Resumo: O discurso de Lima Barreto foi, de modo robusto, delineado por um traço pautado na denúncia contra as disparidade sociais e os preconceitos raciais existentes em uma sociedade extremamente restritiva, cujos valores adotados ainda suplantavam as camadas mais carentes, constituída em sua maioria por negros, mulatos e brancos pobres. Pode-se frisar que Lima Barreto, de maneira rotunda, fez sua opção pelos pobres, oprimidos, negros, mulatos e afro-descendentes, denunciando a sociedade, a corrupção, o literato empoado da belle époque e aproveitadores de mulatas ingênuas. Infere-se na obra “Clara dos Anjos” adoção, por parte de seu narrador, da materialização do romance pautado na denúncia, no qual o autor aborda, de maneira enfática, as disparidades sociais existente no Brasil, assim como combate aos preconceito raciais que vigiam. Ao lado disso, a ambientação no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro traz à tona a premissa que tais áreas eram os lugares que aninhavam uma classe social carente que, diariamente, era devorada pelas demais. Trata-se de um refúgio aos desprovidos de ambição, vencidos pela jornada, suplantados pelas dificuldades, frutos de uma sociedade sufocante para os despidos de dinheiro, posse e influência. O subúrbio segundo o próprio Lima Barreto é o refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam ou nunca tiveram poder econômico vão se aninhar lá. É para este cenário que se dirige o olhar deste texto, nascido e desenvolvido no início dos trabalhos desenvolvidos nos encontros da linha de pesquisa “Direito e Literatura” do Grupo de Estudo e Pesquisa “A Constitucionalização dos Direitos” do Curso de Direito cadastrada no Centro Universitário São Camilo – Espírito Santo, e sob a orientação dos Professores Mestres Flaviano Quaglioz e Maria Rita Vieira Coelho.
Palavras-chaves: Literatura. Direito. Hermenêutica.
Sumário: 1 Clara dos Anjos: Localizando a Obra em seu contexto; 2 Clara dos Anjos e os estigmas da Figura Feminina no início do Século XX: Mulata, Mulher e Pobre; 3 Cassi Jones: Rediscutindo o Conceito de “Mulher Honesta” à luz do Ordenamento de 1.890; 4 D. Salustiana e Inês: Os arquétipos preconceituosos da Sociedade Brasileira nos séculos XIX e XX; 5 D. Engrácia: O Falseamento dos Valores Familiares Patriarcais no Ambiente Suburbano; 6 Comentário Final à Clara dos Anjos; Referências
1 Clara dos Anjos: A Ambiência da História
Em uma primeira plana, cuida não esquecer de que Lima Barreto foi um escritor, mulato, de origem pobre, alcoólatra, dado a carraspanas, e entregue às atmosferas boêmias do Rio de Janeiro, do começo do século XX, e, maiormente, um amante da Literatura. Seu discurso foi, de modo robusto, delineado por um traço pautado na denúncia contra as disparidade sociais e os preconceitos raciais existentes em uma sociedade hipócrita, cujos valores adotados ainda suplantavam as camadas mais carente, constituída em sua maioria por negros, mulatos e brancos pobres. “O escritor foi um dos poucos em nossa literatura que combateram o preconceito racial e a discriminação social do negro e do mulato”[1].
Ao lado disso, quadra anotar que, em razão de sua origem, assim como em decorrência da utilização de uma linguagem simples, comumente coloquial, sua obra foi alvo de muitos preconceitos. Tal fato se dava, gize-se, em razão da obra de Lima Barreto ter florescido em um período marcado pelos pomposos versos parnasianos, pautados em uma linguagem culta; a preocupação centrava-se na forma como as obras eram escritas, não com o conteúdo que apresentavam para o leitor. Pode-se frisar que Lima Barreto “fez sua opção pelos pobres, oprimidos, negros, mulatos e afro-descendentes, denunciando a sociedade hipócrita, a corrupção, o literato empoado da belle époque e aproveitadores de mulatas ingênuas”[2].
Há que se assinalar que a adoção de uma postura combativa, avessa aos discursos vigentes na literatura da época, não permitiu que Lima Barreto angariasse um maciço número de seguidores. Nesta atmosfera, “Clara dos Anjos” é ambientado, de maneira tal que oferta, como pano de fundo, uma perfeita adequação das personagens ao seu contexto. Ao examinar o romance, verifica-se a presença de figuras pálidas e humildes, como é o caso de Clara e seus pais, pessoas simples, que não possuem ambições na vida, desprovidos de grande instrução; há outras vencidas, a exemplo de Marramaque e Leonardo Flores, o poeta, em decorrência de uma sociedade que achatava as camadas mais carentes; outros são mesquinhos, dotados de ganância e ambição, como Meneses, o dentista, e o sedutor Cassi Jones; há ainda outros conservadores, retratando uma sociedade ainda estruturada nos ranços de um Brasil Império, como D. Salustiana, genitora de Cassi Jones. Com propriedade, Silva destaca que:
“Lima Barreto descreve a formação da cidade, o papel dos meios de transporte na expansão urbana, destacando a segregação espacial reproduzida pelos bondes e trens. As habitações compõem o panorama que abriga os personagens do romance e entre os operários e outros cavalheiros citados, podemos reconhecer o tipo que representaria o anti-herói, o violeiro chamado Cassi Jones na versão da década de vinte[3].”
