Resumo: O presente estudo tem por objetivo apresentar esclarecimentos para a compreensão do direito a partir da hermenêutica e dos princípios lógicos jurídicos. Para tanto, fez-se uma pesquisa com fundamento em Carnelutti, Pareyson, Reale, Streck, Strenger entre outros autores. Evidenciou-se que o universo jurídico é contraditório, pois na busca da “verdade”, não se encontram meios – intencionalmente ou não – para tanto. Assim, os discursos jurídicos ocorrem, muitas vezes, num cenário de incertezas. Precário, então, depositar no direito a expectativa que facilmente se faz de se poder alcançar a “verdade”, o “justo”. O direito deve, entretanto, tentar resolver os problemas que lhes são apresentados da melhor maneira possível. Reconhece-se que o discurso judiciário não é um manifesto dos reveladores de verdades. Também não pode ser apenas e tão somente uma obra de quem reconhece que não poder alcançar a verdade. Deve ser, ao mesmo tempo, um e outro. Deve reconhecer seu momento de autoridade e, ao mesmo, tempo, falibilidade, por isso pode-se desenvolver, progredir. Evidenciou-se que em razão do discurso jurídico se pautar numa postura de perspectiva deve, ele, ocorrer num processo de intensa interação entre o metafísico e a realidade, ou seja, os trabalhos jurídicos não são físicos/materiais, mas afetam e acabam por transformam o meio físico/realidade. No primeiro item foram apresentadas em linhas gerais as expectativas sobre o direito e suas limitações. Em seguida foram apresentados os princípios lógicos jurídicos e a necessária atualização dos conceitos jurídicos a luz das necessidades percebidas no momento da atuação do direito.
Palavras-chave: Hermenêutica – Lógica Jurídica – Discurso Jurídico
Abstract: This study has the aim of presenting needed clarifications to understand the juridical speeches from hermeneutic and juridical logical rules. Therefore, one bibliographical research was done based on Carnelutti, Pareyson, Reale, Streck, Atrenger among other authors. It was evident that the juridical universe is contradictory, since in search of “truth”, ways are not found – intentionally or not – for that. Thus, the juridical speeches occur, many times, in scenery of uncertainty. Precarious, then, put into law an expectancy, that easily is done, that the “truth”, the “just” will be reached. The law should, in the meantime, try to solve the problems that are presented in a better, more acceptable, possible manner. It is admitted that the juridical speech is not one manifest of truth revealers. Also, it cannot be only and so merely one work from whom recognizes that cannot achieve the truth. It should be, at the same time, one and the other. It should acknowledge its moment of authority and, at the same time, fallibility, thus, it should develop, advance itself. It became evident that on account of the juridical speech been ruled by an attitude of perspective, it should occur in a process of intense interaction between metaphysical and reality, in other words, the juridical works are not physical/material, but affected and end transforming the physical/reality environment. At the first item were presented in general lines the expectancies about law and the limitations of the juridical speech. Following were presented the juridical logical rules and the needed updated juridical concepts from necessities realized at the moment of the law acting.
Keywords: Hermeneutic – Juridical Logical – Juridical Speech
Sumário: 1. Expectativas e Limitações do Direito; 2. Princípios Lógicos Jurídicos; 3. Considerações Finais. 4. Referências.
1. EXPECTATIVAS E LIMITAÇÕES DO DIREITO
Se considerarmos que ao judiciário cabe atuar (quando provocado) na inércia dos outros dois poderes (legislativo e judiciário); se considerarmos que no poder judiciário serão depositadas as maiores expectativas para a solução de um problema, é de se perguntar: como atua o direito? Se algo não conseguiu ser resolvido na esfera dos dois primeiros poderes como podem os juristas resolver? É de se esperar que resolvam, ou melhor, ou então, que estejam dispostos a isso.
