Resumo: O presente trabalho pretende explorar o conceito de Economia Solidária e compreender sua influencia nas relações de trabalho contemporâneo. Com base em experiências solidárias encontradas no Brasil e na Itália, o estudo busca elencar os desafios e possibilidades deste movimento social revolucionário que revisita o conceito de trabalho e abre espaço para a construção de uma nova organização social, econômica e produtiva.[1]
Abstract: This paper explores the concept of Solidarity Economy and seeks to understand the influence of this new economy in contemporary labor relations. Based on experiences of solidarity found in Brazil and Italy, the study aims to list the challenges and possibilities of social revolutionary movement that revisits the concept of work and makes room for the construction of a new social, economic and productive organization.
Riassunto: Questo saggio esplora il concetto di economia solidale e cerca di comprendere l’influenza di questa nuova economia nei rapporti di lavoro contemporanei. Sulla base di esperienze di solidarietà trovano in Brasile e Italia, lo studio si propone di elencare le sfide e lê possibilità di movimento rivoluzionario, sociale che rivisita il concetto di lavoro e lascia spazio per la costruzione di un nuovo patto sociale, di organizzazione economica e produttiva.
1. Introdução
A Economia Solidária (ES) é um conceito que surgiu no final do século XX e retoma a idéia de solidariedade no sistema produtivo em contraposição à idéia do individualismo competitivo característico das sociedades neo-liberais capitalistas. (SINGER, 2003, p. 166).
O conceito se refere à organização de produtores, prestadores de serviços, consumidores, poupadores, credores, entre outros, que se relacionam baseados nos princípios democráticos e igualitários da auto-gestão, promovendo a solidariedade e a justiça entre os membros da organização e todos os demais envolvidos no sistema produtivo. (SINGER, 2003, 116).
Dessa forma, o presente trabalho busca explorar a origem e as conquistas desta experiência, analisando-a como um movimento social que revisita o conceito de trabalho em busca de uma nova lógica financeiro-produtiva; uma lógica onde a solidariedade esteja ao centro de sua razão.
Para tanto, buscar-se-á evidenciar a origem histórica e a matriz reivindicatória deste movimento; posteriormente, buscar-se-á apresentar os fundamentos, objetivos e características que norteiam esta ação social, bem como as experiências em destaque no Brasil e na Itália; e por fim, buscar-se-á realizar uma avaliação crítica das possibilidades e desafios ainda a serem alcançados e/ou superados.
2. Histórico e origem da Economia Solidária
A ES tal como é compreendida hoje, tem como antecedente o movimento associativista operário da primeira metade do século XIX na Europa que simbolizava, na sua prática, um ideal de transformação social. (FRANÇA, 2002, p. 11).
Como resultado de sua conjectura histórica, a sociedade européia nos séculos XVIII e XIX se caracterizava por uma sociedade seccionada em classes econômicas determinadas por um sistema de trabalho opressor e por condições trabalhistas desumanas. Segundo Singer, até o final do século XIX, “as condições de trabalho eram tão ruins e desesperadoras que a única opção era rebelar-se”. (SINGER, 2003, p. 121).
Amparada nos princípios da autonomia da vontade e da supremacia do livre contrato, que legitimavam a profunda desigualdade e a situação de absoluta submissão em que aqueles destituídos dos meios de produção se encontravam (CARDOSO, 2010, p. 67), a recém sociedade capitalista defendia que o “mercado seria capaz de autorregular-se para o bem de todos e que a competição seria o melhor modo de relação entre os atores sociais.” (Grupo de Trabalho de Economia Solidária do FSM, 2008, p. 108 – buscar sobre Moacir Gadotti).
Ao contrário do que pregava a teoria, o “bem de todos” e a “prosperidade econômica” se efetivava apenas para alguns. Ao invés de prosperidade se observava a exploração dos limites da dignidade humana. (CARDOSO, 2010, p. 67). Os operários viviam no pior dos mundos: os salários não eram equivalentes ao mínimo necessário à subsistência; a jornada era definida arbitrariamente pelo empregador; as condições de higiene e segurança eram precárias; mulheres e crianças eram empregadas largamente, recebendo salários ainda menores, sem a mínima garantia de emprego ou contra acidentes. (CARDOSO, 2010, p. 70).
Diante do contexto de opressão e exclusão operária, cresciam os movimentos reivindicatórios que buscavam substituir a figura do empregador no mercado. Sindicalistas e cooperativistas se uniam em vistas à construção de um novo mudo do trabalho.