Infere-se na obra “Clara dos Anjos” a adoção, por parte de seu narrador, de um escrito pautado em um discurso de enfrentamento das hipocrisias e das disparidades sociais existentes no Brasil, assim como combate aos preconceito raciais que vigiam. Lima Barreto passa a dar voz à população silenciada que habitava os subúrbios cariocas, em um momento que a elite do Rio de Janeiro, que se encontrava vexada, “tentava esconder, qual sujeira, essa população embaixo do tapete, isto é, empurrava-a para os lugares mais recônditos da cidade, com a justificativa da necessidade de modernizar a cidade”[4].
Ao lado disso, a ambientação no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro traz à tona uma realidade, qual seja: tais áreas eram os lugares que aninhavam uma classe social carente que, diariamente, era devorada pelas demais. Trata-se de um refúgio aos desprovidos de ambição, vencidos pela caminhada, suplantados pelas dificuldades, frutos de uma sociedade sufocante para os despidos de dinheiro, posse e influência. O subúrbio segundo o próprio Lima Barreto é “o refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam [ou nunca tiveram poder econômico] vão se aninhar lá”[5].
2 Clara dos Anjos e os estigmas da Figura Feminina no início do Século XX: Mulata, Mulher e Pobre
Na obra em exame, Lima Barreto retrata a história da jovem mulata, Clara dos Anjos, proveniente de uma família simples do subúrbio carioca, filha de um carteiro e de uma dona de casa, Joaquim dos Anjos e Engrácia dos Anjos, sem grandes ambições na vida, a não ser contrair um matrimônio. Ao contrário do que a Literatura até então descrevia e narrava, consagrando em suas páginas mulatas sinuosas e sedutoras, com corpos que convidavam os homens ao prazer, Lima Barreto, ao estruturar a denúncia, coloca à mostra a realidade de uma sociedade preconceituosa, ranços do período imperial em que havia uma nítida distinção entre as camadas mais abastadas e as mais carentes, assim como a situação de inferioridade do negro e do mulato em relação ao branco.
“No caso da mulata, a redução de seu ser à corporalidade e à sexualidade obedece à economia que se herda do sistema escravista que, segundo historiadores e sociólogos, foi um contexto em que o exercício da sexualidade livre era tolerado, senão incentivado, por vários aspectos[6].”
A peculiaridade a ser observada está nos contrastes entre o título da obra e a personagem homônima, posto que Clara, na realidade, não é clara, mas sim uma mulata; ao lado disso, o nome dos Anjos que transparece a concepção de pureza, de inocência também será colocado em contradição, quando é seduzida por Cassi Jones. “A contradição do nome também serve para reafirmar a crítica à fatalidade sócio-racial na obra. Dessa forma, o nome Clara dos Anjos e as referências evocadas assumem o papel de polo contraditório da denúncia”[7]. Trata-se de uma ironia estruturada, com o escopo de despertar a reflexão no leitor.
A personagem central da obra se apresenta como uma jovem pálida, inexpressiva e que reunia os estigmas próprios do início do século XX, notadamente o de ser uma pobre mulata. A falta de expressão de Clara dos Anjos retrata, cabalmente, a ausência de voz dos excluídos, marginalizados e da população da classe menos abastada, que se aninhava nos subúrbios, sufocados e achatados pela exploração da elite. Neste diapasão, cuida trazer à tona a descrição ofertada pelo autor acerca de sua personagem, havendo que se destacar a forma expressiva com que estrutura críticas à formação de Clara dos Anjos:
“Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que precisava mãos fortes que a modelassem e fixassem. Seus pais não seriam capazes disso. A mãe não tinha caráter, no bom sentido, para o fazer; limitava-se a vigiá-la caninamente; e o pai, devido aos seus afazeres, passava a maioria do tempo longe dela. E ela vivia toda entregue a um lânguido de modinhas e descantes, entoadas por sestrosos cantores, como o tal Cassi e outros exploradores da morbidez do violão. O mundo se lhe representava como povoado de suas dúvidas, de queixumes de viola, a suspirar amor. Na sua cabeça, não entrava que a nossa vida tem muito de sério, de responsabilidade, qualquer que seja a nossa condição e o nosso sexo. Cada um de nós, por mais humilde que seja, tem que meditar, durante a sua vida, sobre o angustioso mistério da Morte, para poder responder cabalmente, se o tivermos que o fazer, sobre o emprego que demos a nossa existência. Não havia, em Clara, a representação, já não exata, mas aproximada de sua individualidade social; e, concomitantemente, nenhum desejo de elevar-se, de reagir contra essa representação. A filha do carteiro, sem ser leviana, era, entretanto, de um poder reduzido de pensar, que não lhe permitir meditar um instante sobre o destino, observar os fatos e tirar ilações e conclusões. A idade, o sexo e a falsa educação que recebera, tinham muita culpa nisso tudo; mas a sua falta de individualidade não corrigia a sua obliquada visão da vida[8].”
