Resumo: O tema da prova é um dos mais relevantes dentro da sistemática processual, necessitando, assim, de um maior aprofundamento da problemática a respeito das considerações referentes à “verdade” e sua formação no moderno processo civil. Sabe-se que os diferentes papeis que exercem os sujeitos no decorrer do processo, juntamente com a concepção relativa à função da prova, trazem distintas cargas valorativas e antagônicas visões a respeito dos fatos, o que pode acabar sendo prejudicial à busca da verdade e, consequentemente, à concretização de uma decisão “justa”. Dessa forma, a verdade processual deve ser construída sob uma perspectiva dialética, observando-se os princípios constitucionais processuais e uma maior visão publicista dos assuntos relacionados à prova.
Palavras-chave: Verdade; prova; sujeitos processuais; verdade processual.
Sumário: 1. Introdução. 2. A função da prova, os modelos probatórios e a busca da “verdade”. 3. A “verdade” no processo civil e a participação dos diferentes sujeitos processuais em sua formação. 4. Considerações finais.
1. INTRODUÇÃO
A “verdade” no processo civil tende a ser cada vez mais questionada diante do quadro de incertezas que se fundam os fatos controvertidos e as versões trazidas pelas partes processuais.
Acontece que urge ganhar uma nova roupagem a prova no campo processual civil, sob uma nova perspectiva, diferente daquela trágica ideia de que o processo civil se limita à “verdade formal”, enquanto que no processo penal, ao contrário, se busca a “verdade real ou material”.
Faz-se necessário, assim, uma maior compreensão a respeito da participação dos diferentes sujeitos processuais, e como os mesmos se empenham (participam) para a concretização de uma decisão “justa” ao final do processo.
2. A FUNÇÃO DA PROVA, OS MODELOS PROBATÓRIOS E A BUSCA DA “VERDADE”
A depender da posição adotada em razão da função da prova e dos modelos probatórios, o caminho a se chegar à “verdade” no processo terá diferenças significativas. Todavia, cumpre preliminarmente tecer algumas considerações no que tange à tentativa de definição do que venha a ser a “verdade”, especialmente no âmbito do processo.
Segundo Margareth Zaganelli e Ana Paula Avellar (2009, p. 7), com amparo em Marilena Chauí, a verdade significa o “valor que confere às coisas e aos indivíduos um sentido que jamais teriam se permanecessem indiferentes à veracidade e à falsidade”.
Já Carl Mittermaier, citado por Luiz Marinoni e Sérgio Arenhart (2011, p. 27), estabelece que “a verdade é a concordância entre um fato ocorrido na realidade sensível e a ideia que fazemos dele”.
Nicola Malatesta (1996, p. 21), seguindo pensamento semelhante, porém ressaltando muito a noção de “certeza”, ensina que “a verdade, em geral, é a conformidade da noção ideológica com a realidade; a crença na percepção desta conformidade é a certeza”.
Observa-se dos dois últimos autores citados a ideia de verdade como correspondência ou conformidade de um fato real com a percepção ideológica que se faz dele. O que se quer explicar com isso não é que a ideia e a coisa se correspondem mutuamente como uma cópia, uma ideia que seja uma “xerox” da coisa verdadeira. Na verdade, essa afirmação de conformidade/correspondência é fruto do “conhecimento da estrutura da coisa, das relações internas necessárias que constituem a essência da coisa e das relações e nexos necessários que ela mantém com outras” (CHAUÍ, 2010, p. 126). Ou seja, a ideia corresponde à coisa conhecida na medida de que aquela seja uma ação realizada por obra intelectual, e esta seja uma realidade externa conhecida pelo intelecto.
No entanto, é perceptível que a “verdade” dentro do processo acaba recebendo cargas valorativas de vários sujeitos, trilhando às vezes caminhos tortuosos, cada um buscando estabelecer o seu conceito de verdade, a sua própria percepção, a sua forma “correta” de entender os fatos, o que, de todo modo, pode ser muito prejudicial ao desenvolvimento do processo e à concretização da “paz social”.