Desse modo, os relatos feitos pelas partes ao juiz querem mostrar os motivos que as autorizam a reclamar a desrespeitada “justiça”. Os discursos dos defensores passam a ser, assim, vistos como instrumento de justiça onde se poderão ser esclarecidas as “verdades”. O discurso servirá para auxiliar o juiz a identificar o “verdadeiro” do “mentiroso”, o “justo” do “injusto”. Nesse momento, o juiz decidirá, obviamente (pensam), pela “verdade”, pelo “justo”.
É de se considerar que esses relatos são apresentados em uma cadeia de informações. As pessoas reprisam aquilo que lhes foi relatado (do cliente ao advogado, do advogado ao juiz), e ainda, daquilo que elas mesmas teriam testemunhado. Dizem, o que dizem, sob seu ponto vista. Assim, a compreensão do ouvinte poderá, muitas das vezes, ser bastante diferente daquela inicialmente apresentada.
De fato, espera-se que os juizes possam ser informados adequadamente dos assuntos que lhes serão apresentados pelas partes. Espera-se, também, que as partes e seus defensores possam estar pleiteando pedidos razoáveis no plano legal, no dos costumes, da moral, da equidade etc.
Ocorre que tal pressuposto não é absoluto. Ora os juizes não são bem informados, ora não conseguem as informações que julgariam necessárias. Não se pode, também, esperar que as partes apresentem efetivamente tudo o que sabem sobre o assunto debatido em juízo. Ademais, poderão existir informações que contrariarão o interesse daqueles que fazem os pedidos e, por razoes óbvias, não apresentarão cenários desfavoráveis. Se realmente tivessem o compromisso com a verdade deveriam informar, mas não o fazem. Soma-se ainda que no universo que constituiu o fato em debate existem informações que as partes de fato não sabem.
Esse universo contraditório (buscar a verdade, mas não apresentar, ou não se ter, subsídios – intencionalmente ou não – para tanto), leva-nos a considerar que o direito ocorre num cenário de incertezas.
Não parece, então, ser recomendado depositar no direito a expectativa que normalmente, ou melhor, facilmente, se faz, ou seja, que se poderá alcançar a “verdade”, o “justo”. Não que o direito não deva se comprometer (obviamente) a tentar resolver os problemas que lhes são apresentados da melhor, a mais aceitável, maneira possível. Ocorre que o compromisso assumido pode, muitas das vezes, não ser honrado tendo em vista as limitações acima, um pouco, debatidas.
Surge o desafio: como se conseguir um discurso que permita ao mesmo tempo decidir um problema sem que, no entanto, afirme ser a única forma de resolve-lo? Decidir sem achar que foi decidido? Decidir sem garantir a decisão? Decidir e permitir outra decisão?
Certamente que se se estiver esperando respostas a partir de raciocínios exatos, matemáticos, receber-se-á um sonoro não. Não se atenderá a nenhuma expectativa. Nada será decidido. Nenhuma pessoa irá respeitar uma decisão que afirmem estarem ambas as partes com a razão. A pessoa irresignada poderá dizer: se for assim, decido eu! Essa não parece ser a expectativa depositada num cenário de Estado.
Isso ocorre, pois, a lógica exata não nos permite dúvida. Ou “é” ou “não é”. Alguns esperam que o direito possa dizer o que “é” ou o que “não é”. O ser humano pode dizer alguma coisa sobre o “ser”? As partes podem dizer a “verdade”? As testemunhas também? E os defensores? A perícia (ciência) sabe a “verdade”? O juiz saberá? Todos devem dizer a verdade por imposição legal ou de consciência, mas daí esperar que de fato digam é bem diferente. Entende-se, a partir de Sócrates, que se o ser humano pode dizer algo sobre o “verdade” esse algo é o “não sei”.
Resta-nos considerar, então, uma lógica de perspectiva (lógica hermenêutica, lógica de ponto de vista) que é a lógica jurídica. Ao invés de uma lógica do ser, uma lógica do dever ser (deve ser porque não se sabe se é). Essa lógica, para ser aceita, deve-se assentar em ideais amplamente discutidos e almejados. Ideais reputados válidos para a maior parte (espera-se por todos) da sociedade. Seriam, por exemplo: a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a igualdade, a segurança entre outros.
