/03, em que não há qualquer menção ao recebimento da denúncia. Deste modo, hoje, o pagamento do tributo, a qualquer tempo, extingue a punibilidade estatal, sendo que o sujeito ativo do delito fiscal tem a possibilidade de afastar, assim, a persecução penal e uma eventual execução criminal.
4 PRINCIPAIS CORRENTES DO PENSAMENTO CRIMINOLÓGICO
4.1 A CRIMINOLOGIA POSITIVISTA
Passados os séculos XVIII e XIX, começa a se configurar, na primeira metade do século XX, uma corrente criminológica, fortemente influenciada pelo positivismo e pela objetividade, que ficaria conhecida como escola positivista. Foi, neste momento, em meados de 1930, que a criminologia se emancipou, enquanto corrente intelectual e ciência independente, já que passou a ter um objeto bem definido, o delinqüente.
Norteados pelo determinismo positivista, estes autores não se conformaram com uma compreensão causal do delito indemonstrável, ligada à livre manifestação da vontade. Buscaram, então, a etiologia desviante em fatores objetivos mais precisos, sobretudo em elementos biológicos, antropomórficos e psicológicos.
No que tange ao caráter determinista desta Escola criminológica, José Cid Moliné e Elena Larrauri Pijoan discorrem que: “A Escola Positiva pretende explicar o fato delitivo de um indivíduo da mesma forma que, por exemplo, os físicos podem prever que, quando deixamos cair um livro que temos nas mãos, este vai cair no chão. […] Esta é a pretensão de igualar a criminologia a ciências naturais, o que explica o fato desta corrente repudiar a idéia de livre arbítrio da Escola Clássica” (CID MOLINÉ; LARRAURI PIJOAN, 2001, p. 59)[6]
Assim como ocorreu com a escola clássica, os autores e as obras de maior relevo, na criminologia positivista, se desenvolveram no contexto Italiano, sendo que se destacam Lombroso, Ferri e Garofalo. Os referidos autores, munidos do método empírico-indutivo, procuravam desvendar as possíveis causas do comportamento humano criminoso em fatores patológicos que constituíam o indivíduo. Esses elementos patológicos normalmente diziam respeito ao aparelho psicológico ou à constituição física do sujeito, que deveria apresentar um desvio à normalidade que justificasse o comportamento delinquente. Frente a essa análise patológica do desvio, surge outro importante papel desta escola criminológica, a prerrogativa de apontar como a instituição da pena poderia tratar, restaurar e recuperar este sujeito considerado “doente”. A criminologia positivista cuidava de identificar esse indivíduo desviante doente, descrevendo as formas de curá-lo, além de se preocupar sempre em como defender a sociedade destes “anormais”. (BARATTA, 2002, p. 37-39)
Vale dizer que, na perspectiva de estudo da criminologia positivista, o crime era considerado uma entidade ontologicamente existente, ou seja, o comportamento proibido, previsto pelo direito penal, era tomado como uma verdade pré-existente, sem qualquer questionamento. Deste modo, a criminologia detinha um papel meramente conservador, legitimador e de suporte frente ao direito penal. Ao direito penal cabia dizer o que era crime e à criminologia, desvendar as suas causas e apontar a sua cura, além de legitimar a punição sobre o indivíduo anormal, que deveria ser modificado e readequado à sociedade. A criminologia positivista, em outras palavras, deveria racionalizar e legitimar as decisões políticas e a compreensão da violência e do crime, uma vez que o seu objeto de estudo não era senão o que a lei penal prescrevia.
A pesar de estar presente também na escola liberal clássica, é, no contexto da criminologia positivista, que se destaca o paradigma ideológico da defesa social. Sendo o sujeito que realiza um comportamento proibido um ser doente e anormal, ontologicamente diferente dos demais seres humanos, ele deve ser totalmente segregado e isolado, até que seja curado para a própria segurança da sociedade. Segundo a ideologia da defesa social, o direito penal seria um recurso do Estado para proteger e separar os indivíduos ditos bons daqueles desviantes, ditos maus e anormais. Esta ideologia está intimamente ligada ao desenvolvimento da sociedade burguesa e à necessidade de legitimar a violência estatal.
Os principais postulados da defesa social estão na legitimidade exclusiva do Estado para castigar, na visão maniqueísta, de que o delinquente é um indivíduo mal que deve ser segregado e castigado pelo Estado, em nome do bem e na ideia utópica de que o direito penal é igual para todos e deve ser aplicado igualmente a todos que apresentarem comportamento negativo. O suporte ideológico maniqueísta deste pensamento e a visão ingênua de que o Estado, por meio do direito penal, está guardando o bem social contra os desviantes anormais permanece, de algum modo, presente até hoje nas manifestações do pensamento criminológico. (BARATTA, 2002, p.41-47)
4.3 O LABELING APPROACH E O PARADIGMA DA REAÇÃO SOCIAL
No seu correr histórico, a criminologia passou, ainda, pelas teorias funcionalistas, de subcultura e psicanalíticas, entre outras, chegando ao labeling approach. Esse conjunto de teorias, como um todo, ficou conhecido como teorias criminológicas liberais, porém é só com o surgimento das teorias do etiquetamento ou labeling que ocorre, finalmente, uma inversão no objeto de estudo da criminologia e na sua posição frente ao direito penal.
Esta relação, que costumava ser de conformidade, adquire um caráter crítico e questionador, já que o comportamento, censurado pelo direito penal, passa a não ser mais tomado como dogma. No que tange à inversão do objeto, a partir desse momento, o crime passa a ser visto não mais como um ente ontologicamente existente, mas, como um fenômeno socialmente construído. Ou seja, certos indivíduos, representantes de toda uma sociedade, decidem quais condutas devem e quais não devem ser passíveis de sanção penal e quais devem ou não ser criminalizadas, assim como decidem quem são aqueles merecedores do estigma de criminosos. Tais inversões, trazidas pela teoria do labeling approach, representam o que ficou conhecido como “a virada criminológica”. (HASSMER , 2000, p. 110-111)
A distinção entre um comportamento socialmente aceito e um comportamento desviante passa a depender menos de uma anormalidade ou de uma atitude interior valorada positiva ou negativamente do que da definição legal, que, em um dado momento, em uma determinada sociedade, distingue o certo do errado. Nesse sentido, aparece como fator determinante para o estudo criminológico o problema da definição do delito, com todas as implicações político-sociais que o envolvem. A compreensão do fenômeno criminal começa a levar em consideração todo sistema penal, passando por todas as instâncias oficiais que têm a prerrogativa de atribuir o status social de delinquente a certo indivíduo detendo, portanto, o poder de controle social. (FIGUEIREDO DIAS ; COSTA ANDRADE , 1997, p. 44-54)
Esta nova criminologia que se apresenta traz consigo um viés crítico, inerente à sua própria perspectiva de pesquisa, na medida em que o fenômeno do comportamento desviante não é mais percebido como uma entidade naturalmente posta, um simples ponto de partida pré-constituído à experiência, mas, sim, como uma realidade social, construída dentro de processos de interação. É justamente o entendimento deste processo de construção do comportamento proibido que permite à criminologia manter uma postura questionadora frente aos dogmas do Direito Penal.
