Resumo: O presente trabalho tem como objetivo o estudo dos crimes de compra e venda de órgão e tecidos humanos, condutas essas tipificadas na Lei n . 9.434/97, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. Será abordado especificamente a conduta do agente que procede a compra de um órgão humano para fins de transplante – em si ou em terceiro – e do agente que procede a venda. Será feito uma pesquisa doutrinária em relações a princípios penais aplicáveis a referida conduta, como a Princípio da Lesividade, bem como excludentes de ilicitude e culpabilidade por Estado de Necessidade e Inexigibilidade de Conduta Diversa, respectivamente. Restará ao final demonstrado pela impossibilidade de punição do agente frente às causas de justificação reconhecidas pelo ordenamento pátrio.
Palavras-chave: compra de órgãos humanos, estado de necessidade, inexigibilidade de conduta diversa.
Abstract: The present work aims to study the crimes of purchase and sale of human organs and tissues, these behaviors typified in the Law n. 9.434/97, which regulates the removal of organs, tissues and body parts for transplantation and treatment. Will be addressed specifically the conduct of the agent proceeds to buy a human organ for transplant purposes – to yourself or to third – and the agent that the sale proceeds. Research will be done in relationship to doctrinal principles that apply to criminal conduct, as the principle of lesividade and exclusive of illegality and culpability for the state of necessity and waiver of diverse behavior, respectively. It will remain to the end shown by the inability of the agent of punishment against the defenses recognized by national patriotism.
Keywords: purchase of human organs, state of necessity, waiver of diverse behavior.
Sumário: 1. Introdução. 2. Escorço histórico. 3. Análise da Lei nº. 9.434/1997. 4. Dos crimes previstos na Lei n . 9.434. 5. Quanto ao direito da personalidade. 6. Princípio da lesividade. 7. O estado de necessidade como excludente da ilicitude. 8. Consentimento do ofendido como causa supralegal de justificação. 9. Da inexigibilidade de conduta diversa. 10. Considerações finais. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo fazer uma análise da conduta tipificada no art. 15, caput, da Lei n . 9.434, de 04 de fevereiro de 1997, relativa à compra e venda de órgãos e tecidos humanos para fins de transplante, frente às causas de excludentes de ilicitude e culpabilidade que poderão ser aplicáveis.
2. ESCORÇO HISTÓRICO
A primeira lei brasileira que tratou de transplante de órgãos humanos foi a Lei n . 4.280, de 06/11/1963. Este diploma legal – impregnado de cunho religioso – não abordava aspectos penais em relação ao transplante de órgãos e tecidos humanos, rezando ser “permitida a extirpação de partes de cadáver, para fins de transplante”, condicionando para tanto a autorização deixada por escrito pelo de cujus e que não houvesse oposição por parte do cônjuge ou dos parentes até o segundo grau, bem como de “corporações religiosas ou civis responsáveis pelo destino dos despojos”.
A lei supramencionada mostrava-se lacunosa, como bem observado por Eliana Faleiros Vendramini Carneiro[1], não abordando aspectos como o momento da morte, apenas citando em seu art. 3º que para a realização do transplante seria necessário que houvesse “provada de maneira cabal a morte atestada pelo diretor do hospital onde se deu o óbito ou por seus substitutos legais”, contemplando assim apenas transplantes “post mortem”.
A Lei n . 4.280 foi expressamente revogada pela Lei nº. 5.479, de 10 de agosto de 1968, e agora previa hipóteses de transplante “post mortem” e em vida, contudo, da mesma forma que a lei anterior, não abordava de forma clara o momento da morte, determinado que “o transplante somente será realizado se o paciente não tiver possibilidade alguma de melhorar através de tratamento médico ou outra ação cirúrgica”, o que dificultou sua aplicação, em razão de sua insegurança e o caráter subjetivo constante no seu texto, o que, por consequência, gerava inseguranças aos profissionais da área médica[2].
Quanto a doação em vida, a Lei nº. 5.479 rezava que essa seria possível em relação órgãos duplos ou tecidos, vísceras ou partes, e, desde que, não implicasse em prejuízo ou mutilação grave para o doador, e que correspondesse a uma necessidade terapêutica indispensável ao receptor.
