Resumo: A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 alargou o conceito de família, até então restrita ao casamento, reconhecendo como entidade familiar a união estável e a família monoparental. Porém, tendo em vista ser a família um fato social, a doutrina e a jurisprudência tem se orientado pelo reconhecimento de um sentido aberto de família, contemplando juridicamente outras formas de estrutura familiar. Assim, como resultado da pós-modernidade, que possibilita a cada um iniciar um novo projeto de felicidade após a falência de uma relação marital, tem se afirmado a família “mosaico”, tendo como membros os filhos de um vivendo sob o mesmo teto que o novo companheiro do genitor, sendo comum o entrelaçamento afetivo com este e os seus filhos, possuindo reflexos próprios no Direito.
Palavras-chave: família; afeto; família “mosaico”.
Sumário: 1. Introdução; 2. A família ao longo dos tempos; 3. O afeto no direito de família; 3. A afirmação da família “mosaico” e seus reflexos no direito. Considerações finais. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
A família é um fato social, anterior e acima do próprio Direito, tendo em vista as suas constantes transformações. Por mais que até 1988 a lei pátria só reconhecesse como família à proveniente do casamento, à doutrina já reclamava e a jurisprudência já acatava os efeitos jurídicos de outras estruturas familiares.
Assim, com a Constituição Federal de 1988, o ordenamento jurídico, a princípio, reconheceu expressamente duas novas entidades familiares além do casamento, as mais comuns, sendo a união estável e a família monoparental, porém, tal fato não excluiu a possibilidade de outros tipos de família.
Desse modo, a doutrina tem se posicionado por uma interpretação extensiva do conceito de família, reconhecendo outras formas de família como dignas de tutela jurídica, sendo o afeto o princípio norteador para este reconhecimento.
Assim, para a elaboração deste artigo, iniciou-se pelo estudo da evolução da família ao longo tempo, para que seguidamente fosse abordado o afeto no âmbito do Direito de Família atual. Por fim, estudou-se o fenômeno da família “mosaico” e seus reflexos no Direito.
Destarte, o objeto deste artigo científico é a família “mosaico”. Seu objetivo é verificar, com base na doutrina, os reflexos da família “mosaico” no Direito.
Foi utilizado o método indutivo, operacionalizado, principalmente, pelas técnicas da pesquisa bibliográfica e do referente.
2. A FAMÍLIA AO LONGO DOS TEMPOS
Preceitua a melhor doutrina que a família é a célula base de toda e qualquer sociedade, despertando o interesse de todos os povos em todos os tempos. (DINIZ, 2007).
Nesse diapasão, aponta Arthur W. Müller que as formações familiares são profundamente influenciadas por antigos costumes e hábitos dos séculos passados, influenciando nas características das atuais famílias “pós-modernas”. (MÜLLER, 2009).
Müller, em referência a Ariés, destaca que durante o século XVII o poder patriarcal era definidor quanto as intencionalidades das uniões, de modo que quando se tratava de casamento, ninguém pensava em contestar o poder dos pais nessa questão. Neste século, assim como nos outros, o casamento arranjado atuou como forma de manutenção e expansão patrimonial. (MÜLLER, 2009).
Ainda sobre a estrutura da família anterior ao século XVIII, Maria Berenice Dias demonstra que esta tinha formação extensiva, caracterizada como uma verdadeira sociedade rural, composta por todos os parentes que formavam uma única unidade de produção, resultando em um amplo incentivo a procriação, alicerçada no pilar da hierarquização patriarcal (DIAS, 2010).
Com as mudanças econômicas trazidas pela Revolução Industrial no século XVIII, a família abandona a missão de ser apenas uma unidade de produção comandada por um chefe, o pai. Aumentou-se a necessidade de mão de obra terceirizada, de modo que para melhorar as condições de vida da família inserida no contexto de uma nova sociedade capitalista, a mulher se viu obrigada a ingressar no mercado de trabalho, deixando o homem de ser a única fonte de renda. (CUNHA, 2001).
