Resumo: Aborda-se a relação entre o direito à educação e a liberdade de expressão. O direito fundamental à educação determina e confere uma finalidade especial aos meios de comunicação social: “preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas” (artigo 221, I, da Constituição). Indaga-se a questão de como compatibilizar essa plena liberdade de imprensa com a garantia do princípio previsto no artigo 221, I. Desenvolve-se a tese de que deve ser garantido o direito do povo delinear o conteúdo da imprensa, em cumprimento aos ditames constitucionais, que determinam o estímulo à produção de programação independente (artigo 221, III, da Constituição). A liberdade de expressão implica, também, liberdade de ensino dos professores em criticar, por meio de suas pesquisas, as diversas formas de poder, pois não há educação sem liberdade. Por fim, ressalta-se a necessidade de um marco que regulamente, induza e incentive a iniciativa privada a formular programação que cumpra prioritariamente sua função educativa, artística, informativa e cultural.
Palavras-chave: direito à educação – liberdade de expressão, comunicação e ensino
Abtsract: It addresses the relationship between the right to education and freedom of speech. The fundamental right to education determines and gives a special purpose to the media: “preference to educational, artistic, cultural and information” (Art. 221, I of the Federal Constitution). It inquires how to reconcile this full freedom of the press guaranteed by the principle established on the Article 221, I of the Federal Constitution. It develops the thesis that must be guaranteed the right of people to outline the contents of the press, in compliance with the constitutional that determine stimulating the production of independent media (Article 221, III of the Constitution). Freedom of speech also means freedom of teachers to criticize, through their research, the various forms of power, because there is no education without freedom. Finally, it emphasizes the need for a framework to regulate, induce and encourage private initiative to develop programming that meets their function primarily educational, artistic, and cultural information.
Keywords: right to education – freedom of expression, communication and teaching
Resumen: Se aborda la relación entre el derecho a la educación y la libertad de expresión. El derecho fundamental a la educación determina un propósito especial para los medios de comunicación: “preferencia a la educación, artístico, cultural e informativa” (Art. 221, I de la Constitución). Pide a la cuestión de cómo conciliar esta plena libertad de prensa garantizada por el principio establecido en el artículo 221, I de la Constitución. Se desarrolla la tesis de que debe garantizarse el derecho del pueblo a esbozar el contenido de la prensa, de acuerdo con los dictados constitucionales que determinan la estimulación de la producción de programas independientes (artículo 221, III de la Constitución). La libertad de expresión también implica la libertad de criticar de los maestros, a través de su investigación, las diversas formas de poder, porque no hay educación sin libertad. Por último, se hace hincapié en la necesidad de un marco para regular, inducir y fomentar la iniciativa privada para desarrollar una programación que cumpla con su función primordialmente educativa, artística, y la información cultural.
Palabras clave: derecho a la educación – la libertad de expresión, la comunicación y la enseñanza
Sumário: Introdução. 1. Liberdade de expressão e direito à educação. 2. Liberdade de imprensa e direito à educação. 3. Liberdade de ensino e expressão. 4. O regime jurídico da liberdade de comunicação sob o enfoque educacional. 5. A função educacional dos meios de comunicação: “quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja”? Conclusão .Bibliografia.
Quand la verité n’est pas libre;
la liberté n’est pas vraie.
Jacques Prévert (1900/1977). Spetacles.
Introdução
Preceitua o artigo 11 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1798 que “a livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem. Todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei.”
Contudo, para que e para quem serve esse direito à livre comunicação de ideias em um Estado que não oferece amplo acesso à educação? A liberdade somente pode existir se coexistir com a garantia aos direitos sociais. A liberdade sem direitos sociais é a liberdade do mais forte, é desigualdade:
“Para que servem a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão quando apenas alguns sabem ler? (…) Para que a liberdade seja realidade, as condições para o exercício dos direitos humanos devem ser tal que os homens possam efetivamente gozar de seus direitos. A dignidade humana e a liberdade somente podem existir se os direitos à liberdade são completados pelos direitos sociais, denominados direitos de segunda geração: por exemplo, o direitos ao trabalho, à formação, ao domicílio etc.”[1]
As dimensões de direitos fundamentais tornaram-se cada vez mais interdependentes. De um lado, ampla liberdade de imprensa em um país sem direito à educação aproxima-se de uma ditadura dos que dominam os meios de comunicação. De outro, não é plena a educação se as pessoas não possuem liberdade de expressão, porque uma ditadura, que determina o que se deve dizer, limita a educação ao que ditar.