Quanto ao aspecto penal, a Lei nº. 5.479 previa pena de detenção de 01 (um) a 03 (três) anos, sem prejuízo de outras sanções que no caso couberem, caso não fosse atendido os aspectos procedimentais instituídos por referida lei nos arts. 2º, 3º, 4º e 5º. Previa ainda a cominação de do crime de destruição, subtração ou ocultação de cadáver, previsto no art. 311 do Código Penal, caso o agente, após ter procedido a retirada do órgão e tecido, não, condignamente, recompusesse o corpo, e entregasse aos responsáveis para o sepultamento.
Em 1992, sobreveio a Lei no. 8.489, de 18 de novembro, que expressamente revogou a lei anterior, tendo como inovação de destaque a adoção do critério da morte encefálica como momento inicial para a retirada dos órgãos, critério esse, como lembra Eliana Faleiros Vendramini Carneiro[3], passível de crítica, mas que vinha sendo utilizado nos demais países. Quanto aos demais aspectos, a lei as disposições contidas no diploma revogado, inclusive quanto aos crimes, apenas extirpando corporações civis e religiosas da decisão de disposição.
3. ANÁLISE DA LEI Nº. 9.434/1997.
A atual Lei brasileira que dispõe sobre a “a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento”[4], é a Lei n . 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, teve sua redação parcialmente alterada pela Lei n . 10.211/2001 e pela Lei n . 11.521/2007.
A Lei n . 9.434/97 ressalta em seu art. 1º a característica da gratuidade que deve nortear da disposição de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, em vida ou ‘post mortem’, para fins de transplante e tratamento.
A lei determina que a realização de qualquer transplante ou enxertos de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano deverá ser realizada por estabelecimento de saúde, e por equipes médicas-cirúrgicas de remoção e transplante, previamente autorizados pelo órgão de gestão nacional do Sistema Único de Saúde.
Assim como a lei anterior, a Lei n . 9.434 manteve o critério da morte encefálica como momento da morte, determinado agora, contudo, que esta deveria ser atestada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.
O art. 4º, que teve sua redação alterada pela Lei nº 10.211, determina que a remoção de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, depende da autorização do cônjuge ou parente, obedecida a linha sucessória, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte, vedando de forma expressa, a remoção “post mortem” de tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoas não identificadas (art. 6º).
Quanto a transplante em vida, a Lei n . 9.434 determina ser possível tal disposição, quando se tratar de pessoa capaz, feita de forma gratuita, de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consanguíneos até o quarto grau, ou em qualquer outra pessoa, nessa última hipótese, mediante autorização judicial, salvo quando se tratar de medula óssea.
Em relação à doação em vida, essa só é possível em relação a órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo, cuja retirada não comprometa a vida do doador e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora.
Assim segundo o sítio eletrônico do ‘Portal da Saúde’, é possível a doação em vida do rim, uma parte do fígado, pâncreas, e pulmão, ou do tecido como a medula óssea. Já após a morte, é possível a doação das córneas; coração; pulmão; rins; fígado; pâncreas; ossos; medula óssea; pele; e valvas cardíacas[5].
4. DOS CRIMES PREVISTOS NA LEI N . 9.434.
Eliana Faleiros Vendramini Carneiro[6] critica a técnica legislativa utilizada pelo legislador para a elaboração dos tipos penais, utilizando em grande parte deles a expressão “desacordo com as disposições desta Lei”, ou, no mesmo sentido, “em desacordo com os dispositivos desta Lei”. Remetendo assim o interprete aos mais de quatorze artigos da Lei n . 9.434, e seus inúmeros desdobramentos.
O art. 14 da Lei n . 9.434 tipifica a conduta de remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com as disposições da mesma lei. Em razão da conduta de “remover”, trata-se de crime próprio, podendo apenas ser praticado por médico.