Com as mudanças econômicas, bem ressalta Maria Berenice Dias que a família se tornou nuclear, restrita ao casal e sua prole, obrigando seus indivíduos a coabitarem em espaços físicos menores, incrustados nas grandes cidades. Tal fenômeno resultou na aproximação dos membros da entidade familiar, as tornando mais igualitárias, privilegiando o afeto, assumindo o ideal de felicidade democrática o eixo norteador dos planos familiares. (DIAS, 2010).
Em nosso século, a família ganha denominação de pós-moderna, pluralista, em decorrência dos tipos alternativos de convivência que apresenta. Das grandes transformações na estrutura da família, podemos observar algumas marcas deixadas pelas origens da família ocidental moderna. Da família romana, herdamos a autoridade presente no chefe da família, tendo como ponto de partida a submissão da esposa e dos filhos ao pai. Da família medieval, obtivemos o caráter sacramental do casamento originado no século XVI. Da cultura portuguesa, perpetuou-se o caráter de solidariedade, o sentimento de sensível ligação afetiva, abnegação e desprendimento. (SIMIONATO; OLIVEIRA; 2012).
A família atual, reflexo de mudanças das estruturas políticas, econômicas e sociais, voltou-se para a proteção da pessoa humana, observando ideais de pluralismo, solidarismo, democracia, igualdade, liberdade e humanismo. Trata-se de família com função instrumental, que tem como maior objetivo a realização dos interesses afetivos e existenciais de seus integrantes. (SINGLY, 2000).
Arnaldo Rizzardo, por sua vez, afirma que a definição de família se afasta de conceitos que colocam os seus membros em uma posição de subordinação a um chefe, tratando-se agora de instituição formada pela igualdade hierárquica entre o homem e a mulher. Ademais, segundo o Jurista não se pode falar também em hierarquia entre pais e filhos, ao passo que a relação da prole com o genitor passou a ter outra conotação, diferente daquela em que vigorava o pátrio poder como absoluto, nesse sentindo, in verbis:
“[…] Firmou-se uma paridade entre pais e filhos, tornando-se os direitos concernentes à moradia um patrimônio de todos os membros, de tal sorte que a impenhorabilidade deve preponderar se destinado o imóvel a qualquer um dos integrantes da entidade familiar.” (RIZZARDO, 2006, p. 13).
Nesse norte, lecionam Henri, León e Jean Mazeaud que “La colectividad formada por las personas que, a causa de sus vínculos de parentesco consanguíneo o de su calidad de cónyuges, están sujetas a la misma autoridad: la del cabreza de familia”. (RIZARDO, 2006, p.13).
No que cocerne ao Direito de Família pátrio, extrai-se que as constituições, e consequentemente, a legislação extravagante, apenas reconheciam o casamento como entidade familiar, excluindo da salvaguarda legal qualquer outra forma de estrutura familiar.
Nesse sentido, ensina Maria Berenice Dias que:
“O Estado solenizou o casamento como uma instituição e o regulamentou exaustivamente. Os vínculos interpessoais passaram a necessitar da chancela estatal. É o estado que celebra o matrimônio mediante o atendimento de inúmeras formalidades. Reproduziu o legislador de 1916 o perfil da família então existente: matrimonializada, patriarcal, hierarquizada e heterossexual. Só era reconhecida a família constituída pelo casamento. O homem exercia a chefia da sociedade conjuga, sendo merecedor de respeito, devendo-lhe a mulher e os filhos obediência. A finalidade essencial da família era a conservação do patrimônio, precisando gerar filhos com força de trabalho. Como era fundamental a capacidade procriativa, claro que as famílias necessitavam ser constituídas por um par heterossexual e fértil.” (DIAS, 2010, p. 45).
A Constituição da República Federativa de 1988 rompe com o ideal de família unitária do casamento, reconhecendo na monoparentalidade e na união estável o status de família legítima.