1. Liberdade de expressão e direito à educação
Liberdade de expressão é fundamento do Estado Democrático, porque a tolerância e o pluralismo de ideias e de pensamentos são condição de existência da democracia. O jurista alemão Thomas Fleiner define o direito de liberdade de expressão como:
“a esperança da maioria de convencer, mediante o diálogo, a maioria a pertinência de sua opinião. A liberdade de opinião pertence ao núcleo essencial da existência espiritual dos homens. O homem somente pode existir como ser racional quando ele mesmo pode formar sua opinião e atuar de acordo com esta”.[2]
A racionalidade humana existe para ser expressa, porque o ser humano é um ser social. A fala, segundo Aristóteles, além da moral, constitui a principal razão para a existência da sociedade civil.[3]
Uma das justificações para a garantia e existência da liberdade de expressão, segundo Dworkin, é a de que o Estado deve tratar os cidadãos como agentes morais responsáveis. Esse tipo de responsabilidade impõe que os cidadãos tomem suas próprias decisões sobre o que é verdadeiro ou falso na justiça. Sendo assim, “o Estado ofende os seus cidadãos quando nega a responsabilidade moral deles, quando decreta que eles não têm qualidade moral suficiente para ouvir suas opiniões que possam persuadi-los de convicções perigosas ou desagradáveis.”[4]
Partindo da premissa de Dworkin de que os cidadãos devem se responsabilizar moralmente pelo que fazem para viverem em sociedade, somente há responsabilidade moral se possuírem capacidade de exprimirem suas opiniões. E mais: essas opiniões devem ser passíveis de acolhimento pelo Estado ou pelos outros cidadãos. Porque, ao ser humano é negada sua existência moral quando não é capaz de se exprimir ou, mesmo quando exprime seus pensamentos e convicções, não é ouvido.
Responsabilidade moral implica educação, porque os cidadãos não podem ser responsabilizados pelo que não se teve condições de suficiente discernimento para agir de outro modo. Não há responsabilidade de pessoas não emancipadas, porque educação, como observa o filósofo Adorno, não é
“modelagem de pessoas, porque não temos o direito de modelar pessoas a partir do seu exterior; mas também não a mera transmissão de conhecimentos, cuja característica de coisa morta já foi mais do que destacada, mas a produção de uma consciência verdadeira. Isto seria inclusive da maior importância política; sua ideia, se é permitido dizer assim, é uma exigência política. Isto é: uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipado”.[5]
O direito à educação é direito fundamental individual e coletivo. É direito individual, porque diz com o desenvolvimento da pessoa, em sua dignidade e liberdade. É, igualmente, coletivo porque fruto das lutas sociais por igualdade havidas no seio da Revolução Industrial no século XIX, de modo que reflete o avanço dos direitos fundamentais para “além das considerações do homem em abstrato, no sentido de atentar para as diversas maneiras, concretas e específicas, de sua inserção na sociedade”[6].
O direito à educação realiza a igualdade individual pela justiça social, conferindo a todos os cidadãos, antes de tudo, condições materiais e intelectuais de existência. É indispensável para a realização da cidadania, dignidade, e valorização do trabalho (artigo 1º, II, II e IV da Constituição Federal de 1988), e constitui meio para a consecução dos fins do Estado, porque é instrumento essencial em uma sociedade brasileira justa e desenvolvida (artigo 3º, I e II), dentro de um Estado Democrático de Direito fundado em 1988.
Cuidando-se de uma exigência política de emancipação do ser humano para a construção da democracia, a reflexão sobre a educação, para a abordagem formativa da teoria social de Adorno, constitui um fator político-social: uma educação política.
Se o direito à educação, neste viés, implica o exercício de emancipar-se politicamente, a liberdade de expressão sem educação é o mesmo que meramente propagar, repetir, ditar ideias: ditadura do pensamento alheio. É a negação da expressão, porque não permite, por excelência, exprimir-se, mas, isso sim, exprimir a vontade de outrem, ou seja, obedecê-la. Sendo a dominação, weberiana, a probabilidade de se encontrar obediência em uma dada relação social,[7] exercer a liberdade de expressão sem educação é, portanto, o exercício de ser dominado.
Em democracia, a importância conferida à garantia da liberdade de expressão se justifica, porque essa liberdade desvela a verdade e a falsidade na política; resguarda o poder de autogoverno do povo; e inibe o governo corrupto[8] Por mais que permita abusos, possui mais benefícios que a censura prévia:
“A verdade decretada por uma ditadura com base em fundada experiência tem produzido maiores danos que o caos temporal criado por falsas informações manifestadas em uma democracia.”[9]
Se a liberdade de expressão reflete-se em crítica e fiscalização do poder e, por isso, exercício de cidadania; igualmente, a educação, por formar a consciência da pessoa para eleger os melhores representantes para o exercício de um governo republicano, é direito que se expressa no preparo das pessoas para o exercício da cidadania.[10]
O conteúdo e exercício cidadania inerentes ao direito à educação e à liberdade de expressão, encontram sua expressão maior na garantia da liberdade de imprensa.