A douta doutrinadora elenca algumas hipóteses que podem configurar o crime do art. 14 da Lei n . 9.434, in verbis:
“3.2 Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa, sem diagnóstico de morte encefálica, a ser constatada e registrada nos moldes de resolução do Conselho Federal de Medicina.
3.3 Diagnosticar, constatar ou registrar morte encefálica, para fins de transplante, fazendo parte das equipes de remoção ou de transplante.
3.4 Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de cadáver, sem liberação da patologista responsável pela necropsia, quando necessária.
3.5 Remover tecidos, órgãos ou partes de cadáver sem autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte.
3.6 Remover tecidos, órgãos ou partes de cadáver de pessoa juridicamente incapaz, sem permissão expressa de ambos os pais ou dos representantes legais.
3.7 Remover tecidos, órgãos ou partes de cadáver de pessoa não identificada.
3.8 Remover tecidos, órgãos ou partes de cadáver de pessoa, destinados gratuitamente ao cônjuge ou parentes consanguíneos até o quarto grau, sem o consentimento expresso daquela.
3.9 Remover órgãos que não sejam duplos; partes de órgãos, tecidos ou corpo com risco de prejuízo à integridade corporal do disponente; ou sem a necessidade terapêutica comprovadamente indispensável do receptor.
3.10 Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa, destinados gratuitamente a qualquer outrem que não indicado no caput, sem autorização judicial, salvo para transplante de medula óssea.
3.11 Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de incapaz, salvo para transplante de medula óssea.
3.12 Remover medula óssea de incapaz, sem autorização de ambos os pais ou responsáveis legais, autorização judicial ou com risco para aquele.
3.13 Remover medula óssea de incapaz, para autotransplante, sem o consentimento de um de seus pais ou responsáveis legais.
31.4 Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de gestante, salvo para transplante de medula óssea e sem risco para aquele ou para feto.”[7]
O art. 15 da Lei n . 9.434 pune, com pena de reclusão de 03 (três) a 08 (oito) anos e multa, quem comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano. Sendo que o Parágrafo único traz a figura equiparada de quem promove, intermedeia, facilita ou aufere qualquer vantagem com a transação.
Eliana Faleiros Vendramini Carneiro[8] faz uma importante observação quanto ao crime do art. 15 no que diz respeito ao médico que realiza o transplante comercializado pelas partes. Se o médico esta auferindo alguma vantagem econômica em relação a transação comercial havida pelos demais autores, responderá também pelo crime do art. 15. Caso contrário, se apenas tem conhecimento que a obtenção do órgão ou tecido ocorreu em desacordo com as disposições da Lei 9.434, responderá pelo crime do art. 14 (remoção) ou pelo art. 16 (realização do transplante).
Por sua vez, o art. 16, tipifica a conduta de realizar transplante ou enxerto utilizando tecidos, órgãos ou partes do corpo humano de que se tem ciência terem sido obtidos em desacordo com os dispositivos desta Lei, impondo pena de reclusão, de 01 (um) a 06 (seis) anos, e multa.[9]
O art. 17 tipifica a conduta de recolher, transportar, guardar ou distribuir partes do corpo humano que tem ciência, ter sido obtido em desacordo com os disposições Legais, impondo pena de reclusão, de 06 (seis) meses a 02 (dois) anos, e multa.
O art. 18 pune, em suma, a conduta de realizar transplante sem consentimento expresso do receptor, cominando pena de detenção, de 06 (seis) meses a 02 (dois) anos.
A conduta tipificada no art. 19 – que nas legislações anteriores era punida de acordo com o art. 311 do Código Penal – pune a não observância do disposto no art. 8º da Lei de Transplante, que é deixar de recompor cadáver, devolvendo-lhe aspecto condigno, para sepultamento ou deixar de entregar ou retardar sua entrega aos familiares ou interessados.
Por fim, o art. 20 tipifica a conduta de publicar anúncio ou apelo público em desacordo com o disposto no art. 11 desta mesma lei, cominando pena de multa.
