Resumo: O Controle difuso de constitucionalidade vem passando pelo o que a doutrina tem chamado de “abstrativização do controle difuso”, com a pretensão de conferir ao Supremo Tribunal Federal o poder de conferir efeitos erga omnes às decisões proferidas nessa via de controle. Assim, a atividade do Senado Federal prevista no art. 52, X da Constituição Federal, teria mero efeito de publicidade da decisão do Supremo. Neste trabalho se discutirá a constitucionalidade deste movimento.
Palavras-chave: Constituição. Controle de Constitucionalidade. Mutação constitucional. Abstrativização.
Abstract: The diffuse control of constitutionality has been going by what the doctrine is calling "abstractiveness diffuse control", with the intention of giving the Supreme Court the power to give effect erga omnes of judgments rendered in this way to control. Thus, the activity of Senate under Art. 52, X of the Constitution, would have merely the advertising effect of the decision of the Supreme. This work will discuss the constitutionality of this movement.
Keywords: Constitution. Constitutionality control. Constitutional Mutation. Abstractiveness.
Sumário: Introdução; 1. Controle de Constitucionalidade; 1.1. Espécies de controle; 1.2. Dos efeitos da decisão no controle difuso; 2. Mutação Constitucional; 2.1. O artigo 52, X da Constituição Federal; 2.2. Suspensão da Lei pelo Senado: Obrigação ou faculdade?; 2.3. Abstrativização do Controle Difuso de Constitucionalidade; 3. A inviabilidade da tese de abstrativização; 3.1. A atuação do Senado Federal no Controle Difuso; 3.2. O sistema de freios e contrapesos (Checks and Balances); 3.3. A mutação “constitucional” do art. 52, X da CF; 3.4. Processo de “germanização”; 3.5. Súmula vinculante: Solução?; Conclusão.
INTRODUÇÃO
Os movimentos constitucionais e o constitucionalismo são temas recorrentes entre os juristas brasileiros, não só quando tratam diretamente de Direito Constitucional, mas quando também se referem outros “ramos” do Direito, dada a influência lógica que aqueles têm sobre estes.
A evolução do constitucionalismo tem trazido temas de grande importância no cenário doutrinário e jusrisprudencial acirrando discussões e levantando grandes polêmicas.
Entre muitos temas, podemos destacar a discussão sobre a força normativa dos princípios constitucionais muito em voga através do neoconstitucionalismo, trazendo influência clara em todas as áreas do direito como, por exemplo, no neoprocessualismo ou formalismo-valorativo na visão da escola gaúcha do Professor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira.
Importante mencionar ainda, a mutação constitucional, que ocorre quando enxergamos de forma diferente e evoluída um determinado texto constitucional sem que tenha havido sua alteração física direta.
Isso sem falar no chamado Constitucionalismo do por vir ou do futuro onde se procura entender como deverá ser a nova constituição, bem como, a busca de uma equalização da força principiológica constitucional.
Nesse passo, diante de tantos novos e interessantes temas surgidos com a nítida evolução do constitucionalismo, alguns juristas vêm apresentando posicionamentos que levantam certa preocupação por parte da doutrina brasileira.
O objeto de deste trabalho é justamente estudar um desses temas, que trata da mutação constitucional que teria ocorrido na interpretação do artigo 52, X da Constituição Federal, segundo entendem parte da doutrina e parte dos Ministros do STF.
1 – CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
Existem, em regra, dois modelos de constitucionalidade que são adotados pelos ordenamentos jurídicos em geral, o modelo difuso e o concentrado.
O Brasil, através da Constituição de 1988, adotou o sistema jurisdicional misto, ou seja, é jurisdicional, pois realizado pelo Poder Judiciário e é misto, em razão de utilizar tanto o modelo difuso quanto o concentrado no controle de constitucionalidade.
1.1 – Espécies de Controle
Segundo leciona Pedro Lenza[1]:
O controle difuso teve origem nos Estados Unidos, em 1803, através do famoso caso Marbury versus Medison, onde o juiz John Marshall da Suprema Corte daquele país decidiu que, havendo conflito entre a aplicação da lei em um caso concreto e a Constituição, em razão da sua hierarquia, deve prevalecer esta última.
Assim, o controle difuso é aquele utilizado por um juiz ou tribunal, quando diante de um caso concreto, é suscitada a dúvida sobre a constitucionalidade de um determinado ato normativo incidente naquela lide.
Já o controle concentrado teve origem na Áustria, em 1920, quando a Constituição Austríaca, baseada nas idéias de Hans Kelsen, previu o primeiro tribunal incumbido da jurisdição constitucional.
Nesse passo, o controle concentrado é exercido por um único tribunal, com competência específica e originária para tanto e através de ações específicas onde o objeto principal é a verificação da constitucionalidade do ato normativo.
No Brasil, o controle concentrado (introduzido através da através da Emenda Constitucional n. 16/1965), conforme exposto em nossa atual Constituição, é exercido exclusivamente pelo Supremo Tribunal Federal através de cinco ações judiciais específicas:
i) ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade (genérica);
ii) ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental;
iii) ADO – Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão;
iv) ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva, e
v) ADC – Ação Declaratória de Constitucionalidade.[2]
1.2 – Dos efeitos da decisão no controle difuso
No controle difuso, em regra, diferentemente do que ocorre no controle concentrado, o efeito da sentença que declara a lei inconstitucional vale somente entre as partes do processo, ou seja, inter partes.
Outro efeito dessa decisão, fruto da teoria da nulidade oriunda do sistema norte-americano (que é a adotada pelo Brasil), é o retroativo, ou seja, atinge a lei desde sua edição, tornando-a nula de pleno direito (ex tunc).
Em relação a este segundo efeito, importante destacar que o Supremo Tribunal Federal, vem fixando entendimento sobre a possibilidade de sua modulação mesmo em sede de controle difuso e, assim, atribuindo efeito tanto ex nunc quanto pro futuro (ou prospectivos) à decisão.