Enquanto a lógica do ser apresenta-se de maneira formal, abstrata, “fria”, impessoal, a lógica jurídica tem característica totalmente diversa, contrária. A lógica jurídica apresenta-se então (ou deve-se apresentar) como um raciocínio informal (pois não admite fórmula exata), concreto (pois discutirá a realidade), “quente” (pois discutirá paixão, ideais), pessoal (pois se baseia na persuasão).
Essa lógica do deve ser, entretanto, não se baseia numa postura relativista, pois não se nega que o fato “morte” tenha ocorrido (por exemplo), mas que não se pode saber, com certeza, por que ocorreu (acidente? homicídio? suicídio?). Não se nega o fato de um quadro (poema ou música) poder estar sujeito a várias interpretações. Mas também não se pode negar que, de fato, a obra está “enquadrada” (escrita em papel ou partitura).
Não se baseia, também, numa postura dogmática, pois considera que as informações apresentadas pelo legislador (lei) representam escolhas feitas num dado momento histórico. Essas decisões poderão, como de fato ocorre, serem alteradas futuramente.
Sobre a disputa entre o relativismo e o dogmatismo vale citar Pareyson (2005, p. 67) ao afirmar que é ilegítima e inútil a disposição em elevar uma idéia em detrimento da outra: “ou se priva a filosofia do seu caráter histórico e, portanto, da verdade de sua aparição temporal, ou se subtrai à filosofia a sua dimensão relativa e, portanto, à história a sua abertura ontológica”. Segundo o autor, ou indevidamente se absolutiza a filosofia ou a reduz a mera sucessão temporal que subverte seus próprios produtos.
Pareyson (2005, p. 72) afirma, ainda, que a relação entre as verdades e suas formulações é interpretativa. Segundo o autor, quando se utiliza a música como ilustração, não se pode conceber a interpretação na perspectiva sujeito e objeto vez que “não pretendemos que ele deva renunciar a si próprio, nem permitimos que ele queira exprimir a si mesmo. Nós desejamos que seja ele a interpretar aquela obra, de modo que a sua execução seja, ao mesmo tempo, a obra e a sua interpretação dela” (destaque do original).
Neste sentido, reconhece-se que o discurso do direito não é um manifesto dos reveladores de verdades. Também não pode ser apenas e tão somente uma obra de quem reconhece que não poder alcançar a verdade. Deve ser, ao mesmo tempo, um e outro. Deve reconhecer seu momento de autoridade e, ao mesmo, tempo, falibilidade.
Reconhecer que o discurso do direito é, ao mesmo tempo, palco das grandes aspirações humanas e reconhecimento expresso da falta de condições de serem alcançadas as almejadas aspirações, significa dizer que no direito encontram-se, ou deve-se encontrar, o que há de mais belo e feio do homem. “Porque o que faço não o aprovo; pois o que quero isso não faço, mas o que aborreço isso faço” (Rom. 7:15).
Esta disposição quer fazer com que expressões tão distantes como ordem e crise, estudadas por Saldanha (2003) possam se encontrar ao invés de distanciarem-se. Com bem apresentado pelo citado autor, a cada ordem imposta surgirá, invariavelmente, uma crise. Instaurada a crise, reclamar-se-á, fatalmente, numa nova ordem. E assim sucessivamente.
Talvez ao se abordar a preocupação com a verdade esteja-se sendo impopular, dada a facilidade com que se afirma hoje “não existir verdade absoluta”. Não existe verdade absoluta? Vejamos: seria correto afirmar que duas pessoas morreram ao mesmo tempo como no caso da comoriência (art. 8o do CC)? Obviamente que não! Por uma fração de centésimos ou milésimos de segundos um, provavelmente, morreu antes do que o outro. O que ocorre é que não se pode afirmar quem morreu antes. Assim, arbitra-se morte simultânea. Lembrando Sócrates: nós não sabemos! Porque não sabemos arbitramos.