5. QUANTO AO DIREITO DA PERSONALIDADE.
Como ensinado por Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, os direitos da personalidade é objeto de proteção jurídica relativamente crescente, tendo sido difundido após a Segunda Guerra Mundial, em razão – principalmente – das atrocidades praticadas pelos Nazistas em face dos Judeus. [10]
Quanto às características dos direitos da personalidade, a doutrina a coloca como direito ‘absoluto’, sendo referido direito oponível erga omnes, impondo aos demais um dever de abstenção em relação ao titular.
Em contrapartida, a doutrina mais moderna elenca a característica da ‘relativa indisponibilidade’ dos direitos da personalidade. Por essa característica, é vedado ao titular dispor em caráter permanente ou total de referidos direitos, de uma maneira que possa comprometer sua própria estrutura física, psíquica e intelectual.[11]
Há ainda de citam outra característica do direito da personalidade, – que parece guardar pertinência com objeto do presente trabalho – a vitaliciedade, ou seja, o direito da personalidade se extingue com a morte de seu titular, uma vez serem esses direitos intransferíveis. Não obstante o parágrafo único do art. 12 do Código Civil proteger, em tese, direito da personalidade de pessoa morta, o faz em razão dos chamados ‘lesados indiretos’, que são os herdeiros da pessoa falecida.
A classificação dos direitos da personalidade se dá em relação ao direito que se visa tutelar (integridade física; moral; ou psíquica), sem, contudo, exauri o rol de direitos tutelados. Quando o direito a integridade física, essa tem como objeto o corpo humano, vivo ou morto, em sua integralidade ou parte dele[12].
Em relação aos transplantes, lembra Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:
“As partes do corpo humano, vivo ou morto, integram a personalidade humana, caracterizando coisa extra commercium, vedando-se , por conseguinte, todo e qualquer ato de disposição a título oneroso, como bem deliberou o Texto Constitucional (art. 199, § 4º, da CF e art. 1º da Lei n . 9.434/97). Entretanto, admite-se disposição de partes do corpo humano, vivo ou morto, a título gratuito, se não causar prejuízo ao titular e tendo em vista um fim terapêutico, altruístico ou científico (arts. 13 e 14, CC).”[13]
Assim, não parece haver divergência na doutrina – em razão da característica da indisponibilidade relativa dos direitos da personalidade – quanto a possibilidade de doação de órgãos do corpo humano, tanto em vida (quanto a órgãos duplos e regeneráveis) ou após a morte para fins terapêuticos, vedando, contudo, qualquer possibilidade que essa seja efetivada a título oneroso.
Ao que se apresenta, o legislador – temendo o comércio de órgãos e tecidos humanos – preferiu optar pela vedação em absoluto de qualquer possibilidade de remuneração ao doador, possibilitando e incentivando, contudo, que esse ato seja feito de forma gratuita.
Não obstante fazer menção ao art. 14 do Código Civil, que autoriza ao indivíduo de fazer a disposição de seu corpo para depois da morte, para Sílvio de Salvo Venosa[14], a doação de órgãos após a morte deve ser feita de forma gratuita, caso contrária será imoral e contra os costumes.[15]
Para Rogério Sanches Cunha[16], se mostra simplista e ultrapassada o entendimento de que a integridade é um bem indisponível, e nada representa o consentimento do ofendido, não estando em harmonia com a realidade atual.
Ademais, sendo a vida a condição para o exercício de todos os direitos da personalidade, até legislador pátrio reguardou a autonomia do indivíduo, ao estabelecer no art. 15 do Código Civil que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, como risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.
6. PRINCÍPIO DA LESIVIDADE.
Ensina Rogério Greco, lecionando sobre o Princípio da Lesividade, que a intervenção do direito penal só é justificável quando se refere à conduta que atinja gravemente direitos de terceiros, impedindo a intervenção desse ramo do direito em condutas apenas imorais que não afetam bem jurídicos de terceiros. Há assim uma necessidade de abstenção da intervenção penal daquilo que é – talvez para a maioria da sociedade – imoral, mas que não afeta direito de terceiros.[17]
De acordo com Ferrajoli, a sua teoria garantista penal é fincada em algumas axiologias, dentre elas a ‘Nulla necessitas sine injuria’, onde as condutas tipificadas pelo direito penal devem ultrapassar obrigatoriamente a pessoa do agente, isto é, “não poderão se restringir a esfera pessoal, à sua intimidade, ou o seu particular modo de ser, somente podendo haver possibilidade de proibição de comportamentos quando estes vierem atingir bens de terceiros” [18].
