Resumo: Diante de um mundo padronizado, arraigado numa lógica capitalista de exclusão social da pessoa com deficiência, como um país democrático pode atender aos interesses dessa minoria, permitindo que ela tenha acesso ao mercado de trabalho?
A confecção dessa obra, portanto, se atem ao estudo das ações afirmativas no Brasil, tendo em vista o artigo 93, da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991.
Palavras-chave: Ações afirmativas. Inclusão social. Pessoa com deficiência. Mercado de trabalho.
Abstract: In a world standard, rooted in a capitalist logic of social exclusion of people with disabilities, as a democratic country can serve the interests of this minority, allowing it to get access to the labor market?
The preparation of this work, therefore, conducts a study of affirmative action in Brazil, in view of article 93 of Law nº 8.213 of July 24, 1991.
Keywords: Affirmative action. Social inclusion. Person with disabilities. Labor market.
Sumário. Introdução. 1. Conceito de pessoa com deficiência. 2. Trinômio: sistema capitalista, relação de trabalho e pessoa com deficiência. 3. Inclusão social. 4. Direito à igualdade: ações afirmativas. 5. Artigo 93, da Lei nº 8.213/91. 5.1. Legitimados. Conclusão.
Introdução
O capitalismo, enquanto sistema econômico e social, a partir do século XVI, sobrepuja-se a qualquer outro sistema adotado no ocidente. Gradativamente, se sobrepôs a outras formas de produção, tornando-se hegemônico, o que ocorreu em sua fase industrial[1].
Pautado, pois, na reprodução e acumulação de capital, o capitalismo impõe nos meios em que se difunde uma lógica arraigada na obtenção do lucro.
Como corolário, ao se adotá-lo, a sociedade se vê refém da exploração da força de trabalho. Sob a ideia da mais-valia[2], as relações de trabalho são travadas, instaurando uma lógica desumana de marginalização de alguns grupos sociais.
Nesse contexto, a contratação de pessoa portadora de necessidades especiais não é bem quista. A deficiência acometida ao sujeito é óbice a uma maior lucratividade pelo tomador de serviço. A contratação, pois, de indivíduos sem quaisquer deficiências é imprescindível para maior reprodução e acumulação de capital.
Nestes termos, como o Brasil, um país democrático de direito, pode permitir o acesso da pessoa com deficiência no mercado de trabalho, subvertendo a lógica do próprio sistema?
Em resposta, o presente trabalho se desenvolve através da análise das ações afirmativas, com especial enfoque sobre o artigo 93, da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991.
Para melhor compreensão acerca do questionamento suscitado, será objeto do trabalho, portanto, o estudo da política de quotas aplicável à pessoa com deficiência na seara laboral, buscando compreender seu sentido e alcance.
1. Conceito de pessoa com deficiência
Não fossem somente as divergências quanto ao seu conceito, veem-se embates teóricos acerca da utilização da própria expressão[3].
Há quem entenda correto falar “pessoa deficiente” ou mesmo “pessoa portadora de necessidades especiais”, enquanto outros concebem que seja mais adequada a utilização do termo “excepcional”.
Em que pesem as discussões, a Constituição Federal de 1988, em muitas passagens do seu texto, utiliza-se da expressão “pessoa portadora de deficiência”.
Por sua vez, não há uniformidade quanto ao conceito de pessoa portadora de deficiência, ou qualquer outra expressão que lhe equivalha.
Em meio a uma diversidade conceitual, o artigo 1º a Declaração dos Direitos dos Deficientes da Organização das Nações Unidas, informa que “o termo "pessoas deficientes" refere-se a qualquer pessoa incapaz de assegurar por si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas ou mentais”.[4]
À luz do Direito comparado, Márcia Helena de Barros Monteiro Lima, aduz que “a Lei Portuguesa nº 09/99 elaborou o seguinte conceito de portador de deficiência […] ‘considera-se pessoa com deficiência aquela que, por motivo de perda ou anomalia, congênita ou adquirida, de estrutura ou função psicológica, intelectual, fisiológica ou anatômica susceptível de provocar restrições de capacidade, pode estar considerada em situação de desvantagem para o exercício de atividades consideradas normais tendo em conta a idade, o sexo, e fatores socioculturais dominantes’”.[5]
Sob as mais diversas influencias, todavia, o legislador brasileiro definiu, no artigo 3º, inciso I, do Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, a deficiência como “toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano”.[6]
O significado da expressão pessoa com deficiência, pois, não é unívoco.