Em relação aos modelos de prova, Hermes Zaneti Júnior (2007, p. 102-107), colacionando o entendimento que também compartilha Michele Taruffo, distingue três desses modelos:
i) Modelo clássico, simétrico ou persuasivo, no qual a prova é entendida como argumento persuasivo;
ii) Modelo moderno, assimétrico ou científico, em que a prova é enxergada como demonstração[1];
iii) E a racionalidade prática procedimental, modelo explicado por Zaneti Júnior no qual a prova vem a ser buscada através do procedimento em contraditório, com participação ativa do juiz, num ambiente de discurso jurídico racional e uma inegável importância da utilização das máximas de experiência pelo magistrado. A verdade atingida nos autos, assim, deve ser uma verdade provável.
Esse terceiro modelo probatório tende a ser uma tentativa de superar o raciocínio de que a tarefa do juiz se limita à mera subsunção do fato à norma abstrata (juiz como “a boca da lei”). Na racionalidade prática procedimental, o que legitima as atitudes e as decisões racionais é a “observância de um procedimento orientado por regras convencionadas ou institucionalizadas que leva à justificação, legitimação e validade da atitude prática racional” (ZANETI JÚNIOR, 2007, p. 71).
Já no que concerne à função da prova[2], Michele Taruffo (2002, p. 116) analisa que existem apenas duas concepções, a saber:
i) A primeira concepção enxerga a prova essencialmente como um meio/instrumento de conhecimento (a prova busca realizar uma reconstrução fidedigna dos fatos);
ii) A segunda concepção afirma que a prova nada mais é que um meio/instrumento de persuasão. Sendo assim, nesta última concepção, a prova não serviria para estabelecer a verdade/falsidade de enunciado algum, mas sim teria como único propósito persuadir o juiz, convencendo-o para crer em uma (im)plausibilidade de determinado enunciado fático.
A segunda concepção caminha no sentido de que a prova busca trazer elementos de persuasão ao juiz. É assim considerada como uma função retórica da prova, sendo capaz de produzir uma crença na mente do magistrado. Será somente “verdadeiro” aquele enunciado de cuja “verdade” esteja o juiz persuadido no contexto dos discursos e narrativas do processo. Caso se considere persuadido, a coisa estará provada, e assim deve ser considerada como verdadeira no processo (TARUFFO, 2002, p. 116).
Surge, com isso, o seguinte problema: a prova, nesse caso, pode ser qualquer coisa que haja sido capaz de influir sobre a formação desse estado psicológico do magistrado. Nesse sentido, igualmente pode ser a persuasão formada por qualquer outra causa, e não somente pela existência das provas. Por isso que Taruffo afirma que o papel dos Tribunais nessa concepção é de ser alguém que será “persuadido para crer em algo, e não de um sujeito que busca a verdade objetiva de algo” (TARUFFO, 2003, p. 208).
3. A “VERDADE” NO PROCESSO CIVIL E A PARTICIPAÇÃO DOS DIFERENTES SUJEITOS PROCESSUAIS EM SUA FORMAÇÃO
A busca da verdade pela prova no processo ganha especial destaque quando se estuda a função que possuem e os papeis que representam os diferentes sujeitos no processo, seja parte, seja juiz, perito, intérprete, terceiro, etc.
Michele Taruffo (2002, p. 118-119) ensina que o papel que o juiz exerce pode seguir dois entendimentos, e assim a prova será analisada conforme a posição seguida:
i) Se o juiz for compreendido como um árbitro passivo, a prova terá então sua função persuasiva, possuindo exclusivamente a tarefa de persuadir o magistrado, o qual considerará verdadeiro apenas aquilo que estiver persuadido;
ii) Se entender que o juiz possui, além desta tarefa, a função de garantidor da correta aplicação da lei e de assegurar a tutela efetiva dos direitos, devendo dar uma decisão “justa”, baseada nas provas colhidas e aplicando corretamente as regras incidentes ao caso concreto, então a prova assumirá diferente função, não sendo um mero instrumento persuasivo, mas sim um meio com uma função mais epistemológica, cognoscitiva.