Nesse entendimento, a definição de crime, por conseguinte, bem como a de delinquente, é fruto de uma reação social no que se refere a determinados comportamentos, levando em conta todas as implicações políticas que definem esta reação. Esta reação, que é levada a cabo pelas instâncias oficiais de controle social, define quais sujeitos irão se alocar sob o rótulo de delinquente. Segundo autores, como Lemert, por exemplo, a atribuição deste status produz efeitos nefastos sob a personalidade do indivíduo que, estigmatizado, tende a permanecer no papel social que lhe foi imposto, gerando um círculo vicioso de criminalidade.
Nesse momento de seu desenvolvimento histórico, a criminologia vai cuidar de estudar o processo de definição do comportamento proibido e as relações de poder que fazem determinados grupos deterem esta definição em suas mãos. O principal questionamento de pesquisa deixa de ser sobre o criminoso e passa a ser sobre quem define quem é o criminoso. Por isso, desenvolveu-se a definição de “reação social”, porque são as decisões políticas, definidas pelas interações sociais, é que vão estabelecer qual é o comportamento criminoso e quem é o sujeito delinquente.
O que essa nova concepção criminológica possibilitou, como se viu, foi o enfrentamento crítico do fato de que a um pequeno grupo de indivíduos é dado o poder de determinar a reação de toda uma sociedade diante do fato percebido como delituoso, estigmatizando, desta forma, definitivamente um grande grupo de indivíduos. Essa conclusão, à qual o paradigma da reação social chega, é ponto de partida teórico para a construção das chamadas teorias sociais do conflito e é, ainda, ao fim e ao cabo, uma clara influência da teoria materialista, elaborada por Marx, pois compreende, pela primeira vez, um desdobramento do conflito de classes na esfera punitiva. (BARATTA, 2022, p. 88-113)
4.4 A CRIMINOLOGIA CRÍTICA
Os estudos marxistas sobre a questão do desvio e da punição se inserem em um contexto particular de pesquisas, desenvolvidas, sobretudo, nas últimas décadas, no âmbito da sociologia liberal, que prepararam o terreno para a chamada criminologia crítica. Quando nos referimos ao movimento da criminologia crítica, apontamos o corpo teórico não homogêneo do pensamento criminológico que trabalha para a construção de uma teoria materialista, econômico-política, dos comportamentos socialmente negativos e da criminalização estatal. (BARATTA, 2022, p. 159) Nesse sentido, Stubbs se refere à criminologia crítica como um corpo teórico complexo e pluralista, no qual cada corrente tem a sua particularidade. Essa falta de compartilhamento entre as criminologias críticas geraria importantes desafios pedagógicos para a sua abordagem, no entanto a autora acredita que “existem pontos em comum entre essas correntes, sendo viável um intercambio disciplinar. (STUBS, 2008, p. 14-17) Procura-se apresentar aqui as principais perspectivas comuns que caracterizam essa importante fase da criminologia, principalmente no que tange à posição que é tomada frente ao direito penal.
A criminologia liberal, como um todo, passa a ser objeto de crítica, por não dar conta de superar o paradigma negativo e segregador da defesa social. A criminologia crítica compreende que as teorias liberais permanecem a legitimar uma ideologia penal seletiva e estigmatizante, não sendo capazes de oferecer uma postura verdadeiramente crítica quanto ao direito penal. Em verdade, seguindo este raciocínio crítico, as teorias liberais, que precedem a teoria materialista do desvio, estariam ingenuamente envolvidas em uma série de relações socioeconômicas, principalmente no que toca à estratificação social e à luta de classes, que impediriam a construção de uma crítica efetiva ao sistema criminal como um todo. (BARATTA, 2002, p. 160)
É nesse contexto que surge a nova criminologia ou a criminologia crítica, representada principalmente por autores como Baratta, Hulsman, Pavarini e Bergalli. Esses autores afirmam que existe uma fenda teórica entre o direito penal e a política criminal e os avanços da sociologia criminal e da criminologia, propriamente dita, pois os primeiros não estão preparados para lidar com as disparidades econômicas da sociedade. A base teórica, alcançada pela criminologia crítica e preparada pelas teorias que incorporam o labeling approach, pode ser resumida em dois pontos essenciais de contraposição, em relação à velha criminologia positivista da década de 30. O primeiro é o deslocamento do enfoque teórico do autor para as condições objetivas, estruturais e funcionais, que estão na origem dos fenômenos do desvio. O segundo é deslocamento do interesse etiológico do desvio para o conhecimento dos mecanismos, por meio dos quais são criadas e aplicadas as definições de crime e realizados os processos de criminalização. (FIGUEIREDO DIAS ; COSTA ANDRADE , 1997, p. 42-48)
A criminologia crítica se opõe ao enfoque biopsicológico e inaugura uma perspectiva macro-sociológica do desvio. A realidade do comportamento criminoso e da criminalidade, nesse sentido, é historicizada e iluminada pela relação funcional, ou disfuncional que mantém, com as estruturas sociais, o desenvolvimento dos meios de produção e distribuição de riquezas.
Na compreensão da criminologia crítica, a criminalidade não é mais uma qualidade ontológica, inerente a determinados comportamentos e a determinados sujeitos, mas, sim, uma espécie de status social, atribuído a certos indivíduos por um processo de seleção. Esta seleção do sistema penal se dá por meio da eleição dos bens protegidos penalmente e dos comportamentos que tipicamente ofendem estes bens e por meio da eleição dos sujeitos que recebem o estigma de criminosos, entre todos aqueles que infringem qualquer tipo de norma. Dentro desta perspectiva de seleção dos “clientes” do sistema penal e penitenciário, a criminalidade e a marginalidade se distribuem como um “bem negativo”, de forma eminentemente desigual, conforme a hierarquia e os interesses fixados no sistema socioeconômico, bem como a desigualdade social presente entre os indivíduos. (HASSEMER, 2000, p. 91-109)
Esse corpo teórico, por meio da realização de inúmeras pesquisas empíricas que conduziram a impactantes críticas ao direito penal e à ideologia penal, elaborou três postulados principais para combater radicalmente o mito do direito penal, como um direito igual, quais sejam: 1- O direito penal não defende a todos, mas somente bens selecionados e, quando pune as ofensas a esses bens, o faz de modo desigual e fragmentário. 2- A lei penal não é igual para todos, e o status de criminoso é distribuído desigualmente entre os indivíduos. 3- A distribuição deste status de criminoso está ligada menos à gravidade da lei infringida e à danosidade social do comportamento do que à posição socioeconômica do sujeito. (BARATTA, 2002, P. 162)
Com essas construções, a criminologia crítica, fundada em bases marxistas, demonstra que o direito penal e o sistema penal, como um todo, assim como outros setores da sociedade burguesa, são desiguais e injustos por excelência e só podem se transformar, mediante uma inversão social dos valores ligados à distribuição de renda. A criminologia crítica, deste modo, foca-se especialmente nos processos de criminalização, intimamente conectados à desigualdade, característica do sistema capitalista, e tenta, pois, oferecer uma alternativa para a política criminal que esteja ciente do conflito de classes e das injustiças econômicas.