2. Liberdade de imprensa e direito à educação
A imprensa forma o que se chama opinião pública, cumprindo o papel de controlar a função republicana do Estado, fornecendo alternativa à versão do Estado. A liberdade de imprensa garante o pensamento crítico, aquele que é comprometido com a verdade.[11] Pois, a restrição ao segredo e combate à desinformação do Estado cria pela imprensa um sistema de controle do poder, como observa Dworkin:
“A influência da imprensa decorre em grande parte da justificada crença do público de que uma imprensa livre e poderosa serve para impor bem vindas restrições às atitudes de segredo e desinformação por parte do Estado. A intenção mais básica dos autores da Constituição era a de criar um sistema equilibrado de restrições ao poder; o papel político da imprensa, agindo dentro de uma imunidade limitada em relação aos seus próprios erros, parece agora um elemento essencial desse sistema – da flexibilidade, do âmbito e da iniciativa necessárias para descobrir e publicar as mazelas secretas do Executivo, deixando a cargo das outras instituições do sistema a tarefa de saber o que fazer com essas descobertas.”[12]
Contudo, liberdade imprensa sem universalidade do direito à educação induz e contribui para a dominação da elite intelectual e dos interesses privados das emissoras de comunicação. As pessoas que não têm educação crítica para entender o que está explícito ou implícito nos jornais a estes são cegamente obedientes, ou seja, dominados:
“A liberdade de imprensa somente pode cumprir com sua função de controle se as diversas opiniões existentes puderem ser confrontadas. Quando a imprensa publica uma corrente única de opinião e fabrica a opinião pública, seu conceito se torna vazio.”[13]
Deve a imprensa ter ainda maior liberdade que aquela desfrutada pelos indivíduos em sua expressão ou pensamento, uma vez que constitui a garantia-controle da democracia, em “relação de mútua causalidade”[14] com esta.
A liberdade de imprensa é democrática apenas na medida em que reflita o pluralismo de ideias, uma vez que se funda sobre a proibição do monopólio e do oligopólio como novo e autônomo fator de contenção de abusos do chamado “poder social da imprensa”[15] O direito à educação não discriminatório funda-se igualmente no princípio do “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino” (artigo 206, III, da Constituição). Ambos são plurais, porque refletem o pensamento crítico e, por excelência, democráticos e universalizantes.
Liberdade de imprensa com amplo acesso à educação, por si só, não necessariamente ensejará um ambiente jornalístico de plena defesa dos interesses públicos ou de pacificidade e civilidade. Prova disso é que os EUA são um dos países em que o direito à educação é tão largamente desenvolvido quanto o são as garantias de liberdade de imprensa e expressão. Mas nem por isso os escândalos deixam de tomar os jornais em forma de calúnia e difamação, como observa Dworkin, enunciando vários julgados da Suprema Corte. Ainda mais tendo a imprensa norte-americana a garantia de que não seja punida se, em que pese a falsidade e nocividade da informação, não divulgar a notícia com a chamada “malícia efetiva” – reckless disregard (ciência de que a informação era falsa).
Contudo, o direito à educação, como indutor da tolerância e civilidade entre os cidadãos, influencia consideravelmente a qualidade do debate de ideias que se dá no âmbito da imprensa. Os leitores com o mínimo de instrução rechaçarão os setores da imprensa que se empenham em notícias sensacionalistas, caluniosas ou difamadoras e que se dedicam apenas a assuntos de baixa relevância ou mesmo preconceituosos; do mesmo modo como não aceitarão censura prévia.
A noção de cesura prévia foi totalmente rechaçada pelo STF na ADPF 130. Os argumentos para essa censura da censura residem, principalmente, no fato de (i) ter sido a liberdade de imprensa colocada em patamares como “plena” e “livre”, (ii) ser ínsita à dignidade da pessoa humana, e (iii) estar relacionada ao interesse público.[16]
Porque exige simbiose, cooperação, interlocução, os meios de comunicação não prescindem de que o telespectador e o ouvinte também tenham voz, possibilitando que delineiem o conteúdo da imprensa que de precisam. O exercício da liberdade de imprensa promove o direito à educação quando a população realiza sua própria produção independente, realizando sua programação midiática não vinculada aos grandes conglomerados de emissoras de rádio e televisão.
Adorno encontra nessa produção crítica uma forma de a televisão não se identificar a ideologia:
“Na medida em que uma série de pessoas com posições críticas, autônomas e frequentemente até oposicionistas, colaboram na produção dos programas, torna-se possível romper em certo sentido as barreiras do existente simplesmente apoiando-se nas relações pessoais específicas e sobretudo na competência técnica de pessoas que têm o que dizer e fazer quanto a este assunto. Enquanto existirem pessoas tecnicamente competentes em televisão que percebem que certas encenações, como as peças de Beckett, por exemplo, são particularmente apropriadas a este veículo de comunicação de massa (…).”[17]
É princípio da comunicação social expresso na Constituição a “promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação” (artigo 221, II). A programação local, regional dos meios de comunicação, devem refletir as diferentes regiões do Brasil, a cumprir o princípio, insculpido na Carta Magna, que determina “a regionalização da produção cultural”.
