Resumo: O presente estudo aborda, sistemática e objetivamente, a natureza jurídica da responsabilidade civil no contexto do ordenamento pátrio, notadamente à luz do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor, trazendo à baila um esboço histórico de tal instituto, assim como, analisando as peculiaridades inerentes às mais notáveis teorias da reparação. Outrossim, encarrega-se de trasladar tais teses à responsabilização dos profissionais da medicina, dando enfoque especial à obrigação de meio, aplicável ao médico em geral, e, igualmente, à obrigação de resultado, destinada aos profissionais estéticos. Partindo dessa idéia, procedeu-se ao caso específico da cirurgia plástica com fins embelezadores, explorando os fundamentos dessa discriminação no campo da responsabilidade e, ademais, expondo as razões que justificam seu hipotético enquadramento no campo das obrigações de meio, defendendo-se a equiparação dessa especialidade aos demais ramos da medicina, de forma a se evitar qualquer tratamento discriminatório ou prejudicial ao médico atuante.
Palavras-chaves: responsabilidade civil; cirurgia plástica; fins estéticos; responsabilidade subjetiva; obrigação de meio.
Sumário: Introdução; 1. Responsabilidade civil: abordagem geral; 1.1. Conceito; 1.2. Responsabilidade subjetiva e objetiva; 1.3. Obrigações de meio e de resultado; 2. Responsabilidade médica; 2.1. Análise à luz do Código de Defesa do Consumidor; 2.2. A impropriedade da Cirurgia Plástica como obrigação de resultado e seu enquadramento no rol dos deveres de meio; Conclusão; Referências.
Introdução
Hodiernamente, a responsabilidade civil é um dos temas do Direito Civil de maiores importância e repercussão no universo extra-jurídico, oferecendo ao ser pensante a proteção mínima e necessária contra os danos e fatores de perecimento ocasionados por condutas culposas de terceiros, consagrando-se, assim, como um efetivo instrumento garantidor dos bens materiais e imateriais afetados pertencentes a um indivíduo.
Destarte, as normas protetivas referentes a esta matéria encontram-se permeadas nas mais variadas searas do conhecimento humano, regulando atividades que variam desde as relações extracontratuais às de cunho consumeristas, aspecto este que confere ao assunto uma extensão e grau de complexidade enormes, tornando imprescindível um tratamento exaustivo tanto pelos doutrinadores, como também, pelos incontáveis diplomas legais, entre eles, o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor.
Outrossim, há de se mencionar que, quando do estudo desse instrumento, uma peculiaridade bastante singular e curiosa emerge no concernente à responsabilidade civil na relação de consumo médico-paciente. Com base neste ponto, deve se destacar a circunstância específica e deveras delicada do cirurgião plástico, profissional este que, consoante doutrina e jurisprudência dominantes, é tratado aparte dos demais médicos, sendo regido por uma responsabilidade bastante objetiva, o que é considerado um fator discriminante dentro da própria classe médica.
Ademais, impende afirmar que a presunção de culpa do cirurgião plástico faz deste a parte mais vulnerável da ligação médico-paciente, circunstância esta que vai de encontro à hipossuficiência do consumidor na relação consumerista ditada pelo Código de Defesa do Consumidor e que se faz alvo de grandes críticas e fundamento de um novo pensar jurídico, ora baseado na humanização do profissional da medicina estética e na assunção de risco do paciente no momento em que consentiu com a intervenção cirúrgica.
Dessa forma, cumpre afirmar que este artigo focar-se-á na análise da responsabilidade contratual inerente à cirurgia plástica, diferenciando e traçando paralelos entre a intervenção cirúrgica estética e as demais reparadoras, além de expor divergências doutrinárias e entendimentos jurisprudenciais acerca da atuação médica e da configuração da relação médico-paciente como relação de consumo, verificando o cabimento das normas do CDC em polêmicos casos concretos.
Porém, para que o estudo em questão seja de fácil entendimento para o leitor alheio ao universo jurídico, é mister se iniciar com uma abordagem bem genérica sobre os tipos de responsabilidade civil, para somente após, tratar-se da responsabilidade médica propriamente dita e, posteriormente, aprofundar tal visão adentrando nas especificidades da cirurgia estética, modalidade esta que deve ser revista e tratada de forma mais subjetiva pelo direito, abrindo-se vistas a um julgamento mais humano, eqüitativo e ligado ao atuar médico no geral.
Com isso, deseja-se que o assunto seja de utilidade maior ao público, pondo este a par do atual tratamento conferido pelo direito à medicina, atividade profissional que busca a proteção da vida, o bem maior, bem como, conscientizando a população acerca de uma concepção recente e inovadora, no entanto, ainda frágil, cuja tendência maior é igualar as intervenções com fins embelezadores às corretivas ou reparadoras, propiciando ao cirurgião plástico uma maior segurança no desempenho de suas atividades.
1. Responsabilidade civil: abordagem geral
1.1. Conceito
O verbete responsabilidade deriva da raiz latina spondeo, radical este que vinculava o devedor, solenemente, nos contratos verbais do Direito Romano. Origina-se, mais especificamente, do verbo respondere, vocábulo voltado à idéia de segurança, garantia de restituição ou compensação de um bem sacrificado. Atualmente, responsabilidade possui um significado bastante similar, podendo ser conceituada como a “capacidade de entendimento ético-jurídico e determinação volitiva adequada, que constitui pressuposto penal necessário da punibilidade”[1].