Aceitar a afirmação de que não existam verdades (ou verdade absoluta) equivale dizer as pessoas que procuram soluções junto aos operadores do direito que não existe nenhum compromisso de essas verdades (justiça, liberdade, igualdade etc) serem alcançadas. Por que perseguir algo que não existe? Inaceitável tal postura.
Espera-se do direito, entretanto, um compromisso da pessoa com a verdade. Espera-se que a chamada interpretação possa transparecer esse compromisso.
Sobre a verdade Reale (1983, p. 18) ressalta que “… discutem até hoje filósofos e cientistas no que tange a definição da verdade, e os conceitos que se digladiam não são mais do que conjeturas, o que demonstra que a conjetura habita no âmago da verdade, por mais que nossa vaidade de homo sapiens pretenda sustentar o contrário”.
Não há como se esperar, também, que a chamada verdade cientifica possa resolver o problema do direito. A verdade da ciência exata acaba por ser física, material, e não conseguirá atender as expectativas lançadas sobre os ombros dos operadores do direito. Num caso de homicídio, por exemplo, o que a verdade da ciência poderá fazer? Identificar o criminoso? Isso resolverá a dor daqueles que perderam um ente querido? Mesmo que se identifique e que se puna (prisão, prisão perpétua, pena de morte…), o problema estará resolvido? Certamente que os familiares em luto dirão “queremos justiça”! O que seria “justiça”? Aplicando, neste caso, a máxima de Ulpiano, “dar a cada um o que é seu”, entende-se que a ressurreição da pessoa se mostraria um ato de justiça. Não se pode esperar de um juiz uma sentença com tal ordem.
Assim, Santos (2009, p.18) afirma, também, que:
“Estamos de novo regressados à necessidade de perguntar pelas relações entre a ciência e a virtude, pelo valor do conhecimento dito ordinário ou vulgar que nos, sujeitos individuais e colectivos, criamos e usamos para dar sentido às nossas praticas e que a ciência teima em considerar irrelevante, ilusório e falso; e temos finalmente de perguntar pelo papel de todo o conhecimento cientifico acumulado no enriquecimento ou no empobrecimento pratico das nossas vidas, ou seja, pelo contributo positivo ou negativo da ciência para nossa felicidade.”
Ora, se as condições humanas não nos permitem afirmar, de maneira absoluta, se os relatos feitos pelas partes, seus defensores conferem ou não com a verdade, não se pode esperar, também, que as decisões dos juizes o façam. Diante de tal circunstancia, deve o homem reconhecer que não sabe. Vê-se, novamente, que uma postura fundada na lógica do ser, para o direito, está fadada ao fracasso. Resta-nos, então, discutir uma lógica do deve ser, justamente porque não sabemos.
2. PRINCÍPIOS LÓGICOS JURÍDICOS
Para melhor compreensão do raciocínio jurídico, Strenger (1999) apresenta quatro princípios lógicos jurídicos, a saber: identidade, contradição, terceiro excluído e razão suficiente. Esses princípios, conjuntamente, acabam por apresentar o cenário de discussão das verdades no direito.
O principio de identidade expressa a informação de que uma coisa é idêntica a si mesma. Abstratamente falando, seria o mesmo que dizer: “A” é igual a “A” (A = A), ou seja, todas as coisas conferem com a sua própria identidade. A primeira vista esse principio parece ser redundante, mas não o é. Significa dizer, por exemplo, que Joinville (SC) é a “Cidade dos Príncipes”. Outro exemplo: o Município de Campo Alegre (SC) promove anualmente eventos como o “Festival de Inverno” e a “Festa da Ovelha” além de ser a “Capital Catarinense da Ovelha” (Lei Estadual n. 14.377/08). Esse princípio, na perspectiva formal, identifica o que “é”, ou seja, não se discute.
O princípio da contradição se preocupa em identificar aquilo que “não é”. Abstratamente falando, se “A” é “A” então “A” não é “B” porque “B” é “B” (A ¹ B). Assim, seguindo o exemplo, Campo Alegre (SC) é a “Capital Catarinense da Ovelha” e não Joinville (SC), vez que Joinville é a “Cidade dos Príncipes”. Observe que este princípio já nos autoriza a afirmar o que “não é”.