A lei nº 11.652/08, que institui os princípios e objetivos dos serviços de radiodifusão pública explorados pelo Poder Executivo ou outorgados a entidades de sua administração indireta, está em consonância com esses dispositivos constitucionais. Em seus artigos 2º, III e IV, e 3º, I a V, confere a esses serviços a condição de: produção e programação com finalidades educativas, artísticas, culturais, científicas e informativas; promoção da cultura nacional, estímulo à produção regional e à produção independente; desenvolver a consciência crítica do cidadão, mediante programação educativa, artística, cultural, informativa, científica e promotora de cidadania; fomentar a construção da cidadania, a consolidação da democracia e a participação na sociedade, garantindo o direito à informação, à livre expressão do pensamento, à criação e à comunicação; apoiar processos de inclusão social e socialização da produção de conhecimento garantindo espaços para exibição de produções regionais e independentes.
Assim, a liberdade de imprensa não pode ser apenas a liberdade das grandes emissoras ou do Poder Público em selecionar e produzir informação e programação dos meios de comunicação de massa.
A teor da Constituição e da Lei nº 11.652/08, o Poder Público deve estimular a produção regional e a produção independente pela população em meios de comunicação comunitários (artigo 2º IV), cooperando, assim, o Estado com os processos educacionais da população (artigo 3º IV). Isto é, o poder de formular, selecionar, produzir e divulgar a informação de forma independente contribui para a educação da população local. Isso porque os indivíduos ao formarem a programação, por exemplo, de uma rádio comunitária desenvolvem o senso crítico, porque formulam o discernimento de escolher aquela informação que é de interesse da comunidade.[18]
Liberdade de imprensa consubstancia, portanto, a possibilidade de setores menos favorecidos da população construírem sua própria “imprensa”, em cumprimento aos ditames constitucionais, que determinam o estímulo à produção de programação independente (artigo 221, III).
3. Liberdade de ensino e expressão
A liberdade de expressão implica, sob o viés do direito à educação, a liberdade de ensinar, que abarca o direito de o professor ensinar o que a ciência entende como verdade, independentemente das limitações ideológicas do partido ou do governante no poder, da religião ou moral dominante; garante a possibilidade de criar, com certa liberdade, instituições de ensino; de se lançar mão de diferentes formas de educação permitidas pelo Estado, metodologias e conteúdo dos programas de ensino; implica a liberdade dos pais de escolher a modalidade de ensino que desejam para seus filhos, se público ou privado, laico ou confessional, respeitadas as determinações legais.[19]
Evidência da liberdade de expressão e opinião na educação encontra-se na noção de autonomia universitária (artigo 207 da Constituição), onde os debates políticos e ideológicos mais se aguçam. Os professores de instituição de ensino superior devem provocar o debate e instigar ao raciocínio crítico dos alunos, garantida aos docentes a liberdade de expressão, mesmo porque não há maior cinismo que a defesa de interesses políticos e ideológicos disfarçada por uma suposta objetividade da ciência. Nesse sentido, o jurista francês Henri Oberdorff:
“Enfim, “o serviço público de ensino superior é laico e independente de qualquer interesse político, econômico, religioso ou ideológico; ele tende à objetividade do saber; ele respeita a diversidade de opiniões”. “Ele deve garantir ao ensino e à pesquisa suas possibilidades de livre desenvolvimento científico, criador e crítico” (art. 141-6). É justamente no ensino superior que a independência dos professores é considerada comum um princípio fundamental reconhecido pelas leis da República (decisão nº 85-165 DC de 20 de janeiro de 1984, GDCC, p. 571).”[20] (grifos nossos)
A liberdade de ensino também implica tolerância religiosa. O fato de o ensino público ser laico, não significa instigar o combate às religiões e às crenças, mas promover a tolerância,[21], por ser “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (artigo 5º, VI, da Constituição). A Lei de Diretrizes e Bases de 1996 complementou esse sentido constitucional ao prever que “o ensino será ministrado com base no princípio da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber e respeito à liberdade e apreço à tolerância”. (artigo 3º). Especificou a Lei que o ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. (artigo 33 caput da Lei de Diretrizes e Bases).
A liberdade de ensino decorre da liberdade de expressão. Mesmo quando servidores públicos, os professores, assim como a imprensa, são formadores de opinião e, por isso, não podem estar subjugados ou se renderem à disciplina das relações especiais de sujeição ao Poder Público, possuindo ampla liberdade para criticar, por meio de suas pesquisas, as formas de poder político e econômico estabelecidas dentro ou fora das instituições de ensino.