A principal e primeira referência cooperativa que se possui foi concebida e praticada por Robert Owen (1771-1859). Este sempre testou seus ideais sociais com diversas iniciativas, como por exemplo, a industria têxtil de New Lamark, a colônia cooperativa de New Harmony, o Labor Exchange (Bolsa de Trabalho), entre outras, sendo que todas estas tentativas buscavam formas de vida baseadas no comércio, salário e preços justos, calculados conforme o número de horas trabalhadas no processo produtivo. (SINGER, 2003, 117). Todas estas experiências tinham como princípio a valorização do ser humano sobre o capital e a igualdade de oportunidades, combatendo o individualismo e a concentração de riquezas predominantes na época.
Diversas outras experiências no mesmo sentido introduziram questionamentos sobre os problemas de seu tempo e sobre as conseqüências do sistema de produção adotado. O movimento das comunas, por exemplo, se preocupavam com o princípio da repartição. Estas se distinguiam dos demais movimentos por praticarem a solidariedade simultaneamente na produção, no consumo, na poupança e em todas as áreas da vida social. Estas possuíam e ainda possuem ideologias distintas (religiosas, anarquistas, nacionalistas e socialistas) e são comumente motivadas por aspirações de uma sociedade igualitária, livre e engajada em movimentos pacifistas e ambientais.
No mesmo sentido, há também a experiência dos Pioneiros Eqüitativos de Rochedale com as cooperativas de consumo em 1844 e, posteriormente, com as cooperativas produtivas. Os princípios de Rochedale marcaram a definição do que é uma cooperativa auto-gestionária por pregar a “igualdade política; a livre entrada e saída do quadro social; a neutralidade política e religiosa; e a prioridade à educação cooperativa”. (SINGER, 2003, p. 119). Caracterizada como a “mãe das cooperativas”, Rochdale serviu de exemplo para diversas cooperativas do mundo inteiro, sendo responsável pelo grande crescimento do movimento social cooperativo no fim do século XIX como potente modo de produção.
Porém, todas estas experiências, de certo modo, fracassaram ou se esvaziaram com o decorrer do tempo. Os apelidados “socialistas utópicos” sofreram críticas de ambas as frentes econômicas, sendo acusados por inocência e não-efetividade das suas ações.
Marx e Engels, no livro Manifesto Comunista, intitularam sua teoria como “socialismo científico” justamente por não acreditar ser possível uma transformação gradual e interna ao próprio sistema (como defendiam os “utópicos”). Para eles, apenas com a revolução e transformação da classe operária seria possível romper com a lógica do sistema capitalista que permeia as relações humanas e coopta as mais genuínas tentativas de superação. Além disso, Marx acusa a falta de eficiência das cooperativas para competir com as empresas tradicionais: se pequenas, não apresentariam produtividade suficiente devido a falta de maquinário e mão-de-obra capacitada; se grandes, o sistema auto-gestionário dificultaria a eficiência do processo de tomada de decisões, forçando que as cooperativas abandonassem o modelo solidário para o modelo padrão capitalista.
Como previsto por Marx, no final do século XIX e por quase todo século XX, apesar de terem inspirado e disseminado princípios humanos importantíssimos, a estrutura produtiva e os princípios político-sociais do movimento cooperativista se enfraqueceram.
A experiência de Owen entrou em colapso juntamente com os movimentos sindicais ao confrontar as greves patronais (lock-outs) em 1834. Os movimentos contestatórios e sindicalistas do início do século XIX não suportaram as pressões patronais e a crise do emprego existente no período. Da mesma forma, as experiências cooperativas inspiradas em Rochedale cresceram e se profissionalizaram tanto que perderam os princípios solidários iniciais e incorporaram a mesma lógica do mercado tradicional capitalista. Rochedale e seus seguidores profissionalizaram seus dirigentes e os empregaram como assalariados, sujeitos à autoridade dos eleitos.
Observa-se assim um novo momento histórico para o movimento cooperativista. As contestações trabalhistas foram de certa forma abafados tanto pela ascensão do trabalho assalariado quanto por um novo posicionamento do Estado perante as lutas de classe. Singer (2002, p. 110) caracteriza o período de 1940 à 1970 como um período de acomodação do assalariado que refletia tanto o crescimento da força dos sindicatos quanto o descrédito na economia solidária. Para ele, a efetivação das conquistas salariais, a obtenção do direito à organização sindical, o reconhecimento do direito de greve e a estruturação do Estado de Bem Estar Social contribuíram para que o proletário fosse incluído política e socialmente na sociedade capitalista, contribuindo para a caracterização de um período de acomodação e estagnação das lutas operárias. (SINGER, 2002, p. 111; 2003, p. 122).
Dessa forma, após as tentativas cooperativisas do século XIX, o mundo ocidental presenciou uma reconciliação do proletário com a situação de assalariado. Além da conquista de direitos trabalhistas, o Estado, embebido pelos ideais sociais-democratas e pela ameaça comunista, prometia a construção de uma nova sociedade por meio de políticas públicas.