Importante aqui, para nosso estudo, ressaltar que, para a criminologia crítica, o mito da igualdade do direito penal nada mais é do que uma ideologia de controle social que busca encobrir o fato de que o direito penal tende a privilegiar os interesses das classes dominantes. O sistema penal busca, desta forma, imunizar do processo de criminalização comportamentos socialmente danosos, típicos dos indivíduos a ela pertencentes, ligados funcionalmente à existência da acumulação capitalista, tendendo a dirigir o processo de criminalização para formas de desvio típicas das classes subalternas. Por isso, nesse raciocínio, os selecionados a fazerem parte da população criminosa estão concentrados nas camadas mais baixas da escala social. (CIRINO DOS SANTOS, 2002, 19-20)
4.6 A CONTRIBUIÇÃO DE SUTHERLAND
Neste contexto de sistema penal, intimamente ligado às estruturas materiais da sociedade, existe um autor visionário que, sendo cronológica e teoricamente anterior à virada criminológica, vai apontar para a importância das relações sociais que circundam o sistema penal. Trata-se de Edwin Sutherland, criador do conceito de “crimes do colarinho branco” e pioneiro no estudo sociológico da delinquência econômica. A análise da obra “White Collar Crime” deste autor é imprescindível para qualquer estudo que se propõe uma compreensão sociologicamente lúcida dos delitos econômicos.
Na referida obra, o autor vai realizar uma pesquisa empírica de fôlego com as 70 principais corporações empresariais americanas da época, em meados da década de 30 e 40. Nesta pesquisa, são apresentados dados, decisões judiciais e administrativas, que mostram a grande quantidade de fraudes e delitos praticados pelos altos executivos à frente destas empresas. Com esses números, Sutherland nos mostra que os indivíduos, respeitados e admirados pela sociedade, alocados nas mais altas camadas sociais, cometiam tantos crimes como aqueles desfavorecidos, taxados de marginais. (SUTHERLAND, 1983, p. 03-11)
Esses dados empíricos, apresentados pelo autor, desvelam todo um universo criminológico até então ignorado e negado pelas correntes teóricas. Sutherland vai, então, utilizar os referidos dados como base para criticar as teorias criminológicas que ligavam a etiologia do comportamento criminoso a processos biopatológicos ou sociopatológicos, como a pobreza. Ao demonstrar que sujeitos saudáveis, poderosos, ricos e admirados cometiam tanto delitos como os desabonados, o autor estremece as bases teóricas das criminologias de fundo etiológico patológico. Nesse diapasão, sustenta que os dados, obtidos pelas pesquisas destas correntes, estavam viciados, já que os estudos patológicos eram realizados justamente com aqueles que já estavam estigmatizados pelo sistema penal.
Sobre os objetivos de sua pesquisa, Sutherland esclarece que: “A tese deste livro é que as patologias sociais e pessoais não são uma explicação adequada da conduta delitiva. As teorias gerais da conduta delitiva que tomam seus dados da pobreza e das condições relacionadas com ela são invalidas e inadequadas. Isto porque, primeiro: essas teorias não concordam solidamente com os dados da conduta delitiva; segundo: os casos em que se baseiam essas teorias são uma amostra apartada de todos os fatos delitivos existentes”. (SUTHERLAND, 1983, p. 05)[7]
Frente a esta constatação de que elementos patológicos não são determinantes na construção das bases etiológicas do desvio, Sutherland vai apresentar uma teoria que, em seu entendimento, dá conta de abarcar todas as manifestações delituosas. O autor desenvolve a teoria da associação diferencial, a partir da qual se busca elucidar as causas da conduta criminosa em processos de aprendizagem comuns, que não possuem conotações patológicas.
O processo da associação diferencial se dá pela internalizarão da conduta proibida no sujeito, a partir do relacionamento e da convivência deste com indivíduos que consideram a referida conduta desviante como sendo algo positivo. O sujeito vai internalizar a conduta delitiva, quando o peso daqueles que, em determinado grupo, a valoram de forma favorável for maior do que daqueles que o fazem desfavoravelmente. Nesse sentido, o sujeito vai absorver o núcleo axiológico particular de um determinado grupo, pelo convívio que mantém com as pessoas desse grupo. De modo que a constituição valorativa de dado indivíduo será determinada, em certa medida, pela qualidade de suas relações interpessoais.
Para Sutherland, esse processo de aprendizagem da delinquência explicaria como as fraudes, típicas do mundo empresarial, são absorvidas rapidamente pelo homem que adentra nesse contexto. O sujeito que ingressa no mundo das corporações, para o autor, ou absorve o comportamento desviante ou perde a competitividade e não se sustenta no grupo. Esse processo de aprendizagem, desenvolvido por Sutherland, livre de conotações patológicas e semelhante a qualquer outra forma de aprendizado, daria conta de explicar a etiologia de todos os tipos de crimes, em contraposição às teorias vigentes que ignoravam os crimes dos sujeitos abonados socialmente.
Esses crimes, praticados por sujeitos bem posicionados socialmente, no exercício de suas atividades empresarias, receberia o nome de “crimes do colarinho branco”. O autor vai nos explicitar que, em que pese tenha sido demonstrada a grande quantidade existente desse tipo de delito, os seus autores dificilmente vão sofrer a persecução criminal e quase nunca vão acabar em estabelecimentos de execução penal. Sutherland aponta para um tratamento diferenciado do sistema penal em face dos “crimes do colarinho branco”, existindo uma espécie de filtro em relação aos criminosos, provenientes das altas camadas sociais. Estes seriam imunes ao estigma de “delinquentes”, que recairia, invariavelmente, sobre aqueles desabonados e marginalizados socialmente, posicionados nos estratos sociais mais baixos.
As relações sociais, sobretudo materiais, que envolvem o sistema penal é que vão determinar, por meio de processos de seleção, aqueles que vão se alocar sob o estigma de criminoso e que vão, consequentemente, acabar no sistema carcerário. Este autor vai utilizar os crimes econômicos para elucidar a lógica do sistema penal. Visto que este tipo de crime é próprio de agentes de alta respeitabilidade social que têm estreitas relações e compartilham valores com os principais políticos e poderosos, os agentes ativos destes delitos acabam sendo protegidos do sistema penal. Processos de seleção ocorrem tanto na atividade legislativa quanto na construção dos estigmas sociais pelos meios de comunicação, acabando por afastar os “criminosos de colarinho branco” tanto do sistema carcerário quanto do estigma de repudia social.