Em um exame acurado, infere-se que Lima Barreto, ao traçar os aspectos característicos de sua personagem, aborda a educação e a proteção exacerbada da família que atalha a inteligência, cerra a visão para a vida e os perigos existentes. Além disso, o emprego dos adjetivos “amorfa” e “pastosa” são comumente utilizados para descrever mulheres no início do século XX, transparecendo a necessidade de um homem, com mãos fortes, para moldá-las, adequá-las à vida. Sem dúvidas, Clara dos Anjos reúne em sua estrutura o arquétipo da mulher, sob o ângulo de uma sociedade machista, agravado, de maneira rotunda, por ser mulata e pobre, desprovida de grande inteligência. “Clara não possui uma ideia transparente sobre a sua situação dentro da sociedade, em parte pela educação que recebera de seus pais”[9].
Nesse sedimento, outro característico digno de nota faz menção ao conhecimento limitado da personagem, que se restringe a contemplar a vida, em uma eterna atmosfera de romantismo, que a desprotege para os perigos da vida, o que é agravado de maneira maciça pela superproteção direcionada pelos pais. Trata-se de uma criação alheia ao mundo exterior, o que acaba por acarretar uma idealização, decorrente das modinhas de violão, sendo vigiada caninamente por sua genitora, D. Engrácia. A instrução da personagem é mínima, abalizando-se em “menções à sua formação cultural restringem-se às aulas de bordado dadas por Margarida e aos parcos conhecimentos musicais transmitidos por seu pai, em suas reduzidas horas de convívio com a filha”[10].
Aliás, o narrador dispensa a tal comportamento críticas severas, porquanto uma criação pautada nos mimos e regalos em nada contribui para o amadurecimento das jovens, sendo propensas vítimas do desejo de Cassi Jones e outros sedutores contumazes. Culpabiliza a sociedade, através de sua personagem, por educar e criar moças tão frívolas, que não detêm qualquer discernimento e, com meia dúzia de galanteios e palavras afáveis, deixam-se seduzir, entregando-se aos seus algozes. As donzelas, na perspectiva da obra, são tão culpadas quanto os sedutores, estando a eles ladeadas, não lhes sendo resguarda a condição de vítima, mas sim de cúmplice do ato, juntamente com os pais que não lhes ministravam uma educação prática, pautada nas vivências do cotidiano, ao reverso, reservada a uma atmosfera romântica, de versos e contemplação sem fim. Nesta senda, Clara dos Anjos, como instrumento da denúncia de Lima Barreto, sucumbe, sem ofertar qualquer resistência, a Cassi Jones, sendo deflorada.
O despertar de Clara dos Anjos para as auguras da vida e o preconceito racial e social se dão após funesto episódio de sua defloração, quando confrontada com a realidade da vida, o que se dá no deslinde da obra, em um diálogo carregado de emoção e preconceito, com D. Salustiana, genitora de Cassi Jones.
Nas páginas finais do romance, Lima Barreto, como um grito seco, contrapõem realidades distintas, trazendo o leitor para a ambientação: Clara dos Anjos, a mulata pobre, e D.Salustiana, a mulher branca de família supostamente tradicional; a moradora do subúrbio pobre carioca, de ruas de terra batida e a moradora de uma rua calçada, localizada em ponto tido como elegante num mesmo subúrbio; a mulher apática, deflorada e sem quaisquer expectativas e a mulher imponente, enérgica, símbolo dos ranços imperiais.
“Na rua, Clara pensou em tudo aquilo, naquela dolorosa cena que tinha presenciado e no vexame que sofrera. Agora é que tinha a noção exata da sua situação na sociedade. Fora preciso ser ofendida irremediavelmente nos seus melindres de solteira, ouvir os desaforos da mãe do seu algoz, para se convencer de que ela não era uma moça como as outras; era muito menos nos conceitos de todos. Bem fazia adivinhar isso, seu padrinho! Coitado…
A educação que recebera, de mimos e vigilância, era errônea. Ela devia ter aprendido da boca dos seus pais que a sua honestidade de moça e de mulher tido todos por inimigos, mas isto ao vivo, com exemplos, claramente… O bonde vinha cheio. Olhou todos aqueles homens e mulheres… Não haveria um talvez, entre toda aquela gente de ambos os sexos, que não fosse indiferente à sua desgraça… Ora, uma mulatinha, filha de um carteiro! O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil Dona Margarida, para se defender de Cassis e semelhantes, e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que ela o admitiam…[11]”
Clara dos Anjos alberga em seu âmago, enquanto romance pautado na denúncia, os aspectos mais rotundos de uma sociedade preconceituosa, na qual os corpos de negras e mulatas eram condicionados à situação de objetos, à disposição para fruição dos homens, principalmente os brancos das camadas mais abastadas. Trata-se se um narração seca e expressiva que põe em xeque valores morais adotados pela sociedade do início do século XX.