Destarte, trasladando tais concepções para o mundo jurídico, pode-se facilmente criar uma visão de responsabilidade civil, ora baseada no dever inerente ao indivíduo causador do dano de recompor um prejuízo, restabelecendo o statu quo ante e recompondo o equilíbrio e harmonia anteriores à conduta culposa deste. Neste mesmo prisma, concisas se mostram as palavras de Savatier[2] quando aduz que responsabilidade civil é “a obrigação que pode incumbir uma pessoa a reparar o prejuízo causado a outra, por fato próprio, ou por fato de pessoas ou coisas que dela dependam”.
Já com base na legislação ordinária em vigor, mais especificamente, com escopo no Código Civil de 2002, pode-se dizer que tal instrumento reconstituidor da ordem consiste em um dever jurídico sucessivo que surge, portanto, da violação de um dever jurídico principal ou originário, determinando a reparação do dano, inteligência que se extrai dos artigos 186 e 927 da codificação retro:
“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”
Ainda com base no preceito 186 supracitado, urge salientar que, para que reste incontroverso o dever de indenizar, é essencial que haja a comprovação de alguns requisitos. São eles: A conduta do agente, podendo ser desmembrada em ação ou omissão, além de poder ser praticada pelo próprio indivíduo ou decorrente de alguém ou de algo que dele dependa; o dano ou prejuízo, abrangendo o prejuízo patrimonial e/ou extrapatrimonial efetivo e provado in casu concrecto, sob pena de se configurar apenas uma responsabilidade moral, a qual pressupõe o livre-arbítrio e a consciência da obrigação, mas que não importam sanções que ultrapassam o ser e sua consciência; a relação de causa e efeito, devendo-se ficar atento aqui às excludentes de responsabilidade, entre elas: as culpas exclusiva da vítima, concorrente dos contratantes e comum, o fato exclusivo de terceiro, o caso fortuito, a força maior, a cláusula de não indenizar. Ademais, no que tange à responsabilidade subjetiva tratada infra, há que se falar ainda em um quarto pressuposto, qual seja, a comprovação do dolo ou da culpa, esta, a falta de diligência, aquele, a vontade de cometer um ilícito.
Por último, antes de se aprofundar o estudo da responsabilidade civil propriamente dita, importante se mostra diferenciar, ainda, responsabilidade de obrigação, extinguindo quaisquer equívocos e confusões que possam prejudicar o posterior entendimento. Diante disso, cumpre afirmar que a responsabilidade é considerada, via de regra, uma conseqüência decorrente do inadimplemento ou do cumprimento irregular de uma obrigação, sendo, em outras palavras, a conseqüência jurídica patrimonial do descumprimento da obrigação. No entanto, há que se memorizar que nem sempre estas duas modalidades são correlatas, como é o caso, por exemplo, das dívidas prescritas e decorrentes de jogos, onde há apenas obrigações sem responsabilidades; e das conjecturas de fiança, circunstância em que a responsabilidade é do fiador e a obrigação é alheia e pertencente a terceiro.
1.2. Responsabilidade subjetiva e objetiva
Analisando-se agora a evolução da reparação do dano no ordenamento jurídico brasileiro, cumpre trazer à baila uma discussão que, por muito tempo, foi debatida e questionada pelos maiores juristas, possuindo como alvo principal a natureza jurídica da sanção imposta numa ação de responsabilidade civil. Segundo tal, a doutrina ficou deveras dividida, visto que dois grandes grupos se formaram: um defendendo a indenização como um castigo pelo comportamento ilícito (natureza punitiva); enquanto o outro buscava na sanção uma restituição do prejuízo da vítima (essência restitutiva).
Para aqueles que pugnavam pelo caráter punitivo, a responsabilidade seria mais uma espécie de punição ao autor do prejuízo, imprescindindo, portanto, para a configuração da obrigação de ressarcimento, a constatação da culpa, motivo pelo qual predominou, por séculos, a responsabilidade subjetiva. Outrossim, é salutar acrescentar que, para que alguém possa ser responsabilizado e obrigado a reparar um dano, segundo a teoria subjetiva em estudo, é necessário que o mesmo tenha capacidade de discernimento, uma vez que “aquele que não pode querer e entender não incorre em culpa e, ipso facto, não pratica ato ilícito”[3]. Logo, culpa pressupõe imputabilidade.
Hodiernamente, o Direito tem modificado essa visão enfatizando o conserto dos danos à vítima e passando a defender a idéia de que uma gama maior de prejuízos deve ser abrangida pelo instituto da responsabilidade, admitindo-se, em alguns casos, a responsabilização por danos decorrentes não só da culpa, mas também, do risco[4] e perigo caracterizadores de determinadas atividades. Tal fato consagra a responsabilidade objetiva, para a qual a indenização deve ser integral e completa (restitutio in integrum), de modo que, mesmo que a culpa tenha sido mínima e o dano catastrófico, o agente deverá reparar o prejuízo por completo. Em outras palavras, para se remediar a situação da vítima, é possível que venha a arruinar o agente, característica que oferece maiores garantia e segurança às possíveis vítimas de prejuízos. Assim, consoante tal concepção “Quem cria os riscos deve responder pelos eventuais danos aos usuários ou consumidores”[5].
Nesta mesma visão, Clóvis Beviláqua[6] versava que:
"[…] o Direito Penal vê, por trás do crime, o criminoso e o considera um ente anti-social, ao passo que o Direito Civil vê, por trás do ato ilícito, não simplesmente o agente, mas principalmente a vítima, e vem em socorro dela, a fim de, tanto quanto lhe for permitido, restaurar seu direito violado, constituindo a eurritmia social refletida no equilíbrio dos patrimônios e das relações pessoais, que se formam no círculo do direito privado".