Assim, o art. 226 de nossa Carta Magna institui a família como base da sociedade, garantindo a especial proteção do Estado, estabelecendo o casamento civil de forma gratuita quanto a sua celebração, reconhecendo também no casamento religioso efeitos civis nos termos da lei. No parágrafo terceiro do citado artigo foi reconhecido, para efeito de proteção do Estado, a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, bem como no parágrafo quarto foi expressamente reconhecido como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, doutrinariamente denominada de família monoparetal.
Sobre o aspecto constitucional do Direito de Família, Arnaldo Rizzardo assevera que a Carta Magna delineou uma diferente ordem estrutural a este ramo do Direito, introduzindo novos ramos e indagações, e excluindo antigas e injustificáveis discriminações. Destarte, o Direito de Família, edificado na Constituição, fundamenta-se nas seguintes premissas: igualdade de direitos entre homem e a mulher; a absoluta paridade entre os filhos, independente da origem dos mesmos; a prevalência da afeição mútua nas relações de caráter pessoal; a aceitação da união estável e grupo formado por um dos pais e seus descendentes como entidade familiar. (RIZARDO, 2006).
Por fim, segundo Rizzardo, o filho não é mais a finalidade básica do casamento, nem a família tem mais aquela concepção de célula da sociedade, ou de elemento de formação e preparação dos filhos para a sociedade. Desapareceu a figura dominante e patriarcal do pai, bem afirmada no seu nome que era passado para os membros da família, representada e identificada até então pelo seu chefe. (RIZZARDO, 2006). A família agora passa por um processo evolutivo de dissociação, desaparecendo a subordinação, prevalecendo a igualdade, ganhando o afeto o reconhecimento como núcleo ensejador da família moderna. (DIAS, 2010).
3. O AFETO NO DIREITO DE FAMÍLIA
Afeto, segundo o dicionário Michaelis, é o sentimento de afeição ou inclinação para alguém, amizade, paixão, simpatia. (Michaelis, 2008).
Arnaldo Rizzardo introduz o tema ao afirmar as consideráveis mudanças nas relações de família, em que novos conceitos passam a dominar em detrimento de valores antigos. Nesse norte, o sentimento acaba tendo mais valor que o mero convívio despido de amor. (RIZZARDO, 2006).
O Jurista aponta que em tempos não muito distantes, o ordenamento jurídico insistia na convivência do casal, mantendo-se dessa forma muitos casamentos apenas formalmente, não representando nada nos aspectos prático e afetivo. Assim, no plano das separações, percebe-se a opção das pessoas que, já sem receio de ferir os ditames sociais, despojam-se do respeito às aparências, enveredaram-se para a expansão da verdade através de condutas autênticas. (RIZZARDO, 2006).
No âmbito da psicologia, Catarina Marina Rosa e Sérgio Tibiriçá Amaral destacam que muitas doutrinas abordam o afeto com a designação de carícia, afirmando ser esta essencial para o desenvolvimento de todo o ser humano. (ROSA; TIBIRIÇÁ, 2010).
Rafael Cano, em referência ao tema, afirma que:
“Afeto, caricia, amor, várias são as maneiras de sua representação.seria impossível tentar enumera-las, mas é inegável que podem trazer inúmeros benefícios no dia a dia das pessoas. Sendo um simples olhar, um abraço, um beijo, um sorriso, uma carta, um telefonema, um afago, um gesto, um ombro amigo, uma companhia, ver uma criança brincar sozinha, uma lagrima o suficiente para transformar qualquer transtorno em um sentimento bom, sentimento de afeto, de caricia, de amor, de alegria […] Somente podem ser dignas e iguais as pessoas que respeitam as outras, e isto acontece de forma voluntária quando se unem em virtude do afeto.” (ROSA; TIBIRIÇÁ, 2010, p. 6).