Interessante julgado que trata do entrelaçamento entre a liberdade de ensino e o direito à educação é o Recurso Especial nº 1.193.886/SP (Relator Ministro Luis Felipe Salomão e julgado em 09.11.2010), que suscitou debates no Superior Tribunal de Justiça. O caso refere-se à possibilidade ou não de responsabilizar civilmente, por danos morais, professor catedrático de direito penal em razão de suas ilações proferidas em sua obra jurídica e em entrevistas sobre o chamado “Crime da Rua Cuba”. Após o voto do relator pela inexistência de dano moral, a Ministra Maria Isabel Gallotti inaugura a divergência defendendo que houve lesão à honra porque extrapolados os limites do ensino jurídico[22]. Em seguida, acompanhou-a o Ministro Aldir Passarinho Júnior, entendendo que a liberdade de pensamento jurídico não abarcaria a possibilidade de um estudioso do direito penal oferecer uma entrevista, em meio de comunicação de massa como a televisão, sobre um crime cuja autoria ainda seria duvidosa[23]. Contudo, a dissidência não prevaleceu. A maioria seguiu o relator, que entendeu que as ilações são plausíveis e que podem inclusive estimular o estudo e a formação acadêmica do profissional do direito – a quem, principalmente, era dirigida a obra:
“Afirmou-se naquela ocasião – com as adequações exigidas diante das diferenças de situações – que a liberdade de informação assume um caráter dúplice. Vale dizer, é direito de informação tanto o direito de informar quanto o de ser informado, e, por força desse traço biunívoco, a informação veiculada pelos meios de comunicação deve ser verdadeira, pois a imprensa possui a profícua missão – como bem assinalado por Darcy Arruda Miranda – de “difundir conhecimento, disseminar cultura, iluminar as consciências, canalizar as aspirações e os anseios populares, enfim, orientar a opinião pública no sentido do bem e da verdade” (Comentários à lei de imprensa. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 69). (…)
No caso concreto, a bem da verdade, as “conclusões” a que chegou o recorrido acerca do “Crime da Rua Cuba” encontram-se no âmbito das incertezas, das ilações plausíveis, as quais, aliás, podem estimular o estudo e a formação acadêmica do profissional do direito – a quem, principalmente, era dirigida a obra. (…)
Ressalte-se, por fim, que a educação e o ensino são regidos pelo princípio da “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” (art. 205, inciso II, da CF/88 e art. 3º, inciso II, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei n.º 9.394/96), positivação esta que protege e garante a máxima, por todos conhecida, de que os espaços acadêmicos – e, por consequência, a literatura a estes direcionada – são ambientes propícios à liberdade de expressão e genuinamente vocacionados a pesquisas e conjecturas.”
É de ser destacado que o relator parte do pressuposto de que a educação e o ensino são regidos pelo princípio da “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”, protegendo-se a literatura e os espaços acadêmicos, vocacionados a pesquisas e conjecturas.
4. O regime jurídico da liberdade de comunicação sob o enfoque educacional
O constituinte de 1988 compreendeu a realidade da educação em autopoiesis[24] intrínseca aos direitos sociais fundamentais previstos no texto constitucional, dada sua implicação no desenvolvimento da pessoa humana. A educação é inerente ao convívio humano, daí sua inevitável interdisciplinaridade e mútua construção com outros setores da sociedade e do conhecimento. Percebeu o constituinte que a educação não pode ser vista de outra forma que, afirma Maturana, um projeto de país[25], devendo dialogar com todos os setores da sociedade.
Prevista difusamente nos capítulos do texto constitucional, a educação, na Carta Política, está relacionada à realidade da família (artigo 227 caput), da educação ambiental (artigo 225, IV), da comunicação social (artigo 221, I), mas principalmente na seção I, do Capítulo III, do Título da Ordem Social (artigo 205 ao 214).
Aos meios de comunicação, inseridos no capítulo da comunicação social, foi conferido um dever, direcionado ao conteúdo de sua programação e elevado à condição de princípio, qual seja, o dever da preferência à finalidade educativa, nos termos do artigo 221, I, da Constituição:
“Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:
I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;”
Tal como expressamente previsto no artigo 205 da Constituição Federal, a educação deve ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade. Isto é, não somente o Estado, mas também a sociedade civil deve promover a educação:
“Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”
Verifica-se, portanto, que o artigo 205 encontra conexão com aquele do artigo 221, I, haja vista que a Constituição de 1988 determina que também a sociedade, e nisto, por óbvio, incluem-se os agentes privados proprietários dos meios de comunicação, devem colaborar para a promoção da educação.
Percebe-se, portanto, que o direito fundamental à educação determina e confere uma finalidade especial, uma função social à liberdade de expressão e imprensa veiculada nos meios de comunicação. Não é por outra razão que, topologicamente, o capítulo foi denominado de Comunicação Social, inserido no Título VIII Da Ordem Social (e não no Título II no Capítulo I – Dos direitos e deveres individuais e coletivos), frisando o constituinte a natureza social dos meios de comunicação – Comunicação Social, não se dirigindo àquela meramente individual, propagandística, comercial, política, privada, elitista etc.
Dessa função social prevista no artigo 221, I, extrai-se que não podem as emissoras abertas de televisão ou rádio exercer liberdade de expressão ou imprensa de forma absoluta. Mesmo que veiculem programações com conteúdo lícito (que atenda aos que se entenda por “bons costumes”), referidos meios de comunicação social estão constitucionalmente determinados a finalidades sociais maiores, quais sejam, conferir, em sua programação, “preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”.