Com esteio no exposto, facilmente se conclui que a teoria subjetiva se baseia na idéia de dolo ou culpa stricto sensu (negligência, imprudência ou imperícia)[7], enquanto que, na outra vertente, se localiza o pensamento objetivo, raciocínio que prescinde de culpa e se satisfaz com, apenas, a comprovação da conduta, do dano e do nexo causal, abrangendo, inclusive, a teoria dos riscos, segundo a qual toda pessoa que exerce atividade tem o risco de dano a terceiros, devendo repará-los, mesmo quando agira sem culpa alguma.
Destarte, em análise ao Código Civil, pode-se depreender que a regra geral por ele adotada é a da responsabilidade subjetiva ou fundada em culpa, conforme se verifica no artigo 186. Todavia, quando esta for ineficaz no atendimento das imposições do progresso, cabe ao legislador fixar especificadamente os casos regidos pela responsabilidade objetiva, criando um sistema em que as duas teorias de reparação do dano se conjugam e dinamizam, sabedoria esta compartilhada, inclusive, por Miguel Reale[8], em sua obra “Estudos de Filosofia e Ciência do Direito”.
1.3. Obrigações de meio e de resultado
Dentro da responsabilidade subjetiva, pode-se inferir a concepção de obrigação de meio e de resultado, referindo-se ao tipo de culpa envolvida em cada situação concreta. Tal exposição se mostra de grande valor para o estudo em vigor, uma vez que se refere não só a questões processuais, como é o caso, por exemplo, do onus probandi, mas principalmente, por estar intimamente ligada à distinção entre responsabilidade civil do médico lato sensu e a concernente ao cirurgião estético.
Assim, impende discorrer que o dever de meio é aquele em que o contratado não se compromete com um objetivo específico e determinado, devendo, contudo, agir com diligência e prudência em todo o decorrer do procedimento. Urge acrescentar que “a frustração, porém, do objetivo visado não configura inadimplemento, nem, obviamente, enseja dever de indenizar o dano suportado pelo outro contratante. Somente haverá inadimplemento, com seus consectários jurídicos, quando a atividade devida for mal desempenhada”[9]. Tal é o caso da atuação médica em geral, onde, não podendo prever o resultado ou induzir a cura, o médico busca a melhor solução, não podendo ser obrigado a reparar o dano sem que seja provada a sua culpa. Nessa circunstância, vale destacar que o dever de provar cabe ao contratante[10].
Em prisma oposto situa a obrigação de fim ou resultado, defendendo que o profissional deve responder pelo resultado alcançado, sendo cabível a sua responsabilização mesmo quando, agindo com toda atenção e cuidado, não atinge integralmente o resultado prometido, inteligência que surge em decorrência da presunção de culpa do profissional, este, titular do onus probandi. No mais, conforme ordenamento pátrio, depreende-se que essa é a regra regente do cirurgião plástico, diferenciando-o dos demais profissionais da seara médica. Assim corrobora Carlos Roberto Gonçalves[11]:
"[…] os pacientes, na maioria dos casos de cirurgia estética, não se encontram doentes, mas pretendem corrigir um defeito, um problema estético.
Interessa-lhes, precipuamente, o resultado. Se o cliente fica com aspecto pior, após a cirurgia, não se alcançando o resultado que constituía a própria razão de ser do contrato, cabe-lhe o direito à pretensão indenizatória. Da cirurgia mal-sucedida surge a obrigação indenizatória pelo resultado não alcançado. A indenização abrange, geralmente, todas as despesas efetuadas, danos morais em razão do prejuízo estético, bem como verba para tratamentos e novas cirurgias".
2. Responsabilidade médica
Tendo sido concluído um breve estudo acerca da essência do instituto da reparação civil, pode-se ora proceder a um novo nível de pesquisa, analisando-se a matéria com base em critérios mais específicos e aprofundados, fatores que permitem trazer à baila a questão da indenização na atividade médica, discussão que se procrastina, há muito, entre doutrinadores e julgados.
Assim, insta afirmar que, com base no já exposto, pode-se classificar a relação médico-paciente como sendo um contrato inominado e atípico, além de configurar uma espécie contratual sui generis, haja vista seu enquadramento como um serviço intelectual com características especiais, entre elas a aleatoriedade decorrente da impossibilidade de se prever o resultado e quantificar seu objetivo.
Todavia, para a abordagem da responsabilidade civil médica, é imprescindível a mentalidade de que todo procedimento médico tem o potencial de trazer uma complicação, por mais simples que aquele seja, vez que cada indivíduo é um ser único, reagindo de formas diferentes a cada estímulo e acontecimento do meio. Em decorrência disso é que se faz pressuposto da responsabilidade a análise da culpa, atendo-se a reparação civil a apenas os danos causados de maneira reprovável e consagrando-se, com isso, a responsabilidade subjetiva, como consta do artigo 14, § 4° do CDC[12].
Em que pese a teoria da culpa vigorar em tal ramo do conhecimento, deve-se ficar atento à comprovação de tal conduta culposa, pois, a depender do caso, pode se configurar um dever de meio ou de resultado, aspectos que repercutem em todo o processo reparatório. Assim, nos casos de intervenções estéticas, a culpa se presume a partir de um resultado não desejado, acontecimento que caracteriza o dever de resultado; em contrapartida, uma vez que o profissional da medicina não possa prometer a cura de uma doença ou o alcance de um determinado resultado e sua culpa residir numa atuação imprudente e ausente de diligência, a obrigação de meio restará configurada.