O primeiro caso julgado pelo STF, diz respeito ao RE 197.917, conhecido como “Caso Mira Estrela”, onde o STF reduziu o número de vereadores do município de Mira Estrela, mas determinou que a decisão só atingisse a próxima legislatura, valendo transcrever o exposto no Informativo 341 do Supremo:
“Número de Vereadores e Proporcionalidade
Concluído o julgamento de recurso extraordinário interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que reconhecera a constitucionalidade do parágrafo único do art. 6º da Lei Orgânica do Município de Mira Estrela, de menos de três mil habitantes, que fixara em 11 o número de vereadores da Câmara Municipal, por entender que tal número não se afastou dos limites constantes do art. 29, IV, a, b e c, da CF/88 – v. Informativos 160, 271, 274, 304 e 333). O Tribunal, por maioria, acompanhando o Min. Maurício Corrêa, relator, conheceu e deu parcial provimento ao recurso, para declarar a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 6º da Lei 226/90, do citado Município, por considerar que o art. 29 da CF/88 estabelece um critério de proporcionalidade aritmética para o cálculo do número de vereadores, não tendo os municípios autonomia para fixar esse número discricionariamente, sendo que, no caso concreto, o Município em questão deveria ter 9 vereadores, sob pena de incompatibilidade com a proporção determinada constitucionalmente. O Tribunal determinou, ainda, que, após o trânsito em julgado, a Câmara de Vereadores adote as medidas cabíveis para adequar sua composição aos parâmetros ora fixados, respeitados, entretanto, os mandatos dos atuais vereadores. Vencidos os Ministros Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio e Celso de Mello que, na linha da orientação firmada pelo TSE no julgamento do RMS 1945/RS (DJU de 20.5.93), conheciam, mas negavam provimento ao recurso extraordinário. Leia na seção de Transcrições deste Informativo, trechos do voto condutor da decisão. RE 197917/SP, rel. Min. Maurício Corrêa, 24.3.2004.(RE-197917)”[3]
Outra importante decisão do STF neste mesmo sentido aconteceu no julgamento da Ação Cautelar n. 189, em relação ao Município de São João da Boa Vista, como nos ensina o Professor Pedro Lenza[4]:
“O Ministro Gilmar Mendes, em outra oportunidade, desenvolveu com maestria o entendimento fixado no caso de Mira Estrela, ao julgar a Ação cautelar n. 189: ‘Segundo o ministro, trata-se de questão idêntica à discutida no Recurso Extraordinário 197.917, da relatoria do ministro Maurício Corrêa, em que o Plenário decidiu pela inconstitucionalidade de Lei Orgânica municipal, que estabelecia o número de vereadores, determinando, porém, a eficácia dos efeitos para momento futuro.
‘Como se pode ver, se se entende inconstitucional a lei municipal em apreço, impõe-se que se limitem os efeitos dessa declaração (pro futuro)’, afirmou Mendes. O ministro ressaltou que o sistema difuso ou incidental de controle de constitucionalidade admite a mitigação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e, em casos determinados, acolheu até mesmo a pura declaração de inconstitucionalidade com efeito exclusivamente pro futuro.
Para Gilmar Mendes, no caso em tela, observa-se que eventual declaração de inconstitucionalidade com efeito ex tunc (retroativo), ocasionaria repercussões em todo o sistema atual, atingindo decisões tomadas em momento anterior à eleição, que resultou na atual composição da Câmara Municipal: fixação do número de vereadores, fixação do número de candidatos, definição do quociente eleitoral.
Igualmente, as decisões tomadas posteriormente ao pleito eleitoral também seriam atingidas, tal como a validade da deliberação da Câmara municipal nos diversos projetos e leis aprovados. O ministro ressaltou que a doutrina e jurisprudência entendem que a margem de escolha conferida ao Tribunal para a fixação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade não legitima a adoção de decisões arbitrárias, estando condicionada pelo princípio de proporcionalidade.’”
Assim, nítido o entendimento que vem se firmando no STF no sentido da modulação do efeito ex tunc no controle difuso, adequando-se a um posicionamento mais justo ao caso concreto, aplicando efeitos ex nunc ou pro futuro.
Outra forma de modificação (ampliação) dos efeitos sentença em sede de controle difuso é a prevista no artigo 52, X da Constituição Federal.
Este dispositivo prevê que compete privativamente ao Senado Federal:
“X – suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.”
Desta forma, chegando ao STF a discussão sobre a inconstitucionalidade de determinado ordenamento jurídico, de forma incidente em controle difuso, e o Supremo em decisão definitiva entender de sua inconstitucionalidade, cabe a este, comunicar ao Senado Federal, para quando e se entender pertinente, suspender a execução da lei[5].
Vale aqui transcrever trecho de importante lição do Professor Alexandre de Moraes[6]:
“Efeitos da declaração de inconstitucionalidade – controle difuso
A. Entre as partes do processo (ex tunc)
Declarada incidenter tantum a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo pelo Supremo Tribunal Federal, desfaz-se, desde sua origem, o ato declarado inconstitucional, juntamente com todas as conseqüências dele derivadas, uma vez que os atos inconstitucionais são nulos e, portanto, destituídos de qualquer carga de eficácia jurídica, alcançando a declaração de inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo, inclusive, os atos pretéritos com base nela praticados. Porém, tais efeitos ex tunc (retroativos) somente tem aplicação para as partes e no processo em que houve a citada declaração.
B. Para os demais (ex nunc)
A Constituição Federal, porém, previu um mecanismo de ampliação dos efeitos da declaração incidental de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal (CF, art. 52, X). Assim, ocorrendo essa declaração, conforme já visto, o Senado Federal poderá editar uma resolução suspendendo a execução, no todo ou em parte, da lei ou ato normativo declarado inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, que terá efeitos erga omnes, porém, ex nunc, ou seja, a partir da publicação da citada resolução senatorial.”