Cremos que quando Sócrates afirmou “só sei que nada sei” não o fez num estado de ignorância (óbvio). Sabia diferenciar um gato de um castelo, um pato de um vestido de seda etc. Constatar que não sabia levava (e ainda leva) a conclusão de que os conceitos que eram (são) apresentados mostravam-se muito mais posturas arbitrárias do que necessariamente “verdades”. Pode-se afirmar, então, que Sócrates podia afirmar que os conceitos apresentados não eram, mas não poderia ele apontar o que era. Esse é o contexto do princípio de contradição na perspectiva do direito. Na perspectiva exata (ser) este princípio afirma tão somente aquilo que “não é”. Não se discute.
Observe que na correlação entre os princípios de identidade e contradição verifica-se que não afirmamos “A” ser igual a “A” por que conhecemos “A”, mas sim porque podemos diferenciar de “B”, ou seja, não conhecemos nem “A” nem “B”, apenas sabemos que “A” não é “B”, ou melhor, “A” é diferente de “B”.
Até aqui, se observarmos os dois primeiros princípios numa perspectiva matemática (lógica do ser) o que se observará é a aplicação de um mesmo raciocínio, ou seja, “é” ou “não é”. Ser e não ser são conceitos rígidos e reproduzem exatidão. Conforme Rodriguez (2005, p. 21):
“Na matemática ou em outras ciências exatas não existem opiniões ou posicionamentos, porque os números não o permitem. São linguagem artificial. Mas é um erro tentar aplicar ao Direito essa mesma premissa. Quem argumenta não trabalha com a exatidão numérica sim/não. Quem argumenta trabalha com o aparentemente verdadeiro, com o talvez seja assim, com aquilo que é provável”. (grifei).
Voltemos aos exemplos. Campo Alegre (SC) é a “Capital Catarinense da Ovelha” por algum motivo. Se os Deputados do Estado de Santa Catarina aprovaram na Assembléia Legislativa, e se o Poder Executivo sancionou, chega-se a conclusão que houveram motivos para a promulgação da Lei Estadual n. 14.377/08. Obviamente o legislador, representando interesse do Município, discorreu argumentos justificando os motivos (tradição, destaque da economia local, gastronomia, regularidade de eventos etc) pelos quais deveria ser reconhecido o título. Campo Alegre foi de fato, até o convencimento das autoridades, a “Capital Catarinense da Ovelha”. Espera-se, entretanto, que a sociedade daquele lugar possa manter, e ainda, aprimorar, as justificativas da Lei, caso contrario o título poderá ser revogado. Em resumo: o Município de Campo Alegre (SC) deve (veja: deve) sempre manter o título mediante justificativas. Ou seja, “A” é (“é”) “A”? Não “A” deve ser, sempre, “A”. Campo Alegre deve ser sempre a “Capital Catarinense da Ovelha”.
Em que pese à disposição arbitrária em se afirmar se algo “é” (identidade)” ou “não é” (contradição), constata-se, com já visto, que inúmeras coisas, ou circunstancias, são desconhecidas. Surgem, assim, os dois outros princípios: terceiro excluído e razão suficiente.
O princípio do terceiro excluído pode ser entendido a partir da célebre frase apresentada na peça “A tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca”, Ato III Cena I, de Willian Shakespeare:
“Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre em nosso espírito sofrer pedras e setas com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja, ou insurgir-nos contra um mar de provações e em luta pôr-lhes fim?” (grifei) (SHAKESPEARE, 2011).