Os ensinamentos da insigne doutora Belinda Pereira da Cunha[13] trazem à lume coadunação com o supra exposto:
“Com a verificação dos componentes da culpa – negligência, imprudência e imperícia – o profissional liberal terá a seu favor a apreciação da situação em que, tendo agido diligentemente, sem a prática de qualquer ato ou adoção de conduta-meio que pudesse comprometer o resultado de seu trabalho, invariavelmente sucedeu o defeito. De outro lado, se presente qualquer dos componentes que cooperam para a culpa do fornecedor profissional liberal, como tal deverá responder pelos danos causados ao consumidor”.
A partir de tais considerações acerca da teoria da culpa, pode-se depreender que nem todos os danos decorrentes do atuar médico implicam no compromisso de indenizar do médico, restando livres de tais obrigações as conjecturas alheias à esfera de culpabilidade do médico, como bem explica Neri Tadeu Câmara Souza[14].
Entre elas, importante se frisar: o erro profissional, haja vista ser oriundo da incerteza da arte médica e objeto de controvérsias científicas, o que justifica a falibilidade médica; o erro de diagnóstico, nos casos de equívocos escusáveis; a lesão iatrogênica, dano que sobrevém de uma atuação médica escorreita, precisa e permeada de boas intenções; as seqüelas sobrevindas de procedimentos necessários; e as complicações ou intercorrências médicas, vez que derivam de razões adversas, quais sejam, a baixa resistência imunológica e a reação do organismo.
2.1. Responsabilidade médica à luz do Código de Defesa do Consumidor
A Lei nº 8.078/90 institucionaliza o Código de Defesa do Consumidor, dando um grande enfoque constitucional na relação de consumo e conferindo ao consumidor, parte hipossuficiente e mais vulnerável, uma igualdade jurídica perante a empresa ou pólo comercial.
Neste mesmo prisma, a codificação referida conceitua consumidor, em seu artigo 2º, como sendo “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo".
Destarte, é mister ressaltar que, ao declarar que consumidor é aquele que utiliza serviços, o código incluiu a atividade médica no rol das relações de consumo[15], adotando a teoria da responsabilidade subjetiva, conferindo ao paciente o status de parte hipossuficente e fazendo da relação médico-paciente um objeto a ser tutelado pela lei in questo, facilitando, dessa maneira, a solução dos litígios relacionados.
A esse respeito, Venosa[16] discorre que "a lei do consumidor veio, portanto, facilitar sobremaneira os reclamos de maus serviços médicos, matéria que ainda não ganhou a dimensão esperada nos julgados justamente porque o acesso à Justiça era sumamente dificultado pela manutenção dos princípios tradicionais da responsabilidade civil subjetiva".
Um outro ponto de extrema importância abarcado pelo CDC e que se mostra em profunda associação com o tema da reparação médica é o instituto da inversão do ônus da prova[17], método que confere ao consumidor hipossuficiente uma proteção jurídica garantidora da paridade de armas.
Dessa forma, é salutar afirmar que, na atividade médica, tal tratamento protetivo se mostra essencial em face da comprovação da culpa pelo paciente ser deveras difícil, sendo, por vezes impossível, haja vista a medicina envolver conhecimentos muito específicos. Com isso, tendo em vista a complexidade desta e o desconhecimento técnico-científico do paciente, a prova pela parte autora se mostra por demais obstaculada.
Acorde o cabimento de tal instituto na responsabilidade médica preconiza a jurisprudência:
“Indenização – Cirurgia plástica – Obrigação de resultado – Cicatrizes que afetaram a paciente responsabilidade do médico cirurgião e da clínica de cirurgia plástica de sua propriedade – Inversão do ônus da prova – Precedentes jurisprudenciais – Indenização por danos materiais consistente no valor de cirurgia reparatória e danos morais fixados em 50 (cinqüenta) salários mínimos – Sentença reformada – Apelo conhecido e provido – Cumpre ao médico provar que o resultado contratado e pretendido foi alcançado, nos limites da ciência médica atual, o que não foi provado; Inaplicável ao caso o disposto o disposto no art. 333, I, do CPC, pois a autora é hipossuficiente na relação médico paciente. Quem detém o conhecimento e, supostamente, a perícia neste caso é o profissional médico contratado, pelo que é de se aplicar o disposto no art. 6, VIII, do Código de Defesa do Consumidor – Em se tratando de cirurgia plástica o que importa é o resultado e que se este poderia ser alterado por questões outras que independessem da atuação do médico, como é o caso da cicatrização, o paciente deveria ter sido amplamente informado das chances de superveniência de resultado indesejado, sendo que ao médico é quem deveria provar que se desincumbiu deste dever” (TAPR – Ap. Cível 156986600, 28-8-2000, 6º Câmara Cível – Rel. Anny Mary Kuss).
Porém, para que se torne possível a decretação da inversão do ônus da prova, é necessário que o magistrado comprove, no caso concreto, a verossimilhança dos fatos alegados e a hipossuficiência da parte, recorrendo a tal inversão somente em casos extraordinários, pois, do contrário, tal fato desmedido comprometeria o direito material.
Assim, impende revisar que a inversão do dever de provar é uma ultima ratio, sendo aplicada apenas subsidiariamente. Em outras palavras, pode-se explicar tal assertiva afirmando que, muitas vezes, para se esclarecer alguns fatos não é necessário recorrer ao método retro, tendo em vista a prova poder ser alcançada de modos mais simples e acessíveis. Um bom exemplo disso emerge da conjuntura seguinte: Na cirurgia plástica estética, vários fatores aleatórios podem levar a um resultado diverso do pretendido, como cicatrizes hipertróficas, assimetrias, necrose de tecidos, dentre outras complicações, sem que o cirurgião se desviasse da melhor técnica; entretanto, isso não seria suficiente para modificar o encargo probatório, vez que, diante de um resultado gerador de uma cicatriz queloideana, p. ex., uma simples perícia requerida pelo autor ou determinada ex officio pelo juiz se mostraria hábil a demonstrar se a conduta do cirurgião aconteceu dentro da normalidade. Do contrário, caso fosse decretada a inversão do onus probandi, restaria configurado um excesso de protecionismo ao paciente, acarretando, indevidamente, a presunção de culpa do cirurgião.