Assim, muito embora a regra para a sentença, no controle difuso, seja gerar os efeitos ex tunc e inter partes, observamos aqui algumas exceções, seja pela ampliação exposta na própria Constituição, seja pelo novo entendimento jurisprudencial que vem sendo adotado pelo STF.
Além dessas exceções, existe outra que é justamente o objeto deste trabalho. Trata-se da abstrativização do controle difuso originada pela mutação constitucional do art. 52, X da CF, tema que hoje desperta grande atenção de nossos juristas, mas que está longe de ser pacífico e muito pouco comentado pelas obras acadêmicas.
2 – MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL
Como mencionado no início deste trabalho a evolução do constitucionalismo e os constantes movimentos constitucionais, buscam adequar o direito constitucional a realidade do momento em que se localiza.
A Mutação Constitucional ou como utilizado pela doutrina germânica, Verfassungsänderung, significa a mudança de sentido de alguma norma constitucional vigente, sem atingir o texto.
Como exposto por Loewenstein[7], “as inevitáveis acomodações do direito constitucional à realidade Constitucional realizam-se só de duas maneiras, às quais a teoria geral do estado deu o nome de reforma constitucional e mutação constitucional. Assim, uma Constituição não é jamais idêntica a si própria, estando constantemente submetida ao pantha rei heraclitiano de todo ser vivo”.
Vale ressaltar, no entanto, que a mutação constitucional possui limites bem claros, sendo o principal, o próprio texto da norma a ser adequada, que não pode ser ultrapassado, sob pena de gerar verdadeira inconstitucionalidade.
Importante esta noção, para aprofundar este trabalho e verificar os efeitos que a mutação constitucional pode gerar em determinado texto constitucional.
2.1 – O artigo 52, X da Constituição Federal
Como mencionado anteriormente, o efeito da sentença no controle difuso é inter partes. Este efeito pode ser ampliado pelo Senado Federal na forma do exposto no art. 52, X da Constituição da República.
Esta hipótese ocorre quando, em decisão definitiva, o Supremo Tribunal Federal reconhece a inconstitucionalidade de determinada lei ou ato normativo em controle difuso e comunica ao Senado Federal, que a seu turno pode suspender a eficácia dessa lei, mediante uma Resolução, conferindo-lhe efeitos erga omnes.
O Regimento Interno do Supremo (RISTF) estabelece, em seu art. 178 que “declarada, incidentalmente, a inconstitucionalidade, (…) far-se-á comunicação, logo após a decisão, à autoridade ou órgão interessado, bem como, depois do trânsito em julgado, ao Senado Federal, para os efeitos do art. 42, VII[8], da Constituição”.
Já o Regimento Interno do Senado Federal, no Capítulo III que trata da “suspensão da execução de lei inconstitucional”, traz o seguinte:
“Art. 386. O Senado conhecerá da declaração, proferida em decisão definitiva pelo Supremo Tribunal Federal, de inconstitucionalidade total ou parcial de lei mediante:
I – comunicação do Presidente do Tribunal;
II – representação do Procurador-Geral da República;
III – projeto de resolução de iniciativa da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.
Art. 387. A comunicação, a representação e o projeto a que se refere o art. 386 deverão ser instruídos com o texto da lei cuja execução se deva suspender, do acórdão do Supremo Tribunal Federal, do parecer do Procurador-Geral da República e da versão do registro taquigráfico do julgamento.
Art. 388. Lida em plenário, a comunicação ou representação será encaminhada à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, que formulará projeto de resolução suspendendo a execução da lei, no todo ou em parte.”
2.2 – Suspensão da Lei pelo Senado: Obrigação ou Faculdade?
Desde a Constituição de 1934 já existia a previsão de suspensão da Lei por parte do Senado, ou seja, efetiva participação política no controle difuso. E, desde que surgiu esta previsão, existe discussão sobre a obrigatoriedade ou não do Senado em suspender a Lei depois de recebida a comunicação do STF.
Esse tema continua não muito pacífico na doutrina, como se pode verificar das discussões que valem trazer à colação.
O Ilustre Celso Ribeiro Bastos[9] entende ser obrigatória a suspensão pelo Senado, caso verificados os procedimentos formais pelo STF:
“(…) Trata-se, pois, de atividade vinculada, de exame dos requisitos formais para a suspensão da lei ou ato. O Senado não se pode furtar à suspensão de lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, desde que se tenham verificados os requisitos para tanto.”
Em que pese este respeitável entendimento, o que se pode observar é que a maioria entende que a resposta é negativa, ou seja, o Senado não está obrigado a suspender.
Como já dizia o respeitável Ministro Aliomar Baleeiro[10]:
“O senado é o senhor da deliberação de suspender ou não suspender lei declarada inconstitucional. Seria supérflua a disposição, que o convertesse em porteiro de auditórios para sonelizar a decisão do Supremo Tribunal Federal. Era mais simples, nesse caso, declarar que ficariam sem nenhum efeito as leis julgadas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (…). Em verdade, ao Senado deve reconhecer-se a discrição de apreciar a conveniência nacional de suspender ou não os atos dados como inconstitucionais.”
No mesmo sentido segue Paulo Brossard[11], ao concluir valoroso trabalho:
“Tudo está a indicar que o Senado é o juiz exclusivo do momento em que convém exercer a competência, a ele e só a ele atribuída, de suspender lei ou decreto declarado inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. No exercício dessa cmpetência cabe-lhe proceder com equilíbrio e isenção, sobretudo com prudência, como convém à tarefa delicada e relevante, assim para os indivíduos, como para a ordem jurídica.”
Alexandre de Moraes[12] ainda acrescenta que “ao Senado Federal não só cumpre examinar o aspecto formal da decisão declaratória da inconstitucionalidade, verificando se ela foi tomada por quorum suficiente e é definitiva, mas também indagar da conveniência dessa suspensão.”