Foi a partir da década de 70 que ocorreram mudanças estruturais no âmbito tecnológico, político e econômico no mundo, exigindo uma nova postura quanto a relação trabalho e emprego no sistema capitalista. (DELGADO, 2006, p. 33).
O primeiro fator apontado para a intitulada “crise do trabalho na contemporaneidade” (CARDOSO, 2010, p. 76) se refere à revolução tecnológica dos meios de produção, comunicação e transporte observados nas ultimas décadas do século XX. Os avanços científicos modificaram os tipos e as formas de trabalho, bem como a relação do homem com o espaço e com o tempo.
A inserção de novos maquinários na linha de produção possibilitou o aumento da produtividade com a diminuição da mão-de-obra empregada, além de exigir daqueles que restaram uma qualificação cada vez mais avançada. Somado à isto, o avanço dos meios de comunicação e transporte permitiram não só a reestruturação física da linha de produção, como possibilitaram o trabalho fora da fábrica (a qualquer tempo e espaço) e a inter-conexão do mundo, o que foi apelidado de globalização.
Como uma das conseqüências, assistiu-se a uma fragmentação da linha de produção, com a alocação de sub-setores produtivos articulados por todo o globo terrestre. As grandes empresas, multinacionais ou transnacionais, não mais precisariam se restringir ao local de sua sede na busca do melhor custo benefício para a maximização de seus lucros. A busca pelos menores salários e pelas melhores oportunidades agora poderiam ser mapeadas por todo o planeta, colocando frente a frente potências econômicas como Estados Unidos e Alemanha e países altamente vulneráveis como países da África e da América Latina. (DELGADO, 2006; CARDOSO, 2010).
Aliada a fragmentação da produção, observa-se a fragmentação da mão-de-obra operária, que perde a noção da completa linha de montagem, se desarticula e perde a força de sua mobilização. A outra parcela contratada, que já não necessita estar mais dentro da fábrica ou da empresa, pode trabalhar em casa ou em qualquer outro local, se tornam profissionais “autônomos” como sinônimo de profissionais “isolados”, “sozinhos” e que não conhecem sua equipe de trabalho. (VIANA, 2000; PADILHA, 2006).
Por fim, sem a pretensão de esgotar o assunto, os avanços tecnológicos possibilitaram a fragmentação do mundo, mas também a sua inter-conexão – seja por meios virtuais, comunicativos ou via transportes mais rápidos e eficazes – . Este avanço possibilitou tanto a troca de informações, conhecimento e mercadorias entre os países do globo, aproximando culturas, economias, sistemas financeiros e planos de Estado; quanto influenciou a maior dependência e/ou domínio da economia internacional, fragilizando a soberania Estatal e o poder de decisão sobre a alocação de investimentos nacionais. (DELGADO, 2006).
Outra causa apontada para crise do trabalho no final do século XX, está diretamente vinculado ao primeiro fator apontado e se caracteriza pela reestruturação empresarial e a forma de gestão dos processos produtivos intitulados como “pós-fordistas”. Estes são descendentes das inovações produtivas implementadas pela Empresa Automobilística Toyota na década de 70, ou mais precisamente por seu responsável Ohnion. (SINGER, 2002; DELGADO, 2006; CARDOSO, 2010).
O chamado “Toyotismo” ou “Ohinismo” vieram à substituir a administração científica da produção e a racionalização dos tempos e movimentos desenvolvida por Taylor, além das esteiras rolantes para a produção em massa desenvolvidas por Ford. Coerente com as possibilidades tecnológicas e com a necessidade de se adaptar à acirrada concorrência de um mundo cada vez mais dinâmico e interativo, o toyotismo eliminou o trabalho rotineiro, repetitivo e maçante e organizou os operários em células de produção autônomas, com rotatividade das funções, motivadas por metas estabelecidas pela alta administração empresarial. (MAXIMIANO, 2002;SINGER, 2003). Nestas células de produção, o empregado ganhou maior autonomia e liberdade para usar sua criatividade e seu tempo para contribuir com a eficiência e a eficácia produtiva.
O novo modelo de produção e de motivação em voga influenciou não apenas a organização do chão da fábrica e da administração da empresa, mas também as relações trabalhistas entre o patrão e o empregado; a empresa e o trabalhador.
Além da maior exigência profissional para a participação das equipes multi-funcionais, o trabalhador se torna responsável por partes do processo vinculado às metas empresariais. Dessa forma, ele não possui funções e atividades estabelecidas e previamente definidas conforme seu contrato de trabalho. Agora as capacidades profissionais valorizadas não se resumem à qualidade de técnicas e procedimentos, mas também à capacidades subjetivas de criatividade, pró-atividade e flexibilidade. O trabalhador deve cumprir a meta empresarial independente dos meios utilizados, possuindo maior autonomia e também responsabilidade sobre o processo. (SENNETH, 2007; PADILHA, 2000).