Na primeira concepção do papel do juiz (prova com função persuasiva), Taruffo salienta a participação dos advogados quanto à utilização das provas. Segundo o autor, o objetivo fundamental que um advogado pretende conseguir no processo é ganhar a causa, é ir ao encontro dos interesses de seu cliente, sem se importar com a busca da verdade[3]. Quer dizer, não importa ao advogado a descoberta da verdade com a utilização das provas, mas sim que estas venham a convencer o juiz da credibilidade de sua versão dos fatos e da plausibilidade de suas alegações. Até pode ser que o advogado esteja interessado em descobrir a verdade, mas apenas naqueles casos em que a verdade dos fatos levar seu cliente a conseguir a vitória (TARUFFO, 2002, p. 117).
Ou seja, as partes acabam tendo um forte interesse na produção das provas e na descoberta da verdade, vinculando suas alegações aos seus interesses, aos seus propósitos pessoais, e jamais ao descobrimento desinteressado e objetivo da verdade (TARUFFO, 2003, p. 209).
Inegavelmente, a busca da verdade processual, uma vez constatada essa relação dos advogados com as provas, fica extremamente prejudicial ao processo, pois, além da possibilidade de haver desigualdade entre as partes (umas com mais recursos, outras não, por exemplo), “a pura e simples persuasão, desvinculada de qualquer possível relação com o conhecimento, pode levar a falsas conclusões” (TARUFFO, 2002, p. 117-118).
Vislumbra-se assim que, dentro do processo civil, as narrações de fatos provêm de diferentes sujeitos, cumprindo finalidades diferentes e muitas vezes discordantes entre si. Desse modo, através dessa inevitável estrutura dialética do processo, fica difícil determinar como a decisão final pode ser coerente com os fatos e ser considerada como verdadeira. Caso se pense que a decisão deve ser coerente (nexo de coerência) com as afirmações das partes e com o resultado das provas, pergunta-se: que sentido isso pode ter quando as partes fazem afirmações contraditórias e as provas também oferecem resultados divergentes e contraditórios[4]?
Por isso, necessário se faz o entendimento da “verdade” tal como concebe Jurgen Habermas, que a compreende através de uma perspectiva dialética (conceito dialético), que deve ser construída por meio da argumentação desenvolvida pelos sujeitos cognoscentes. Habermas, citado por Luiz Marinoni e Sérgio Arenhart (2011, p. 45), afirma que “a verdade não se descobre, mas se constrói, através da argumentação”.
Dessa forma, a formação da verdade dentro do processo deve perseguir o caminho do constante diálogo, interação, discurso, consenso, comunicação e contraditório, ideais estes fruto da concepção habermasiana da “verdade”, perfeitamente incidentes no moderno processo civil.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Reitera-se que o tema da prova é um dos mais relevantes dentro do processo civil, figurando a prova como o “coração do processo”. No entanto, a “verdade” a ser encontrada no processo tende a ser uma quimera judicial, uma utopia, sendo de uma ingenuidade completa acreditar que se trará com a relação jurídica o fato tal como verdadeiramente ocorreu no passado.
Decerto, o processo vem muitas vezes a representar um “labirinto de subjetividades”, de interesses que geralmente não estão ligados à realidades dos fatos, mas sim com a expectativa de ganhar a causa (visão das partes e de seus procuradores). A sentença, ademais, vem a espelhar o convencimento (psicológico) do juiz, que, por seu turno, constrói a “sua” própria história, marcada por variáveis subjetivas e emocionais[5], sendo também uma total inocência acreditar que o magistrado proclamará um resultado isento de subjetivismo e ligado a critérios objetivos seguros.
Não obstante essa descrença, mais sustentada para desvaecer certos mitos e tradicionais conceitos, a verdade no processo deve ganhar uma nova perspectiva, sob uma compreensão argumentativa-dialética e um viés publicista, amparada nos princípios constitucionais processuais – sobretudo o contraditório – e nas provas legalmente juntadas ao processo. Ademais, ao magistrado urge assumir uma posição de maior participação na questão da produção e valoração das provas. Por isso, é importante conceder ao juiz um papel ativo, efetivo e dinâmico no que tange à produção e valoração dos meios probatórios[6], sem se descurar, obviamente, das garantias processuais e do citado princípio do contraditório no âmbito do processo.
Informações Sobre o Autor
Vitor Gonçalves Machado
Advogado (OAB/ES). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. Membro do Grupo de Estudo de Direito Probatório do Curso de Mestrado em Direito Processual Civil da UFES