O Professor Pedro Lenza[13] chega a falar em afronta ao princípio da separação de Poderes:
“Trata-se de discricionariedade política, tendo o Senado Federal total liberdade para cumprir o art. 52, X, da CF/88. Caso contrário, estaríamos diante de afronta ao princípio da separação de Poderes.”
Note-se, neste aspecto, que se trata de efetiva participação política no controle difuso, sendo assim, uma decisão também de cunho político, portanto, é com esse olhar que o Senado deve se dirigir a decisão do STF, e se (e somente se) achar devido e quando achar devido, suspender a eficácia da Lei, dando efeitos erga omnes à decisão do STF.
2.3 – Abstrativização do Controle Difuso de Constitucionalidade
Muito embora o entendimento exposto sobre a participação política do Senado no controle difuso, bem como, sua faculdade e competência privativa de suspender ou não a eficácia de Lei declarada inconstitucional pelo STF, este último (Supremo) através do entendimento de alguns de seus Ministros, começa a apontar para sentido diverso.
Neste sentido diametralmente oposto do argumentado no tópico anterior, podemos citar com maior destaque, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, como, talvez, o maior defensor da tese de abstrativização do controle difuso.
A abstrativização, abstração, objetivação[14] ou até mesmo “dessubjetivização das formas processuais” do controle difuso de constitucionalidade[15], como dito, é uma forte tendência, embora não uníssona, no Supremo Tribunal Federal.
Nesse passo, verificamos que o STF em algumas decisões definitivas, declarando a inconstitucionalidade de Lei ou ato normativo em controle difuso, tem atribuído efeito erga omnes, declarando ainda, ser desnecessária posterior manifestação do Senado para que este efeito se opere.
Na verdade, o STF entendeu que a função do Senado, diante do que expõe o art. 52, X da CF, seria de dar mera publicidade à decisão judicial de inconstitucionalidade de lei.
Essa “nova interpretação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade no controle difuso pelo STF”[16], está sendo compreendida como verdadeira mutação constitucional, como nos afirma Gilmar Mendes[17]:
“De qualquer sorte, a natureza idêntica do controle de constitucionalidade, quanto às suas finalidades e aos procedimentos comuns dominantes para os modelos difuso e concentrado, não mais parece legitimar a distinção quanto aos efeitos das decisões proferidas no controle direto e no controle incidental.
Somente essa nova compreensão parece apta a explicar o fato de o Tribunal ter passado a reconhecer efeitos gerais à decisão proferida em sede de controle incidental, independentemente da intervenção do Senado.
O mesmo há de se dizer das várias decisões legislativas que reconhecem efeito transcendente às decisões do STF tomadas em sede de controle difuso. Esse conjunto de decisões judiciais e legislativas revela, em verdade, uma nova compreensão do texto constitucional no âmbito da Constituição de 1988.
É possível, sem qualquer exagero, falar-se aqui de uma autêntica mutação constitucional em razão da completa reformulação do sistema jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à regra do art. 52, X, da Constituição de 1988. Valendo-nos dos subsídios da doutrina constitucional a propósito da mutação constitucional, poder-se-ia cogitar aqui de uma autêntica reforma da Constituição sem expressa modificação do texto (FERRAZ, 1986, p. 64 et seq, 102 et seq; JELLINEK, 1991, p. 15-35; HSÜ, 1998, p. 68 et seq.).”
Nesse passo, observa-se que Gilmar Mendes entende que a sentença em sede de controle difuso pelo STF, teria o efeito da transcendência de seus motivos determinantes, ou seja, da sua ratio decidendi, ou seja, a declaração de inconstitucionalidade que é feita de forma incindenter tantum e não faz parte da parte dispositiva e sim das “razões da decisão”, transcenderia e também geraria efeitos vinculantes[18].
Verifica-se ainda, pelo entendimento de Gilmar Mendes, que a suspensão da execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publicidade:
“Sem adentrar o debate sobre a correção desse entendimento no passado, não parece haver dúvida de que todas as construções que se vêm fazendo em torno do efeito transcendente das decisões pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Congresso Nacional, com o apoio, em muitos casos, da jurisprudência da Corte, estão a indicar a necessidade de revisão da orientação dominante antes do advento da Constituição de 1988.
Assim, parece legítimo entender que, hodiernamente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publicidade. Desta forma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão, de modo definitivo, de que a lei é inconstitucional, esta decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que este publique a decisão no Diário do Congresso. Tal como assente, não é (mais) a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo.
A própria decisão da Corte contém essa força normativa. Parece evidente ser essa a orientação implícita nas diversas decisões judiciais e legislativas acima referidas. Assim, o Senado não terá a faculdade de publicar ou não a decisão, uma vez que se não cuida de uma decisão substantiva, mas de simples dever de publicação, tal como reconhecido a outros órgãos políticos em alguns sistemas constitucionais (Constituição austríaca, art. 140,5 – publicação a cargo do Chanceler Federal, e Lei Orgânica da Corte Constitucional Alemã, art. 31,(2) publicação a cargo do Ministro da Justiça). A não-publicação não terá o condão de impedir que a decisão do Supremo assuma a sua real eficácia.
Essa solução resolve de forma superior uma das tormentosas questões da nossa jurisdição constitucional. Superam-se, assim, também, as incongruências cada vez mais marcantes entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e a orientação dominante na legislação processual, de um lado, e, de outro, a visão doutrinária ortodoxa e – permita-nos dizer – ultrapassada do disposto no art. 52, X, da Constituição de 1988.”[19]
Lúcio Bittencourt[20], expôs que a finalidade da decisão do senado sempre foi a de “apenas tornar pública a decisão do tribunal, levando-a ao conhecimento de todos os cidadãos”.