Diferentemente dos dois primeiros princípios, esse não responde a questão, ele é a questão, a dúvida. Seu propósito não é o de conceituar (identidade) nem, por isso, pode comparar (contradição). Esse princípio informa/alerta o estado de ignorância. Surge quando as respostas, já conhecidas, não podem/conseguem mais responder. Pode-se exemplificar o princípio do terceiro excluído a partir dos debates promovidos pelo Jornal Folha de São Paulo aos sábados. Semanalmente este jornal apresenta tema onde são convidados renomados profissionais que devem se posicionar a favor ou contra a idéia discutida. Os temas[1] são variados e normalmente surgem de fatos que marcaram a semana. A dúvida do dia 31/07/10 era: “Deve ser aprovado o projeto de lei que proíbe punição física a crianças?”. Peter Newell e Paulo Sérgio Pinheiro entenderam que não há castigo corporal tolerável, já o psicólogo e professor da USP Lino de Macedo defendeu que a lei não soluciona os problemas da infância. Ambos os textos são consistentes em argumentos e vigorosos na defesa das suas teses. Enquanto os primeiros autores advertem que não há nenhuma dúvida de que os castigos físicos são uma violação dos direitos da criança e de que o Estado tem o dever de protegê-la, pois os direitos humanos não param nas soleiras das casas, o segundo indaga: por que transferir para um Estado, nem sempre cioso no cumprimento de seus deveres, obrigações que são da família? … Educar é a melhor forma de proteger. Muitas vezes as crianças precisam ser contidas fisicamente. Para este problema existe uma resposta certa e outra errada? Ambos não teriam, de alguma maneira, razão? Existirá uma terceira via? Frise-se (finalmente) o princípio do terceiro excluído não responde a questão apenas aponta a fragilidade das respostas.
Observe-se: na perspectiva formal, os princípios de identidade e contradição expressam-se no raciocínio “é”/“não é”. No universo da linguagem computacional a idéia equivalente ao 0 e 1. Ocorre, entretanto, que entre o 0 e 1 existem inúmeros, ou melhor, infinitos pontos (0,1, 0,01, 0,001 etc). O grau de certeza de um universo menor (precisão microscópica) é tão incerto quanto em universo maior (astros). Eis, então, o cenário do terceiro excluído.
Por último temos o principio da razão suficiente. Este princípio expressa-se na idéia de que, não podendo uma questão ser respondida numa perspectiva absoluta/perfeita recorrer-se-á a uma razão suficiente, ou seja, uma explicação verificável segundo as condições que irão nos permitir esclarecer determinada situação. Observe que a nomenclatura razão suficiente é contraditória. A razão não é suficiente, ela “é”. Vale lembrar a máxima de Descartes (2007): “penso logo existo”. Fossemos aceitar a o princípio apenas como razão excluindo da nomenclatura o suficiente estaríamos falando do princípio de identidade, pois, conforme visto, ele é o que se encarrega de afirmar se “é” ou “não é”.
A expressão do arbítrio humano (convenção, imposição …) se vê nesse princípio. Os conceitos serão apresentados não por que se tem certeza deles, mas porque, até aquele momento e naquelas condições, não há melhor explicação ou mais aceitável. Por isso a recorrente explicação de fenômenos há muito tempo conhecidos. Einstein (2010, p. 11) esclarece:
“O que nos impele de elaborar teoria após teoria? Por que, de qualquer forma, elaboramos teorias? A resposta é simplesmente: porque nos dá prazer ‘compreender’, ou seja, reduzir fenômenos pelo processo da lógica a algo já sabido ou (aparentemente) evidente. Novas teorias são necessárias, antes de mais nada, quando já nos deparamos com fatos que não podem ser ‘explicados’ por teorias existente”.
Podemos dizer, na esteira de Einstein, que o princípio da razão suficiente não é, então, definitivo. O conceito é precário/temporário. Assim, necessárias novas interpretações conforme o momento em que se discute a aplicação (ou não) dos conceitos pré-concebidos. As novas teorias são necessárias para explicar os fatos que as teorias existentes não podem explicar, ou quando as explicações não são mais razoáveis, aceitáveis. Isso só será compreendido se estivermos despertos para a limitação da postura positivista. Carnelutti (2004, p. 7), quando criticou a postura do direito positivista em sua época, afirmou:
“Faz tempo que o direito vem perdendo, pouco a pouco, cada vez mais, sua dupla função de certeza e justiça. No principio, intuíamos, depois nos persuadimos de que no direito se podia obter a síntese dos dois opostos. Isso parecia um milagre e acreditávamos nele. Agora, dia a dia, nossa fé desvanece”.