O Código Brasileiro de Telecomunicações – CBT, Lei nº 4117/62 em seu artigo 38, traz disposições específicas referentes a essas finalidades, no que concerne à exploração de serviços de radiodifusão. Interessante notar que em referido artigo há estipulação de percentagem mínima da programação apenas para os “programas informativos”, contudo a lei silencia quanto aos de cunho educativo ou cultural. De qualquer sorte, o artigo 67 da mesma lei prevê a possibilidade de se aplicar sanção de não renovação (“perempção”) da concessão ou permissão em caso de descumprimento das finalidades educacionais, culturais e morais, cabendo ao CONTEL – Conselho Nacional de Telecomunicações fiscalizá-lo (artigo 29, “af”). No que se refere à previsão do que seja abuso do exercício da liberdade de radiodifusão, o artigo 53 do CBT, completamente alterado no mesmo ano do Ato Institucional nº 5 de 1968 e de constitucionalidade duvidosa, demonstra maior preocupação em punir os opositores ao regime militar, que prever qualquer sanção ao descumprimento de finalidades educacionais ou culturais.
Estas são as leis que regulamentam a liberdade de imprensa em nosso país. Assim, verifica-se, principalmente depois da declaração de não recepção da antiga Lei de Imprensa nos autos da Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130, que não há no Brasil um marco regulatório dos meios de comunicação. Há somente um arcaico Código Brasileiro de Telecomunicações aos moldes do Estado de exceção da década de 1960 e a acima mencionada Lei nº 11.652/08, que regulamenta os serviços de radiodifusão do setor público.
5. A função educacional dos meios de comunicação: “quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja”?
O filósofo Adorno destaca o duplo significado da relação entre televisão e educação. O primeiro, propugnado por Becker, é que está diretamente a serviço da formação cultural, de fins pedagógicos. O segundo, propugnado pela sociologia da educação de Adorno, está a função deformativa operada pela televisão na consciência das pessoas. Mesmo não sendo contra a ideia em si de televisão, como alguns querem crer, entende que esse meio de comunicação em grande escala pode contribuir para divulgar ideologias e dirigir de maneira equivocada a consciência dos espectadores:
“Eu entendo televisão como ideologia simplesmente como o que pode ser verificado, sobretudo nas representações televisivas norte-americanas, cuja influência entre nós é grande, ou seja, a tentativa de incutir nas pessoas uma falsa consciência e um ocultamento da realidade, além de, como se costuma dizer tão bem, procurar-se impor às pessoas um conjunto de valores como se fossem dogmaticamente positivos, enquanto a formação a que nos referimos consistiria justamente em pensar problematicamente conceitos como estes que são assumidos meramente em sua positividade, possibilitando adquirir um juízo independente e autônomo a seu respeito. Além disto, contudo, existe ainda um caráter ideológico-formal da de um mundo que a mera forma de veículos de comunicação de massa desta ordem já implica como dado.(…)
Exatamente em que, por toda a parte onde a televisão aparentemente se aproxima das condições da vida moderna, porém ocultando os problemas mediante rearranjos e mudanças de acento, gera-se efetivamente uma falsa consciência.”[26]
Especificamente quanto ao público infanto-juvenil, verifica-se a necessidade de se repensar a relação entre a educação e os meios de comunicação, diante dos seguintes fatores observados por Ericson Meister Scorsim:
“O acesso à televisão não exige alfabetização completa, pois qualquer pessoa pode acessar seu conteúdo sem contar com uma educação formal. Daí a grande força persuasiva desse meio de comunicação sobre esse público. Quanto às crianças e aos adolescentes, o problema é que eles estão ainda em processo de constituição da personalidade, ocorrendo a aprendizagem mediante mecanismos psicológicos de imitação e identificação. Portanto, os personagens que aparecem nas cenas da televisão podem vir a ter impacto direto sobre o comportamento dos jovens. As pesquisas sobre a violência na televisão divergem entre si; umas demonstram que a televisão influencia a conduta do público infanto-juvenil, outras dizem que não há nexo de causalidade entre a cena violenta da televisão e o comportamento violento. A organizações internacionais, que tratam de promover a efetivação dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes, amparadas pela Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, propõem que os países adotem medidas educativas quanto à mídia. Quer dizer, pretendem promover a capacitação dos alunos para se relacionar de uma forma participativa com a mídia, bem como compreender as mensagens por ela veiculadas. Essa função de educação dos menores quanto à mídia é atribuída sobretudo à escola e à família e, em menor escala, aos próprios produtores de programas de televisão. A educação em mídia revela-se um importante fator de minimização dos efeitos nocivos sobre as crianças e adolescentes dos programas televisivos inadequados e de péssima qualidade, cujo conteúdo está voltado para cenas de degradação humana, sexo, violência, entre outros.” (Cf. HAMMABERG, 1999, p. 35-45; FEILITZEN, 1999, p. 49-61)[27]
Estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, em seu artigo 76, restrições ainda maiores à programação de emissoras de rádio e de televisão: (i) o dever de classificar essa programação, bem como (ii) a exclusividade de programas com as seguintes finalidades (também previstas na Constituição):
“Art. 76. As emissoras de rádio e televisão somente exibirão, no horário recomendado para o público infanto-juvenil, programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas.