Marina Rosa e Sérgio Tibiriçá Amaral ressaltam que o afeto e tido como um elemento fundamental nas relações que permeiam a família, de grande interesse da própria pessoa envolvida com ele. No que concerne ao seu valor jurídico, este variou no decorrer do tempo, havendo dois momentos básicos distintos, o primeiro evidenciado na presença do afeto nas relações de família considerada inerente ao organismo familiar, e o segundo, em que sua presença se tornou essencial para dar visibilidade jurídica ás relações das famílias. (ROSA; TIBIRIÇÁ, 2010).
Maria Berenice Dias visualiza no dever do Estado de garantir a dignidade de todos, por meio dos direitos individuais e sociais, nada mais do que o compromisso de assegurar o afeto, ou seja, “o primeiro obrigado a assegurar o afeto por seus cidadão é o próprio Estado.” (DIAS, 2010, p. 71).
Nesse sentido, é perceptível que:
“[…] reconhecer o afeto como direito fundamental. O rol de direitos individuais e coletivos elencados no art. 5º da Constituição é fruto da imposição, pelo próprio Estado, de obrigações para com seus cidadãos, como forma de garantir-lhes a dignidade. Então, se no âmbito do direito das famílias o afeto deriva do primado da dignidade da pessoa humana, e se este está presente em cada um dos setenta e oito incisos do mencionado artigo, resta evidente o reconhecimento do afeto como direito fundamenta”l (NETO, 2011, p. 3).
Segundo Dias, ao ser reconhecida a união estável como entidade familiar merecedora de tutela jurídica, constituída sem o selo do casamento, a afetividade ficou implícita no texto constitucional, que enlaça duas pessoas, adquirindo reconhecimento e inserção no sistema jurídico. Desse modo, houve a constitucionalização de um modelo de família eudemonista e igualitário, com maio espaço para o afeto e a realização individual. (DIAS, 2010).
Destarte, o princípio da afetividade compreende a evolução do Direito, tornando-se um instituto aplicável a todas as formas de manifestação da família, abrangidas ou não pela legislação codificada, edificada como premissa de uma nova cultura jurídica que permite a proteção estatal de todas as entidades familiares, repersonalizando as relações sociais, centrando-se no afeto como sua maior preocupação (NETO, 2011).
Dias, em referência a Paulo Lôbo, visualiza na Constituição de 1988 quatro fundamentos essenciais do princípio da afetividade, sendo eles: a igualdade de todos os filhos independente da origem (CF 227 § 6º); a adoção como escolha afetiva como igualdade de direitos (CF 227 §§ 5º e 6º); a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo os adotivos, com a mesma dignidade da família (CF 226 § 4º); e o direito a convivência familiar como prioridade absoluta da criança e do adolescente (CF 227).
No âmbito do Código Civil de 2002, Dias aponta que a palavra afeto só foi utilizada para identificar o genitor a quem deve ser deferida a guarda unilateral (CC 1.583 § 2º I). A afetividade aparece também como elemento indicativo da guarda a favor de terceira pessoa (CC 1.584 § 5º). (DIAS, 2010).
Belmiro Welter, nesse diapasão, identifica em outras passagens o reconhecimento do afeto na órbita do Código Civil, quando estabelece a comunhão plena de vida no casamento (CC 1.511); quando admite outra origem à filiação além do parentesco natural e civil (CC 1.593); na consagração da igualdade na filiação (CC 1.596); ao fixar a irrevogabilidade da perfilhação (CC 1.604); e quando trata do casamento e de sua dissolução, fala antes das questões pessoais do que dos seus aspectos patrimoniais. (DIAS, 2010).
Clarindo Neto aponta que diante da ausência de previsão legal para regulamentar uma situação específica, o legislador mostra-se tímido na hora de assegurar direitos, mas, apesar disso, a falta de tutela específica não pode significar inexistência de direito à tutela jurídica. Nesse norte, emerge o princípio da afetividade como forma de embasar as decisões cuja matéria carece de previsão legal, colocando humanidade e dando valor jurídico ao afeto. (NETO, 2011).