O citado autor aponta ainda que a crise, de um organismo ou de um sistema, se observa quando chega um momento no qual o máximo esforço ao qual está submetido, serve para descobrir o próprio valor. Se o direito quer expressar segurança e tem por objetivo a pacificação social, e considerando um cenário onde essas características não são observadas, então, o direito deverá reclamar uma transformação. Evidente a necessidade de os operadores do direito sofrerem essa crise.
No momento em que se percebe que o direito funda-se em expectativas humanas, percebe-se que ele, direito, é mortal e, por isso, morrerá. Ou seja, tal qual o homem nasce, vive e morre, o mesmo deve acontecer ao direito. Vale destacar que, dado à característica abstrata do direito, o mesmo deve ser lembrado. Corre-se o risco de vivermos demoradamente sob o manto de uma lei de poucos.
Carnelutti (2004, p. 8) entende que o direito é insuficiente para prever as conseqüências da imposição das decisões jurídicas. Diz, entretanto, que a previsão é indispensável “sem o qual o homem não pode obrar”. Afirma que o homem para dar um passo necessita ver aonde vai. Assim, quanto mais abstrato for o direito, mais distante da realidade vivida pelo homem ele, direito, estará. Ao mesmo tempo, quanto mais real, mais distante estará das aspirações humanas (esperanças de mudança, melhora etc), que residirão no abstrato do homem. Citando, novamente, Einstein (2010, p. 12) conclui-se que abstração (metafísica) e realidade devem se aproximar:
“Repetidas vezes, a paixão pelo entendimento levou a ilusão de que o homem é capaz de compreender o mundo objetivo racionalmente, por puro pensamento, sem fundamentos empíricos – em resumo, pela metafísica. Acredito que todo o teórico verdadeiro é uma espécie de metafísico domesticado, não importa quão puro ele se ache como ‘positivista’”.
O cenário percebido entre Carnelutti e Einstein nos permite compreender a necessidade da aproximação entre o real e o metafísico, mesmo que já se saiba da insuficiência da aproximação “perfeita” desses extremos. Para ilustrar diríamos que se trata de um “namoro de porco-espinho”. A interpretação jurídica deverá, então, se pautar por uma razão suficiente, ou seja, o pensamento (razão) sobre determinado problema a ser resolvido (homicídio, dano ambiental, acidente de transito etc) estará diretamente associado à aceitação da decisão pela sociedade (aceitação social). A decisão deve provocar um sentimento de emancipação. Deve transmitir a sensação de que o melhor foi feito, mesmo que não se possa (quando não puder) voltar ao status quo ante. Neste sentido o processo interpretativo não é unívoco ou perfeito, mas deve despertar “um processo de compreensão, em que o sujeito, a partir de uma situação hermenêutica, faz a fusão de horizontes a partir de sua historicidade” (STRECK, 2005, p. 19).
Nessa disposição de fazer com que o direito (como pensamento/razão/metafísico) se aproxime dos problemas apresentados (realidade) por aqueles que esperam mudanças/transformações com a provocação do direito (poder judiciário), Streck (2005, p. 85) provoca alunos e professores a repensar o fácil enquadramento do direito num cenário ficcionalizado como se “a realidade social pudesse ser aprosionada/moldada/explicada através de verbetes e exemplos com pretensões universalizantes”. Veja-se:
“Alguns exemplos beiram ao folclórico, como no caso da explicação do ‘estado de necessidade’ constante no art. 24 do Código Penal, não sendo incomum encontrar professores (ainda hoje) usando o exemplo do naufrágio em alto-mar, em que duas pessoas (Caio e Tício, personagens comuns na cultura dos manuais) ‘sobem em uma tábua’, e na disputa por ela, um deles é morto (em estado de necessidade, uma vez que a tábua suportava apenas o peso de um deles…!). Cabe, pois, a pergunta: por que o professor (ou o manual), para explicar a excludente do estado de necessidade não usa um exemplo do tipo: menino pobre entra no Supermercado Carrefour e subtrai um pacote de bolacha a mando de sua mãe, que não ter o que comer em casa? Mas isso seria exigir demais da dogmática tradicional. Afinal de contas, exemplos desse tipo aproximam perigosamente a ciência jurídica da realidade social…!” (destaque do original).