Ainda à luz dessa norma em análise, urge tratar, ora, da Cláusula de Não Indenizar, a qual, tratada acima como sendo uma excludente de culpabilidade, não é cabível nos casos de reparação civil por dano médico. Neste sentido, é mister enfatizar que tal incompatibilidade se dá unicamente pela circunstância de a atuação médica implicar numa relação consumerista, sendo-lhe aplicada, portanto, o constante dos artigos[18] 25 e 51 da legislação mencionada.
2.2. A impropriedade da Cirurgia Plástica como obrigação de resultado e seu enquadramento no rol dos deveres de meio
Pressupõe a análise do presente tópico, a exposição da classificação doutrinária da cirurgia plástica[19], desmembrando-a em: cirurgias reparadoras ou terapêuticas e intervenções estéticas ou embelezadoras. A primeiras espécie objetiva “corrigir deformidade física congênita ou traumática, que nasceu com a pessoa ou surgiu no curso da vida”[20] ou, em outras palavras, é aquela que “se destina a corrigir uma falha orgânica ou funcional provocada por fatores exógenos, ainda que com origem endógena”[21], cabendo ao cirurgião uma obrigações de meio. Por sua vez, a modalidade estética é voltada para melhorar a aparência ou atenuar as imperfeições do corpo, destacando-se o elemento vaidade, espécie esta em que a responsabilidade médica é de resultado.
Destarte, para justificar a distinção existente entre cirurgia plástica embelezadora e os demais procedimentos cirúrgicos corretivos, os juristas se valem da falsa concepção de que, ao contrário das demais intervenções, o procedimento estético não mexe com pessoas enfermas, apenas buscando priorizar as feições externas. Entretanto, isso não é o que deve acontecer, tendo em vista que, também em inúmeras cirurgias e intervenções reparadoras há, além do intento de sanar imperfeições, o desejo de tornar mais agradável a aparência, como é o exemplo de tratamentos dermatológicos.
Levando em consideração tal assertiva, atualmente, vem surgindo uma nova corrente doutrinária que pugna pela responsabilidade de meio das operações que visam precipuamente ao embelezamento do paciente, asseverando principalmente que é impossível o médico pré-determinar o resultado de um procedimento cirúrgico e que, em praticamente todas as operações, há o mesmo risco envolvido, a mesma álea e o idêntico potencial de aparecimento de imprevistos.
Além disso, tal corrente convence ainda mais quando expõe que a idéia de que a cirurgia plástica tem caráter meramente embelezador, sem finalidades terapêuticas foi ultrapassada pelo conceito de que a saúde engloba não só o bem estar físico, mas também a incolumidade psíquica e social abrangidas pelo aspecto da beleza, não havendo dúvidas, ora, sobre a capacidade curativa da plástica em contraposição à antiga e obsoleta visão acerca de uma finalidade unicamente estética.
Neste sentido discorrem, com muita propriedade, Antônio Ferreira Couto Filho e Alex Pereira Souza[22]:
"Hodiernamente, esta questão de outrora se encontra pacificada, pois é dever da medicina zelar pela saúde física e mental dos pacientes. Nesta marcha, não se pode olvidar que mesmo alguém aparentemente perfeito, que se enquadre nos padrões normais de beleza, e que deseje realizar certa cirurgia para modificar, por exemplo, a mama, tornando-a menor, não esteja, em algum nível, sofrendo de um mal, ainda que em órbita mental. Resulta que esse mal vai desde a angústia e a sofreguidão, por achar-se com uma mama feia, até o profundo estado de depressão.
Portanto, não há de se raciocinar, em tempos atuais, que a cirurgia estética se consubstancia em intervenção desnecessária, em cirurgia de luxo, que não possui licitude. Ao contrário, é uma especialidade médica como outra qualquer, onde as obrigações do cirurgião são iguais às dos demais médicos de diferentes especialidades".
Ainda, há de se destacar o discurso brilhante de um dos maiores expoentes do Direito Médico nacional, Miguel Kfouri Neto[23]:
"[…] não há dúvida que a cirurgia plástica integra-se normalmente ao universo do tratamento médico e não deve ser considerada uma ‘cirurgia de luxo’ ou mero capricho de quem a ela se submete. Dificilmente um paciente busca a cirurgia estética com absoluta leviandade e sem real necessidade, ao menos de ordem psíquica. Para ele, a solução dessa imperfeição física assume um significado relevante no âmbito de sua psique – daí se poder falar, ainda que em termos brandos, como afirma Avecone – de
‘Estado Patológico’ […] Em recente publicação, Luís O. Andorno expõe as seguintes reflexões: ‘Se bem que tenhamos participado durante algum tempo deste critério de ubicar a cirurgia plástica no campo das obrigações de resultado, um exame meditado e profundo da questão levou-nos à conclusão de que resulta mais adequado não fazer distinções a respeito, ubicando também a cirurgia estética no âmbito das obrigações de meios, isto é, no campo das obrigações gerais de prudência e diligência’.
Para o jurista platino, o comportamento da pele humana, de fundamental importância na cirurgia plástica, revela-se imprevisível em numerosos casos. Acrescenta que toda intervenção sobre o corpo humano é aleatória. Anota, por fim, que a doutrina e a jurisprudência francesas têm se orientado nesse sentido.