Ressalta Neto que o princípio da afetividade é responsável pelo surgimento de novas teses jurídicas que abarcam situações sociais existentes, mas que ainda não foram regularizadas pela inércia do legislador. Cita o Jurista como exemplo a resolução proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul que determinou como competente as varas dos juizados especializados da família para apreciar as causas envolvendo uniões homoafetivas, inserindo-as no âmbito do Direito de Família e deferindo herança ao parceiro sobrevivente. Tais decisões demonstram a aplicação do princípio da afetividade no Direito brasileiro, atendendo a evolução e modernização das relações sociais e consequentemente, reconhecem esse novo tipo de entidade familiar. (NETO, 2011).
Na seara desses direitos, Delma Silveira Ibias salienta que no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277, e na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 132, ambas julgadas pelo STF em 2011, foi reconhecida a união estável homoafetiva, marcadas pelo amor, afeto e solidariedade. Destarte, o afeto foi erigido ao seu mais alto conceito, tornando-se balizador principal a caracterizar relações públicas, contínuas e duradouras, com o intuito de constituir família, tanto em relações heteroafetivas quanto em relacionamentos homoafetivos. (IBIAS, 2011).
Como bem leciona Maria Berenice Dias, o afeto não é fruto da biologia, ao passo que os laços de afetividade e solidariedade derivam da convivência familiar, e não do sangue. Nesse norte o afeto não é somente um vinculo que envolve os integrantes de uma família, possuindo também um viés externo. Cita a Jurista que a posse de Estado de filho nada mais seria do que o reconhecimento jurídico do afeto, com o claro objetivo de garantir a felicidade como um direito a ser alcançado. (DIAS, 2011).
João Batista Vilella, já na década de 1980, quando discorreu sobre a desbiologização da paternidade, foi enfático em demonstrar que o vinculo familiar ultrapassa o vínculo biológico, concluindo que a parentalidade socioafetiva, baseada na posse de estado de filho, era uma nova forma de parentesco civil (NETO, 2011).
Cumpre concluir, como destaca Lara Aleque de Almeida, que o Direito atual vem a reafirmar a sua natureza essencialmente humana, reivindicando uma renovação de seus pressupostos teóricos, e, consequentemente, sua prática cotidiana. Nessa missão, alguns esforços vem sendo empreendidos, iniciando pelo interesse em estudos que integrem o valor dos sentimentos para o interior do Direito de Família, área peculiar que exige um tratamento interdisciplinar, uma vez que lida com os mais íntimos valores do ser humano. (ALMEIDA).
Assim, como preceitua Clarindo Neto, é o afeto, sem sombra de dúvida, o principal fundamento das relações familiares, encontrando substrato constitucional na própria dignidade da pessoa humana. (NETO, 2011).
3. A AFIRMAÇÃO DA FAMÍLIA “MOSAICO” E SEUS REFLEXOS JURÍDICOS
O termo “mosaico” tem sua origem na palavra alemã moussen, significando “próprio das musas”. Trata-se de desenho feito como vários fragmentos de um material com o objetivo de preencher algum tipo de plano.
No universo do Direito de Família, trata-se de termo para designar, como aponta Maria Berenice Dias, aquelas entidades familiares formadas pela pluralidade das relações parentais, em especial as fomentadas pelo divórcio, pela separação, pelo recasamento, seguidos das famílias não matrimoniais e das desuniões. (DIAS, 2010).
São também conhecidas como famílias pluriparentais, não existindo ainda termo pacificado na doutrina para designá-las. A autores que a denominam como família reconstituída, recomposta, ou, como preceitua a literatura jurídica argentina, famílias ensambladas. Porém, o fenômeno ao qual se referem é o mesmo, aquela entidade familiar originada no matrimônio ou na união de fato de um casal, no qual um ou ambos de seus integrantes têm filhos provenientes de um casamento ou relação prévia. Resumidamente, esta família é formada pelos filhos trazidos de outra união, tendo ou não filhos comum, em que se cunha a clássica expressão “os meus, os teus, os nossos…”.(DIAS, 2010).