Nesse diapasão, leciona Sarrule que:
“As proibições penais somente se justificam quando se referem a condutas que afetam gravemente a direitos de terceiros; como consequência, não podem ser concebidas como respostas puramente éticas aos problemas que se apresentam senão como mecanismo de uso inevitável para que sejam assegurados os pactos que sustentam o ordenamento normativo (…).”[19]
O Princípio da Lesividade – que tem origem iluminista – buscou apartar o conceito de ‘direito’ ao de ‘moral’. Assim, esse princípio visa, dentre outros objetivos, segundo os ensinamentos de Nilo Batsita, “proibir a incriminação de uma conduta que não exceda ao âmbito do próprio autor”. [20]
Ferrajoli ensina que “o direito penal não possui a tarefa de impor ou reforçar a (ou um determinada) moral, mas, sim, somente de impedir o cometimento de ações danosas a terceiros”. [21]
Assim, em razão do Princípio da Lesividade, o direito penal não pode punir condutas que não sejam lesivas a terceiros, não excedendo a direito do próprio autor, assim como já é pacífico em relação à autolesão e a tentativa de suicídio. Ao direito penal não cabe puni condutas que poderiam ser caracterizadas como “desviadas”, mas que não atingem direitos de terceiros. Com isso, “aquilo que for da esfera própria do agente deverá ser respeitado pela sociedade e, principalmente, pelo Estado, em face arguição da necessária tolerância que deve existir no meio social, indispensável ao convívio entre pessoas que, naturalmente, são diferentes”.[22]
Para Cleber Masson, o direito penal não tem por objetivo tutelar questões de ordem moral, ética, ideológica, religiosa, etc. Visa proceder a intervenção para tutelar os bens jurídicos indispensáveis para o convívio e desenvolvimento do indivíduo e da sociedade. [23]
Assim, vislumbra-se, diante desse princípio, pela impossibilidade de intervenção do direito penal em uma conduta do agente que não venha a atingir direitos de terceiros, apenas feri direito da personalidade do próprio ator da conduta, que, como vimos, trata de direito relativamente disponível.
7 – O ESTADO DE NECESSIDADE COMO EXCLUDENTE DA ILICITUDE:
O estado de necessidade e seus requisitos objetivos vêm previstos no art. 24 do Código Penal, onde, diferentemente da legítima defesa, ambos os bens jurídicos em questão – o sacrificado e o protegido – possuem amparo no ordenamento. Assim, em razão desse conflito entre bens jurídicos, analisando o caso concreto, um prevalecerá em detrimento do outro, que será sacrificado.
Quanto ao requisito do ‘perigo atual’ do estado de necessidade, para o Professor Francisco de Assis Toledo, estaria abrangido pelo tipo legal também o perigo eminente (assim como na legítima defesa).[24] Para a doutrina majoritária, a expressão ‘perigo atual’ abrange também o perigo que esta preste a ocorrer, dentro de um juízo de previsão mais ou menos seguro.
Sustenta Cesar Roberto Bitencourt que “embora nosso Código Penal preveja, para o estado de necessidade, somente o perigo atual, aceita a iminência do dano, aliás, a iminência do dano é a prova real e indiscutível da existência de perigo concreto”[25].
Um exemplo da iminência do perigo poderia ser citado o agente que encontra-se em grave estado de saúde, e necessita com urgência do um transplante, caso contrário certamente virá a óbito em razão de complicações em seu estado clínico. Nesse exemplo, o perigo não é atual, mas iminente, e de grande probabilidade de se concretizar.