E arremata: ‘A nosso juízo, o cirurgião plástico não está obrigado a obter um resultado satisfatório para o cliente, mas somente a empregar todas as técnicas e meios adequados, conforme o estado atual da ciência, para o melhor resultado da intervenção solicitada pelo paciente”.
Neste mesmo prisma, o voto proferido pelo Min. Carlos Alberto Menezes Direito[24], no Recurso Especial 81.101-PR, julgado em 31.05.1999 (RSTJ 119/290).
Ademais, cumpre acrescentar outras razões que, apesar de serem assuntos de menor repercussão no direito, apenas somam para a adoção da tese que defende o tratamento da medicina estética como uma obrigação de meio, equiparando-a às demais especialidades médicas.
Uma dessas justificativas se origina a partir da distinção entre cirurgia plástica estética e reparadora apresentada supra. Isso se dá, uma vez que, na prática, tal diferenciação se encontra permeada de vícios surgidos em virtude da inexistência de critérios lógicos para a aferição de tal divisão, fazendo com que, reiteradamente, cirurgias aparentemente embelezadoras possam também ser classificadas como reparadoras, como é o caso, p. ex., da correção de lábios leporinos. Destarte, deve-se salientar que tal confusão aparentemente inútil pode gerar conseqüências catastróficas se trasladadas ao campo da responsabilidade civil de tal profissional, tornando possível que este, inclusive, venha a ser condenado indevidamente a indenizar um paciente, o que contraria totalmente o ideal de justiça.
Outrossim, cumpre trazer à tona a visão de que o fato de o paciente ter consentido e buscado a cirurgia de aperfeiçoamento estético implica na sua automática assunção dos riscos inerentes ao procedimento e conhecidos por um ser humano de intelecto mediano. O que não pode ocorrer, entretanto, é se ignorar que o paciente tenha consciência dos riscos inerentes à intervenção cirúrgica, em detrimento da responsabilidade do médico, a qual será, na situação em comento, completamente objetiva. Em outras palavras, o assentimento e o comportamento do paciente devem ser mais que atenuantes, excludentes.
Igualmente, pugna pela incompatibilidade entre a atuação do cirurgião estético e o seu dever de sucesso o fato de que, muitas vezes, o paciente se exime de seus deveres e cuidados pós-operatórios e pratica extravagâncias, o que escapa do controle do médico e, em virtude de descuido único do tomador de serviços, o resultado positivo do escorreito atuar médico fica comprometido. Em decorrência disso, o médico não pode ter sua culpabilidade já presumida, o que iria de encontro aos alicerces do Direito.
Com isso, pode-se afirmar, com absoluta certeza, que o mais sensato, quando da análise da reparação de dano ocasionado pelo cirurgião plástico, é a percepção de que tal profissional deveria receber tratamento semelhante ao conferido aos demais profissionais cirurgiões, inteligência que resta exposta e comprovada no exaustivo rol de discussões supra e que vem buscando forças no mundo causídico para, um dia, erguer-se e vigorar como uma doutrina fortalecida e consistente.
Conclusão
Diante do exposto, pode-se, com grande propriedade, enfatizar que a responsabilidade civil consiste em um campo do Direito com um grau de complexidade enorme, razão pela qual tal tema se encontra esbanjado nas mais diversas áreas do conhecimento humano, adquirindo, por conseguinte, as mais variadas facetas e sendo objeto das mais divergentes opiniões, fatores estes que implicam na perpetuação da discussão em comento, prolongando-a no mundo jurídico e ampliando, de maneira concomitante, o seu raio de abrangência.
Dessa forma, abrindo-se vistas à reparação do dano decorrente da atuação médica, impende destacar que, em tese, doutrina e jurisprudência são equânimes, atribuindo ao profissional da medicina, prestador de serviços da relação consumerista em análise, uma obrigação de meio consagrada a partir de um atuar diligente e sem compromisso com o resultado, este, passível da alea decorrente da imprevisibilidade da saúde humana.
Por outro lado, pôde se, ainda, constatar a responsabilidade civil do cirurgião plástico, a qual, distinguindo a atuação do profissional estético da dos demais profissionais da medicina, atribui àquele um dever de resultado, o faz com que o mesmo haja sempre com uma certa apreensão.
Todavia, é imprescindível acrescentar que, diante do exposto, restou comprovado, ademais, que a atividade do cirurgião plástico deve ser equiparada ao atuar dos demais profissionais da medicina, uma vez que imprevistos há, em igual proporção, em todas as searas da medicina, não se justificando, portanto, essa obrigação de resultado assumida[25], única e exclusivamente, por aquele indivíduo que prima pela beleza corporal de seu contraente. Somando ao exposto, o artigo 4º da resolução nº 1.621/2001, do Conselho Federal de Medicina aduz que “O objetivo do ato médico na Cirurgia Plástica como em toda a prática médica, constitui obrigação de meio e não de fim ou resultado”.
Enfim, impende concluir alegando que uma reforma na responsabilidade civil do cirurgião estético se mostra essencial na atualidade, impondo respeito àquele profissional que lida com o bem mais valioso do ser humano e pautando a relação médico-paciente no respeito e igualdade mútuos, os quais vêm sendo esquecidos na realidade hodierna, em decorrência das más condições oferecidas ao profissional da medicina em geral.
Referências:
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Notas:
[1] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. rev. e aum. 32. imp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. p. 1496.
[2] Traité de la responsabilité civile, Paris, 1939, v. I, n. 1.
[3] GONÇALVES, Carlos Roberto. Comentários ao Código Civil – Parte Especial – Direito das Obrigações, v. 11. São Paulo: Saraiva. 2003. p. 20.
[4] Ubi emolumentum, ibi onus.