Segundo Rörhmann como esse modelo de família, surge uma multiplicidade de vínculos, tendo em vista que a especificidade deste modelo familiar decorre da peculiar organização do núcleo reconstituído por casais saídos de um casamento ou união anterior. (RÖRHMANN, 2008).
Bem ressalta Maria Valadares que as famílias monoparentais, formada por apenas um dos genitores e seus descendentes, são, em regra, momentâneas, tratando-se de estágio alcançado após o fim do casamento ou da união estável, tendo em vista ser comum que as pessoas embarquem em novas relações, e mais comum ainda juntar os seus filhos com os filhos do outro sob o mesmo teto. (VALADARES).
Deste modo, a família até então monoparental, deixa de sê-la, transformando-se em mosaico, em que pelo menos um deles já tem filho, sendo este fator requisito essencial para a configuração desta entidade familiar. (VALADARES).
Waldyr Grissard Filho define esta família como aquela na qual ao menos uma das crianças de uma união anterior dos cônjuges vive na mesma casa. Rosamélia Ferreira Guimarães, por sua vez, afirma tratar-se de um novo tipo de família extensa, com novos laços de parentesco e uma variedade de pessoas exercendo praticamente a mesma função, como duas mães, dois mais, meio-irmãos, várias avós e assim por diante. Segundo Ferreira Guimarães trata-se de família composta de uma rede social cada vez mais complexa, com novas relações de poder e gênero, e com uma tendência a uma maior horizontalidade nas relações. (VALADARES).
Maria Valadares faz uma importante observação no sentindo de que muitos autores apontam que a formação da família “mosaico” prescinde de uma ruptura de uma relação marital, porém, não se pode esquecer que cada vez mais cresce a opção pela progenitura individual, evidenciado nas produções independente e até mesmo na adoção, não sendo aquela pré-requisito para a formação desta entidade familiar. (VALADARES).
Janaína Rosa Guimarães ensina que para quem vive numa família convencional, as relações de parentesco apenas se definem por laços sanguíneos. Porém, na formação da família “mosaico”, falar em árvore genealógica não tem sentindo, uma vez que resulta em diversos troncos distintos, tornando-se uma espécie de floresta genealógica. Nesta entidade familiar, ser parente já não significa ter consanguinidade, basta a proximidade, o respeito e principalmente o afeto. (GUIMARÃES).
Maria Valadares aponta que nas famílias primitivas todas as regras estão disciplinadas em lei. As funções são predeterminadas, todos sabem o lugar da mãe, do pai e dos filhos, e dos demais parentes, como avós, tios e primos. Já na família “mosaico”, as regras e funções são estipuladas ao longo do tempo, o que faz que elas não se solidifiquem de imediato. Será no decorrer da convivência que os papéis de cada um vão se estabelecendo e tomando contornos definidos. (VALADARES).
Nesse norte, extrai-se da doutrina de Alcorta e Grosman que:
“La familia ensamblada es producto de un proceso que requiere un tiempo de desarollo para lograr su identidad y convertise en una unidad cohesionada. El pasaje a una nueva forma de familia implica, en el nível estrictamente material, un cambio de hábitos, rutinas, rituales, a los cuales todos deben adaptarse.” (VALADARES).
No mesmo diapasão, é a observação de Guimarães:
“Quando uma criança advinda de um núcleo familiar convencional vai à escola e escuta da professora uma pergunta do tipo “Quem é o irmão do seu irmão que não é seu irmão?”, a resposta que, inevitavelmente, será “Eu” estará correta. Já a mesma pergunta, agora feita a uma criança de relações partilhadas, poderá ser diferente, e ela também estará correta. “Quem é o irmão do seu irmão que não é seu irmão?” poderá ter como resposta: “o Gustavo”, “a Paola”, “o Marco Aurélio” ou qualquer outra criança que seja filho apenas do seu pai ou da sua mãe.” (GUIMARÃES).