Tais exigências e responsabilidades dificultam a separação de papeis na empresa, dificultando a separação entre o papel do patrão e do empregado, do empregador e do empregado, resultando em uma série de complicações trabalhistas para a proteção do trabalho e do emprego. Um dos malefícios apontados é o contra senso na partilha dos ônus e bonnus empresariais. As responsabilidades e as pressões empresariais são compartilhadas, porém a estrutura hierárquica de comando e de distribuição dos lucros permanece a mesma, com raras exceções. (ANTUNES, 2006).
Os trabalhadores mais dedicados e comprometidos com as causas da empresa, e também pressionados pela ameaça do desemprego e pela acirrada concorrência entre os candidatos, são cada vez mais produtivos e eficientes, extinguindo mais postos de trabalho. Como ressalta o desembargador Sebastião Geraldo de Oliveira[2], vive-se em um sociedade em que as exigências do trabalho são mais “densas, tensas e intensas”, gerando a contradição na existência de índices crescentes de doenças decorrentes do excesso de trabalhos concomitantes à índices que denunciam o crescimento ou o elevado desemprego.
O último fator a ser explicitado como causa para a crise do trabalho atual se vincula à acentuação da concorrência capitalista no plano nacional e internacional.
O declínio da experiência socialista e o desencantamento das possibilidades comunistas, a conseqüente aceitação generalizada da economia de mercado e as intervenções neo-liberais inauguradas por Margaret Thatcher e Ronald Reagan refletiram consideravelmente no debate sobre o papel e a dimensão do Estado nas economias locais (SINGER, 2003) e, conseqüentemente, na liberdade e autonomia das empresas para a administração estratégica de seus recursos no âmbito territorial. (DELGADO, 2006).
A consolidação do modelo capitalista monetarista baseado no livre comércio, a prevalência do mercado de capitais sobre o capital produtivo, a influencia do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial nas políticas econômicas e financeiras nacionais influenciaram diretamente a execução de políticas orçamentária, fiscais e trabalhistas que favoreceram e empoderaram o setor empresarial, dando-o autonomia para a efetivação de seus estratégias financeiras e suas práticas competitivas. (DELGADO, 2006).
De forma geral, dada a conjuntura político-econômica, observa-se o enfraquecimento do controle do Estado concomitante ao empoderamento empresarial, que despreocupado com questões de ordem social, transforma o mundo em uma arena em disputa pelo melhor custo-benefício, onde a lei do mais forte é a única operante.
Em meio à concorrência, na disputa do mais forte, o trabalhador é um dos maiores prejudicados. Diante da selva capitalista, as empresas são forçadas a adotarem estratégias cada vez mais agressivas que exigem o corte dos gastos concomitante ao aumento da produtividade e a constante inovação de produtos e processos. Na busca pela maior eficiência e eficácia dos processos, trabalhadores são substituídos por máquinas ou por um trabalhador mais qualificado; e os que restam respondem à exigências cada vez maiores, lutando uns contra os outros para que garantam seus empregos. (ANTUNES, 2006; PADILHA, 2000; DELGADO, 2006).
Assim, o mundo do trabalho se formata conforme o medo. (VIANA, 2000). Medo de perder o trabalho, medo de se tornar obsoleto, medo por não haver justiça que proteja seus direitos, medo do companheiro de trabalho, que é visto como concorrente. Perde-se a solidariedade do grupo e movimentos sociais trabalhistas perdem sua força de atuação. O trabalho se torna quase que um “ritual de submissão” (CARDOSO, 2010), onde o trabalhador, sem força e voz para se posicionar, possui seus direitos “flexibilizados” e “relativisados” conforme as “necessidades do mercado”. (ANTUNES, 2006; PADILHA,
É diante desta conjuntura que novas oportunidades se abrem. Trabalhadores de todo o mundo, movimentos sociais, estudantes, técnicos e cientistas, amparados no aprendizado histórico, no amadurecimento crítico e nas novas possibilidades tecnológicas buscam construir uma nova alternativa para o trabalho, uma Economia Solidária. Busca-se um novo mundo de relações trabalhistas em que seja possível acreditar no amor em vez do medo; na democracia e autogestão em vez da opressão; na cooperação em vez da concorrência; na integração em vez da exclusão social; em sustentabilidade em vez de degradação; em trabalho digno, livre e solidário em vez da exploração da força de trabalho[3].
Busca-se a construção de uma “outra economia”. Economia que em seus requisitos estejam a inserção comunitária, a partilha de objetivos e o compromisso social; em seus aspectos valóricos estejam a eqüidade, a justiça e a participação; em seus aspectos funcionais estejam a socialização, a autogestão e a democracia; entre suas finalidades esteja o desenvolvimento humano integral e a eco-sustentabilidade; para que por fim traduza o cerne do solidarismo econômico. (GAIGER, 2000, p. 12).