3 Cassi Jones: Rediscutindo o Conceito de “Mulher Honesta” à luz do Ordenamento de 1.890
Ao se analisar a obra Clara dos Anjos, constata-se que Lima Barreto, de maneira contundente e incisiva, traz à tona as hipocrisias veladas existentes na sociedade brasileira. Os preconceitos raciais e sociais que vigoravam, assim como os valores, tidos na atualidade como arcaicos, adotados no início do século XX, período que a obra foi concebida, são pilares estruturantes do romance. Neste passo, conquanto o folhetim alicerce o seu título na mulata inocente que foi seduzida e abandonada por Cassi Jones, o pretenso namorado branco, infere-se que a este o escritor concede substancial destaque, permitindo-se que, por vezes, indague-se sobre a personagem central, que poderia não ser Clara dos Anjos, mas sim o seu algoz. Com efeito, utilizando-se de uma descrição direta e consistente, Lima Barreto apresenta, ao leitor, Cassi Jones como:
“[…] um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco, sardento, insignificante de rosto e de corpo; e, conquanto fosse conhecido consumado “modinhoso”, além de o ser também por outras façanhas verdadeiramente ignóbeis, não tinha as melenas da virtuose do violão, nem outro qualquer traço de capadócio. Vestia-se seriamente, segundo as modas da rua do Ouvidor; mas, pelo apuro forçado e o degagé suburbanos, as suas roupas chamavam a atenção dos outros, que teimavam em descobrir aquele aperfeiçoadíssimo “Brandão”, das margens da Central, que lhe talhava roupas. A única pelintragem, adequada ao seu mister, que apresentava, consistia em trazer o cabelo ensopado de óleo e repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente ao meio – a famosa “pastinha”. Não usava topete, nem bigode. O calçado era conforme a moda, mas com os aperfeiçoamentos exigidos por um elegante dos subúrbios, que encanta e seduz damas com seu irresistível violão[12].”
Pelo cotejo da descrição de Cassi Jones, salta aos olhos que, ao elaborar a figura, busca o autor, com uma linguagem pautada no vocabulário coloquial, sem as pompas e finezas dos habitantes que residiam nos bairros tradicionalmente elitistas, traz à baila uma situação recorrente nos subúrbios dos grandes centros. A personagem em comento se reveste de um sucedâneo carácter de cunho pejorativo, sendo, inclusive, considerado como um contumaz deflorador de donzelas honestas e sedutor de mulheres casadas. Ao lado disso, cuida trazer à colação, com efeito, que “é, a um tempo, um herdeiro do sinhozinho perverso e poderoso, que dispõe da vida e dos corpos dos escravos à sua disposição e igualmente o sujeito que mobiliza todos os recursos e energias para os fins de acumular capital simbólico”[13].
Nas páginas da obra, Lima Barreto resgata e coloca à mostra o senhorzinho de escravos, desta vez como um homem da classe burguesa, que, mesmo após o advento da libertação dos negros, continua a suplantá-los, banqueteia-se dos corpos das mulatas e, em decorrência de influência e poder, vê-se livrado das reprimendas contidas no Ordenamento que então vigorava, qual seja: o Código Penal de 1890.
Ora, conquanto não mais subsistisse uma sociedade imperial, vigoravam, de maneira plena e sedimentada, os valores nela constantes, notadamente a colocação do negro como inferior ao homem branco dotado de posses, influência e dinheiro, isto é, integrante da elite seleta da sociedade do século XIX e início do século XX. “A força da nova sociedade estava concentrada justamente nos comportamentos anti-sociais, elevados à condição de valores máximos da elite”[14]. Com o escopo de ilustrar, de maneira determinante tais condições, há que se colacionar o excerto que:
“Em geral, as moças que ele [Cassi Jones] desonrava eram de humilde condição e de todas as cores. Não escolhia. A questão é que houvesse ninguém na parentela delas, capaz de vencer a influência do pai, mediante solicitações maternas.
A mãe recebia-lhe a confissão, mas não acreditava; entretanto, como tinha as suas presunções fidalgas, repugnava-lhe ver o filho casado com uma criada preta, ou com uma pobre multa costureira, ou com uma moça branca lavadeira e analfabeta.
Graças a esses seus preconceitos de fidalguia e alta estirpe, não trepidava em ir empenhar-se com o marido, a fim de livrar o filho da cadeia ou do casamento pela polícia[15].”
Pois bem, lançando-se mão de uma análise revestida de cunho jurídico, mister se faz examinar as condutas perpetradas por Cassi Jones, na obra “Clara dos Anjos”, dispensando-se uma abordagem acadêmica, conjugada com a visão adotada pelo Ordenamento Jurídico então vigorante. Nesta senda, cuida arrazoar que, como dito algures, o romance em exame teve sua gênese no início do século XX, estando seu enredo, portanto, subordinado ao Código Penal de 1890. É crucial preponderar que as condutas perpetradas por Cassi Jones tinham como elemento a sedução que a personagem utilizava em relação a suas vítimas, as quais depositavam confiança, vindo, posteriormente, a serem defloradas, no caso das donzelas virgens, e seduzidas, no que se refere às viúvas. Observa-se, pois, que Cassi Jones empregava um amplo lastro de engôdos, estratagemas e ardis para obter o seu intento.
Em especial, quando se analisa, a partir de um contexto jurídico, o defloramento de Clara dos Anjos, há que se reconhecer a materialização do crime de sedução, já que inexiste qualquer menção que tenha Cassi Jones empregado de violência física ou mesmo qualquer outro recurso que minorasse a resistência da vítima. Tal conduta típica encontrava-se alocada sob a a epígrafe “Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje publico ao pudor”, a partir do artigo 267. Ao lado disso, cita-se a redação do artigo supramencionado, que dispunha: “Art. 267. Deflorar mulher de menor idade, empregando seducção, engano ou fraude: Pena – de prisão cellular por um a quatro annos”[16].
