O presente artigo é escrito em função do Projeto de Lei nº 1219/12, enviado pelo Prefeito do Município de São Paulo à Câmara Municipal, visando remitir os créditos do poder público decorrentes de contrapartidas devidas pelos clubes pelo uso de áreas públicas, bem como anistiar as infrações cometidas e os consectários relacionados à falta de recolhimento das contrapartidas onerosas ou do descumprimento das contrapartidas sociais, tudo de conformidade com o art. 15 do projeto legislativo.
Não há no projeto especificação dos créditos remitidos, nem dos débitos anistiados. O projeto de lei não aponta e nem se descobre da longa exposição de motivos. A medida legislativa proposta, dessa forma, viola em bloco os dispositivos da lei de regência da matéria, principalmente o princípio da transparência orçamentária expresso na Lei de Responsabilidade Fiscal. Ninguém sabe ou fica sabendo o quanto de receita pública foi renunciada, nem mesmo o Tribunal de Contas do Município de São Paulo a quem cabe, com o auxílio da E. Câmara Municipal, fiscalizar e controlar a execução orçamentária.
Geralmente, a remissão de crédito tributário é conhecida como anistia fiscal, embora, tecnicamente, a anistia se refira à extinção da punibilidade das infrações fiscais (art. 78 do CTN).
Contudo, a anistia não se refere apenas ao perdão de dívida de natureza tributária, mas, também, à dispensa do pagamento de receita pública de qualquer natureza, inclusive a de origem patrimonial.
A condição indispensável para a outorga da anistia de débitos de qualquer natureza é o interesse público, que nada tem a ver com o interesse do governante de favorecer esta ou aquela instituição, esta ou aquela pessoa.
Negligenciar a arrecadação de tributos ou de quaisquer outras rendas constitui ato de improbidade administrativa (art. 10, X, da Lei nº 8.429/92), bem como infração político-administrativa do Prefeito, ou seja, crime de responsabilidade, de conformidade com o disposto no art. 4º, VIII do Decreto-lei nº 201/67.[1]
Na esfera tributária nenhum incentivo fiscal onde se insere a anistia e a isenção (§ 1º, do art. 14 da LRF) pode ser outorgado sem que esteja presente o interesse público, matriz dos princípios da generalidade e da universalidade de tributação.
Para tornar visível esses princípios e possibilitar a fiscalização dos atendimentos dos requisitos impostergáveis do interesse público a Constituição prescreveu os princípios de especialidade da isenção (art. 150, § 6º) e o princípio da isonomia tributária.
Só por lei especifica a isenção pode ser concedida, acabando com as costumeiras inserções de normas isentivas, para favorecer determinados setores ou grupos de pessoas no bojo de uma lei que cuida de assuntos genéricos para não despertar a atenção dos demais parlamentares. Resultado: a isenção era aprovada de forma despercebida pela maioria dos votantes. A isenção deve obedecer ao principio da igualdade que, por seu turno, direciona o legislador a tributar segundo a capacidade contributiva de cada um.
O princípio da isonomia deve ser analisado em seu duplo aspecto: de um lado, a proibição de distinguir entre os iguais; de outro lado, o dever de discriminar os desiguais. Examinemo-los separadamente.
A proibição de distinguir entre os iguais ou o dever de não distinguir significa que a lei deve tratar igualmente todas as pessoas ou determinado grupo de pessoas, indiferentes às particularidades de cada pessoa. Apenas permite o tratamento diferenciado quando a respectiva norma jurídica guarda relação de pertinência lógica com a razão diferencial (motivo do tratamento discriminatório). É o que ensina Celso Antonio Bandeira de Mello.[2]
Por isso, não afronta o princípio da isonomia, por exemplo, a isenção do imposto de renda para aposentados ou pensionistas com mais de 65 anos de idade, ou a isenção para portadores de doenças graves definidas em lei etc. Todos os que preencherem tais requisitos gozam da isenção tributária.
A outra face do princípio da isonomia é o dever de distinguir entre os desiguais. Não se pode, por exemplo, exigir, a título de imposto de renda, uma quantia fixa sem considerar a renda de cada um. Esse imposto há de ser proporcional à renda de cada um.
A graduação do imposto segundo a capacidade contributiva de cada um é uma imposição dos tempos modernos incorporada na nossa Constituição (§ 1º, do art. 145 da CF), objetivando uma ordem jurídico-tributária justa. Cada um contribui para o cumprimento da finalidade do Estado na medida de sua capacidade contributiva.
Uma lei tributária não pode desconsiderar as desigualdades existentes, prescrevendo tratamento jurídico isonômico, sob pena de afrontar o princípio da capacidade contributiva que, em última análise, resulta do princípio da isonomia, formulado de forma positiva, e não apenas de forma negativa, para proibir a discriminação.
O aspecto negativo do princípio da isonomia (proibição de discriminar entre os iguais) está para o princípio da generalidade da tributação, enquanto que o aspecto positivo desse princípio (dever de discriminar os desiguais) está para o princípio da proporcionalidade da tributação, ou da graduação do tributo segundo a capacidade contributiva de cada um.