O exemplo supracitado parece preenche outro requisto exigido para a caracterização do estado de necessidade, que é a ‘inevitabilidade do comportamento lesivo’, que segundo Rogério Sanches Cunha[26], se caracteriza quando “o comportamento lesivo a bem jurídico alheio deve ser o único meio seguro para salvar o direito próprio ou de terceiro”. Como é sabido, o transplante de órgãos, em sua grande maioria das vezes, é o último recurso que possui o paciente para reverter uma doença que esta sendo acometido.
O direito que se busca resguardar pode ser próprio ou de terceiro, sendo que em relação a este último, “pouco importando que haja, ou não, uma relação especial entre ambos (parentesco, amizade, subordinação)”[27]. No mesmo sentido é a lição de Cesar Roberto Bitencourt[28], ensinando não haver exigência de qualquer relação entre o agente o titular do direito protegido, bastando que os interesses em conflito sejam tutelados pelo ordenamento jurídico.
No caso o crime objeto de estudo, por se tratar da vida um bem jurídico indisponível, no caso de estado de necessidade de terceiro, não é mister o consentimento do titular do direito protegido.
Quanto ao requisito da razoabilidade do sacrifício do bem, este parece esta preenchido, considerando ser o crime objeto de estudo praticado para salvar bem jurídico ‘vida’, esse é de valor superior aos bens jurídicos tutelados pelos tipos penais da Lei n . 9.434.
Quanto a dificuldades econômicas Cleber Masson rechaçar tal fato como estado de necessidade, admitindo em casos excepcionais, “para satisfação de necessidade estritamente vital que a pessoa, nada obstante seu empenho, não consiga superar de forma lícita. Portando, se o agente podia laborar honestamente, ou então quando se apodera de bens supérfluos ou em quantidade exagerada, afasta-se a justificativa”[29]. Esse parece se o entendimento dos Tribunais de Justiça, e do Superior Tribunal de Justiça, ao menos em relação aos crimes contra o patrimônio:
“PENAL. RECURSO ESPECIAL. ESTELIONATO. ESTADO DE NECESSIDADE. QUESTÃO FÁTICA. I – A afetação da qualidade de vida, mesmo implicando em dificuldades financeiras, por si só, não preenche os requisitos do status necessitatis (art. 24 do C.P.). II – A verificação da situação fática supostamente pertinente impede o conhecimento do recurso especial (Súmula nº 07-STJ). Recurso não conhecido.” (REsp 499442/PE, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 24/06/2003, DJ 12/08/2003, p. 254).
Criticando essa posição, ensina Rogério Greco:
“parece-nos que os nossos tribunais ainda não se convenceram totalmente do estado de miséria e fome por que passa a população mais carente e, ignorando esse quadro conhecido por todos nós, talvez querendo manter a ordem pública à custa da população mais fraca e desprezada pelos políticos de ocasião (…)”.[30][31]
8 – CONSENTIMENTO DO OFENDIDO COMO CAUSA SUPRALEGAL DE JUSTIFICAÇÃO:
Não obstante o Código Penal não incluir o consentimento do ofendido como causa de exclusão da ilicitude, essa deve ser admitida como cláusula supralegal, uma vez que o legislador não poderia prever todas as mutações das condições, sendo que a admissão dessas causas, ainda que não positivadas, corrobora para a aplicação da justiça material.[32][33]
Dentre as várias teorias buscam fundamentar o consentimento do ofendido como causa supralegal de exclusão da ilicitude, a mais aceita no direito comparado é a que aponta comum fundamento a ‘ponderação de valores’, funcionando o consentimento de excludente quando o direito da prioridade ao valor da liberdade de atuação da vontade frente ao desvalor da conduta.[34]
Rogério Sanches Cunha elenca os requisitos colocados pela doutrina para a caracterização do consentimento do ofendido como causa supralegal de exclusão da ilicitude, in verbis:
“a) O dissentimento (a falta de consentimento) do ofendido não integra o crime, pois, caso contrário, seu consentimento exclui a própria (exemplo: art. 150 e 213, ambos do CP); b) O ofendido deve ser capaz de consentir; c) A tutela renunciada pelo ofendido deve tratar de direito disponível; d) O consentimento deve se manifesto antes ou durante a prática do fato (se posterior pode significar renúncia ou perdão, causas extintivas da punibilidade nos crimes perseguidos mediante ação penal privada); e) O consentimento deve ser expresso. f) O agente deve agir sabendo estar autorizado pela vítima (elemento subjetivo).”[35]
Notadamente quando ao requisito do bem jurídico, se enquadrar ao caso em tela, conforme já anteriormente exposto em item acima, até porque o ordenamento admite a doação de órgão, de pessoa viva ou morta, apenas exigindo a característica da gratuidade. Evidenciando assim, a característica da disponibilidade relativa dos direitos da personalidade.