Parágrafo único. Nenhum espetáculo será apresentado ou anunciado sem aviso de sua classificação, antes de sua transmissão, apresentação ou exibição.”
A sanção administrativa ao descumprimento de referidas restrições do artigo 76 do ECA está disposta no artigo 254 do mesmo diploma legal:
“Art. 254. Transmitir, através de rádio ou televisão, espetáculo em horário diverso do autorizado ou sem aviso de sua classificação:
Pena – multa de vinte a cem salários de referência; duplicada em caso de reincidência a autoridade judiciária poderá determinar a suspensão da programação da emissora por até dois dias.”
Está em trâmite no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2404[28], cujos votos caminham no sentido de permitir que as emissoras definam livremente sua programação, sendo obrigadas somente a divulgar a classificação indicativa realizada pelo governo federal. Segundo o Ministro relator, o trecho do artigo 254 do ECA que impede as emissoras de transmitir seus programas “em horário diverso do autorizado” pelo Estado é inconstitucional, porque “são as próprias emissoras que devem proceder ao enquadramento do horário de sua programação, e não o Estado. As próprias emissoras se autocontrolam” e eventuais abusos devem ser decididos “por quem de direito”. Ademais, entendeu que a classificação dos programas configuraria uma espécie de “censura classificatória”, uma vez que se dá por meio do controle administrativo, que, contudo, não encontra competência definida constitucionalmente.
A nosso sentir, contudo, a questão pode ganhar outro matiz em vista do texto da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – CADH[29], que detêm, segundo posição tomada pelo STF, status de supralegalidade – superior às leis e inferior à Constituição. Tratando dos Direitos Civis e Políticos, a CADH dispõe em seu artigo 13:
“Artigo 13 – Liberdade de pensamento e de expressão
1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha.
2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar:
a) o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;
b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.
3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.
4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2.
5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.”
Em que pese no artigo 13, os incisos 2 e 3 resguardarem a nível fundamental a liberdade de expressão, insuscetível de restrição a livre comunicação e circulação de ideias e opiniões, verifica-se a previsão de possibilidade excepcional de censura prévia no inciso 4 para a finalidade justamente de proteção moral da infância e da adolescência. É nesse sentido que é o teor do artigo 76 do ECA, combinado com o artigo 254 do mesmo estatuto:
“Art. 76. As emissoras de rádio e televisão somente exibirão, no horário recomendado para o público infanto-juvenil, programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas.
Parágrafo único. Nenhum espetáculo será apresentado ou anunciado sem aviso de sua classificação, antes de sua transmissão, apresentação ou exibição.
Art. 254. Transmitir, através de rádio ou televisão, espetáculo em horário diverso do autorizado ou sem aviso de sua classificação:
Pena – multa de vinte a cem salários de referência; duplicada em caso de reincidência a autoridade judiciária poderá determinar a suspensão da programação da emissora por até dois dias.”
Ademais, não caberia à lei, por ser geral e abstrata, descer a minúcias de quais sejam os horários mais adequados para a classificação, porque se trata de conteúdo a ser definido por estudiosos das áreas do conhecimento das comunicações, da educação, da psicologia etc. Ainda que se entenda que a portaria do Ministério da Justiça fosse meramente indicativa e que o Poder Público não possa autorizar e sim meramente recomendar os horários apropriados, incumbiria ao Judiciário, antes, sopesar os valores em questão e verificar se a norma atende à proteção dos interesses da criança e do adolescente, que é o princípio que deve prevalecer no conflito com a liberdade de expressão classificatória de programas televisivos, diante da expressa previsão de censura prévia (“espetáculos públicos”) do inciso 4 da CADH de 1969.
O princípio protetivo da criança e do adolescente é resguardado na classificação da programação do rádio e da televisão, que está diretamente relacionada a um escopo educativo e pedagógico, qual seja, o de restringir os programas que não se adequem à educação da criança e do adolescente. Nesse sentido destaca-se o artigo 3º da Portaria nº 1.220/07 do Ministério da Justiça, que regulamenta o procedimento administrativo de classificação:
“A classificação indicativa possui natureza informativa e pedagógica, voltada para a promoção dos interesses de crianças e adolescentes, devendo ser exercida de forma democrática, possibilitando que todos os destinatários da recomendação possam participar do processo, e de modo objetivo, ensejando que a contradição de interesses e argumentos promovam a correção e o controle social dos atos praticados.” (grifos nossos)
A questão merece ser colocada nos termos da finalidade educativa e formação ética dos telespectadores, porque a Constituição Federal prevê, em seu artigo 221, I, o princípio que estabelece que “a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão” a “preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”.