O fato é que o legislador que elabora a lei vê o homem de negócios que comete crimes econômicos como seu igual e, por com ele compartilhar valores e interesses, acaba o protegendo, conduzindo o sistema jurídico penal a um campo de desigualdades. Sutherland vai desvelar as relações sociais que envolvem a punição estatal, mostrando que interesses particulares e materiais acabam por definir um fenômeno de seleção no sistema penal. (SUTHERLAND, 1983, p.225-258)
A contribuição de Suthetrland é determinante quando se trata de criminologia e delitos econômicos. Este autor, apontando obscuridades e limitações na Teoria criminológica clássica, prepara, de forma decisiva, o terreno para os avanços da chamada virada criminológica. A abordagem do desvio sociologicamente comprometida, que não ignora as relações matérias que envolvem o direito penal, representa, sem dúvida, um passo importante dado por Sutherland. Apesar das limitações teóricas de uma perspectiva, ainda, etiológica, a sua obra ilumina e amplia, definitivamente, o objeto de estudo da criminologia.
4.7 DAVID GARLAND E OS AVANÇOS DA CRIMINOLOGIA CONTEMPORÂNEA
O autor americano, David Garland, expoente da Criminologia contemporânea, desenvolve um trabalho, buscando compreender os complexos processos sociais que cercam a questão do castigo e das instituições punitivas. Garland aponta para o fato paradoxal de que uma instituição tão problemática, marcada pelo fracasso, pela contradição e por políticas contraproducentes, é, ao mesmo tempo, tão estável e perpétua ao longo do tempo.
Na construção de sua teoria social sobre o castigo, o autor pretende explorar a punição por diversos ângulos, procurando construir uma imagem complexa do fenômeno. Deste modo, sobrepõe diversas perspectivas, para construir uma visão mais ampla e plena. No decorrer de sua obra, “Punishment and Modern Society”, nos são apresentados argumentos de diferentes tradições teóricas, sendo que cada uma faz uma interpretação distinta e particular do fenômeno punitivo. As interpretações se apoiam sempre em uma teoria social mais ampla, da qual derivam e são independentes. (GARLAND, 1990, p. 277-279)
Nesse sentido, os principais argumentos sobre a questão punitiva, trazidos por Garland, derivam da tradição marxista, da perspectiva de Foucault e do pensamento de Durkheim. O autor propõe desenvolver uma base teórica social do desvio, relacionando essas diversas interpretações, de modo que uma teoria complete e auxilie no entendimento e refinamento da outra. Cada sustentação teórica revela um determinante diverso e esquematiza uma relação diferente.
No raciocínio de Garland, cada um dos modos de abordagem da instituição do castigo e da punição apresentados possui uma análise relevante sobre dado aspecto do fenômeno, contudo sozinhos não dão conta de perceber a complexidade do todo. Por exemplo, Foucault aponta o caráter racional dos modernos sistemas penais, já Durkheim, os elementos expressivos emocionais e não racionais, ao passo que Garland busca compreender a essência dos sistemas penais, valendo-se da contribuição de ambos os autores. (GARLAND, 1990, p. 280-292)
O mérito de Garland está em fazer um profundo estudo de cada perspectiva de análise da punição nas sociedades modernas, criticando as suas falhas e enaltecendo os seus avanços, buscando sempre sua inter-relação e complementação. Para nosso estudo, importante construção do autor é quanto aos objetivos e interesses sociais que motivam a punição. Pela análise, fincada na teoria marxista, traduzida na teoria materialista do desvio, somente as classes governantes encontrariam, no sistema penal, a tradução de seus interesses, sendo que, para as demais camadas sociais, o sistema penal do Estado burguês nada mais seria do que uma expressão do terror e da sobreposição de classes. O sistema penal, para essa teoria, seria não mais do que um agir institucional que atende aos interesses da classe dominante. Diferente é a leitura desse fenômeno pela Teoria de Durkheim, para quem a instituição da punição representaria os interesses da sociedade como um todo. Diante dessas posições, Garland desenvolve um novo ponto de observação, valendo-se de ambas as contribuições.
Para Garland, o direito penal atende tanto a interesses universais, da sociedade em conjunto, como a interesses particulares, de determinada classe.
Nesse desiderato, esclarece o autor que: “Direito penal é uma fonte de proteção e, ao mesmo tempo, de terror para as classes trabalhadoras. É indiscutível que alguns de seus aspectos envolvem uma função social, como proibir a violência e castigar os criminosos. No entanto, se a penalidade serve aos interesses de certa classe, o faz de uma maneira que assegura o apoio das classes subordinadas, protegendo os interesses que se consideram universais sobre os particulares. A esse passo, a chave para compreender o Direito Penal, em conflitos de classes, é reconhecer os modos em que se entrelaçam os interesses particulares com os interesses gerais” (GARLAND, 1990, p. 117)[8]
A esse passo, o direito penal atende, de forma encoberta, aos interesses particulares das classes privilegiadas, no entanto, sem sua aparência de proteção universal, que reflete os interesses gerais, ele não se sustentaria e, consequentemente, perderia o seu apoio e a sua legitimidade.
Em uma observação complexa do direito penal, o autor nos aponta que “a mesma lei que protege a todos, em certo nível, também legitima o princípio mediante o qual uma classe explora a outra”. (GARLAND, 1990, p. 117)[9] Em face da existência de interesses tanto gerais quanto particulares, envolvendo o sistema penal e motivando as decisões de política criminal, o raciocínio que o autor nos apresenta é o de que o direito penal serve à classe dominante de forma velada, ao mesmo tempo em que atende aos anseios sociais gerais, sem os quais a classe dominante não legitimaria o seu poder.
Nessa abordagem complexa, traçada por Garland, fica evidente que, além do elemento econômico, monetário e material, mostrado pela Criminologia de base marxista, o fenômeno do castigo institucional está relacionado a outros elementos, não materiais, que habitam as relações sociais e determinam os rumos do sistema penal. Além de atender aos interesses ligados à concentração e distribuição de capital, o sistema penal está carregado de elementos políticos, ideológicos, simbólicos e até mesmo religiosos que transcendem as relações econômicas.