Há que se assinalar que a sociedade do século XIX e até meados do século XX buscava dispensar proteção ao mínimo ético que se fundava pela experiência social em torno dos fatos sexuais, salvaguardava-se a moral pública sexual. No mais, pode-se realçar que o bem jurídico resguardado pelo dispositivo em tela busca salvaguardar a “virgindade da mulher aliada à inexperiência, que lhe é própria em nosso meio, como também a confiança que, por sua condição bio-sociológica, vem quase sempre depositar no homem, em quem espera encontrar apoio e proteção”[17].
Neste passo, impõe salientar que a locução mulher honesta, implícita na rubrica em que o crime se encontrava alocada, albergava, em seu bojo, a concepção vigorante para a sociedade, na qual a figura feminina era despida de iniciativa ou conhecimento. Neste sentido:
“Na mulher solteira, constituía-se uma verdadeira transgressão social da perda da virgindade, pois, enquanto símbolo de pureza e virtude, a virgindade deveria ser guardada pela mulher e zelada pela família. O dano físico provocado pela perda do hímen revelava plenamente o seu significado no plano moral, marcando a vítima sob o estigma de desonra[18]”
Ao lado disso, a expressão mulher honesta deve ser interpretada à luz do contexto sócio-cultural em que foi acinzelada, logo, enquanto sujeito passivo da conduta em testilha, pode-se gizar que tal locução alude à mulher que detém certa dignidade e decência, conservando os valores elementares do pudor. “A expressão “mulher honesta” restringia-se às mulheres virgens ou casadas: qualquer mulher fora desses grupos, portanto, não poderia ser vítima”[19]. Para que uma mulher fosse considerada desonesta, era preciso que ser dedicada à vida sexual por "mera depravação ou interesse", a exemplo das prostitutas ou mulheres públicas, consideradas como dissolutas e devassas, não estando amparadas, com a mesma ênfase, pelo Diploma Penal de 1.890, já que suas condutas atentavam contra os valores morais que orientavam a sociedade brasileira da época, minando-os e enfraquecendo-os. No mais, cite-se, por oportuno, que:
“A fundamentação do conceito de honestidade da mulher estava intimamente ligada a um padrão de procedimento amoroso e de comportamento, no que diz respeito às relações íntimas. De modo geral, entendia-se como honesta a mulher que tivesse pouca ou nenhuma experiência na relação de par antes do casamento ou que, se desfeito este, permanecesse só, sem ter eventuais ligações, ou até uma outra experiência amorosa[20].”
Nessa senda, prima realçar que a expressão mulher honesta é empregada como um juízo de valor que, de acordo com os ditames morais da época da redação do Código, restringia a proteção a determinadas mulheres em relação aos crimes de estupro, sedução e rapto. Destarte, tanto as prostitutas, quanto as mulheres consideradas promíscuas não eram abarcadas pela tutela do Direito daquele século, dando-se pouca relevância ao coito fraudulento com tais pessoas[21]. Repreendia-se, com efeito, o comportamento promíscuo, ofensivo à sociedade em que o Diploma vigia, combatendo, por conseguinte, sua disseminação e proliferação, eis que poderia contaminar os valores, sobretudo os de índole moral e religiosa, salvaguardados pelo Ordenamento Jurídico.
A proteção à mulher virgem e à mulher honesta, expressamente burilada no Ordenamento Pátrio, estavam alicerçadas na imperiosidade de dispensar às mulheres de famílias distintas e importantes tratamento legislativo. “O legislador da época não conseguia ver a possibilidade de uma mulher ser possuidora de iniciativa e ser mais astuta do que um homem”[22]. Deste modo, o fato de estar uma mulher a ceder aos subterfúgios empregados pelo sedutor para lograr êxito em seu intento, atribuía-se ao homem a responsabilidade, já que subsistia a visão de ingenuidade em relação à vítima. Repita-se, que o contexto de tal conduta é uma sociedade machista, na qual as mulheres estavam condicionadas a um segundo patamar, de inferioridade e desprovidas de inteligência.
Prosseguindo o exame do caput da conduta em testilha, é possível verificar que o artigo em comento trazia como conduta típica “deflorar”, que pode ser interpretado como sinônimo de desonrar, ofender, violar. Ao lado disso, o termo “sedução” empregado no artigo 267 traz a lume o ideário de ato astucioso, ardiloso, empregado pelo agente no intuito de ter com a vítima, mulher menor de idade [e honesta], conjunção, deflorando-a. Como exemplo de tal ardil, pode-se citar galanteios, carícias, palavras afáveis e convencedoras, promessas de casamento, isto é, qualquer meio para que a vítima, em razão de seu desconhecimento e inocência, ceda ante às investidas. Lima Barreto, com bastante singularidade, descreve os subterfúgios empregados pela personagem Cassi Jones, com o escopo de seduzir suas vítimas e com elas cometer seus covardes crimes:
“Houve quem o conhecendo e sabendo dessa sua sovinice doentia explicasse os seus desvirginamentos seguidos e as suas constantes seduções a raparigas casadas, como sendo a resultante da aridez de dinheiro, que o encaminhava a amores gratuitos; e de uma atividade sexual levada ao extremo, que a sua estupidez explicava.