Observa-se, portanto, que problemas entorno da pessoa com deficiência tem grande extensão, perpassando, inclusive, por questões terminológicas e conceituais.
2. Trinômio: sistema capitalista, relação de trabalho e pessoa com deficiência
O Capitalismo tem sua origem cravada no século XVI. Refere-se, pois, a um sistema econômico e social que sucede ao feudalismo, e progressivamente se institui como sistema hegemônico que permeia a realidade mais atual. A origem do capitalismo está adstrita, pois, com o final da Idade Média e início da Idade Moderna.
Neste contexto, os ideais burgueses são considerados embriões do sistema capitalista. Através deles se repensou, pois, a lógica de mercado até então vigente, passando a embasá-la entorno da obtenção do lucro e da acumulação de riquezas.
Presente nos meios sociais a mais de cinco séculos, curioso que se note que o capitalismo não tem apresentado sinais de fadiga. Ao longo dos séculos remodelou-se aos novos contextos. Trata-se, pois, de um sistema mutável, que ao longo do tempo tem sofrido transformações, embora sempre centrado na obtenção do lucro.
Tendo por objetivo a reprodução do capital, seus efeitos repercutem, sensivelmente, na dinâmica social. A busca incessante pelo lucro, seja pela lógica do capitalismo comercial[7], industrial[8] ou financeiro[9], enseja a máxima exploração dos trabalhadores.
Nesse sentir, destaca-se o mecanismo exploratório do capitalismo conhecido por mais-valia. Idealizado por Karl Marx, a mais-valia explica que o acumulo de capital pelo tomador de serviço se concentra no pagamento ao trabalhador de um valor aquém daquele que ele produz quando da prestação de serviço.
Num cenário de desigualdades, portanto, onde poucos detêm os meios de produção, o sistema capitalista encontra solo fértil para reproduzir-se. Diante de um contingente populacional carente, a condição de tomador de serviço leva à prática de abusos, com exigências desarrazoáveis para a prestação de serviço.
Nesse contexto, àqueles que possam suscitar alguma ameaça à máxima obtenção do lucro, não são bem vistos. Jungidos à indiferença de um sistema desumano, são empurrados à marginalidade.
A pessoa com deficiência, pois, está lançada à própria sorte.
Em meio a um cenário de abusos, o sistema capitalista, pois, dá ensejo à presença do Estado como elemento imprescindível para disciplinar os pactos laborais, coibindo práticas antissociais. Ao Poder Público, portanto, tem restado a intervenção na seara laboral para a constituição de relações sociais mais equânimes.
Neste contexto, onde o modelo de exploração ignora a condição humana dos sujeitos, excluindo as pessoas com deficiência do mercado de trabalho, a intervenção do Estado torna-se imprescindível, a presença de um corpo jurídico que possa compensar as desigualdades sociais é imperiosa, a existência de um regramento jurídico que obrigue a contratação de pessoas portadoras de necessidades especiais torna-se necessária.
3 Inclusão social
Pensar em inclusão[10] é pressupor a existência de excluídos. Conceber a inclusão social, pois, é conjecturar uma realidade de pessoas socialmente segregadas.
Porém, quem está à margem da sociedade?
Em meio a padrões; excluídos, como regra, são aqueles que se afastam do modelo culturalmente imposto. Aquele, pois, cujas condições pessoais destoam do paradigma adotado, submete-se a vetores centrífugos que os direcionam à margem da sociedade.
Ao se afastar do padrão socialmente imposto, o indivíduo está fadado a ter que superar inúmeros obstáculos para acessar instrumentos que lhe permitam constituir uma vida digna, satisfazendo necessidades básicas atinentes à sua condição de humano.
Entorno desses modelos arraigados em nossa realidade, a pessoa portadora de necessidades especiais, portanto, se sujeita ao influxo da marginalização.
Nesse sentido, informa Márcia Helena de Barros Monteiro Lima que “ao longo da trajetória da humanidade as pessoas portadoras de deficiência são marginalizadas, sendo vítimas de suas próprias deficiências, ocorrendo, então a exclusão, discriminação, rejeição da sociedade que ditam ‘normas’ de perfeição para vivermos em grupo”.[11]
Pergunta-se: num Estado democrático[12] de direito, é justo se conceber que a pessoa com deficiência seja socialmente segregada, tornando-se refém de suas limitações?