Garland tece fundamentadas críticas às criminologias de base marxista como um todo, define que o seu arcabouço teórico, que observa a punição sob o prisma dos conflitos sociais, ligados à concentração e distribuição de renda, não dá conta de compreender a complexidade do direito penal nas sociedades modernas. Segundo o autor, a Teoria Materialista do Desvio, que teve suas raízes em Rusche e Kirchheimer e que sustenta correntes atuais como a criminologia crítica, redundaria em um reducionismo materialista, incapaz de perceber as peculiaridades do sistema penal. A observação da força ideológica e simbólica do direito penal é tão relevante na compreensão do sistema punitivo quanto à análise dos conflitos materiais. (GARLAND, 1990, p. 47-131)
No mesmo sentido das ideias de Garland, está o trabalho de Júlio Virgolini. Segundo este autor: “a construção do fenômeno que engloba os “crimes do colarinho branco”, crime organizado e corrupção política, relacionando direito e sociologia, se revela como um dos mais interessantes debates criminológicos existentes. Neste ponto, o interesse não reside somente na particular fenomenologia deste complexo campo empírico e, sim, no fato de que, ao colocar o crime em contato íntimo com a política e a economia, se colocam em evidência as complexas relações, articulações e sobreposições existentes entre esses termos”. (VIRGOLINI, 2004, p.02-04)[10]
Estas construções que relacionam direito, economia e política colocam em xeque os fundamentos dicotômicos e maniqueístas da criminologia ortodoxa. Segundo este pesquisador, para uma adequada compreensão deste intrigante fenômeno, faz-se necessário uma análise sociológica que transcenda a bases somente materialistas. Virgolini critica teorias reducionistas, como a de Sutherland, e propõe a articulação de elementos históricos, ideológicos e simbólicos, além dos materiais na análise do fenômeno dos delitos econômicos. (VIRGOLINI, 2004, p. 05-33)
5 A CONSTRUÇÃO DE UMA PERSPECTIVA CRIMINOLÓGICA
Pode-se observar que muito tem sido discutido e produzido em relação a tudo que envolve o direito penal secundário. A intervenção penal na tutela de novos bens jurídicos de índole social, atualmente, é um dos temas mais debatidos pelas ciências penais. No entanto, percebe-se que, neste rico debate que cerca o direito penal supra-individual, têm prevalecido análises e os posicionamentos que adotam uma perspectiva preponderantemente legal e dogmática.
Os movimentos das estruturas sociais e as suas relações que se manifestam ao redor do sistema jurídico e que, sem dúvida, influenciam sobremaneira as suas decisões não têm sido explorados com frequência pelos estudiosos da questão penal secundária, especialmente da penal econômica. Quando as relações econômicas ou sociais são mencionadas, os autores o fazem para justificar, ou não, a legitimidade da intervenção penal. Nesse desiderato, as modificações das relações que habitam as instituições sociais são lembradas como consequência do agir penal na seara econômica e não, como a sua causa. Este trabalho objetiva tentar compreender os interesses sociais que envolvem o sistema penal e que, estando por de trás dos argumentos jurídicos, motivam a intervenção penal na esfera econômica e motivam a existência de institutos como a extinção da punibilidade pelo pagamento nos crimes tributários.
Observa-se que a grande maioria dos argumentos utilizados no estudo da criminalidade econômica gira em torno da constitucionalidade e da legitimidade dos institutos. De forma propositada, este estudo não se posiciona quanto à legitimidade da intervenção penal na esfera econômica, tampouco quanto à constitucionalidade do direito penal tributário e da extinção punitiva pelo pagamento. Estudiosos renomados já o fizeram com propriedade, e a proposta aqui é outra. A presente pesquisa propõe uma análise criminológica da extinção da punibilidade nos crimes tributários e do papel que esta figura representa no contexto da criminalidade econômica como um todo. Compreende-se que o estudo deste instituto, sob a perspectiva dos mais recentes avanços da criminologia, pode contribuir de forma considerável no entendimento da lógica do direito penal nas sociedades contemporâneas.
Desta maneira, sustenta-se que a criminologia nos dá um aporte teórico que possibilita uma perspectiva metodológica externa ao objeto estudado. Tal visão viabiliza uma observação crítica tanto da produção legislativa como do agir das agências penais e dos seus agentes individuais, contextualizando-os na dinâmica dos conflitos sociais que os cercam. A esse respeito, Baratta nos esclarece que uma perspectiva infra-sistêmica da criminalização, pautada em uma análise imanente ao sistema jurídico, não oferece uma visão crítica, à medida que atua no âmbito da antijuridicidade formal, impossibilitando a inteligência efetiva de um substrato material externo ao sistema jurídico que legitime a ação do direito penal. Para este autor, o discurso, contaminado pela lógica punitiva positivada, omite os conflitos estruturais que envolvem o sistema jurídico-penal e oferece um olhar deformado da legitimidade penal. (BARATTA, 2004, p. 06-24)
Também, sobre o relevo dos conflitos sociais, no entendimento do sistema punitivo, Muñoz Conde aponta para o fato de que “uma norma jurídica penal só pode ser entendida se colocada em relação a um determinado sistema social”. Deste modo, “se deve analisar o funcionamento da norma penal no conjunto global de controle social em que ela se integra”. (MUÑOZ CONDE, 2005, p. 07-15)
O pesquisador Raúl Cervini defende a ideia de que “o delito econômico é produto da estrutura social em que se insere”. Posto isso, ele estaria condicionado pela estrutura socioeconômica vigente em um determinado tempo e uma determinada sociedade. No texto deste autor, fica clara a inter-relação necessária entre sistema jurídico e sistema social. (CERVINI, 2003, p. 96-104)
Por estas razões, sustenta-se que um fenômeno social tão rico e complexo, que envolve interesses centrais no entendimento do sistema penal, merece uma análise que leve em conta toda complexidade das dinâmicas sociais que circundam o ordenamento jurídico-penal. Decisões de política criminal que optam pelo afastamento da execução penal, em face da quitação de uma dívida em delitos que, por sua natureza, já são próprios dos altos extratos sociais, têm muito a dizer sobre a lógica do sistema penal. Por essas razões, percebe-se que somente um estudo que adote uma perspectiva criminológica pode desvelar e compreender os interesses, ligados às estruturas sociais, que interagem com o sistema penal e motivam as decisões de política criminal.
6 A TEORIA METRIALISTA DO DESVIO, A CRIMINOLOGIA CRÍTICA, SUTHERLAND E A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL ECONÔMICO
Buscando esta compreensão das relações sociais que definem os rumos da política criminal, o estudo procurou, primeiramente, uma aproximação da problemática dos delitos econômicos com as teorias materialistas do desvio, principalmente com a criminologia crítica e a obra de Sutherland.