Enquanto a regra é caracterizar uma família monoparental com o guardião, não se pode ignorar a relação paterno-filial que se forma com o novo companheiro do genitor, bem como com os filhos deste. Assim, como bem aponta Rörhmann é o afeto e não a consanguinidade o responsável pela criação dos laços entre os membros dessa nova família, exigindo uma enorme paciência e capacidade de adaptação, uma vez que já é difícil conjugar uma família à dois, mais difícil é consolidar duas famílias monoparentais em uma só. (RÖRHMANN, 2008).
Sobre o tema, leciona Maria Valadares que:
“O entendimento a ser aqui defendido é de que as famílias mosaico são aquelas formadas apenas e tão-somente pelos genitores guardiões, os novos cônjuges ou companheiros, bem como os filhos de um ou de outro e os de ambos. Tal posição se justifica por dois motivos. Primeiro, porque as famílias monoparentais são aquelas formadas pelos descendentes e um dos genitores, qual seja, o guardião. Depois, pelo fato de os efeitos jurídicos porventura existentes serem em decorrência não apenas do parentesco por afinidade, mas principalmente pelo vínculo afetivo formado entre os descendentes e os parceiros dos pais, o qual só será possível levando em consideração a relação estabelecida e construída no dia-a-dia entre eles. Dificilmente existirá esse laço entre o companheiro do genitor não-guardião e o filho desse, ainda mais se considerarmos a distância física que haverá entre eles.” (VALADARES).
Nesse diapasão, a psicologia já vem estudando o fenômeno da família “mosaico” demonstrando o psicólogo Miguel Perosa a grande necessidade dos pais recém separados de analisarem os erros cometidos na relação anterior antes de entrar em um novo relacionamento, do mesmo modo que não é aconselhável que escondam nos filhos a nova relação. No mesmo sentindo alerta a psicóloga Angélica Capelari que esconder a relação dos filhos pode gerar na criança um sentimento de traição, desconfiança e rejeição. (FERREIRA).
O que antes era considerado quase um pecado presente no divórcio e na tentativa de constituir uma nova família, hoje passou a ser tido como corriqueiro, afirma Janaína Rosa Guimarães, bem evidenciado em situações normais do nosso dia-a-dia como na mulher do pai que leva o enteado a aula de natação, na filha que, no dia dos pais, faz dois desenhos na escola para presentear o seu padrasto e o seu pai. (ROSA GUIMARÃES).
Ressalta Maria Berenice Dias que é a multiplicidade de vínculos, a ambiguidade de compromissos e a interdependência que caracterizam a família “mosaico”, a conduzindo para a melhor compreensão desta estrutura familiar. (DIAS, 2010).
Porém é preocupante a inexistência de regulamentação que venha a tratar do tema, como bem destaca Dias, in verbis:
“As famílias pluriparentais são caracterizadas pela estrutura complexa decorrente da multiplicidade de vínculos, ambiguidade das funções dos novos casais e forte grau de interdependência. A administração de interesses visando o equilíbrio assume relevo indispensável à estabilidade das famílias. Mas a lei esqueceu delas!” (DIAS, 2010, p.50).
Nesse norte, Rörhmann problematiza as questões que podem vir a surgir pela ausência de normatização sobre o tema, como no caso de ausência da figura do pai e ocorrendo uma separação, poderia vir o pai a ser chamado para prestar alimentos ao menor? Poderá haver divisão do poder familiar e guarda dos menores entre cônjuge, genitor e o ex-companheiro? (RÖRHMANN, 2008).
Por mais que no caso de alimentos a jurisprudência venha se orientando pelo reconhecimento da família socioafetiva, arbitrando valores a serem pagos pelo ex-companheiro do genitor, a duvida ainda permanece quando se questiona a possibilidade de ser cobrado os alimentos tanto do pai biológico como do socioafetivo, quando ambos participem ativamente da vida do filho.
Sobre o tema, leciona Rörhmann que:
“Assim, essas famílias, assim como as demais, merecem o amparo legal do Estado, pois, diante das dificuldades que já enfrenta, sua regulamentação se mostra imprescindível, principalmente em relação aos direitos e deveres decorrentes da união entre o companheiro e o cônjuge genitor, do que, conseqüentemente, decorre o reconhecimento dessa espécie de união como uma entidade familiar”. (RÖRHMANN, 2008).
Destaca Maria Berenice Dias que no contexto da família “mosaico’, a lei admite a possibilidade da adoção pelo companheiro do cônjuge genitor, recebendo o nome de adoção unilateral (ECA 41 § 1º). Entende Dias que por uma interpretação gramatical, para a ocorrência desta forma de adoção, seria indispensável a concordância do pai registral, o que, infelizmente, inviabiliza esta possibilidade na prática. (DIAS, 2010).
De maneira injustificada, como salienta Dias, ainda resiste a jurisprudência em atribuir encargos ao padrasto ou madrasta. No mesmo sentido, não é reconhecido ao filho do cônjuge ou companheiro direito a alimentos, mesmo quando comprovada a existência de vinculo afetivo entre eles, bem como quando tenha o companheiro do genitor assegurado sua mantença durante período em que conviviam numa família “mosaico”. (DIAS, 2010).
Tendo em vista o vinculo afetivo que se forma entre o companheiro do genitor e a prole, a jurisprudência já começa a se manifestar no sentido de admitir o direito de visitas deste, fundamentando-se no princípio da solidariedade. (DIAS, 2010).
Nesse norte, para que haja a facilitação na identificação do enteado com o núcleo familiar o qual integra, a Lei n. 11.924/09 permite a este agregar o nome do padrasto ao seu, sem que com isso seja o nome do genitor excluído. (DIAS, 2010).
Por fim, Janaína Rosa Guimarães alerta que como sociedade não podemos ser omissos em discutir o quadro formado pelas relações familiares pluriparentais, sendo necessário trazer dilemas à tona como a alteração do nome da família, a divisão do poder familiar, os direitos sucessórios, a guarda dos menores, o dever alimentar, a adoção, o direito a visita, o seguro saúde e a previdência social, contribuindo positivamente na tutela dos filhos e proteção do próprio sentido da família. (GUIMARÃES).
Destarte, muito ainda deve ser questionado no âmbito das relações familiares, tendo reflexos jurídicos direto, sendo missão do Direito incluir todas as formas de família, pois se tratam de um fato social edificado no afeto, e portanto dignas da proteção assegurada genericamente na Constituição Federal de 1988.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a evolução do conceito de família a Constituição Federal de 1988 reconheceu como entidade familiar, além do casamento, a união estável e a família monoparental. Porém, este rol não é restritivo, ao passo que a doutrina tem se manifestado por uma interpretação extensiva para contemplar outras estruturas familiares.
Como eixo norteador para o reconhecimento de outros modelos de família, o afeto se afirma como sustentáculo de todo o Direito de Família, sendo principal elemento identificador das relações familiares.
Nesse lume, a família “mosaico” tem se afirmado como entidade familiar formada por um dos genitores e seus filhos com o novo companheiro, e em muitos casos também os filhos deste, sob o mesmo teto, gerando um entrelaçamento afetivo entre esses indivíduos. Assim, sendo forma comum de família em nossa sociedade, a família “mosaico” pleiteia seus reflexos jurídicos, cabendo aos obreiros do Direito assegurar o devido reconhecimento desta família.
Informações Sobre o Autor
Raphael Fernando Pinheiro
Bacharel em Direito na Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Pós-graduando em Direito Constitucional