Seja devido a esta ou aquela causa, a este ou aquele motivo, o certo é que nele não havia nevrose ou qualquer psicopatia que fosse. Não cedia a impulsos de doença; fazia tudo muito calculadamente e com todo o vagar. Muito estúpido para tudo o mais, entretanto, ele traçava os planos de sedução e desonra com a habilidade consumada dos scrocs de outras naturezas. Tudo ele delineava lucidamente e previamente removia os obstáculos que antevia.
Escolhia bem a vítima, simulava amor, escrevia detestavelmente cartas langorosas, fingia sofrer, empregava, enfim, todo o arsenal do amor antigo, que impressiona tanto a fraqueza do coração das pobres moças daquelas paragens, nas quais a pobreza, a estreiteza de inteligência e a reduzida instrução concentram a esperança de felicidade num Amor, num grande e eterno Amor, na Paixão correspondida.
Sem ser psicólogo nem coisa parecida, inconscientemente, Cassi Jones sabia aproveitar o terreno propício desse mórbido estado d'alma de suas vítimas, para consumar os seus horripilantes e covardes crimes; e, quase sempre, o violão e a modinha eram seus cúmplices…[23]”
Infere-se ainda que o crime contido no artigo 267 do Código Penal de 1.890 trazia consigo o escopo de saciedade dos institutos libidinosos do sedutor. Ora, segundo Fragoso, o ato libidinoso pode ser descrito como “toda ação atentatória ao pudor, praticada com o propósito lascivo ou luxurioso. Trata-se, portanto, de ato lascivo, voluptuoso, dissoluto, destinado ao desafogo da concupiscência”[24]. A inexperiência da vítima era o grande pilar sustentado no dispositivo supra, o que apenas as donzelas honestas possuiriam. Com efeito, a mulher inexperiente era aquela que se mostrava incapaz de formular um juízo ético sobre o ato sexual e as consequências oriundas de sua realização. Vigia uma ignorância crassa acerca do tema sexo na sociedade do início do século XX, maiormente para as moças.
É preciso lembrar, porém, que a sedução era considerada como uma medida dotada de grande perversidade, porquanto o agente delituoso se utilizava da inexperiência da vítima para deflorá-la. Caso o pai ou o juiz não autorizasse o casamento com o sedutor, este poderia ser condenado à pena de um a quatro anos de prisão. Quanto à deflorada, esta teria de enfrentar a desonra e dificuldades futuras para contrair matrimônio. Provavelmente, em muitos outros casos, a temeridade em ter uma filha desonrada e deflorada, culminava na concessão do matrimônio entre o sedutor e sua vítima.
Nesse tocante, o Estatuto de 1.890, refletindo a temeridade quanto à desonra que a vítima seria sujeitada, bem como a situação de vergonha que a família seria submetida, impunha que, em contraindo o casamento, ao sujeito passivo não seria aplicada a pena, conforme se extrai do artigo 276:
“Art. 276. Nos casos de defloramento, como nos de estupro de mulher honesta, a sentença que condemnar o criminoso o obrigará a dotar a offendida.
Paragrapho unico. Não haverá logar imposição de pena si seguir-se o casamento a aprazimento do representante legal da offendida, ou do juiz dos orphãos, nos casos em que lhe compete dar ou supprir o consentimento, ou a aprazimento da offendida, si for maior[25].”
Em exame aos dispositivos apresentados, conjugando tal análise com o cenário ofertado por Lima Barreto, em “Clara dos Anjos”, verifica-se que a evolução da sociedade foi elemento preponderante para que o Ordenamento Jurídico caminhasse, de maneira a abarcar as necessidades e os valores apresentados pela coletividade. Ao lado disso, a realidade social é o verdadeiro movimento que contribui para a contínua e progressiva validação dos textos, modificando-os, quando necessário, com o escopo primevo de concatená-lo com ao cena histórica e cultural de específico grupamento de indivíduos.
Como ensinam as lições de Direito, a sua interpretação não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos. “O direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[26]. Conquanto o crime disposto no artigo 267 do Código Penal de 1.890 se revele como uma conduta arraigada de valores há muito, em certa medida, superados pela sociedade atual, há que se salientar que a sua compreensão revela-se mister, notadamente para os Operadores do Direito, já que traz à baila um arquétipo intrínseco à Ciência Jurídica, qual seja: a constante evolução dos ordenamento pátrio, em razão da interdependência mantida com a sociedade.
4 D. Salustiana e Inês: Os arquétipos preconceituosos da Sociedade Brasileira nos séculos XIX e XX
O romance “Clara dos Anjos”, conquanto apresente personagens inexpressivos e pálidos, a exemplo da própria personagem central, traz também figuras enérgicas, imponentes. Dentre estas, D. Salustiana, a genitora de Cassi Jones, afigura-se como um claro exemplo de uma integrante da sociedade brasileira do início do século. Como o próprio autor anota, D. Salustiana tentava ser uma pomposa senhora da elite, apresentando ares de uma dama da corte, superior às demais pessoas que moravam em sua vinhança, bem como àqueles com quem mantinha conhecimento. “O seu orgulho provinha de duas fontes: a primeira por ter um irmão médico do Exército, com o posto de capitão; e a segunda, por ter andado no Colégio das Irmãs de Caridade”[27].