[5] GONÇALVES, Carlos Roberto. Comentários ao Código Civil – Parte Especial – Direito das Obrigações, v. 11. São Paulo: Saraiva. 2003. p. 14.
[6] Teoria Geral do Direito Civil, 2ª Edição, Rio de Janeiro: Saraiva, 1929.
[7] Com muita propriedade, Eduardo Vasconcelos dos Santos Dantas desmembra a culpa stricto sensu: “A negligência vem a ser a ausência do emprego de precauções adequadas para a prática de determinados atos ou adoção de procedimentos, revelando desleixo, desatenção, indolência – enfim – o desinteresse, o descaso e descompromisso para com a atividade desempenhada. A imperícia consiste na incapacidade, na falta de conhecimentos técnicos ou habilitação para o exercício de determinada atividade. Ou ainda, pode ser qualificada como o desempenho de uma atividade relativa a uma profissão desconhecida pelo praticante, revelando inaptidão genérica ou específica. No caso do exercício da medicina, este requisito é tido por suprido pelo registro do diploma, e pela inscrição no Conselho Regional de Medicina de sua área de atuação. Por fim, a imprudência se caracteriza pela inobservância do dever de cautela na adoção de certas práticas ou procedimentos. É o triunfo da falta de moderação, da insensatez e da precipitação sobre a experiência, o bom senso e o profissionalismo”.
[8] “Pois bem, quando a estrutura ou natureza de um negócio jurídico – como o de transporte, ou de trabalho, só para lembrar os exemplos mais conhecidos – implica a existência de riscos inerentes à atividade desenvolvida, impõe-se a responsabilidade objetiva de quem dela tira proveito, haja ou não culpa. Ao reconhecê-lo, todavia, leva-se em conta a participação culposa da vítima, a natureza gratuita ou não de sua participação no evento, bem como o fato de terem sido tomadas as necessárias cautelas, fundadas em critérios de ordem técnica. Eis aí como o problema é posto, com a devida cautela, o que quer dizer, com a preocupação de considerar a totalidade dos fatores operantes, numa visão integral e orgânica, num balanceamento prudente de motivos e valores”.
[9] JÚNIOR, Humberto Theodoro. “Responsabilidade Civil por erro médico: aspectos processuais da ação”, em Revista Síntese do Direito Civil e Processo Civil, n. 4, Porto Alegre. P. 154, 03-04/2000.
[10] “Responsabilidade Civil – Cirurgia – Erro Médico – Seqüelas – Reparação de danos – Culpa – Presunção – Impossibilidade Civil – Cirurgia – Seqüelas – Reparação de danos – indenização – Culpa – Presunção -Impossibilidade – 1. Segundo doutrina dominante, a relação entre médico e paciente é contratual e encerra, de modo geral (salvo cirurgias plásticas embelezadoras), obrigação de meio e não de resultado. 2. Em razão disso, no caso de danos e Seqüelas porventura decorrentes de ação do médico, imprescindível se apresenta a demonstração de culpa do profissional, sendo descabida presumi-la à guisa de responsabilidade objetiva. 3. Inteligência dos arts. 159 e 1545 do Código Civil de 1916 e do art. 14, parágrafo 4º, do Código de Defesa do Consumidor. 4. Recurso especial conhecido e provido para restabelecer a sentença” (STJ – Resp 196.306- T4 – Rel. Min. Fernando Gonçalves – 16-8-2004 – p. 261).
[11] Responsabilidade Civil, São Paulo, Saraiva, 1988, 4ª ed., p. 124.
[12] Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. […]
§ 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.
[13] Direito do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 42.
[14] “Não importa se o médico errou, mas, sim, se esse erro vem acompanhado pela culpa na conduta do médico. O julgador não busca um diagnóstico equivocado – inerente ao desempenho da medicina, pelas imprevisões de comportamento do organismo humano. Busca, ele, um agir culposo do profissional, para que, aí sim, este possa ser responsabilizado pelos eventuais danos causados ao paciente”, in Responsabilidade Civil e Penal do Médico, p. 48.
[15] "RESPONSABILIDADE CIVIL. MÉDICO E HOSPITAL. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. RESPONSABILIDADE DOS PROFISSIONAIS LIBERAIS – MATÉRIA DE FATO E JURISPRUDÊNCIA DO STJ (REsp. Nº 122.505-SP). 1. No sistema do Código de Defesa do Consumidor a "responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa" (art. 14, § 4º). 2. A chamada inversão do ônus da prova, no Código de Defesa do Consumidor, está no contexto da facilitação da defesa dos direitos do consumidor, ficando subordinada ao "critério do juiz, quando for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências" (art. 6º, VIII). Isso quer dizer que não é automática a inversão do ônus da prova. Ela depende de circunstâncias concretas que serão apuradas pelo juiz no contexto da facilitação da defesa" dos direitos do consumidor. E essas circunstâncias concretas, nesse caso, não foram consideradas presentes pelas instâncias ordinárias. 3. Recurso especial não conhecido” (STJ – RESP 171988 / RS – RE 1998/0029834-7 – Relator Min. WALDEMAR ZVEITER – Terceira Turma. Data da Decisão: 24/05/1999).
[16] Direito civil – Responsabilidade Civil. Vol. 4. São Paulo. Atlas. 2002. p 100.
[17] “Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:
VIII – A facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência”.
[18] “Art. 25. É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas Seções anteriores”.
“Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos”.
[19] A cirurgia plástica se encontra autorizada no artigo 51 do Código de Ética Médica, mecanismo segundo o qual “São lícitas as intervenções cirúrgicas com finalidade estética, desde que necessárias ou quando o defeito a ser removido ou atenuado seja fator de desajuste psíquico”.