Ainda que discretamente, mas de forma crescente, medidas, em busca da construção de uma sociedade mais equânime, têm sido tomadas para interrupção desses vetores excludentes. Em respeito aos direitos de uma minoria, mobilizações têm sido vistas entorno da inclusão social da pessoa com deficiência.[13]
Nestes termos, inclusão social refere-se a um conjunto de medidas que visa assegurar à pessoa portadora de necessidades especiais acesso à sociedade, possibilitando-lhe fazer uso de direitos, independentemente das limitações físicas, sensoriais ou mentais que lhe são acometidas. Seria um processo através do qual o ambiente social se transforma para recepcionar as pessoas com deficiência, e concomitantemente, estas se habilitam para desempenhar suas funções no seio social.
Neste contexto, Márcia Helena de Barros Monteiro Lima, citando Cláudia Werneck, reproduz que “o conceito de inclusão nos ensina não a tolerar, respeitar ou entender a deficiência, mas sim legitimá-la, como condição inerente ao ‘conjunto humanidade’. Uma sociedade inclusiva é aquela capaz de contemplar sempre, todas as condições humanas, encontrando meios para que cada cidadão, do mais privilegiado ao mais comprometido, exerça o direito de contribuir com seu melhor talento para o bem comum”.[14]
Assim, quem pode tornar efetiva a inclusão social das pessoas com deficiência?
A participação conjunta dos cidadãos e do Estado tem sido imprescindíveis para consecução desse desiderato.
Embora as civilizações contemporâneas estejam marcadas pelo individualismo, feridas pelo egocentrismo, não são raros os exemplos de mobilizações civis entorno de questões sociais. A inclusão da pessoa com deficiência na sociedade é objetivo compartilhado por uma pequena, mas significativa parcela da população, que busca a construção de uma sociedade mais justa.
O Estado, por sua vez, se mostra como peça fundamental para inserção da pessoa portadora de necessidades especiais no seio social, pois detém meios capazes de transformar a sociedade. Através de políticas públicas ele tem os mais variados instrumentos de interferência nas relações sociais travadas, permitindo a construção de um ambiente mais humano.
Neste contexto, há entraves à inclusão social da pessoa com deficiência?
Embora a construção de uma sociedade melhor seja o anseio de uma maioria, poucas são as ações cívicas e governamentais que efetivamente têm contribuído para a inclusão social da pessoa portadora de necessidades especiais.
Em que pese se tenha avançado significativamente em busca desse objetivo, se observa que muita falta a ser feito para inserção da pessoa com deficiência na sociedade.
As dificuldades encontradas para a inserção e manutenção da pessoa com deficiência na sociedade são as mais diversas. Destaca-se, entretanto, a falta de consciência social.
Nestes termos, entende-se como consciência social a acepção cognitiva que o ser humano tem ao colocar-se em meio à realidade social, interpretando-a. É conhecimento acerca do contexto social, identificando as diversidades fáticas e seus efeitos na vida dos indivíduos. Trata-se, pois, de conduta reflexiva, acerca da relação simbiótica das pessoas com o ambiente.
Assim, a falta de consciência social – obstáculo à inclusão social da pessoa com deficiência – está atrelada à ausência de perspectiva quanto aos efeitos do ambiente social na vida das pessoas que se encontram em seu entorno.
Enfim, inclusão social é força contrária a vetores centrífugos que encaminham os sujeitos, que se diferenciam do padrão socialmente imposto, à margem da sociedade. É mecanismo de superação de barreiras, impulsionado em atuação conjunta dos cidadãos e Estado na construção de uma realidade mais equânime.
4 Direito à igualdade: ações afirmativas
Quando se pensa em direito à igualdade, intuitivamente as pessoas são levadas a construção de juízo no qual todos, sem distinção de qualquer natureza, devem ter o mesmo tratamento jurídico. Traça-se ideia, portanto, que perpassa na validade de uma só regra aplicável a todos indistintamente. Enfim, inicialmente, quando se pensa em direito à igualdade, perfaz-se o entendimento de que todos devem possuir a mesma cobertura jurídica, o mesmo respaldo normativo, sem qualquer distinção.
Nestes termos, pergunta-se: em meio a vetores de marginalização aplicados às pessoas portadoras de necessidades especiais, é justo que elas sejam amparadas por disposições normativas iguais às ofertadas àqueles, que sem deficiência alguma, não se submetem aos efeitos da exclusão social em razão de limitações física, mental ou sensorial?