Assim, parece ser perfeitamente possível admitir o consentimento do ofendido como causa supralegal de exclusão da ilicitude da conduta do agente que procede a compra de órgão – obviamente de forma concedida – pelo doador.
Para Rogério Greco, a integridade física é um bem jurídico disponível, desde que as lesões sofridas sejam de natureza leve, não tendo assim o consentimento do ofendido a possibilidade de afastar a tipicidade das lesões graves ou gravíssimas.[36] Considerando que a recuperação em uma cirurgia de transplante de rim, por exemplo, leva menos que quinze dias, e o paciente tem alta geralmente em com sete dias, e os pontos são retirados com sete a dez dias após a cirurgia, segundo informações da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, tal intervenção não caracterizaria lesão corporal de natureza grave.
Interessante ressalve é trazida por Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina, para estes:
“Quando se trata de bens jurídicos sumamente relevantes para a pessoa (para o desenvolvimento de sua personalidade), não basta o consentimento da vítima para afastar o delito, senão um contexto justificante. Há casas, assim, em que o consentimento da vítima só pode ter efeito dentro da antijuricidade (quando um bem jurídico é afetado para salvar outro de igual ou maior valor). Nesse caso, o bem jurídico (embora disponível, no sentido de que mesmo sem ele a vítima não morre) não tem função de intercâmbio, ao contrário, é fundamental para a pessoa (e, em consequência, para o desenvolvimento de sua personalidade). (…) Torna-se imprescindível, assim, constatar a presença de um “contexto” justificante (por exemplo: extrai-se o rim de uma pessoa para salvar outra), que vai além do consentimento da vítima. A solução penal para os casos de órgãos humanos quase que vitais requisita a presença de um motivo justificador sério, que permita um resultado balanceado entre bens jurídicos.”[37]
9 – DA INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA.
Em razão da adoção do finalismo de Welzel, a culpabilidade é formada pelos seguintes elementos: imputabilidade; potencial consciência da ilicitude do fato; e exigibilidade de conduta diversa. Rogério Greco conceitua esse último requisito como “a possibilidade que tinha o agente de, no momento da ação ou da omissão, agir de acordo com o direito, considerando-se a sua particular condição de pessoa humana”. É conclui referido autor:
“Essa possibilidade ou impossibilidade de agir conforme o direito variará de pessoa para pessoa, não podendo conceber um “padrão” de culpabilidade. As pessoas são diferentes umas das outras. Algumas inteligentes, outras com capacidade limitada; algumas abastadas, outras miseráveis; algumas instruídas, outras incapazes de copiar o seu próprio nome. Essas particulares condições é que deverão ser aferidas quando da análise da exigibilidade de outra conduta como critério de aferição ou de exclusão da culpabilidade, isto é, sobre o juízo de censura, de reprovabilidade, que recai sobre a conduta típica e ilícita praticada pelo agente.”[38]
Assim, o conhecimento do injusto praticado pelo agente não tem o condão, por si só, de fundamentar uma condenação criminal contra este. Tal fato só ocorrerá se, diante da análise do caso concreto, o agente podia adotar uma conduta conforme o conhecimento do injusto. Há situações em que não se pode exigir do agente uma conduta conforme o direito, afastando assim o terceiro elemento da culpabilidade.[39]
A inexigibilidade de conduta diversa já foi admitida pelos tribunais superiores como causa supralegal de exclusão da culpabilidade, conforme de depreende do seguinte julgado:
“PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO. JÚRI. TESE PRINCIPAL DA DEFESA NÃO QUESITADA. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. NULIDADE ABSOLUTA. I – Se a tese principal da defesa não foi quesitada, a par do evidente prejuízo, a nulidade daí decorrente é absoluta. II – A recusa na quesitação de uma tese não dispensa fundamentação por parte do Juiz Presidente do Tribunal do Júri. III – A exigibilidade de conduta diversa, apesar de apresentar muita polêmica, é, no entendimento predominante, elemento da culpabilidade. Por via de conseqüência, sem adentrar na questão dos seus limites, a tese da inexigibilidade de conduta diversa pode ser apresentada como causa de exclusão da culpabilidade. Especificada e admitida a forma de inexigibilidade, aos jurados devem ser indagados os fatos ou as circunstâncias fáticas pertinentes à tese (Precedentes). Writ concedido, anulando-se o julgamento realizado perante o Tribunal do Júri”. (HC 16865/PE, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 09/10/2001, DJ 04/02/2002, p. 435).