Pode-se dizer que a observação do fenômeno da punição estatal pelo prisma materialista surgiu na obra de Rusche e Kirchheimer. A análise destes autores influenciou decisivamente o surgimento de uma série de correntes teóricas que passaram a compreender o direito penal como um campo de desigualdades. Os conflitos sociais de natureza econômica, ligados à lógica do sistema capitalista, culminariam em um sistema penal parcial que serviria aos interesses das classes dominantes. (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004, p. 17-23)
No movimento teórico da criminologia crítica, a presença dos postulados materialistas é muito forte. Como se notou, a leitura que esta corrente faz da punição institucional é a de que ela é um instrumento de controle social nas mãos das classes privilegiadas. A perspectiva construída é a de que o direito penal confere um tratamento de proteção em face das manifestações criminosas provenientes dos altos estratos sociais, ao mesmo tempo em que concentra a sua atividade punitiva sobre as classes desabonadas materialmente.
A respeito desta dinâmica do sistema punitivo, Baratta explana que, in verbis: “o direito penal tende a privilegiar os interesses das classes dominantes, e a imunizar do processo de criminalização comportamentos socialmente danosos, típicos dos indivíduos a elas pertencentes, e ligados funcionalmente a existência da acumulação capitalista, e tende a dirigir o processo de criminalização, principalmente, para as formas de desvio típicas das classes subalternas […] as maiores chances de ser selecionado para fazer parte do sistema penal aparecem, de fato, concentradas nos níveis mais baixos da escala social […] e não só as normas do direito penal se formam e se aplicam seletivamente, refletindo as relações de desigualdades existentes […].” (BARATTA, 2002, p. 1665)
Diante disto, fica claro que, para a criminologia crítica, as decisões de política criminal seriam meros desdobramentos dos conflitos materiais presentes na sociedade. Sendo assim, as decisões que tocam o sistema punitivo, tanto no que tange à produção legislativa, quanto à atividade das agências de persecução penal, refletiriam os interesses das classes economicamente privilegiadas.
O pensamento de Sutherland, a respeito do sistema punitivo estatal, neste ponto, não é diferente. Ao serem apresentados os seus principais pontos de vista, fica evidente sua perspectiva materialista da punição, a pesar de sua influência direta do interacionismo simbólico e não do marxismo, propriamente. No seu entendimento, as decisões de política criminal que vão determinar quem são os sujeitos taxados de criminosos estão intimamente relacionadas com os conflitos materiais, típicos do modo de distribuição de renda capitalista. Sutherland diz que os indivíduos que se encontram no topo da pirâmide social e são possuidores de grande concentração de renda acabam, de certa maneira, imunes às atividades punitivas do Estado.
Sobre a falta de reação do Estado diante da criminalidade econômica, discorre o autor: “A administração política tem pouca forca para deter estas condutas […] isto implicaria um forte combate entre o público e o governo, de um lado, e os criminosos econômicos, do outro. Este combate não existe, e sua ausência é evidencia da falta de organização estatal contra os crimes do colarinho branco” (SUTHERLAND, 1983, p. 256-257)[11]
Ao adentrar no universo da criminalidade econômica, este autor entende que, por sua natureza de comportamentos típicos de sujeitos dos altos extratos sociais, esta modalidade de delitos seria especialmente protegida pelo Direito Penal. Por pertencerem ao mesmo núcleo cultural e axiológico daqueles que definem os rumos da atividade punitiva, os agentes ativos dos crimes econômicos estariam imunes tanto à produção legislativa criminalizadora quanto à persecução das agências estatais. Justamente por este motivo, Sutherland se revela um grande precursor da ideia de que as condutas que tocam a criminalidade econômica devem ser cada vez mais criminalizadas e perseguidas. O autor chega a transparecer um movimento punitivista de esquerda, ao defender uma expansão do direito penal em direção aos abonados socialmente.
O que salta aos olhos, tanto no pensamento daqueles que desenvolveram a teoria materialista do desvio como nas contribuições da criminologia crítica e de Sutherland, é a presença clara da noção de seleção penal. Nesse sentido, os comportamentos, socialmente censurados, passariam por uma série de processos institucionais que selecionariam, de acordo com a classe social e o poder econômico, aqueles que seriam objeto da norma criminalizadora, da persecução penal e da execução penal. Todo aparato da burocracia penal seria, em verdade, uma espécie de filtro que impediria a passagem de indivíduos bem colocados socialmente.
Com a emergência das novas configurações sociais, trazidas pela contemporaneidade, o direito penal passa a se ocupar de searas que até então não tinham qualquer proteção penal. Nesse contexto, a punição estatal avança em direção à tutela de novos espaços sociais, como, por exemplo, a ordem econômica e a tributária.
Especialmente nas últimas décadas, este movimento de expansão punitiva tem ocorrido de modo realmente acentuado. A presença, em nossa sociedade, de um fenômeno de expansão do direito penal econômico é uma realidade que não deixa dúvidas entre os estudiosos, existindo uma infinidade de trabalhos neste sentido. Se existe dissenso frente à legitimidade desta expansão, o mesmo não ocorre quanto à sua existência, que é fato notório no mundo acadêmico. (GOUVÊA DE FIGUEIREDO, 2010, p. 299-300)
Ao aproximarem-se as contribuições da teoria materialista do desvio com a atual realidade deste movimento social de expansão penal, em direção a comportamentos ligados à criminalidade econômica, algumas indagações importantes são levantadas.
Considerando que esta expansão da tutela penal recai sobre as atividades ligadas a indivíduos de alto padrão e prestígio social, como compreender o mecanismo de seleção penal, preconizado pelas correntes criminológicas materialistas? Se o Direito Penal é um instrumento para atender aos interesses das classes economicamente privilegiadas, de que modo entender a criminalização de comportamentos típicos destas classes mesmas? Se a instituição da punição é um sistema de controle social que seleciona e recruta apenas aqueles indivíduos próprios das camadas sociais desabonadas materialmente, o que significaria, então, a criminalização de comportamentos típicos dos altos extratos sociais?
Em face destes questionamentos, constata-se que a análise do universo da criminalidade econômica pela óptica de correntes criminológicas, como a Criminologia Crítica e a obra de Sutherland, apresenta-se, de certa forma, incompleta. A expansão do Direito Penal, em direção a comportamentos próprios de indivíduos bem colocados socialmente, mostra que a noção de seleção penal destas teorias parece deixar alguns pontos obscuros. Especialmente no que tange à criminalização primária, a produção normativa e, em certa medida, à criminalização secundária, traduzida em todo movimento persecutório da burocracia penal, o modo como essas correntes concebem os mecanismos de seleção parece não corresponder à totalidade do fenômeno punitivo.
Segundo as teorias materialistas do desvio, os mecanismos de seleção criminal agiriam desde a produção dos tipos penais, passando por toda persecução e chegando a execução criminal. A existência de uma inflação legislativa criminal e de uma movimentação do aparato burocrático penal, atingindo diretamente sujeitos economicamente privilegiados, é suficiente para demonstrar a incompletude destas teorias na percepção das peculiaridades do processo seletivo criminal. Diante disto, constata-se que ou os mecanismos seletivos do sistema penal estão se enfraquecendo ou eles possuem, na atualidade, uma complexidade que transcende a capacidade de percepção destas correntes criminológicas.