A mencionada personagem, refletindo o pensamento vigente, valorizava a raça branca, esta superior aos negros e mulatos, sendo, de outro turno, avessa à miscigenação, eis que representavam a degeneração da nação. Lima Barreto, com bastante propriedade, expõe que “graças a esses seus preconceitos de fidalguia e alta estirpe, não trepidava em ir empenhar-se com o marido, a fim de livrar o filho da cadeia ou do casamento pela polícia[28]. A todo momento, o discurso de Lima Barreto coloca com clareza que os valores adotados pela elite carioca não poderiam ser atentados, colocados em xeque, já que tal comportamento poderia fragilizar a família e, por extensão, a sociedade.
D. Salustiana, enquanto personagem que compunha uma pseudo-elite carioca, transmitia ao leitor que, no século XIX e início do século XX, subsistia, de modo flagrante, o impedimento entre os desiguais, porquanto era mal visto pela sociedade, causando a diminuição da reputação da família em que ocorria. Ademais, “é atribuída à escrava a culpa pelo desejo sexual sentido pelo seu senhor. Ela não era considerada a vítima, e sim, a autora do seu próprio destino, não se levava em consideração à violência física e sexual pelos quais ela passava”[29]. Com este substrato, há que se transcrever a seguinte passagem:
“A velha [D. Salustina] continuou:
– Casado com gente dessa laia… Qual!… Que diria meu avô, Lord Jones, que foi cônsul da Inglaterra em Santa Catarina – que diria ele, se visse tal vergonha? Qual!
Parou um pouco de falar; e, após instantes, aduziu:
– Engraçadas essas sujeitas! Queixam-se de que abusaram delas… É sempre a mesma cantiga… Por acaso, meu filho as amarra, as amordaça, as ameaça com faca e revolver? Não. A culpa é delas, só delas…[30]”
Desta feita, estranheza não causa quando se analisa as passagens em que a genitora de Cassi Jones externa sua discordância com a possibilidade de seu filho, homem branco e ruivo, descendente de um lorde inglês, contrair matrimônio com uma de suas vítimas, mulheres negras, mulatas e brancas pobres. “Porque, casar com essas biraias, ele não se casa. Eu não quero”[31]. Nas falas de D. Salustiana, Lima Barreto representa, com propriedade e clareza, o pensamento de toda uma elite, na qual as filhas dos negros, mulatos e homens brancos não eram dignas de ascender a uma “classe superior”, passando a integrar a elite, devendo, com efeito, ser afastadas de tal possibilidade e mantidas em seus nichos de origem.
A obra em destaque, em diversas passagens, explicita a condição apática das personagens que compunham a camada mais carente da sociedade do início do século XX, negando-lhe, tal como ocorria, um papel ativo. Em certo momento, o narrador, como forma de outorgar voz aos explorados, despidos de expectativas, permite que Inês, a primeira vítima de Cassi Jones, desonrada, prostituta e mãe solteira, em um encontro delineado de angústia e raiva, tenha voz ao expor as agruras que vivenciou após o seu defloramento. Trata-se do momento em que os excluídos da sociedade brasileira do início do século XX têm o direito de se rebelarem e se manifestarem contra os sofrimentos vivenciados diuturnamente. A fim de ilustrar o expendido, quadra transcrever o seguinte excerto:
“Cassi Jones ia atravessando aquele bairro singular e escuro, quando do fundo de uma tasca, lhe gritaram:
– Olá! Olá! “Seu” Cassi! Ó “Seu” Cassi!
Insensivelmente, ele parou, para verificar quem o chamava. De dentro da taverna, com passo apressado, veio ao seu encontro uma negra suja, carapinha desgrenhada, com um caco de pente atravessado no alto da cabeça, calçando umas remendadas chinelas de tapete. Estava meio embriagada. Cassi espantou-se com aquele conhecimento; fazendo um ar de contrariedade, perguntou amuado:
– Que é que você quer?
A negra, bamboleando, pôs as mãos na cadeira e fez com olhar de desafio:
– Então, você não me conhece mais, “seu canaia”? Então você não “si” lembras da Inês, aquela crioulinha que sua mãe criou e você…
Lembrou-se, então, Cassi, de quem se tratava. Era a sua primeira vítima, que sua mãe, sem nenhuma consideração, tinha expulsado de casa em adiantado estado de gravidez. Reconhecendo-a e se lembrando disso, Cassi quis fugir. A rapariga pegou-o pelo braço:
– Não fuja, não, “seu” patife! Você tem que “ouvi” uma pouca mas de “sustança”.
A esse tempo, já os frequentadores habituais do lugar tinham acorridos das tascas e hospedarias e formavam roda, em torno dos dois. Havia homens e mulheres, que perguntavam:
– O que há, Inês?
– O que te fez esse moço?