Diante de um sistema desumano, que impõe a marginalização como corolário da deficiência física, mental ou sensorial acometida ao indivíduo, o Direito se vê compelido a albergar normas que possam compensar juridicamente as distorções sociais.
Em meio a uma realidade onde pessoas com deficiência têm enormes dificuldades de acessar os meios capazes de lhes permitir uma boa condição social, que satisfaça exigências mínimas indispensáveis à sua condição de humano; cabe, sobretudo, ao Poder Público, a adoção de medidas que revertam a lógica do sistema.
Em que pese os cidadãos estejam submetidos a uma só ordem jurídica, a existência de realidades diversas impõe ao Estado, inúmeras vezes, a construção preceitos normativos dispares, voltados a atender com justeza as diferenças sociais.
Nesse sentido, em meio a vetores centrífugos, que impinge a pessoa com deficiência para exclusão social, a existência de normas que lhe são próprias, assegurando-lhe tratamento jurídico especial, voltado a equilibrar juridicamente desigualdades sociais, é condição necessária para que se assegure o direito à igualdade.
Assim, em que consiste o direito à igualdade[15]?
O direito à igualdade cifra-se sob a ideia de que a todos deve ser ofertado o mesmo tratamento jurídico, respeitando, entretanto, a condição social de cada sujeito[16].
Nesse sentido, o professor Ingo Wolfgang Sarlet, informa que o direto à igualdade “abrange pelo menos três dimensões: (a) proibição do arbítrio, de modo que tanto se encontram vedadas diferenciações destituídas de justificação razoável com base na pauta de valores constitucional, quando proibido tratamento igual para situações manifestamente desiguais; (b) proibição de discriminação, portanto, das diferenciações que tenham por base categorias meramente subjetivas; (c) obrigação de tratamento diferenciado com vista à compensação de uma desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação, pelo Poder Público, de desigualdades de natureza social, econômica e cultural”.[17]
Nestes termos, conforme informa Ives Gandra da Silva Martins, Gilmar Ferreira Mendes e Carlos Alberto de Nascimento “o direito à igualdade alberga tradicionalmente duas vertentes: a) A igualdade de oportunidade, que baseia na igualdade perante a lei, garantindo a todos o mesmo tratamento (vertente especialmente desenvolvida a partir da Revolução Francesa, que buscou combater os privilégios da nobreza). b) A igualdade de resultado, que se baseia na busca de um igualitarismo absoluto (vertente desenvolvida a partir da Revolução Comunista na Rússia, que almeja uma sociedade sem classes, onde todos tenham a mesma condição de vida, qualquer que seja a sua contribuição, na esteira do pensamento marxista: ‘de cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo a sua necessidade’)”.[18]
Em meios aos seus propósitos, o direito à igualdade está arraigado à ideia de que todos devem ter tratamento igualitário na proporção de suas desigualdades.
O direito à igualdade, pois, requer a aplicação de regras idênticas em casos idênticos, atentas ao fato de que há realidades dispares ao qual lhe imputam regras específicas, coadunadas às suas peculiaridades.
Nesse sentir, vê-se, pois, que o direito a igualdade possui diferentes facetas, contempla ramificações[19], bifurcando-se no que se convencionou chamar em igualdade formal e igualdade material[20].
A igualdade formal, pois, diz respeito à isonomia de tratamento. A todos deve ser oferecido o mesmo manto jurídico, sem admissão de privilégios. Neste caso, concebe-se que todos estão jungidos às normas jurídicas, sem qualquer distinção.
Nesse sentido, Ingo Wolfgang Sarlet, em excelente explanação acerca da igualdade formal, aduz que essa vertente corresponde “à noção de que todos os homens são iguais, compreendida no sentido de uma igualdade absoluta em termos jurídicos, correspondendo ao direito de toda e qualquer pessoa estar sujeita ao mesmo tratamento previsto na lei, independentemente do conteúdo do tratamento dispensado e das condições e circunstâncias pessoais”.[21]
Por sua vez, a igualdade material[22] é a compensação jurídica em razão de distorções sociais, concretizadas mormente em preceitos normativos. Através dela consubstancia-se a possibilidade de se tratar desigualmente os desiguais na medida das suas desigualdades.
Segundo o constitucionalista Ingo Wolfgang Sarlet “igualdade em sentido material […] significa proibição de tratamento arbitrário, ou seja, a vedação da utilização, para efeito de estabelecer as relações de igualdade e desigualdade, de critérios intrinsecamente injustos e violadores da dignidade da pessoa humana, de tal sorte que a igualdade […] opera como exigência de critérios razoáveis e justos para determinados tratamentos desiguais”.[23]
Porém, até que ponto o tratamento jurídico diferenciado não compromete a concepção mais atual do direito à igualdade?
A existência de normas próprias a determinados grupos sócias só se mostram válidas quando necessárias para compensar juridicamente distorções da sociedade.
Nesse sentido, o professor Bernardo Gonçalves Fernandes, citando o ilustre Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso Antônio Bandeira de Mello, informa que as discriminações lícitas[24] só seriam possíveis nos casos em que: “1º) Não atinjam de modo atual e absoluto o princípio da generalidade e abstração das normas jurídicas; 2º) Haja realmente nas situações, coisas ou pessoas com características ou traços diferenciados; 3º) Exista lógica entre os fatores existentes e a distinção estabelecida; 4º) A distinção estabelecida tenha valor positivo, à luz do que estabelece a Constituição”.[25]
Estando todos num só plano, portanto, não há razão que justifique a aplicação de preceitos normativos dispares diante das mesmas circunstâncias fáticas.
Dessa forma, utilizando-se novamente das palavras do jurista Celso Antônio Bandeira de Mello, citadas pelo constitucionalista Bernardo Gonçalves Fernandes, quatro são os elementos identificadores de lesão ao direito à igualdade: “1º) A diferenciação não pode atingir apenas uma pessoa; 2º) As situações (ou pessoas) a serem diferenciadas pela norma jurídica devem ser de fato distintas (isto é, apresentarem características diferenciadas); 3º) Deve existir, abstratamente, uma lógica entre os fatos diferenciais e a distinção estabelecida pela norma jurídica; 4º) Concretamente, o vínculo de correlação deve ser pertinente em razão de interesses constitucionais protegidos, tendo em vista para tanto o ‘bem público’”.[26]
O direito à igualdade, portanto, só se vê respeitado quando as diferenciações[27] juridicamente estabelecidas não contrariem o senso de justiça.
Neste contexto, como assegurar o direito à igualdade à pessoa portadora de necessidades especiais?
Estando compelida pelo sistema à marginalidade, a pessoa com deficiência logra, sobretudo, através de políticas públicas, que lhe oferecem um aparato normativo próprio, voltado a mitigar os vetores centrífugos de exclusão, o direito a igualdade. Através, mormente, de ações afirmativas, portanto, o direito a igualdade das pessoas com deficiência tende a ser respeitado.
Porém, o que são ações afirmativas?
Ações afirmativas[28] são políticas públicas democráticas voltadas a assegurar tratamento jurídico especial a determinados grupos que se veem oprimidos por um sistema desigual, cuja imposição de padrões enseja a exclusão social daqueles que fogem ao paradigma adotado.
Através de um conjunto de medidas direcionadas a compensar juridicamente os desequilíbrios sociais, as ações afirmativas buscam permitir que determinados grupos tenham acesso a instrumentos sociais que lhe garantam melhores condições de vida.
Nesse sentir, as ações afirmativas são mecanismos a disposição do Estado, voltados a assegurar aos grupos sociais marginalizados o direito à igualdade. Tratando os desiguais na medida de suas desigualdades, as ações afirmativas são amostras de operacionalização da concepção de igualdade material.
Nesse sentido, informa a professora Flávia Piovesan que as ações afirmativas “constituem medidas especiais e temporárias que, buscando remediar um passado discriminatório, objetivam acelerar o processo com o alcance da igualdade substantiva por parte de grupos vulneráveis […] As ações afirmativas, como políticas compensatórias adotadas para aliviar e remediar as condições resultantes de um passado de discriminação cumprem uma finalidade pública decisiva para o projeto democrático: assegurar a diversidade e a pluralidade social. Constituem medidas concretas que viabilizam o direito à igualdade, com a crença de que a igualdade deve moldar-se no respeito à diferença e à diversidade. Por meio delas transita-se da igualdade formal para a igualdade material e substantiva”.[29]
Por sua vez, o constitucionalista Bernardo Gonçalves Fernandes, aduz que as ações afirmativas “se caracterizam pela pelo tratamento diferenciado pelo Estado de um grupo ou de uma identidade a fim de que se estabeleçam medidas compensatórias por toda uma história de marginalização socioeconômica ou de hipossuficiência”.[30]
Destaca-se, outrossim, que as ações afirmativas são medidas temporárias, aplicáveis até o instante do equilíbrio do meio. Dessa forma, tão logo alcance seus objetivos, não subsiste razão para sua manutenção sob pena de ensejar tratamento jurídico incompatível com as diretrizes do direito à igualdade.