Vê-se que a compreensão e a utilização dos princípios lógicos jurídicos, em especial o da razão suficiente, exigirá do operador jurídico, neste compreendido também o estudante de direito, uma pré-disposição de se conhecer não somente as disposições legais, os entendimentos doutrinários, o repertorio jurisprudencial e as demais fontes do direito que orientarão a solução do caso em estudo, mas também, e em destaque, o problema/fato propriamente dito, as pessoas envolvidas e a sociedade como um todo. O direito, reconhecendo suas limitações e dialogando com as demais áreas do conhecimento, deverá saber lidar com os fenômenos sociais e assumir um compromisso de transformação social para que aquelas aspirações de justiça apontadas no início deste estudo possam ser atingidas.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não há como se esperar do direito respostas inequívocas. O universo jurídico é contraditório, pois na busca da “verdade”, não se encontram meios para alcançar tal objetivo. Resta ao direito, então, tentar resolver os problemas que lhes são apresentados da melhor (a mais aceitável) maneira possível. Neste sentido, propõe-se reconhecer que o discurso do direito alterna-se em momentos de autoridade e falibilidade, por isso pode-se desenvolver, progredir. Viu-se, também, que o direito pauta-se numa postura de perspectiva de intensa interação entre o metafísico e a realidade, ou seja, os trabalhos jurídicos não são físicos/materiais, mas afetam e acabam por transformar o meio físico/realidade. Essa transformação expressa o desejo humano de fazer se realizar as suas expectativas. Neste sentido, percebe-se que ele, direito, é dinâmico, e por isso pode-se reinventar, progredir se considerada a lógica do deve ser.
Referências
CARNELUTTI, Francesco. A Morte do Direito. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2004.
DESCARTES, René. Discurso do Método. Trad. Pedro Neves. Porto Alegre: L&PM, 2007.
EINSTEIN, Albert. Sobre a Teoria Geral da Gravitação. Prêmios Nobel na Scientifc American. v. 1, física e astronomia, vários trad. São Paulo: Dueto Editorial, 2010.
PAREYSON, Luigi. Verdade e Interpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
REALE, Miguel. Verdade e Conjetura. São Paulo: Nova Fronteira, 1983.
RODRIGUEZ, Víctor Gabriel. Argumentação jurídica. Técnicas de persuasão e lógica informal. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
SALDANHA, Nelson. Ordeme Hermenêutica. São Paulo: Renovar, 2003.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um Discurso sobre as Ciências. São Paulo: Cortez, 2009.
SHAKESPEARE, William. A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca. Disponível: <http://www.virtualbooks.com.br>. Acesso em 06.01.2011.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 6a. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
STRENGER, Irineu. Lógica Jurídica. São Paulo: Ltr, 1999.
Nota:
[1] Eis alguns temas: “O voto deveria ser facultativo” (02/10/10); “Caso Dilma Rousseff vença e faça maioria no Congresso, há risco de concentração de poder?” (11/09/10); “É positiva a reforma da lei de direitos autorais nos termos propostos pelo governo federal?” (07/08/10); “Medidas restritivas a obras de arte com teor político configuram censura?” (25/09/10), “O Brasil deve ter legislação que regulamente a prática do lobby?” (18/09/10), “O Judiciário deve evitar o encarceramento de jovens?” (17/07/10) entre outros.
Informações Sobre o Autor
Gustavo Daniel Tavares Bastos Gama
Advogado. Professor de Direito Constitucional do Curso de Direito da Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE. Especialista em Direito Empresarial pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Aluno do programa de Mestrado em Saúde e Meio Ambiente da Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE