Resumo: O presente artigo abordará questões afetas à necessidade da prévia análise pelo órgão consultivo dos procedimentos administrativos voltados para a contratação via dispensa pelo valor, nos termos do artigo 24, inciso II da Lei nº 8.666/93. Existem diversas discussões em torno do tema, especialmente em razão do artigo 38, parágrafo único da Lei de Licitações e Contratos exigir a apreciação da Consultoria Jurídica somente das minutas de editais e de contratos. É nesse contexto que analisaremos a necessidade de análise prévia da Procuradoria nos procedimentos que tem por objeto a contratação via dispensa pelo valor.
Palavras-chave: Licitação – Dispensa pelo valor – Análise prévia – Consultoria Jurídica – Necessidade – Entendimento do TCU e da PGF.
Sumário: 1) Considerações Iniciais; 2) Fundamento Legal e razões para o encaminhamento ao órgão jurídico; 3) Entendimento da Procuradoria-Geral Federal e da Advocacia-Geral da União; 4) Decisões do Tribunal de Contas da União; 5) Conclusão.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Muito já se discutiu acerca da necessidade de submeter previamente à Consultoria Jurídica os procedimentos administrativos que visam à contratação via dispensa pelo valor[1] uma vez que, de acordo com o artigo 38, parágrafo único da Lei nº 8.666/93[2], somente as minutas de edital e de contrato é que devem ser obrigatoriamente analisadas pelo órgão jurídico.
Contudo, é preciso ter em mente que o ordenamento jurídico deve ser interpretado sistematicamente, sobretudo atualmente em que o Direito Administrativo está voltado para a racionalidade processual e para a juridicidade dos atos praticados pelo Gestor.
Assim, o princípio da legalidade encontra-se em verdadeira crise estrutural não só em razão da privatização do direito público, como também em razão da necessidade de conferir ainda mais juridicidade aos atos administrativos praticados pela Administração.
Por juridicidade entenda-se a necessidade de empreender esforços sempre no sentido de melhor alcançar a gênese da norma, deixando de lado, de certa forma, a interpretação literal do arcabouço legislativo, visando sempre atender aos anseios da Sociedade.
Sob esse enfoque analisaremos a necessidade ou não de o Administrador previamente submeter à Consultoria Jurídica os procedimentos administrativos que visam à contratação de empresas por dispensa pelo valor, prevista nos artigos 24, incisos I e II da Lei nº 8.666/93.
Abordaremos inicialmente o fundamento legal para tal exigência, confrontando-o com o artigo 38, parágrafo único, da Lei nº 8.666/93 que, numa primeira análise, nos leva à conclusão de que somente os processos instruídos com minutas de edital e de contrato devem ser obrigatoriamente analisados pela Consultoria Jurídica.
Em seguida, após elencar a função da Advocacia-Geral da União na análise dos procedimentos administrativos em geral, à luz, inclusive, de orientação normativa, abordaremos as razões pelas quais um procedimento administrativo instaurado visando à contratação de entidade por dispensa pelo valor deve ser encaminhado previamente ao órgão jurídico.
Na sequência faremos menção ao Parecer Normativo da Procuradoria-Geral Federal acerca do assunto e, por fim, abordaremos algumas decisões do TCU sobre o assunto.
2. FUNDAMENTO LEGAL E RAZÕES PARA O ENCAMINHAMENTO
Alguns estudiosos da área de licitações e contratos defendem a idéia de que os procedimentos administrativos que visam a contratação direta via dispensa, pelo valor, com fulcro no artigo 24, incisos I e II da Lei nº 8.666/93, dispensam a análise prévia empreendida pelo órgão jurídico que atua junto à Administração, sob o argumento de que o artigo 38, parágrafo único, da Lei nº 8.666/93 somente exige essa análise quando da existência de minuta de edital e de contrato na instrução processual.
De acordo com o artigo 38, parágrafo único, da Lei nº 8.666/93:
“Art. 38. O procedimento da licitação será iniciado com a abertura de processo administrativo, devidamente autuado, protocolado e numerado, contendo a autorização respectiva, a indicação sucinta de seu objeto e do recurso próprio para a despesa, e ao qual serão juntados oportunamente:
I – edital ou convite e respectivos anexos, quando for o caso;
II – comprovante das publicações do edital resumido, na forma do art. 21 desta Lei, ou da entrega do convite;
III – ato de designação da comissão de licitação, do leiloeiro administrativo ou oficial, ou do responsável pelo convite;
IV – original das propostas e dos documentos que as instruírem;
V – atas, relatórios e deliberações da Comissão Julgadora;
VI – pareceres técnicos ou jurídicos emitidos sobre a licitação, dispensa ou inexigibilidade; (grifou-se)
VII – atos de adjudicação do objeto da licitação e da sua homologação;
VIII – recursos eventualmente apresentados pelos licitantes e respectivas manifestações e decisões;
IX – despacho de anulação ou de revogação da licitação, quando for o caso, fundamentado circunstanciadamente;
X – termo de contrato ou instrumento equivalente, conforme o caso;
XI – outros comprovantes de publicações;
XII – demais documentos relativos à licitação.
Parágrafo único. As minutas dos editais de licitação, bem como as dos contratos, acordos, convênios ou ajustes devem ser previamente examinadas e aprovadas pelo órgão de assessoria jurídica da unidade responsável pela licitação.
Parágrafo único. As minutas de editais de licitação, bem como as dos contratos, acordos, convênios ou ajustes devem ser previamente examinadas e aprovadas por assessoria jurídica da Administração.” (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994)(Grifou-se)
Com efeito, tal argumento não pode se sustentar. É que o ordenamento jurídico deve ser analisado sistematicamente e sempre visando à juridicidade dos atos administrativos praticados pelo Gestor.
No caso em apreço, o parágrafo único do dispositivo legal deve ser interpretado em conjunto com o inciso VI do mesmo normativo, de modo que os procedimentos administrativos que visam à contratação direta (dispensa e inexigibilidade) também devem ser submetidos à análise prévia da Consultoria Jurídica. É o que determina o artigo 38, inciso VI acima destacado.
Não se pode olvidar que a função de assessoramento judicial e extrajudicial da União e suas autarquias é de atribuição privativa da Advocacia-Geral da União e seus órgãos vinculados.
É o que determina a Orientação Normativa AGU nº 28/2009:
“A competência para representar judicial e extrajudicialmente a União, suas autarquias e fundações públicas, bem como para exercer as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo Federal, é exclusiva dos membros da Advocacia-Geral da União e de seus órgãos vinculados.”
Poder-se-ia indagar qual a pertinência temática de trazer à lume esta Orientação Normativa. Deve-se ao fato de que ninguém pode imiscuir-se nessa atribuição de assessoramento extrajudicial, nem mesmo o Gestor ao deixar de encaminhar os autos de procedimento administrativo que visa a contratação de entidade por dispensa de licitação pelo valor.
Assim é que, o fundamento legal para que o Gestor encaminhe os autos de processo administrativo visando a contratação direta via dispensa pelo valor é não só o artigo 38, inciso VI c/c parágrafo único como também a Orientação Normativa AGU nº 28/2009.
No entanto, outras razões nos levam a crer da necessidade de obrigatoriedade de análise prévia por parte da Consultoria Jurídica nos processos que envolvem a dispensa pelo valor.
A análise da legalidade da dispensa, ou seja, do enquadramento legal nos incisos I e II do artigo 24 é um motivo bastante relevante para a submissão de tais procedimentos.
A função do órgão jurídico, nesses casos, é de analisar o enquadramento legal sob a perspectiva da jurisprudência atualizada, bem como a existência ou não de fracionamento de despesa e, ainda, evitar a responsabilidade penal do Gestor na contratação.
O artigo 89 da Lei de Licitações e Contratos estabelece a responsabilização do Gestor caso enquadre as hipóteses de dispensa de forma equivocada:
“Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:
Pena – detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.
Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.”
É importante destacar que a análise da Consultoria Jurídica não se resume apenas à legalidade das minutas de edital e de contrato, mas também à regularidade procedimental do processo de contratação.
3. ENTENDIMENTO DA PROCURADORIA-GERAL FEDERAL E DA ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
O Despacho nº 1077/2010/EA/CONSU/PGF/AGU deixou assentado:
“3. Por uma breve leitura no parágrafo único do artigo 38, da Lei nº 8.666/93, percebe-se que, a rigor, a atuação da assessoria jurídica em licitações somente ocorreria quando dos autos viesse acompanhada de alguma minuta (edital e/ou contrato); daí a justificativa para que as dispensas previstas nos incisos I e 11 do artigo 24 da Lei nº 8.666/93 não necessitem ser encaminhadas para a análise da Procuradoria. Ficando, no ponto, o encaminhamento do feito ao alvedrio do Gestor.
1. Todavia, a situação veiculada nos autos não pode conduzir a um raciocínio interpretativo tão restritivo, eis que há outros normativos aplicáveis à espécie que recomendam uma interpretação não literal, mas, sim, sistêmica. (…)
8. Nessa senda, eis a dicção normativa contida na Lei Complementar nº73/93 (aplicável aos Procuradores Federais, por força do art. 17 da LC nº 73/93, art. 37 da MP 2.229- 43/2.001 e §1º do art. 10 da Lei nº 10.480/02):
"Art. 11 – .Às Consultorias jurídicas, órgãos administrativamente subordinados aos Ministros de Estado, ao Secretário-Geral e aos demais titulares de Secretarias da Presidência da República e ao Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, compete, especialmente:
I – assessorar as autoridades indicadas no caput deste artigo;
II – exercer a coordenação dos órgãos jurídicos dos respectivos órgãos autônomos e entidades vinculadas;
III- fixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e dos demais atos normativos a ser uniformemente seguida em suas áreas de atuação e coordenação quando não houver orientação normativa do Advogado-Geral da União,'
IV – elaborar estudos e preparar informações, por solicitação de autoridade indicada no caput deste artigo;
V- assistir a autoridade assessorada no controle interno da legalidade administrativa dos atos a serem por ela praticados ou já efetivados, e daqueles oriundos de órgão ou entidade sob sua coordenação jurídica;
VI – examinar, prévia e conclusivamente, no âmbito do Ministério, Secretaria e Estado- Maior das Forças Armadas:
a) os textos de edital de licitação, como os dos respectivos contratos ou instrumentos congêneres, a serem publicados e celebrados;
b) os atos pelos quais se vá reconhecer a inexigibilidade, ou decidir a dispensa, de licitação. "(negritamos)
9. Sem muitas divagações, o órgão de assessoramento jurídico da PGF, em tema de licitações e contratos, deve examinar prévia e conclusivamente todos os atos administrativos em que se vá reconhecer a inexigibilidade ou decidir a dispensa de licitação.
10. (…) Ora, ao não transitar os autos da dispensa em apreço no órgão jurídico, por certo, que não se estará verificando a compatibilidade do ato a ser praticado com a legalidade.
11. Essa regra, inclusive, ganha maior vigor quando se toma por lógica a racio de que se nos demais procedimentos licitatórios (convite, tomada de preços, concorrência e pregão) em que há uma obrigatoriedade para a análise de edital e/ou de contrato, com mais razão se tem nos casos da dispensa prevista no art. 24, incisos I e II da LLC, em que o Administrador tem certa margem de atuação (discricionariedade) e, por isso, livre das "amarras" de um ritual mais elaborado e que pode inclusive ser fiscalizado por qualquer cidadão.” (…)
Depreende-se da leitura do excerto acima transcrito que a PGF endossou o entendimento de que deve haver análise prévia por parte da Consultoria Jurídica acerca da legalidade da contratação via dispensa de licitação por valor.
É interessante anotar que referido entendimento foi endossado pelo Chefe da Consultoria da PGF, por meio do Despacho acima referido, uma vez que, o Procurador Federal responsável pela elaboração da manifestação, opinou de forma contrária[3].
Mais recentemente, o Departamento de Coordenação e Orientação dos Órgãos Jurídicos- DECOR analisando as possíveis antinomias existentes entre os órgãos jurídicos no âmbito da AGU e os diversos pronunciamentos se posicionou também, por meio do Parecer nº 010/2012/DECOR/CGU/AGU, no sentido de que a manifestação do órgão jurídico nas contratações via dispensa de licitação com base no valor devem ser previamente examinadas pela Consultoria Jurídica:
“25. Diante do exposto, fundamentado no art. 11, V e VI, da Lei Complementar nº 73/93 e seguindo o entendimento firmado no Despacho nº 1077/2010/EA/CONSU/PGF/AGU, no Parecer nº 1636-4.2/2010/JD/CONJUR/MP e, sobretudo, na Nota subscrita em 23/01/2012 pela ilustre Advogada da União Isabela Rossi Cortes Ferrari no Processo nº 00404.000368/2012-77, considera-se obrigatória a emissão de parecer jurídico nos casos de dispensa de licitação previstos nos incisos I e II do art. 24 da Lei nº 8.666/93.”