7 OS AVANÇOS DA CRIMINOLOGIA CONTEMPORÂNEA, A COMPLEXIDADE DO FENÔMENO PUNITIVO E A ANÁLISE CRIMINOLÓGICA DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE NOS CRIMES TRIBUTÁRIOS
Acredita-se que a análise da extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo nos delitos fiscais, pela perspectiva dos recentes avanços teóricos da criminologia contemporânea, pode auxiliar na solução destes questionamentos e na compreensão dos mecanismos seletivos do sistema penal contemporâneo.
Conforme pode ser observado, alguns autores da criminologia contemporânea, como David Garland e Julio Virgolini, trazem outros elementos não materiais para a compreensão da instituição do castigo nas sociedades pós modernas. Ao apontarem outras variáveis para esta equação – estes pesquisadores percebem que o sistema penal não é influenciado por relações e conflitos apenas ligados à concentração e distribuição de capital.
No que tange a David Garland, duas são as contribuições centrais que representam avanços frente a teoria materialista do desvio. A primeira é perceber que a lógica do sistema punitivo, diferentemente do que entende a criminologia crítica, não reflete interesses apenas das classes privilegiadas e, sim, além destes, reflete interesses universais da sociedade como um todo. Como se viu a esse respeito, as decisões de natureza punitiva seriam resultado de uma combinação de interesses particulares e universais. Neste ponto, Garland sustenta que, sem o apoio das classes proletárias, traduzido em interesses universais, as classes dominantes perderiam a sua legitimidade e não se sustentariam no poder. Nesse diapasão, o autor afirma que a mesma lei penal que protege e reflete os interesses das classes subordinadas é a lei que vai instrumentalizar a sua dominação.
A segunda contribuição de Garland, importante para este trabalho, é perceber que, além dos materiais, elementos simbólicos, políticos, ideológicos e até mesmo religiosos, são igualmente decisivos na compreensão da lógica punitiva. É inegável que a criminologia crítica também explorou elementos ideológicos e simbólicos, porém, sempre subordinados aos conflitos materiais. Garland não somente aprofundou a análise dessas forças, mas também propõe a sua autonomia em face dos elementos materiais. Na obra “Punishment and Modern Society”, o autor aponta o reducionismo das teorias materialistas e afirma a existência de outras variáveis, não materiais, igualmente relevantes, na percepção da instituição do castigo em toda a sua complexidade.
Apresentam-se aqui alguns trechos que esclarecem esta posição do autor: “Em particular, sua configuração espacial implica uma separação muito clara entre as dimensões econômicas e não econômicas […] Ainda mais importante, os intensos debates e a preocupação do público em torno das questões referentes aos desenhos da prisão e detalhes sobre seus regimes não podem ser compreendidas se nos restringirmos a um vocabulário de motivos econômicos […] o movimento de reforma prisional coincidiu com preocupações de ordem social, política e religiosa ajudaram muito a configurar os sistemas penais já estabelecidos […] quando outras forças, tais como o entusiasmo religioso, a teoria penal, a política social e o humanitarismo podem perceber-se como mais imediatamente relacionados com o fenômeno, pronto, passam para segundo plano […] superestima o papel das forças econômicas na formação do sistema penal. Subestima de maneira drástica as forças ideológicas e políticas.” (GARLAND, 1990, 85, 106-108)[12]
Em face dessa construção, clarifica-se o fato de que a criminologia crítica e as teorias fincadas em bases somente materialistas ou marxistas, não possuem recursos teóricos suficientes para a leitura do fenômeno punitivo em todas as faces.
O autor Julio Virgolini, como foi visto, desenvolve um trabalho que vai ao encontro das ideias de Garland. Na obra “Crímenes Excelentes”, esse pesquisador aponta para o esgotamento dos recursos da criminologia ortodoxa frente ao surgimento de novos espaços empíricos, como a criminalidade econômica. Buscando analisar o impacto dos crimes econômicos nas bases teóricas da criminologia, Virgolini critica as teorias reducionistas e esclarece que elementos históricos, simbólicos e políticos são igualmente decisivos no estudo da questão criminal.
Nas palavras do autor, a importância destas outras variáveis na equação da punição estatal: “Esta visão parte da convicção de que os fenômenos sociais, em particular aqueles conflituosos, são dotados de uma especial complexidade, no entanto formam uma unidade em cuja construção influenciam fatores de distintas origens e com diversos modos de articulação histórica, material e simbólica.” (VIRGOLINI, 2004, p.03)[13]
Além desses elementos de análise, a importância das forças políticas, no estudo das estruturas punitivas, é observada em toda a obra de Virgolini. O autor vai explanar que o universo criminológico, sobretudo no que concerne aos crimes econômicos, está intimamente ligado à política e ao seu caráter ideológico, bem como ao simbólico. Pelas idiossincrasias deste novo espaço empírico da criminologia, as suas ligações com fatores políticos e simbólicos seriam especialmente acentuadas.
Sobre a relevância do elemento político, nesta abordagem, discorre o autor: “A referência e a dimensão política não se esgotam no fato de que, tanto na formulação das definições do desvio, como na configuração dos sistemas punitivos, o poder político intervém de maneira decisiva, às vezes concebido como uma obscura e imprecisa influencia.” (VIRGOLINI, 2004, p. 270)[14]
Nesse ponto, fica nítida a importância das forças políticas tanto no processo de criminalização primário quanto no secundário. Entretanto, o autor faz o apontamento de que, muitas vezes, estas forças podem agir de forma encoberta e velada.
As construções teóricas, acima apresentadas, de Garland e Virgolini, são alguns exemplos dos mais recentes avanços conquistados pela criminologia contemporânea. Compreende-se que estas conquistas ampliaram decisivamente o espectro de percepção e a capacidade de observação teórica da criminologia. Por esta razão, é, com este arcabouço teórico, que o estudo pretende construir a análise do objeto proposto.
Frente a todo emaranhado normativo e jurisprudencial que cerca a extinção punitiva nos crimes tributários, é possível, ainda, perceber, que este instituto surge praticamente na mesma época, na década de 60, que a primeira previsão normativa dos crimes tributários em uma lei especial.[15]
De lá pra cá, a extinção punitiva pelo pagamento esteve sempre conectada aos crimes tributários. Em que pese alguns breves momentos de retrocesso, a figura jurídica da extinção punitiva, nesses delitos, desde seu surgimento tímido na década de 60, só vem ganhando mais espaço e ampliando o seu espectro de incidência com o passar do tempo.