A necessidade de um marco regulatório estabeleça o atendimento a essas finalidades encontra obstáculo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. A Ação por Descumprimento de Preceito fundamental nº 130 vislumbrou a liberdade de imprensa em caráter quase que absoluto, ao propugnar o Ministro relator Ayres Britto que “quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja”:
“Tirante, unicamente, as restrições que a Lei Fundamental de 1988 prevê para o “estado de sítio” (art. 139), o Poder Público somente pode dispor sobre matérias lateral ou reflexamente de imprensa, respeitada sempre a ideia-força de que quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja. Logo, não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas.” (grifos nossos)
Não é só. Defendeu o Ministro Britto e o pleno do Supremo acolheu o entendimento de que a Constituição somente permitiu regulação e conformação por meio do legislativo nas seguintes hipóteses:
“As matérias reflexamente de imprensa, suscetíveis, portanto, de conformação legislativa, são as indicadas pela própria Constituição, tais como: direitos de resposta e de indenização, proporcionais ao agravo; proteção do sigilo da fonte (“quando necessário ao exercício profissional”); responsabilidade penal por calúnia, injúria e difamação; diversões e espetáculos públicos; estabelecimento dos “meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente” (inciso II do § 3º do art. 220 da CF); independência e proteção remuneratória dos profissionais de imprensa como elementos de sua própria qualificação técnica (inciso XIII do art. 5º); participação do capital estrangeiro nas empresas de comunicação social (§ 4º do art. 222 da CF); composição e funcionamento do Conselho de Comunicação Social (art. 224 da Constituição).”
O que dá a entender o acórdão da Ação por Descumprimento de Preceito fundamental nº 130 é que restariam ao marco regulatório dos meios de comunicação apenas os seguintes meios repressivos: “meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221”.
Seriam os meios repressivos, portanto, a única saída para a garantia do princípio previsto no artigo 221, I, qual seja, a “preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”? Não é o que entendemos. Pois é preciso fundar um marco que regulamente por meio de lei os meios de comunicação brasileiros. Mas não um marco restrinja ou classifique as diversas formas de liberdade de comunicação. E sim um marco regulatório das comunicações que, primordialmente, induza, incentive a iniciativa privada a formular programação que cumpra prioritariamente sua função educativa, artística, informativa e cultural.
Os meios de regulamentação à liberdade de expressão não podem se restringir à repressão. Nem tudo que regulamenta os meios de comunicação é censura. Talvez esta seja a maior contribuição a ser trazida para os meios de comunicação: que a liberdade de expressão (e isso vale para qualquer esfera sancionatória estatal) deve ter por fundamento primordial a educação, como meio preventivo de mazelas sociais e construtor do futuro, e não apenas repressivo, voltado para condenar os fatos – passado -, retrógrado.
Ao Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Ação por Descumprimento de Preceito fundamental nº 130, não era interessante prolatar uma decisão que restrinja a programação das grandes emissoras de comunicação, muito menos verificar que hoje há quase que um oligopólio nos meios de comunicação, que confere preferência aos interesses de mercado em detrimento do interesse público. A totalidade das emissoras são de propriedade de pouquíssimos grupos econômicos e a população, diante dessa situação, não tem qualquer facilidade para exercer sua liberdade de comunicação de forma local e independente.
Fato é que, enquanto houver dificuldades ou impedimentos econômicos, culturais, sociais, técnicos e políticos para o exercício deste direito, restará aos Poderes Executivo e Legislativo desenvolver ações no sentido de garantir que o maior número de cidadãos possa produzir, disseminar e acessar informações e cultura, porque assim os cidadãos formam sua própria educação crítica e compreendem os interesses que estão por detrás das grandes emissoras de rádio e televisão.
6. Conclusão
Considerando que a liberdade sem direitos sociais é a liberdade do mais forte, a liberdade de expressão sem educação significa a negação da expressão, exercício de ser dominado.
É preciso fundar uma nova concepção de liberdade de imprensa no Brasil, que possibilite que setores menos favorecidos da população construírem sua própria “imprensa”, através de rádios ou programas de televisão comunitários ou outros, em cumprimento aos ditames constitucionais, que determinam o estímulo à produção de programação independente (artigo 221, III).
O direito fundamental à educação determina uma função social à liberdade de expressão e imprensa, porque os meios de comunicação social estão constitucionalmente determinados a finalidades sociais maiores, quais sejam, conferir, em sua programação, “preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”. Por isso, não podem as emissoras abertas de televisão ou rádio exercer liberdade de expressão ou imprensa de forma absoluta. Afirmar que “quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja” é desconstruir essa finalidade constitucional aos meios de comunicação social.
É preciso fundar um marco que regulamente por meio de lei os meios de comunicação brasileiros. Mas não um marco restrinja ou classifique as diversas formas de liberdade de comunicação. E sim um marco regulatório das comunicações que induza, incentive a iniciativa privada a formular programação que cumpra prioritariamente sua função educativa, artística, informativa e cultural.
Enquanto esse marco não é instituído, incumbe aos Poderes Executivo e Legislativo desenvolver políticas públicas no sentido de garantir que o maior número de cidadãos possa produzir, disseminar e acessar informações e cultura, porque assim haverá a simbiose entre educação e a liberdade de expressão.
Referências:
Informações Sobre o Autor
Roberto del Conte Viecelli
Advogado e mestrando em direito à educação pelo Departamento Direito do Estado da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco da Universidade de São Paulo – USP