[20] RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense. 2005. p. 341.
[21] MATIELO, Fabrício Zamprogna. Responsabilidade Civil do Médico. 2ª edição. Porto Alegre: Sagra Luzzato. 2001. p. 66.
[22] Instituições de Direito Médico. Ed. Forense, 1ª ed., Rio de Janeiro, 2004. p.16.
[23] Responsabilidade Civil do Médico. Ed. Revista dos Tribunais, 4ª ed., São Paulo, 2001. pp. 160 e 176/177.
[24] "Pela própria natureza do ato cirúrgico, cientificamente igual, pouco importando a subespecialidade, a relação entre o cirurgião e o paciente está subordinada a uma expectativa do melhor resultado possível, tal como em qualquer atuação terapêutica, muito embora haja possibilidade de bons ou não muito bons resultados, mesmo na ausência de imperícia, imprudência ou negligência, dependente de fatores alheios, assim, por exemplo, o próprio comportamento do paciente, a reação metabólica, ainda que cercado o ato cirúrgico de todas as cautelas possíveis, a saúde prévia do paciente, a sua vida pregressa, a sua atitude somatopsíquica em relação ao ato cirúrgico. Toda intervenção cirúrgica, qualquer que ela seja, pode apresentar resultados não esperados, mesmo na ausência de erro médico. E, ainda, há em certas técnicas conseqüências que podem ocorrer, independentemente da qualificação do profissional e da diligência, perícia e prudência com que realize o ato cirúrgico.
Anote-se, nesse passo, que a literatura médica, no âmbito da cirurgia plástica, indica, com claridade, que não é possível alcançar 100% de êxito. […]
Finalmente, nesse patamar, é bom não esquecer que não se pode presumir, como parece vem sendo admitido pela jurisprudência, que o cirurgião plástico tenha prometido maravilhas ou que não tenha prestado as informações devidas ao paciente, configurando o contrato de resultado certo e determinado. A só afirmação do paciente em uma inicial de ação indenizatória não é suficiente para acarretar a presunção de culpa do médico, invertendo-se o ônus da prova, como no presente caso. O paciente deve provar que tal ocorreu, que não recebeu informações competentes e amplas sobre a cirurgia.
Não bastasse tal fundamentação para afastar a cirurgia estética do campo das obrigações de resultado, o Código de Defesa do Consumidor estipulou, expressamente, no art. 14, § 4º, verbis:
§ 4º A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação da culpa.
Ora, tal regra não separa o ato cirúrgico em obrigação de meio ou de resultado, não destaca a cirurgia estética, nem, tampouco, explicita que destina-se a incidir sobre a responsabilidade aquiliana, não sobre a responsabilidade contratual. Com todo respeito, a interpretação que situa a questão neste ângulo não tem lastro na lei, repetindo, apenas, a jurisprudência anterior ao Código que enxergava a dicotomia. E não poderia fazê-lo, sob pena de grave disparidade na própria lei que impõe ser a responsabilidade pessoal do profissional liberal apurada mediante a verificação da culpa. […]
A jurisprudência, todavia, insiste em dispensar à cirurgia estética tratamento draconiano: ou se atinge o resultado ‘embelezamento’ ou responde o médico pela frustração – mesmo que o cliente não melhore nem piore sua aparência inicial.
De qualquer modo, as soluções alvitradas são casuísticas e nada satisfatórias. Em regra, se o paciente sai da cirurgia em condições piores que as ostentadas anteriormente, o cirurgião é penalizado pelo insucesso.
Decisiva, sempre, há de ser a constatação de ter havido imperícia, imprudência ou negligência do profissional. Ao se admitir, pura e simplesmente, que o dever assumido pelo cirurgião plástico configura obrigação de resultado, não ocorre apenas presunção de culpa: nem mesmo se aceita prova que o médico eventualmente produza em seu favor. O resultado danoso firma a inarredável obrigação de indenizar.
Torna-se desinfluente a realização correta da cirurgia. Não tendo sido alcançado o resultado – melhoramento estético – firma-se a procedência da demanda indenizatória.
Isto equivale a afirmar que a cirurgia estética nunca sofre influência das condições pessoais do próprio paciente – insuscetíveis de avaliação prévia".
[25] "Não me parece, data venia, que se possa classificar uma cirurgia, e nesse plano as cirurgias plásticas se equiparam às de qualquer outra espécie, de obrigação de resultado, porque, como se sabe, quando se trata de mexer com fisiologia humana, além da técnica empregada pelo médico, havida no conhecimento específico, há sempre um outro componente que o homem, frágil e impotente diante do desconhecido, chama de imprevisível. […] Nenhum homem seria capaz de afirmar que uma cirurgia tem 100% de possibilidade de êxito e 0% de insucesso. Sintetizando: não há cirurgia sem risco". (TJRJ – Des. Carpena Amorim)
Ação Ordinária de Indenização. Responsabilidade Civil. Erro Médico. A responsabilidade civil dos médicos por atos de seu ofício repousa na culpa. Assim, realizada a intervenção prescrita ao paciente, com a técnica adequada, não se pode atribuir à negligência, imprudência ou imperícia do cirurgião as conseqüências desfavoráveis, provenientes de um mal evolutivo, decorrente de um processo inflamatório crônico e inespecífico. Recurso Provido. TJ AL – Ap. Civ. 9038 – Capital. Rel. Des. B. Barreto Accioly. Recorrente: Joaquim Paulo Vieira Malta Neto. Recorrida Maria Rita Lyra de Almeida. Julg. 30/08/89.
Informações Sobre o Autor
Rodrigo César Falcão Cunha Lima de Queiroz
Advogado na Paraíba/PB