Como exemplo de medida acobertada pelo manto das ações afirmativas, tem-se o artigo 93 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Como resultado da intervenção estatal, a edição do artigo 93 busca reverter situação onde pessoas portadoras de necessidades especiais são mal vistas pelo sistema capitalista – uma vez que, aos olhos do capitalismo, comprometem a máxima obtenção do lucro – oportunizando-lhes o ingresso no mercado de trabalho.
5 Artigo 93 da Lei nº 8.213/91
A Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, oriunda do Projeto de Lei nº 825/1991, ao dispor sobre planos de benefício da previdência social, trouxe previsão legal atinente à aplicação de percentuais mínimos a serem preenchidos por pessoas com deficiência nos quadros de pessoal de determinadas empresas.
Promulgada e publicada na década de 90, a Lei nº 8.213, materializou em um dos seus artigos típica amostra de ação afirmativa dirigida às pessoas portadoras de necessidades especiais.
Como construção normativa voltada a compensar desigualdades historicamente incrustadas na sociedade, o artigo 93, da Lei nº 3.213/91, é mais uma medida dentro de um projeto muito mais amplo de proteção da pessoa com deficiência.
Demonstrando preocupação à marginalidade entorno das pessoas portadoras de necessidades especiais, o legislador infraconstitucional, pois, editou preceito legal voltado à inclusão social daqueles acometidos por alguma limitação física, mental ou sensorial.
Nesse sentido, previu, como matéria de ordem pública[31], no artigo 93, da Lei nº 8.213/91: “a empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção: I – Até 200 empregados, 2%; II – De 201 a 500, 3%; III – De 501 a 1.000, 4%; IV – De 1.001 em diante, 5%”.[32]
Dessa forma, institui-se uma política de quotas, assegurando, através de quatro diferentes faixas, a previsão vagas de trabalho a serem ocupadas por pessoa com deficiência.
Nesse sentido, dentre percentuais que variam entre 2%, e 5% do número total de empregados, empresas com cem ou mais funcionários estão obrigadas a viabilizar que pessoas portadoras de necessidades especiais estejam inseridas no mercado de trabalho.
Enfim, como garantidor do direito ao trabalho, o artigo 93 da Lei nº 8.213/91, assegura à pessoa portadora de necessidades especiais a possibilidade de reversão de um quadro de exclusão. Como exemplo de ação afirmativa, seu conteúdo representa atuação do Poder Público no combate às distorções sociais.
5.1. Legitimados
Quem são os legitimados da previsão legal exarada pelo artigo 93, da Lei nº 8.213/91?
Pela leitura do preceito normativo indicado, os cargos devem ser ocupados por beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência.
Porém, quem são eles?
Em que pese haja diferenciações técnicas entre um e outro; centrada, mormente, na existência ou não de vínculo com o Regime Geral da Previdência Social – RGPS; a rigor, todos se referem às pessoas com deficiência.
Quando se fala em beneficiário reabilitado, a lei fala do profissional que, vinculado ao Regime da Previdência Social, está apto a reingressar no mercado de trabalho, não obstante outrora tenha sido julgado incapacitado para o desempenho das funções laborais. Refere-se, portanto, àquele que, embora acometido por alguma limitação física, mental ou sensorial, readquire a capacidade para o exercício profissional.
Por sua vez, a pessoa portadora de deficiência, diz respeito àquele que, sem antes ter ingressado no mercado de trabalho, não estabelecendo vínculo com Regime Geral da Previdência Social, possui alguma ausência ou disfunção de uma estrutura física, mental ou sensorial.
Em termos legais[33], a Portaria do MPAS nº 4.677, de 29 de julho de 1998, definiu-os em seu artigo 1º, §§1º e 2, ex vi: “§ 1º – Consideram-se beneficiários reabilitados todos os segurados e dependentes vinculados ao Regime Geral de Previdência Social – RGPS, submetidos a processo de reabilitação profissional desenvolvido ou homologado pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS. § 2º – Consideram-se pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, aquelas não vinculadas ao RGPS, que se tenham submetido a processo de habilitação profissional desenvolvido pelo INSS ou por entidades reconhecidas legalmente para este fim”.[34]
Nestes termos, reforça-se que a legitimidade não se perfaz tão somente pela existência da deficiência. Para gozar do direito exarado no artigo 93 da Lei nº 8.213/91, é preciso que essa deficiência seja atestada pelo INSS.