Dentre as decisões que já seguem neste sentido, importante destacar a Reclamação 4.335/AC, cujo relator é o Ministro Gilmar Mendes, valendo transcrever o que foi exposto sobre esta decisão no Informativo n. 454 do STF[21]:
“Reclamação: Cabimento e Senado Federal no Controle da Constitucionalidade – 1
O Tribunal iniciou julgamento de reclamação ajuizada contra decisões do Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco-AC, pelas quais indeferira pedido de progressão de regime em favor de condenados a penas de reclusão em regime integralmente fechado em decorrência da prática de crimes hediondos. Alega-se, na espécie, ofensa à autoridade da decisão da Corte no HC 82959/SP (DJU de 1º.9.2006), em que declarada a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90, que vedava a progressão de regime a condenados pela prática de crimes hediondos. O Min. Gilmar Mendes, relator, julgou procedente a reclamação, para cassar as decisões impugnadas, assentando que caberá ao juízo reclamado proferir nova decisão para avaliar se, no caso concreto, os interessados atendem ou não os requisitos para gozar do referido benefício, podendo determinar, para esse fim, e desde que de modo fundamentado, a realização de exame criminológico. Rcl 4335/AC, rel. Min. Gilmar Mendes, 1º.2.2007. (Rcl-4335)
Reclamação: Cabimento e Senado Federal no Controle da Constitucionalidade – 2
Preliminarmente, quanto ao cabimento da reclamação, o relator afastou a alegação de inexistência de decisão do STF cuja autoridade deva ser preservada. No ponto, afirmou, inicialmente, que a jurisprudência do STF evoluiu relativamente à utilização da reclamação em sede de controle concentrado de normas, tendo concluído pelo cabimento da reclamação para todos os que comprovarem prejuízo resultante de decisões contrárias às suas teses, em reconhecimento à eficácia vinculante erga omnes das decisões de mérito proferidas em sede de controle concentrado. Em seguida, entendeu ser necessário, para análise do tema, verificar se o instrumento da reclamação fora usado de acordo com sua destinação constitucional: garantir a autoridade das decisões do STF; e, depois, superada essa questão, examinar o argumento do juízo reclamado no sentido de que a eficácia erga omnes da decisão no HC 82959/SP dependeria da expedição da resolução do Senado suspendendo a execução da lei (CF, art. 52, X). Para apreciar a dimensão constitucional do tema, discorreu sobre o papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade. Rcl 4335/AC, rel. Min. Gilmar Mendes, 1º.2.2007. (Rcl-4335)
Reclamação: Cabimento e Senado Federal no Controle da Constitucionalidade – 3
Aduziu que, de acordo com a doutrina tradicional, a suspensão da execução pelo Senado do ato declarado inconstitucional pelo STF seria ato político que empresta eficácia erga omnes às decisões definitivas sobre inconstitucionalidade proferidas em caso concreto. Asseverou, no entanto, que a amplitude conferida ao controle abstrato de normas e a possibilidade de se suspender, liminarmente, a eficácia de leis ou atos normativos, com eficácia geral, no contexto da CF/88, concorreram para infirmar a crença na própria justificativa do instituto da suspensão da execução do ato pelo Senado, inspirado numa concepção de separação de poderes que hoje estaria ultrapassada. Ressaltou, ademais, que ao alargar, de forma significativa, o rol de entes e órgãos legitimados a provocar o STF, no processo de controle abstrato de normas, o constituinte restringiu a amplitude do controle difuso de constitucionalidade. Rcl 4335/AC, rel. Min. Gilmar Mendes, 1º.2.2007. (Rcl-4335)
Reclamação: Cabimento e Senado Federal no Controle da Constitucionalidade – 4
Considerou o relator que, em razão disso, bem como da multiplicação de decisões dotadas de eficácia geral e do advento da Lei 9.882/99, alterou-se de forma radical a concepção que dominava sobre a divisão de poderes, tornando comum no sistema a decisão com eficácia geral, que era excepcional sob a EC 16/65 e a CF 67/69. Salientou serem inevitáveis, portanto, as reinterpretações dos institutos vinculados ao controle incidental de inconstitucionalidade, notadamente o da exigência da maioria absoluta para declaração de inconstitucionalidade e o da suspensão de execução da lei pelo Senado Federal. Reputou ser legítimo entender que, atualmente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado há de ter simples efeito de publicidade, ou seja, se o STF, em sede de controle incidental, declarar, definitivamente, que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação àquela Casa legislativa para que publique a decisão no Diário do Congresso. Concluiu, assim, que as decisões proferidas pelo juízo reclamado desrespeitaram a eficácia erga omnes que deve ser atribuída à decisão do STF no HC 82959/SP. Após, pediu vista o Min. Eros Grau. Rcl 4335/AC, rel. Min. Gilmar Mendes, 1º.2.2007. (Rcl-4335)
Vale observar que o Informativo transcrito faz referência a trechos do voto do Ministro Gilmar Mendes, pois até a conclusão deste trabalho esta Reclamação ainda não havia sido julgada.
Aliás, este julgamento é bastante aguardado, pois pode definir o atual posicionamento do STF, até porque, os Ministros Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa, demonstram entendimento diverso do adotado por Gilmar Mendes, que é seguido pelo Ministro Eros Grau.
De toda a sorte, não são poucas as decisões em que o STF vem demonstrando seguir na trilha da abstrativização do controle difuso. O Professor Fredie Didier traz à colação em seu Curso[22] algumas dessas decisões e apresenta a seguinte conclusão:
“Assim, as decisões do STF, em matéria de controle de constitucionalidade e interpretação da constituição, podem ser divididas em quatro espécies, de acordo com a sua força vinculante e a extensão subjetiva dos seus efeitos: a) proferidas por uma turma, em controle difuso; b) proferidas pelo Pleno, em controle difuso, e ainda não consagradas em enunciado de súmula vinculante; c) posicionamentos já consagrados em súmula vinculante; d) decisões em controle concentrado de constitucionalidade. (…)
A segunda espécie (“b”), como vimos, pode produzir efeitos ultra partes, como precedente jurisprudencial vinculativo, mas pode ser revista pelo Pleno do STF, surgindo fundamentos e tendo em vista a evolução do pensamento a respeito do assunto(…)”
Assim, observamos que existe uma respeitável corrente jurisprudencial e doutrinária adotando a abstrativização do controle difuso de constitucionalidade.