3. Fundamentos, objetivos e características da Economia Solidária
A ES surgiu em momentos e de formas diferentes em cada país. Talvez, um movimento embrionário seria datado em 1956, quando José Maria Arizmendiarreta fundou a primeira cooperativa de produção, que viria a ser a semente do grande complexo cooperativo de Mondragón, no país Basco, na Espanha. Entusiasta do solidarismo cristão e comovido com o desemprego e a precarização salarial do país, ajudou a fundar uma montadora de fogões e geladeiras, de sucesso estupendo e que retomou a pratica da auto-gestão com muita autenticidade. (SINGER, 2003, p.p. 123-124).
Outro movimento marcante se situa no território italiano com o desenvolvimento dos distritos industriais segundo a política de desenvolvimento local implementada na Terceira Itália, como intitula Robert Putnam (2008). Nestes distritos, redes de cooperação apresentam-se como condição de competitividade e oportunidade, por meio da construção de capital social.
Nos anos 80, com a difusão do conceito de comércio justo e, posteriormente nos anos 90, com o desenvolvimento do conceito do consumo consciente, a Itália sediou experiência solidárias inusitadas até então. Neste sentido, segundo Oliveira (1982, p. 135), merecem ser citadas algumas indústrias cooperativas como as MAG (cooperativas de Mutua Auto Gestione), organizadas em redes de produção, distribuição e consumo dos bens e serviços. Além destas, as feiras “Fa La Cosa Giusta” em Milão e “Arcoboleano” em Trentino, exprimiam experiências que finalizavam fomentar o encontro e a interação entre os agentes econômicos. (AMATO NETO, 2000).
Dada a união de políticas públicas de desenvolvimento local e empreendimentos solidários surgiram eventos como o “Il Tavolo Dell´altra Economia” com o intuito de formar um pólo “La cittá dell`altra Economia” (a cidade da outra economia). Como exemplo, no distrito de Milão tem-se o projeto “Distretto di Economia Solidale di Milano” (DESMILANO)[4], associação que visa, enquanto projeto cultural, econômico, político e social, a formar uma rede local entre as diversas entidades que se reconhecem nos fundamentos solidários. (CULT, 2000).
No Brasil, uma das experiências que podem ser consideradas como berço e inspiração para o movimento da ES se situa no Conjunto Palmeiras, bairro da periferia da cidade de Fortaleza (Ceará). Em 1998, a associação de moradores do local se articulou para a implementação de um banco comunitária como ferramenta para a geração de trabalho e renda e promoção de empreendimentos organizados segundo princípios solidários.
O Banco Palmas é atualmente uma das experiências de Economia Solidária mais importantes e emancipadoras do Brasil e do mundo. Pioneiros na emissão de moeda social e fornecimento de microcrédito para a população de baixa renda, o banco realiza transações financeiras, é fonte de crédito para o consumo e para a produção local, segundo juros baixos – quase nulos – e sem burocracia para a população mais pobre. Mas, acima de tudo, o Banco Palmas se diferencia por se propor a ser uma instituição financeira de grande porte sem dono e sem fins lucrativos. Diferentemente dos bancos privados, o Banco Palmas se propõe a ser comunitário, ou seja, ele não pertence a um banqueiro ou a um grupo de acionistas, mas a toda a comunidade do Conjunto Palmeira que pode, inclusive, decidir sobre seu funcionamento e seu destino em assembléias e reuniões abertas a todos os moradores[5].
Como o exemplo da Espanha, da Itália e do Brasil, poderiam ser citadas experiências solidárias pontuais por todo o mundo, porém, foi no I Fórum Social Mundial, que o conceito da Economia Solidária foi fundado e batizado, caracterizando e definindo as
experiências até então existentes. Foi no I Fórum Social Mundial em 2001, em terras brasileiras, que se disseminou a importância do movimento, com a articulação de vários fóruns locais e regionais em busca de relações de colaboração solidária inspiradas por valores culturais que colocam o ser humano como sujeito e finalidade da atividade econômica, em vez da acumulação privadas de riqueza em geral e de capital particular. (Grupo de Trabalho de Economia Solidária do FSM, 2008, p. 109).
Foi a partir de então que trabalhadores, técnicos e intelectuais passaram a buscar a concepção de uma economia não apenas pautada na eficiência monetária da produção, mas também no que intitulam de eficiência sistêmica (GAIGER, 2003). Além da reprodução simples de indivíduos, da sua vida biológica e social em níveis moralmente aceitos, passou-se a articular economia que promove a reprodução ampliada da vida, ou seja, um desenvolvimento durável e sustentável da qualidade de vida humana, que contemple, além dos aspectos materiais, o nível consciente dos desejos, o acesso igualitário a um sistema de justiça, o estar ao abrigo da repressão política, da violência física e psíquica e de outras fontes de sofrimento. (GAIGER, 2003, p. 127).
No que tange aos seus objetivos, a ES visa não apenas a construção de um novo modelo de sociedade que supere o capitalismo (em termos de igualdade, liberdade e segurança para todos), mas que também possibilite uma vida comunitária sustentável. De forma ampla, a ES busca a promoção da qualidade de vida das pessoas que deles se valem, bem como propiciar maior bem-estar duradouro para a sociedade. (GAIGER, 2003, p. 125).
Para tanto, os diversos modelos de empreendimentos solidários que compõem o movimento se embasam na apropriação coletiva dos meios de produção e no trabalho associado (GAIGER, 2003, p. 127). Eles acreditam que a “auto-gestão, a democracia e a igualdade” (SINGER, 2003, p. 117) seja um dos possíveis caminhos para o desenvolvimento humano permeado por relações justas e solidárias, dentro e fora do trabalho.
De encontro aos requisitos de envolvimento e participação dos trabalhadores, preconizados pelo métodos de gestão modernos (GAIGER, 2003, p. 128), a autogestão pode ser definida em seu sentido lato como o “conjunto de práticas sociais que se caracteriza pela natureza democrática das tomadas de decisão, que propicia a autonomia de um ‘coletivo.’” (ALBUQUERQUE, 2003, p. 20). Em essência, a prática da autogestão “está fundada na repartição do poder, na repartição do ganho, na união de esforços e no estabelecimento de um novo tipo de agir coletivo que tem na cooperação qualificada a implementação de um outro tipo de ação social.” (ALBUQUERQUE, 2003, p. 25).
Em sistemas autogestionários não há divisão entre patrão e empregado, em quem pensa em quem faz, em atividades valorizadas e desvalorizadas. Todos contribuem com sua força de trabalho para a construção do objetivo em comum. Neste sistema, o sujeito se torna agente de sua própria vida e responsável por suas escolhas. Ele participa dos processos decisórios e assume a responsabilidade sobre os riscos assumidos, combatendo-se a subordinação como forma de opressão (SINGER, 2003, p. 123).
Para tanto, os integrantes dos empreendimentos se organizam segundo a máxima “para cada um, um voto”. Os indivíduos são respeitados como seres iguais, merecedores dos mesmo direitos e deveres, buscando-se respeitar o principio democrático para a tomada de decisões e elaborações estratégicas dos empreendimentos. Acredita-se que é por meio da democracia e não centralização do poder que poderá enxergar o outro, incluí-lo e compreendê-lo. Como salienta Singer, a chave para a ES é a “associação entre iguais em vez do contrato entre desiguais.” (SINGER, 2002, p. 9).
Os empreendimentos autogestionários influenciam transformações não apenas individuais, mas também sociais. A autogestão econômica se faz complementar e integrante da autogestão social. “A articulação de redes solidárias de produção, de consumo, de comercialização e de serviços, cria circuitos econômicos não submetidos à dinâmica produtiva capitalista, sem, no entanto, se isolar da mesma dinâmica.” (SHÜTZ, 2008, p. 24). Neste sentido, a autogestão busca “ressignificar as práticas sociais relacionadas à organização do trabalho associando-as à idéia-força de mudança radical e de transformação da sociedade capitalista.” (ALBUQUERQUE, 2003, p. 25).
Externamente, a ES se assenta em redes de colaboração solidária. Busca-se que entre os diferentes setores da sociedade organizada se exija o compromisso dos poderes públicos com a democratização do poder, da riqueza e do saber, além do estímulo a formação de alianças estratégicas entre organizações populares. Dessa forma, a democracia interna também é fomentada externamente por meio do incentivo ao exercício pleno e ativo dos direitos e responsabilidades da cidadania. Ou seja, construção de uma comunidade soberana, amparada pelo exercício da democracia e da gestão participativa. (Grupo de Trabalho de Economia Solidária do FSM 2002, 2008, p. 1114).
A ES deve ser compreendida como um componente do espaço público (FRANÇA, 2002, p. 18), por meio da qual há a possibilidade de visibilização dos anseios e problemas individuais e coletivos. (SOTO, 2008, p. 78-79). Assim, a ES contribui para a construção de “espaços decisórios, abertos à manifestação de dissensos, no interior da própria sociedade, ou de instâncias deliberativas que permitem o reconhecimento e dão voz a novos atores e temas”. (SOTO, 2008, p. 79).
De forma geral, os fundamentos, objetivos e características da ES se vinculam pela tentativa de promoção e fomento de relações solidárias. A ES se baseia na “consciência de que somos todos interconectados e, por isso, precisamos fazer das nossas relações sociais, produtivas, comerciais e interpessoais, algo que resulte em benefício, bem-estar e felicidade para ambas as partes.” (GAIGER, 2000, p. 23). Segundo Gaiger, o trabalho consorciado age em favor dos próprios produtores e confere à noção de eficiência uma conotação bem mais ampla, referida à qualidade de vida e à satisfação de objetivos culturais e éticos-morais. (GAIGER, 2003, p. 127). Neste sentido, a ES se apresenta como ferramenta para o cultivo da solidariedade no combate das injustiças sociais, pois propicia o “vínculo entre identidades que gera revolta, criatividade e reconhecimento de diferenças”. (SOTO, 2008, p. 26).
4. Desafios e possibilidades
Como processo em construção e amadurecimento, o movimento da ES se depara com diversas dificuldades ou desafios que ainda necessitam ser superadas, mas que evidenciam seu caráter revolucionário e aberto à novas possibilidades.
Devido o caráter inclusor da ES e por seu público contemplar, na maioria das vezes, a população excluída do mercado de trabalho formal, as principais críticas concernentes ao movimento da ES se veiculam ao seu rebaixamento a uma simples lacuna do sistema capitalista, camuflando suas contradições e atritos fundamentais, como uma forma de “ocupar os desocupados, com uma terapia ocupacional para aqueles que não são excluídos do mercado formal” (SHÜTZ, 2008, p. 49). Segundo esta corrente de pensamento, corre-se o risco da ES se transformar em mera estratégica capitalista para “rebaixar as próprias condições de trabalho e salários, transformando os trabalhadores em exploradores de si mesmos”. (MARTINS, 2008, p. 11).
Para que tais críticas não sejam pertinentes, a Economia Solidária deve ser compreendida como um processo pedagógico que visa superar as contradições e os desafios do sistema, abrindo espaço para a construção do novo, algo completamente novo, que mesmo que em construção possibilite vislumbrar uma sociedade baseada em princípios solidários, por si só revolucionário[6].
Os principais desafios do movimento circundam a superação de uma cultura individualista, destruidora de qualquer coalizão solidária; investimentos em meios de produção e tecnologia, para que o movimento seja sustentável; o acesso à credito que viabilize tais investimentos e promova o crescimento e disseminação de sua rede; além, de políticas públicas adequadas ao movimento, que não só apóie e ajude o movimento a se desenvolver, mas que proporcione condições legais para a execução de sua dinâmica econômica.
Quanto à superação da cultura capitalista, o maior desafio se vincula à educação. Educação formal e técnica, mas principalmente a educação solidária e cooperativa.
A maioria das experiências solidárias hoje no mundo contemplam uma população até então excluída ao acesso aos meios de produção, que buscam novas alternativas para interagir e sobreviver. Em países ditos como “subdesenvolvidos”, onde a parcela excluída dos meios de produção também não possui acesso ao ensino básico, a situação fica ainda mais complicada. O desprovimento da técnica de leitura ou escrita prejudica o indivíduo não apenas na execução de suas tarefas cotidianas quanto de seu relacionamento público, segundo a problematização dos fatores que condicionam o mundo do trabalho. Nestes casos, observa-se a grande dependência de projetos assistenciais providos por universidades, entidades governamentais e não governamentais que nem sempre possuem disponibilidade para se dedicar de forma e intensidade suficiente.
Paralelamente, o trabalho pautado na solidariedade, na cooperação e na autogestão enfrenta cotidianamente as conseqüências de uma cultura com princípios inversos: o individualismo e a centralização do poder. Percebe-se o contínuo e interrupto esforço dos que trabalham como a ES para combater o disseminado “desejo de ser assalariado”, que limita os trabalhadores à cumprir planos e ordens de uma empresa, para receber ao final do mês a recompensa mercantil (MARTINS, 2008).
Além disso, em um mundo extremamente competitivo e concorrencial, não há tempo e recursos para que a solidariedade e a democracia possa ser vivenciada. Aprende-se a obedecer e a temer os superiores desde os bancos da escola (SINGER, 2002, p. 21), chegando a ser assustador a proposta autogestionária.
Este processo pedagógico e libertário, como classifica Singer (2002; 2003;2006), Gaiger (2003; 2006), Shütz (2008) e Martins (2008), também requer investimentos em meios de produção e em tecnologia produtiva para emancipar-se da dependência de nichos capitalistas e promover a sustentabilidade de uma rede solidária.
Para tanto, são necessários investimentos em meios de produção e tecnologia que permitam a atuação da ES no setor industrial de bens de consumo duráveis e não duráveis. Atualmente, a maioria dos empreendimentos solidários se concentram no setor agrícola, comercial e de serviços, ocasionando uma lacuna na formação desta rede. A ES necessita ambicionar novos setores e expandir sua atuação nos mais diversos pontos da rede produtiva ou de consumo. Para que a ES não se transforme em experiências isoladas em meio ao sistema capitalista, é necessário que ela se organize em redes solidárias, ou em ilhas não capitalistas. Com a criação de ilhas sustentáveis, cresce a chance do empoderamento do movimento, bem como sua sustentabilidade. (SHÜTZ, 2008, p. 27). Redes de distribuição e consumo entre os empreendimentos e que assim circuitos econômicos possam ser fechados, eliminando a dependência fundamental de empresas capitalistas centrais. (SHÜTZ, 2008, p.41).
Como ressalta Viana[7], o empreendimento solidário isolado não ocasiona grandes transformações – a não ser o combate ao desemprego. Para um verdadeiro confronto à lógica capitalista é necessário que os empreendimentos se organizem em redes solidárias sustentáveis que contemplem toda a cadeia produtiva.
A ES necessita ampliar sua ambição e superar o caráter de economia marginal e secundária; encarar o desafio de oferecer produção consumo e circulação mais eficientes que os proporcionados pela economia capitalista. (MARTINS, 2008, p.12). Para tanto faz necessário a luta por investimentos e crédito para o setor produtivo e tecnológico e busca de auxílio em políticas públicas eficazes.
Programas de créditos coerentes viabilizariam o financiamento das inovações e os investimentos produtivos e tecnológicos necessários. Da mesma forma, políticas públicas adequadas às características e condições do movimento, que não apenas apóiem o desenvolvimento do movimento, mas que proporcionem condições legais para a execução de sua dinâmica econômica.
Assim, diante dos desafios apontados, a ES necessita de criatividade e adequada exploração tanto das virtualidades do trabalho cooperativo quanto da conjuntura social e tecnológica existente (GAIGER, 2000, p. 6). É preciso criar condições de colaboração e sinergia, para que os empreendimentos não se percam na pequena escala de sua produção ou no eventual despreparo técnico e administrativo de seus colaboradores. (MARTINS, 2008, p.12).
5. Conclusão
Após a explanação sobre seu fundamento, características e principais desafios da ES, pode-se concluir que a ES constitui um movimento social revolucionário, viabilizado pela maturidade e estrutura conjuntural contemporânea. Assim, possuindo em seu cerne a solidariedade e o questionamento das contradições capitalistas, busca de forma crítica alternativas práticas e realizáveis de uma outra lógica financeira e produtiva.
O movimento da ES pode ser compreendido como resultado dialético do movimento operário iniciado pós revolução industrial, onde retoma os sonhos passados sem deixar de se contextualizar aos sonhos contemporâneos. Mais próximo e atento as necessidades de base, em prol de uma reflexão autogestionária, a ES se constrói conjuntamente, de baixo para cima, coerente com o sentimento igualitário e pluralista das ultimas décadas.
Assim, a ES deve ser encarada como instrumento de poder econômico, mas também um espaço de organização de base popular, uma força popular e política, um novo referencial de aprendizagem. (SHÜTZ, 2008, p. 33). Crítico e coerente com as necessidade e possibilidades contemporâneas, o movimento se coaduna à uma questão pedagógica que tanto denuncia e desconstrói as estruturas de opressão e de dominação que estão por detrás da aparente neutralidade das leis de mercado (SHÜTZ, 2008, p. 32), quanto se abre para o futuro e liberta para a construção de novas dimensões humanas (afetivas, cognitivas e sociais). (SHÜTZ, 2008, p. 40).
A ES propõe o caos, a desburocratização, o diferente para que haja brechas dentro do sistema que sejam sementes de transformação. A ES denuncia contradições e abre espaço para a criação de outras formas econômicas, outras formas para repensar o valor do trabalho, vinculando-se à um novo projeto de movimento social.
A ES possibilita a oportunidade pedagógica de ser empreendedor sem explorar, de assumir responsabilidades e ter iniciativas sem reivindicar privilégios; de dirigir sem oprimir. (MARTINS, 2008). Ela possibilita colocar em mesa propostas que afirmem prioridade de direitos sociais sobre os lucros; vantagens da colaboração sobre a competição; distribuição, ao invés da concentração de riquezas. (MARTINS, 2008, p. 9). Ela revisita a concepção de trabalho subordinado e constrói a possibilidade de um emancipado elaborado de forma cooperativa e sustentável.
Acima de tudo, a ES alia-se a um projeto social onde os movimentos se convergem na luta pela igualdade e pela solidariedade e congrega as mais diversas reivindicações que possuem como objetivo comum a construção de outro ideal de sociedade.
Por fim, a ES reúne redistribuição ao reconhecimento. Por meio da redistribuição de renda, são chamados para construir um novo projeto de sociedade aqueles que até o momento estiveram á margem do sistema, que ainda não foram sujeitos de sua própria história.
Informações Sobre o Autor
Márcia Nazaré Silva
Bacharel em Direito