Assim, fazendo um paralelo ao crime tipificado no art. 15 da Lei n . 9.434/97, na hipótese do agente que, acometido por uma enfermidade – ou em pessoa próxima – em um ato desesperando, efetua a compra de um órgão, para que possa se livrar do grave estado de saúde que se encontra acometido, indaga-se, se seria possível exigir desse agente conduta conforme o direito. Da mesma forma, pessoa que atravessa grave dificuldades financeiras, e, diante da inexistência de outras alternativas, procede a venda do próprio órgão, é possível exigir desse agente uma conduta conforme o direito. Em ambos os exemplos, parece ser o melhor entendimento que tais condutas se amoldam perfeitamente a excludente supralegal de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa.
10. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Antes aos entendimentos doutrinários expostos, apresenta-se que o melhor entendimento é pela impossibilidade de responsabilização penal do agente que procede a compra ou venda de órgão humano para fins de transplante.
Não obstante a Constituição vedar expressamente o comércio de órgão e tecidos humanos, tal fato não implica, automaticamente, que tais condutas devam ser tipificadas.
É mister separar o que é considerado – ao menos para uma parte da população – ‘imoral’, do que venha ser considerado ‘ilegal’, sendo que somente nesse último caso, haveria a intervenção do direito penal. Esse é o objetivo do Princípio da Lesividade, vedando a incriminação de condutas que não exceda ao âmbito do próprio autor, impedindo a intervenção desse ramo do direito em condutas consideradas apenas imorais.
É o que leciona Ferrajoli[40], para o qual “o direito penal não possui a tarefa de impor ou reforçar a (ou um determinada) moral, mas, sim, somente de impedir o cometimento de ações danosas a terceiros”.
Ademais, a possibilidade de doação gratuita de órgão em vida, evidencia o caráter de disponibilidade dos direitos da personalidade, não havendo, portanto, possibilidade de punir criminalmente uma conduta que causa lesão a um bem disponível do próprio agente, até porque, a autolesão não é punida pelo ordenamento brasileiro. Ademais, tal conduta não poderia ainda ser considerada ilícita ante a causa supralegal de justificação pelo consentimento do ofendido, uma vez que preenche todos os seus requisitos.[41]
Também poderia caracterizar a excludente do estado de necessidade o agente que procede a compra de um órgão para fins de transplante, tendo em vista que as pessoas que necessitam de transplante, este é o último recurso que dispõem para reverter um problema de saúde que são acometidos. Quando a conduta do agente que procede a venda, deve ser perquirido se este não encontra-se em estado de miséria, e que essa foi a única forma encontrada que possuía para buscar recursos necessários para sua subsistência e de sua família.
Por fim, deve ser analisado ainda se do agente que procede a compra ou venda de um órgão era possível exigir conduta conforme o direito, seja pelo seu estado de saúde, seja por suas condições financeiras. Configurando assim a excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa.
Informações Sobre o Autor
Eduardo Soares Carrara
Advogado, pós-graduado em ciências penais pela Universidade Anhanguera-Uniderp