Tal posicionamento demonstra um grande poder de sedução, eis que se apresenta como relevante e eficaz solução, pulando etapas “burocráticas” e “desnecessárias”, principalmente no tocante a demora da manifestação pelo Senado Federal na forma do art. 52, X da CF, mostrando efetiva celeridade processual, bem como, economia e efetividade processuais[23].
Não obstante a todo o benefício apresentado, inúmeras são as críticas a esse posicionamento, sendo tachado por alguns de procedimento claramente inconstitucional.
3 – A INVIABILIDADE DA TESE DE ABSTRATIVIZAÇÃO
3.1 – A Atuação do Senado Federal no Controle Difuso
Como já mencionado neste trabalho, a atuação senatorial no controle difuso de constitucionalidade já era prevista desde a Constituição da república de 1934, estabelecendo seu art. 91, IV que competiria ao Senado Federal “suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário”.
Este previsão, excetuando a Constituição de 1937[24], seguiu em todas as demais constituições brasileiras, de modo a demonstrar sua importância e a real intenção de manutenção, pelo legislador, de referido dispositivo no ordenamento jurídico.
Como bem exposto por Sérgio Resende de Barros[25]:
“"A intervenção do Senado no controle difuso é um engenhoso meio jurídico-político de atender ao princípio da separação de poderes, entre cujos corolários está o de que só lei pode revogar lei. Esse princípio tem de ser mantido no controle difuso, pois faz parte de sua lógica. A lógica do controle concentrado é outra: admite a corte constitucional como legislador negativo, o que é inaceitável no controle difuso. Cada modo de controle deve manter sua lógica para conviver em harmonia. Se não, o misto se torna confuso. Exatamente para manter a lógica do controle difuso, coerente com a separação de poderes, é que se teoriza que o Senado subtraí exiqüibilidade à lei, porém não a revoga.(…)"
3.2 – O Sistema de Freios e Contrapesos (Checks and Balances)
Como exposto neste trabalho, a previsão do art. 52, X de nossa atual Constituição, além de preservar a vontade do legislador desde 1934, preserva a lógica do princípio da Separação dos Poderes.
Qualquer modificação em seu texto representa séria mácula ao sistema de freios de contrapesos (checks and balances), que nada mais é do que a harmonia e independência das funções do Estado exercida pelos “poderes”[26] Legislativo, Executivo e Judiciário.
Quando um dos poderes retira função de outro poder, mexe de forma considerável em todo um sistema e adentra em terreno bastante perigoso para a harmonia e independência tão frisada no art. 2º da Constituição Federal, que aliás, não seria demasiado dizer que se trata de texto constitucional que nem mesmo poderia nem ser objeto de Emenda Constitucional (art. 60, § 4º, III da CF), ou seja, Cláusula Pétrea.
Neste prisma, será constitucional a mutação “constitucional” que alguns juristas e doutrinadores entendem ter havido no art. 52, X da CF?
3.3 – A Mutação “Constitucional” do Art. 52, X da Constituição Federal
Para responder a pergunta realizada no item anterior, primeiro é preciso verificar que a mutação constitucional ocorre quando enxergamos de forma diferente e evoluída um determinado texto constitucional sem que tenha havido sua alteração física direta.
Ocorre que a mutação constitucional possui limites bem claros, como nos ensina o Professor Luis Roberto Barroso[27]:
“Por assim ser, a mutação constitucional há de estancar diante de dois limites: a) as possibilidades semânticas do relato da norma, vale dizer, os sentidos possíveis do texto que está sendo interpretado; e b) a preservação dos princípios fundamentais que dão identidade àquela específica Constituição.”
Desta forma, se pode observar que o principal limite da mutação constitucional é o próprio dispositivo constitucional.
Nessa mesma trilha Korad Hesse[28] expõe:
“(…) uma mudança das relações fáticas pode – ou deve – provocar mudanças na interpretação da Constituição. Ao mesmo tempo, o sentido da proposição jurídica estabelece o limite da interpretação e, por conseguinte, o limite de qualquer mutação constitucional.”
Ocorre que, aqueles que adotam a abstrativização do controle difuso, entendem ter havido verdadeira mutação constitucional no art. 52, X da CF, declarando ser desnecessária a suspensão da execução de lei ou ato normativo pelo Senado Federal para que a decisão definitiva do Supremo tenha efeitos erga omnes.
Nesse passo, entendem que a decisão definitiva do STF no controle difuso de constitucionalidade, que declara a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, passaria a ter após sua publicação, efeitos transcendentes e vinculantes, sendo que a atuação do Senado Federal, na forma do art. 52, X da CF, teria mero efeito de dar publicidade a decisão do Supremo.
Neste aspecto, observa-se claramente que esse entendimento de mutação constitucional do art. 52, X da CF, acaba por transformá-lo, praticamente, em letra morta.
Assim, a alegada mutação constitucional não ficou limitada ao texto do dispositivo constitucional, mas sim, tenta-se uma real alteração expressa do texto.
Aliás, como bem exposto em ótimo trabalho, por Dalton Santos Morais[29]:
“(…) não se pode interpretar como atualmente inaplicável o art. 52, X da Constituição, sob o argumento da mutação constitucional – ainda que tal idéia a princípio pareça contemporaneamente apaixonante, como o é -, salvo se, através de emenda constitucional, o referido dispositivo constitucional for extraído da Carta vigente ou se tiver sua finalidade limitada, ainda que parcialmente, para conferir à atuação senatorial, no controle concreto e difuso de constitucionalidade, o caráter de mera publicidade propugnado pela corrente doutrinária ora contestada.
Sim, porque a mutação constitucional propugnada pela doutrina ora criticada para nulificar o art. 52, X da Constituição vigente não pode conduzir o intérprete a suplantar os limites que a própria disposição constitucional lhe oferece, pois o rompimento com as disposições constitucionais não é admitido nem mesmo pelo maior defensor da mutação constitucional.”