De mais a mais, salienta-se que a Resolução INSS/PR, nº 630/98, previu que a exigência legal de vagas a serem ocupadas por pessoas com deficiência não se aplicam aos entes políticos, nem tão pouco beneficiam o segurado acidentado que esteja em estabilidade provisória. Nesse sentido, aduz os itens 1.1 e 1.2[35] da respectiva Resolução[36]: “1.1 – A proporção de vagas exclui o segurado acidentado do trabalho, tendo em vista o estabelecido no artigo 118 da Lei nº 8.213/91.1.2 – O disposto neste ato não se aplica aos órgãos públicos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, uma vez que o percentual de pessoas portadoras de deficiência que poderão participar de concurso público, observada a Constituição Federal, é matéria a ser tratada em legislação própria”.[37]
Enfim, o artigo 93, da Lei nº 8.213/91, aplicável às relações laborais estabelecidas entre particulares em que não há incidência de norma própria regulamentando a incidência de percentuais a serem preenchidos por pessoas com deficiência, tem como destinatário a pessoa portadora de necessidades especiais que não esteja acobertada pela estabilidade acidentária.
Como medida de inclusão social, o Poder Público exarou por texto legal, portanto, seu respeito à pessoa com deficiência, grupo social que muito tem sofrido pela lógica desumana do sistema em que está inserido.
Conclusão
Para que possamos entender algo, é necessário que inicialmente reflitamos sobre o ambiente em que ele está inserido. A análise da conjectura ao qual o objeto de avaliação está imerso, é, pois, ponto de partida para emissão de juízo de valor.
Portanto, sob que ordem política, econômica e social, encontramos o artigo 93, da Lei nº 8.213/91?
O capitalismo enquanto sistema exploratório impõe à sociedade a lógica da mais valia. Voltado à reprodução do capital, o capitalismo marginaliza àqueles que possam comprometer a obtenção do lucro.
Ao seu turno, arraigado em padrões, a sociedade cria obstáculos àqueles que não adotam o modelo imposto. Ser diferente, pois, é condição penalizada por barreiras sociais.
Portanto, mal quista pelo capitalismo e condicionada superar entraves impostos por uma sociedade de padrões, a pessoa com deficiência está apenada à exclusão social.
Entretanto, enquanto espectador dessa realidade, ao Estado resta o encargo de criar mecanismos capazes contrapô-la. Como instituição democrática, nasce ao Poder Público o desafio de por fim aos fatores sociais de exclusão, promovendo, concomitantemente, a inclusão social daqueles marginalizados.
Nesse sentir, enquanto mecanismos de compensação, as ações afirmativas são uma resposta do Estado democrático a um cenário de desigualdades. A previsão de enunciados normativos como o do artigo 93, da Lei nº 8.213/91, é, portanto, uma reação do Estado ao tratamento desumano oferecido àqueles portadores de necessidades especiais.
Nesse contexto, o que representa o artigo 93, da Lei nº 8.213/91?
Conquanto a igualdade material seja um ideal compartilhado por uma maioria, a sua efetividade é algo que mobiliza poucos. A participação, pois, do Estado através da adoção de ações afirmativas, como a materializada no artigo 93, da Lei nº 8.213/91, é imprescindível para que viabilize à pessoa com deficiência o respeito à sua dignidade.
Mais do que exigir que percentuais mínimos sejam aplicados de modo a garantir que pessoas com deficiência possam exercer uma atividade laborativa, o artigo 93, da Lei nº 8.213/91, é o princípio da igualdade, em sua vertente material, sedimentado em regra de aplicação cogente.
Enfim, como registro de políticas públicas voltadas à compensar as desigualdades sociais, o artigo 93, da Lei nº 8.213/91, é instrumento de inclusão social da pessoa portadora de necessidades especiais através do mercado de trabalho.
Informações Sobre o Autor
Bruno Lessa Pedreira São Pedro
Analista judiciário – área judiciária do Tribunal Regional do Trabalho da 4 Região. Especialista em Direito Público.