Por isso, ofende às escâncaras a Lei nº 14.096/05 que outorga incentivos fiscais do ISS, do ITBI e do IPTU para as atividades imobiliárias e de construção civil nos quarenta e cinco quarteirões abrangidos no perímetro composto pela Av. Casper Líbero, Av. São João, Av. Ipiranga, Av. Tiradentes e Rua Mauá, mas que por força da Lei nº 14.917/09 a empresa concessionária a ser escolhida pela Prefeitura será a única autorizada a fazer qualquer tipo de intervenção urbana no referido perímetro. É óbvio que a isenção parcial ou total do ITBI, do ISS e do IPTU para adquirir, alienar propriedades imobiliárias, demolir prédios, construir novas edificações e aliená-las com exclusividade fere os princípios constitucionais retro apontados. O que era para ser um benefício fiscal para todos os interessados em investir no referido perímetro urbano ficou sendo monopólio de uma só pessoa. A inconstitucionalidade dessa lei, embora superveniente exsurge com lapidar clareza.
Essa Lei nº 14.096/05 afronta, ainda, o art. 11 da LRF que define os requisitos essenciais da gestão fiscal responsável que inclui, dentre outros, a efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente federativo.
Outrossim, a anistia de débito de natureza não tributária igualmente se sujeita à estrita observância do interesse público. Qualquer receita pública, independentemente, de sua natureza constitui bem público indisponível, inegociável e irrenunciável, porque existe como instrumento necessário ao cumprimento da finalidade do poder público. Por isso, essas receitas sequer podem ser dadas em garantia, aliás, proibição essa que decorre, também, do princípio da impenhorabilidade dos bens públicos. De fato, é da essência da garantia a execução direta dos bens objetos dessa garantia.
Disso decorre a absoluta inconstitucionalidade, por exemplo, do inciso I, do art. 8º, da Lei nº 11.079/04 que permite a vinculação de receitas públicas da ordem de R$6 bilhões para constituir o Fundo Garantidor das PPPs (FGP). A constituição de um Fundo Garantidor dos parceiros privados do poder público da ordem de R$6 bilhões para garantir possíveis futuros e eventuais credores, considerando que a União é devedora de precatórios judiciais vencidos e não pagos, viola em bloco os princípios que regem a administração pública (art. 37 da CF), notadamente, os princípios da moralidade pública e da impessoalidade.
Pior do que onerar receita pública que se encontra fora do comércio, porque destinada exclusivamente ao cumprimento dos fins do Estado que em última análise se resume na efetivação do bem comum, é renunciar à cobrança de débitos acumulados por ter negligenciado a sua cobrança oportuna, incidindo em ato de improbidade administrativa e em crime de responsabilidade política.
É o que está expresso no Projeto de Lei nº 1219/12 que promove a remissão de créditos públicos e anistia vultosas quantias decorrentes de infrações praticadas por clubes profissionais aí mencionados.
Pergunta-se, em que os clubes profissionais, que ganham rios de dinheiro, se distinguem das demais entidades associativas? Parece evidente o interesse particular do patrocinador desses benesses à custa do patrimônio público.
O Município de São Paulo, que não vem honrado as dívidas resultantes de condenação judicial, cujos precatórios integrais não vêm sendo pagos desde 2001, mais de dez anos, portanto, e com visíveis carências nos setores vitais da sociedade, como saúde, educação, transporte e meio ambiente, não pode se dar ao luxo de decretar a remissão e a anistia de receitas públicas para favorecer os clubes profissionais que vêm ocupando os preciosos patrimônios pertencentes ao poder público.
Outrossim, se até o uso de bens comuns do povo, como as calçadas e as vias públicas é cobrado pela Prefeitura (zona azul e permissão onerosa de uso da calçada), porque o uso de bens de natureza dominical, isto é, bens que integram o patrimônio privado do poder público, não é cobrado? Não se nega a importância dos esportistas profissionais na vida da sociedade. Mas, outras categorias profissionais, como a dos advogados, dos médicos, dos educadores etc. são igualmente importantes, e nem por isso são contemplados com os benefícios da espécie.
Contudo, o pior defeito desse projeto legislativo é que não constam os valores remitidos e as quantias anistiadas, decorrentes de infrações.
O art. 15 do projeto limita-se a prescrever laconicamente o seguinte:
“Art. 15. Os créditos relativos às contrapartidas onerosas e à indenização que o Município tenha em face dos clubes esportivos sociais pelo uso das áreas municipais que atualmente ocupam, inscritos ou não em Dívida Ativa, ficam remitidos, bem como anistiadas as infrações cometidas e os consectários relacionados à falta de recolhimento das contrapartidas onerosas ou do descumprimento das contrapartidas sociais, desde que sejam atendidas as seguintes condições:”
Como dito anteriormente, não há no texto legislativo submetido à apreciação da E. Câmara Municipal qualquer referência aos valores remitidos ou anistiados, e nem se descobre na longa exposição de motivos. O projeto de lei em questão viola em bloco as normas do Direito Orçamentário. O orçamento anual, como se sabe, é um instrumento do exercício da cidadania à medida que as receitas previstas e as despesas fixadas são previamente aprovadas pela sociedade representada pela Casa Legislativa. Daí o agravante de renunciar o irrenunciável e em quantia não sabida.
Felizmente, por ora, está sobrestada a tramitação do aludido projeto legislativo por força de uma liminar concedida pela Justiça na ação intentada pelo Ministério Público.
Notas:
[1] O art. 1º dessa Lei alude equivocadamente ao crime de responsabilidade quando, na realidade, as hipóteses aí descritas constituem crimes comuns.
Informações Sobre o Autor
Kiyoshi Harada
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.