Ao querer menosprezar a atuação do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade, dando-lhe função de mero “Diário Oficial”, essa suposta mutação seria inconstitucional, até em razão de ter ultrapassado os próprios limites da mutação constitucional, fazendo verdadeira revogação do dispositivo.
Anna Cândida Ferraz[30], neste mesmo sentido, traz importante lição sobre o tema:
“os processos de mutação manifestamente inconstitucional alteram, transformam, mudam, substituem e até mesmo destroem normas constitucionais, ou a Constituição por inteiro (…) Inadmissíveis teoricamente diante da concepção de Constituição, obra de um poder mais alto, reflexo de uma idéia de direito na comunidade, decisão política fundamental positivada, dotada de caráter impositivo que deve prevalecer sobre todo o sistema jurídico e político, abarcando, a um só tempo, todos os atos dos governantes e governados, perduram, todavia, na prática. Combatê-los e repeli-los é, pois, imperativo indiscutível”.
Álvaro Ricardo de Souza Cruz[31], complementa em útil comentário sobre o assunto:
“Alguns autores brasileiros chegam a questionar a "utilidade" da remessa da decisão ao exame do Senado no modelo difuso, em razão da ampliação dos mecanismos de controle pela via concentrada.
Todavia, é inegável ser ainda a participação senatorial uma exigência constitucional, compondo o devido processo constitucional nos termos da Carta de 1988.
Ora, ao Senado Federal foi deferida pela Constituição atribuição política para examinar a conveniência e oportunidade da suspensão dos efeitos de leis e atos normativos, não só federais, mas estaduais e municipais.
A decisão de cunho vinculativo e geral foi entregue pela Constituição ao Legislativo, posto que a matéria envolve não apenas juízo de aplicação, mas também juízo de fundamentação da norma pelo Senado Federal. Assim, cabe ao Legislativo (Senado Federal), e não ao Supremo ou a qualquer outro Tribunal, conceder efeito vinculante na via difusa de controle de constitucionalidade das leis. (…).”
Desta forma, entender que a função do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade passa a ser de dar mera publicidade às decisões do Supremo retira qualquer possibilidade de chancela dos representantes do povo.
Afinal, nítida a intenção do legislador em dar característica também política a esta forma de controle, permitindo a atuação do Senado, o que não pode ser desconsiderado e nem esvaziado por simples interpretação (in)constitucional, ainda que seja pela nossa Corte Constitucional.
Como bem observa José Ribas Vieira e Deilton Ribeiro[32]:
"Como vemos é nítida a tomada de uma nova postura do Supremo tribunal Federal que nos dizeres de Ingebord Maus seria o de censor ilimitado do legislador, em que procede à sua auto-reprodução e gerencia uma mais valia que de longe supera suas vastas competências constitucionais. A apropriação da persecução de interesses sociais, de processos de formação da vontade política e dos discursos morais por parte da mais alta corte é alcançada mediante profunda transformação do conceito de Constituição, praticando uma teologia constitucional."
Vale ainda observar, que o entendimento de restrição da função do Senado Federal sofre severas críticas até mesmo dentro do próprio Supremo Tribunal Federal, conforme entendimento do Ministro Joaquim Barbosa na Reclamação nº 4.335-5/AC[33], onde ele segue linha diametralmente oposta:
“(…) haveria de ser mantida a leitura tradicional do art. 52, X, da CF, que trata de uma autorização ao Senado de determinar a suspensão de execução do dispositivo tido por inconstitucional e não de uma faculdade de cercear a autoridade do STF(…) que essa proposta, além de estar impedida pela literalidade do art. 52, X, da CF, iria na contramão das conhecidas regras de auto-restrição."
3.4 – Processo de “Germanização”
Alguns Autores chamam essa tentativa de Abstrativização do Controle Difuso de Constitucionalidade de verdadeiro movimento de “germanizção” de nosso controle.
Ocorre que o controle de constitucionalidade brasileiro é totalmente distinto e incompatível com o sistema germânico, conforme nos aponta Leonardo Martins[34]:
"(…) ao contrário do que ocorre na tradição brasileira, o sistema de controle de constitucionalidade [na Alemanha] é concentrado, ou seja, é da competência exclusiva do TCF [Tribunal Constitucional Federal alemão] realizar o controle vinculante, ainda que este seja ensejado por um caso particular ou concreto (controle concreto). Isso significa que o juiz do feito não poderá ignorar ou denegar aplicação à norma ainda não declarada inconstitucional por entender que tal norma fere a Constituição, como ainda ocorre no direito brasileiro, onde se adotou o assim denominado "sistema difuso". Abaixo se verá que, na Alemanha, todo juiz tem o dever de verificar a inconstitucionalidade da norma que decide o caso, independentemente de provocação da parte processual interessada, mas não pode lhe negar a aplicabilidade quando ainda não declarada inconstitucional pelo tribunal que tem a competência exclusiva para tanto, o TCF."
Sobre essa tendência “germanização” de nosso controle de constitucionalidade, vale trazer aqui importante lição extraída de importante trabalho apresentado por Dalton Santos de Morais[35]:
“Entrementes, parece-nos também errático o entendimento de que se o Supremo Tribunal Federal já detém a competência constitucional de exercer o papel de legislador-negativo no controle abstrato de normas – por determinação da própria Constituição -, a Corte poderia exercer uma suposta função de "menor importância" para tornar definitiva a questão constitucional no controle concreto e difuso de normas.
Evidente que tal espécie de posicionamento apresenta-se como vertente prática daquele movimento de "abstrativização" do controle difuso já comentado anteriormente, com a finalidade de tornar ainda mais preponderantes as decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal, ainda que estas sejam proferidas em demandas concretas submetidas à Corte pela via difusa de controle de constitucionalidade.