Ao se comparar a primeira disposição da lei de 1964, na qual o pagamento deveria ocorrer antes mesmo do procedimento administrativo, com a lei 10.684/03, vigente atualmente, em que o pagamento do tributo pode ocorrer a qualquer tempo para fins de extinção da punibilidade, percebe-se, nitidamente, um crescimento do campo de alcance deste instituto que, inegavelmente, acompanha o movimento de expansão do Direito Penal Tributário. Nesse sentido, pode-se dizer que, na mesma medida em que se expande o direito penal tributário, se amplia a aplicabilidade da extinção punitiva pelo pagamento.
Ao analisar este fenômeno, constata-se que, ao mesmo tempo em que existe a criminalização primária e, em certa medida, a persecução das agências punitivas, atingindo os autores da sonegação fiscal, há um mecanismo seletivo que reduz drasticamente as possibilidades destes sujeitos chegarem à execução criminal.
Neste diapasão, percebe-se que a extinção da punibilidade pelo pagamento nos crimes tributários é um mecanismo de seleção que ocorre muito próximo ao cume do processo de criminalização, que é a execução penal. Deste modo, este mecanismo permite que haja a criminalização primária, toda movimentação do aparato burocrático criminal e, ainda assim, evita a possibilidade de que os agentes ativos dos delitos tributários cheguem aos estabelecimentos prisionais.
Aproximando este fenômeno com os recentes avanços da criminologia contemporânea, vislumbra-se que os interesses universais da sociedade estão traduzidos na produção das normas penais e na persecução que atinge os agentes ativos da fraude fiscal, já os interesses particulares se refletem na previsão da extinção punitiva pelo pagamento. A criminalização da evasão fiscal, na medida em que corresponde aos interesses gerais da sociedade, possui uma considerável função ideológica e simbólica. (GARLAND, 2008, p. 282-283) Enquanto a criminalização e a persecução dos crimes tributários contribuem para a construção de uma aparência de igualdade, reforçando a legitimidade do direito penal, a previsão da extinção punitiva pelo pagamento faz o papel de seleção, mantendo longe das instituições de execução penal aqueles que possuem recursos materiais.
Seguindo esta linha de pensamento, a inflação legislativa penal que atinge sujeitos abonados materialmente e bem colocados socialmente decorre além dos anseios arrecadatórios estatais, da necessidade política de manter o apoio das classes subordinadas, por meio da difusão de uma sensação de isonomia sem a qual o sistema perderia sua legitimidade. Estamos diante da influência de forças políticas e simbólicas que transcendem a lógica material. A autonomia destas forças, dentro do sistema de punição, explica o desenvolvimento de movimentos que contradizem a lógica dos interesses materiais particulares.
Tem-se, assim como foi preconizado por Sutherland e pela criminologia crítica, que o direito penal está, sim, ligado aos interesses das classes dominantes e aos desdobramentos dos conflitos materiais. No entanto, está, também, associado a outros interesses e forças que não devem ser ignorados, uma vez que são igualmente decisivos na sua compreensão.
Diante disto, é possível analisar a extinção da punibilidade pelo pagamento nos crimes tributários, como um mecanismo extremamente sofisticado e velado de seleção penal. O sujeito, detentor de boa condição social, sempre que estiver próximo da execução penal, pagará a dívida e extinguirá o jus puniendi estatal. O fato é que, ao incidir apenas muito próximo ao final do processo criminalizatório, este dispositivo permite uma aparência ainda maior de igualdade formal, ao mesmo tempo em que estimula a desigualdade material. Os sujeitos bem colocados socialmente que cometem a fraude fiscal dificilmente chegam à execução penal, porém sofrem a criminalização primária e a persecução das agencias penais. Existe, deste modo, uma considerável margem para serem exploradas as funções políticas e simbólicas do direito penal, essenciais para a sustentação de sua legitimidade.
8 CONCLUSÕES
a) O instituto da extinção da punibilidade, pelo pagamento, nos crimes tributários, se aloca, dentro da teoria tripartida do delito, entre o injusto culpável e a aplicação da pena. Trata-se de uma decisão de política criminal que concede a não aplicação da sanção penal frente o pagamento da dívida tributária que originou o delito, mesmo havendo a ocorrência de um fato típico, ilícito e culpável.
b) No aspecto normativo e jurisprudencial, referente à extinção da punibilidade, pelo pagamento, nos delitos fiscais, vige, hoje, ainda, a disposição do o § 2, do art. 9, da Lei 10.684/03, em que não há qualquer menção ao marco temporal do recebimento da denúncia. Deste modo, o sujeito ativo do crime tributário que, a qualquer momento, quitar a dívida fiscal fica livre da persecução penal e afasta uma eventual execução.
c) O debate que envolve a criminalidade econômica e especialmente o direito penal tributário e a extinção punitiva pelo pagamento do tributo tem se dado preponderantemente pela via dogmática. Autores renomados por todo o mundo têm trabalhado uma abordagem nesse sentido. Um estudo que adote uma perspectiva criminológica, extra-sistêmica, pode contribuir decisivamente para uma leitura diversa deste fenômeno, oferecendo a compreensão dos movimentos sociais que circundam o sistema jurídico e determinam as decisões de política criminal.
d) A análise da criminalidade econômica pelo viés do interacionismo simbólico de Sutherland e das correntes criminológicas de bases somente marxistas e materialistas parece ser incompleta. Tanto a criminologia crítica quanto o trabalho de Sutherland parecem não dar conta da complexidade deste fenômeno punitivo na sociedade contemporânea. Principalmente no que toca a criminalização primária, traduzida na expansão do direito penal econômico, e a toda movimentação do aparato persecutório das agencias penais atingindo sujeitos bem colocados socialmente e abonados materialmente, estas correntes parecem não compreender na totalidade os mecanismos seletivos do sistema criminal.
e) A análise da extinção da punibilidade, pelo pagamento do tributo, nos crimes tributários, pela perspectiva dos recentes avanços da criminologia contemporânea, parece poder auxiliar em uma melhor compreensão da lógica do sistema penal contemporâneo. A criminalização da fraude fiscal e a construção da figura jurídica da extinção punitiva, pelo pagamento, parecem refletir tanto interesses particulares materiais quanto interesses universais de ordem política e simbólica. O instituto por este trabalho analisado, nesse sentido, parece ser um sofisticado mecanismo de seleção criminal. Por incidir muito próximo ao final do processo de criminalização, ao mesmo tempo em que esta figura jurídica impede a chegada do sujeito ativo do crime tributário ao cárcere, ela deixa uma considerável margem para que sejam exploradas as funções políticas e simbólicas do direito penal econômico, reforçando, assim, a legitimidade de todo sistema criminal.
Informações Sobre o Autor
Bruno Tadeu Buonicore
Advogado criminalista, Pesquisador do Programa de Pós Graduação em Ciências Criminais da PUC/RS desde 2008, Especializando em Ciências Penais pela PUC/RS, Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Criminologia da PUC/RS.