Alguns poderiam argumentar acerca do princípio da eficiência, tendo em vista que submeter tais procedimentos ao crivo da Procuradoria poderia ensejar ausência de celeridade processual, atrasando a contratação.
Sob esse aspecto bem assentou o Parecer nº 010/2012/DECOR/CGU/AGU:
“20. Quanto ao princípio da eficiência, é imperioso ressaltar que a obrigatoriedade de parecer jurídico concretiza o verdadeiro sentido de tal princípio. E isso foi lucidamente proclamado na seguinte passagem do Despacho nº 1077/2010/EA/CONSU/PGF/AGU:
19.Outrossim, aos que defendem que o trânsito pela assessoria jurídica obstaria o princípio da eficiência, é de se lembrar que essa eficiência não é aquela baseada na rapidez e no afogadilho, mas sim a que busca uma gestão eficiente (cautelosa e correta em todas as suas fases), sob pena do desfazimento posterior por ilegalidade, portanto, o fato de os autos tramitarem obrigatoriamente pela procuradoria não induzirá à impossibilidade de contratação direta. Antes, porém, propiciará o cumprimento, pelos administradores, dos princípios administrativos, sobretudo os da eficiência e da impessoalidade e ainda trará à lume a premente necessidade de planejamento sistemático das aquisições pela administração assessora.”
Assim, não restam dúvidas que os processos envolvendo a dispensa de licitação pelo valor devem ser previamente examinados pela Consultoria Jurídica a fim de garantir a legitimidade do procedimento, bem como a legalidade e evitar a responsabilização do Gestor nas penalidades insertas no artigo 89 da Lei nº 8.666/93.
4. ENTENDIMENTO DO TCU
Importante trazer à baila ainda o entendimento do TCU acerca do tema. Muito embora durante algum tempo não tenha havido unanimidade acerca do assunto, mais recentemente a Corte de Contas tem emitido pronunciamentos no sentido de ser obrigatória a prévia análise da Consultoria Jurídica acerca das contratações dessa espécie:
“Assunto: PARECER JURÍDICO. DOU de 08.02.2012, S. 1, p. 129. Ementa: o TCU deu ciência à Secretaria Executiva do Ministério do Esporte no sentido de que se constatou que a unidade não providenciou a emissão de parecer jurídico previamente à realização de contratações diretas, o que está em desacordo com o disposto no art. 38, inc. IV, da Lei nº 8.666/1993 (item 1.8, TC-018.436/2008-0, Acórdão nº 373/2012-1ª Câmara). – Assunto: PARECER JURÍDICO. DOU de 30.03.2012, S. 1, p. 207.
Ementa: O TCU cientificou a Universidade Federal do Ceará sobre a necessidade de que fossem instruídos os processos de inexigibilidade e de dispensa de licitação com os devidos pareceres jurídicos e justificativas de preços, em cumprimento aos arts. 36 e 38 da Lei nº 8.666/1993 (item 1.6.1.23, TC-018.953/2009-7, Acórdão nº 1.853/2012-2ª Câmara).”
Muito embora os julgados não se refiram estritamente aos casos de dispensa por valor, observa-se que ambos dizem respeito aos casos de contratação direta, seja por dispensa, seja por inexigibilidade, de modo que, conclui-se que deve ser observado igualmente como paradigma nas contratações direta por dispensa pelo valor.
5. CONCLUSÃO
Diante de todas essas considerações extrai-se que a análise prévia empreendida pelo órgão jurídico nas contratações direta via dispensa pelo valor deve ser considerada boa prática administrativa, sujeitando, pois, os procedimentos administrativos ao crivo da Consultoria Jurídica.
Tal ato visa conferir legalidade ao ato administrativo praticado pelo gestor, evitando a configuração de fracionamento de despesa e a responsabilização do gestor na forma do artigo 89 da Lei nº 8.666/93.
Assim, evidencia-se um forte caráter protetivo do ato administrativo a ser praticado pelo Gestor, não só evitando o enquadramento no dispositivo penal, como também analisando a legitimidade do ponto de vista procedimental.
Informações Sobre o Autor
Ana Carolina de Sá Dantas
Procuradora Federal junto à Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel. Pós graduada em Direito do Estado pela Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte. Atuou nas áreas tributária e administrativa da Anatel e no Departamento de COnsultoria da Procuradoria Federal junto à Antaq.