Esse estágio de "preponderância" do controle abstrato concentrado no Supremo Tribunal Federal tem sido denominado por certos doutrinadores como uma verdadeira "germanização" de nosso sistema de controle, através da qual, mediante a pura transposição de instrumentos de controle de constitucionalidade moldados historicamente no sistema alemão de controle de constitucionalidade, impõe-nos uma verdadeira desconstrução do controle concreto de constitucionalidade realizado por via difusa.
Somente nessa tendência de uma "germanização" de nosso controle de constitucionalidade – que não detém a mesma característica de incidentalidade típica do sistema germânico – se pode entender a orientação doutrinária de que "(…) poder-se-ia cogitar, nos casos de controle de constitucionalidade em ação civil pública, de suspensão do processo e remessa da questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, via argüição de descumprimento de preceito fundamental, mediante provocação do juiz ou tribunal competente para a causa."
(…)Por óbvio, a pretensão conduzida no sentido de esvaziar, integralmente, o controle concreto de constitucionalidade realizado pela via difusa, ou seja por todo e qualquer juiz ordinário, não é consentânea ao modelo de controle estabelecido pela Constituição de 1988, nem com as diversas emendas constitucionais que a alteraram ao longo do tempo, visto que nossa Carta atual vem pretendendo, desde seu texto original, aliar a segurança da via concentrada, onde se realiza a análise do próprio dispositivo legal em abstrato, com a subjetividade [63] da via difusa de controle, através da qual se permite que o juiz analise a questão constitucional como mero incidente à questão de mérito, questão meritória esta que será, efetivamente, com todos os dramas dos seres humanos que compõem a lide [64], o objeto de seu julgamento.”
Nesse passo, importante verificar antes de aderir a qualquer tendência, sua origem e compatibilidade com o ordenamento jurídico de onde se vai empregar a novidade.
3.5 – Súmula Vinculante: Solução?
Desde o advento da Emenda Constitucional nº 45/2004 que o Supremo Tribunal Federal não necessita utilizar-se do Senado Federal para conferir efeitos de eficácia vinculante e erga omnes às suas decisões de mérito proferidas em sede de controle difuso de constitucionalidade.
Assim, o art. 103-A da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 45/2004[36], trouxe a possibilidade do STF editar, até mesmo de ofício, súmula vinculante:
“Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.
§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso."
Assim, o Supremo não necessita mais da atuação senatorial para que de suas decisões em via de controle concreto gerem efeitos vinculantes.
Ocorre que, para edição de Súmula Vinculante existem alguns critérios e entre eles a necessidade de reiteradas decisões da Corte sobre matéria constitucional, bem como, de quorum de dois terços de seus membros.
Nesse passo, se existe um procedimento para conferir efeitos vinculantes às decisões sobre matéria constitucional em controle difuso (edição da Súmula Vinculante), não se deve adotar qualquer outra medida (como a abstrativização do controle difuso), pois embora, certamente não seja esta a intenção, poderia acarretar na desnecessidade de se seguir aos critérios do quorum qualificado, bem como, a necessidade de reiteradas decisões nesse sentido.
É claro, como dito, que esta não é a intenção do STF, pois este busca, uma fórmula até muito atraente de celeridade e economia processual, mas que deve ser observada dentro de todo o conjunto jurídico constitucional para verificação de sua possibilidade.
CONCLUSÃO
Efetivamente, buscou-se neste artigo, traçar uma visão crítica diante de muitas decisões judiciais e teses doutrinárias a respeito da abstrativização do controle difuso de constitucionalidade.
Com isso, procurou-se ainda transcorrer sobre a base e evolução do constitucionalismo e movimentos constitucionais que levaram aos novos pensamentos, principalmente extraídos do neoconstitucionalismo e sobre a motivação da força principiológica e normativa que vem sendo atribuída à constituição.
Grandes e “novos” posicionamentos vêm sendo adotados pela doutrina e jurisprudência pátria. Estão em voga severas discussões sobre a mutação constitucional, a teoria da transcendência dos motivos determinantes da sentença, abstrativização (abstração, objetivação, “dessubjetivização das formas processuais ou germanização) do controle difuso de constitucionalidade.
Foi observado que, longe de ser pacífico junto à jurisprudência, notadamente no Supremo Tribunal Federal, estas novas teses vem ganhando espaço.
Não obstante a isso, o objetivo deste trabalho foi o de verificar se esses novos movimentos, principalmente no tocante a abstrativização do controle difuso, têm amparo no ordenamento jurídico brasileiro.
Observa-se nesse sentido, e com a devida vênia, que a tese não encontra guarida por:
a) não observar os limites de interpretação da mutação constitucional e reduzir sobremaneira a eficácia do art. 52, X da Constituição Federal, tornando-o praticamente letra morta e assim, reformar o texto sem processo formal de reforma;
b) atingir a harmonia e independência entre os “poderes” da união, causando verdadeiro descontrole no sistema de freios e contrapesos, ao praticamente anular a participação política do Senado no controle difuso de constitucionalidade, e
c) não observar o quorum qualificado previsto na Constituição para se conferir efeitos erga omnes às decisões definitivas em matéria constitucional no controle concentrado (Súmula Vinculante).
Assim, em que pese o Supremo Tribunal Federal desempenhar importantíssimo e essencial papel de estabilizador definitivo da ordem constitucional brasileira e a tese de abstrativização ser, sem sombra de dúvidas, sedutora e capaz de promover uma grande economia processual; enquanto existir previsão expressa no texto constitucional de efetiva participação política no controle difuso, isto não pode ser desconsiderado, sob pena de incorrer em verdadeira inconstitucionalidade.
Nesse passo, no controle difuso, não havendo suspensão da execução da lei ou ato normativo pelo Senado Federal, a decisão do Supremo que declara a inconstitucionalidade somente deverá ter efeito inter partes, continuando válida e eficaz para todos os demais.
Informações Sobre o Autor
Alberto Marcio de Carvalho
Advogado e Professor. Pós-graduado em Direito Público