Cassi estava atarantado no meio daquelas caras antipáticas de sujeitos afeitos a briga e assassinato. Quis falar:
– Eu não conheço essa mulher. Juro…
– “Muié”, não! – fez a tal Inês , gingando. – Quando você “mi” fazia “festa”, “mi” beijava e “mi” abraçava, eu não era “muié”, era outra coisa, seu “cosa” ruim![32]”
Lima Barreto, ao estruturar “Clara dos Anjos”, traz à baila a predominância dos arquétipos preconceituosos da marca na sociedade brasileira; quando alguém não é marcado, isto é, não provém de uma família branca, detentora de dinheiro, posses ou influência, é colocado à margem da sociedade. Inês, no romance, personifica, de maneira categórica, a mulher negra desonrada e abandonada pelo homem branco, que, em razão do defloramento e da gravidez, não tem outra alternativa para sobreviver senão se prostituir. “Representa uma infinidade de tantas outras jovens da sua mesma condição social que sonhadoras e apaixonadas tornavam-se presas fáceis nas mãos de homens inescrupulosos”[33]
Infere-se que o preconceito de raça e gênero se entrecruzam na construção de Inês, desamparada de todas as formas, passa a ser um objeto sexual, cujo habitat são os prostíbulos numerosos especialmente na parte central da antiga corte carioca. Inexiste a dadivosa presença da mulata faceira, sedutora e que transpira sensualidade, mas sim uma mulher suja e embriagada que, não tendo outro caminho, deita-se com qualquer espécie de homem para obter dinheiro. É a criação da sociedade que confronta o seu criador. “Negras e mestiças eram desprezadas por uma sociedade altamente racista”[34].
Lima Barreto expõe a ferida social em sua obra, maiormente quando pontua que o defloramento das jovens vinha acompanhado de expulsão de suas casas, em razão da vergonha dos pais em manter no âmbito familiar um símbolo evidente da impureza moral, passando a integrar os bordéis e casas de meretrício existentes. “Naquele contexto urbano e republicano, a permanência das marcas da escravidão colonial e imperial eram bem mais visíveis nas trajetórias das mulheres negras, mulheres-objetos sexuais, 'peças'”[35]. O confronto entre Inês e Cassi Jones reapresenta, ao leitor, as sequelas dos lugares sociais do poder, ou seja, o local de dominação tem feição e corpos nítidos: é masculino e branco. O autor oferta, por um momento, voz àqueles que são diariamente calados, suplantados e explorados. É a camada mais carente, através de Inês, podendo lançar à tona os sofrimentos vivenciados, os traumas a que foram submetidos.
Denota-se que a ideologia escravagista, existente do século XIX, mesmo após a abolição, continuou a influir no comportamento da sociedade, precisamente a que florescia no início do século XX. A elite ainda ressoava os valores que perduraram durante todo o período áureo do Brasil Império. Os arquétipos de preconceito social e racial existente são emoldurados, com fortes cores e traços firmes, quando se examina as personagens colocadas em testilha.
O confronto entre a negra e o seu algoz, branco e ruivo, descendente, segundo D. Salustiana, de um lorde inglês, põe em xeque uma realidade que a elite teimava, por conveniência, em olvidar, os envolvimentos existentes, nos quais os corpos de mulatas, negras e brancas pobres, eram banqueteados e usufruídos por aqueles que detinham o poder, o dinheiro e as influências. O capataz, o senhor de engenho e os donos de escravo passam a dar lugar aos homens da cidade que, não tanto pela força, mais pela sedução, continuavam a deflorar jovens de origem humilde, que galgavam contrair um bom matrimônio. Às vítimas restava tão apenas a desonra, a vergonha e o abandono.
5 D. Engrácia: O Falseamento dos Valores Familiares Patriarcais no Ambiente Suburbano
Em “Clara dos Anjos”, diversas questões são apostas em discussão por Lima Barreto, maiormente quando aborda a submissão das mulheres aos valores e normas ditados pelos homens. Nesta senda, como um exemplo do expendido, pode-se avaliar a personagem D. Engrácia, a típica mulher do século XIX e início do século XX, desprovida de iniciativa e que se restringia a um mero prolongamento do esposo. Era uma mulher inexpressiva, que estava subordinada a uma educação conservadora, eivada de ranços, na qual mulheres eram, devido ao próprio gênero, inferiores aos homens, devendo ser a eles submissas.
Trata-se, com efeito, de uma célula familiar pautada no patriarcalismo, ou seja, todo o direcionamento da família decorria das decisões tomadas e determinações exaradas pelo chefe de família, no caso o Sr. Joaquim dos Anjos. Um aspecto digno de nota tange à ironia estruturada por Lima Barreto, pois, conquanto fosse a família “dos Anjos” habitante de um subúrbio e integrante de uma classe média baixa, era a que detinha o aspecto principal de família patriarcal. Ao tratar a personagem Engrácia, o autor salienta que:
“O seu temperamento era completamente inerte, passivo. Muito boa, muito honesta, ativa no desempenho dos trabalhos domésticos; entretanto, era incapaz de tomar uma iniciativa em qualquer emergência. Entregava tudo ao marido, que a bem dizer, era quem dirigia a casa. Rol de compras a fazer na venda do “Seu” Nascimento, diariamente, e também o de legumes e verduras, quem os organizava era o marido, especificando tudo por escrito e deixando o dinheiro para o quitandeiro, todas as manhãs, quando ia para o trabalho[36].”
É possível dizer que, no universo da família patriarcal, existente precipuamente na camada elitizada da sociedade, o homem era a figura principal, ao redor da qual orbitavam os demais integrantes. Assim, crianças e mulheres eram seres insignificantes e amedrontados, tendo como maior escopo as boas graças do patriarca. Nesse cenário essencialmente masculino, os filhos mais velhos também possuíam grandes privilégios, notadamente em relação a seus irmãos, o que fica aparente. Quando se aborda “Clara dos Anjos”, verifica-se que Cassi Jones, neste particular reproduzindo o pensamento patriarcal, gozava de grande proteção de sua genitora em detrimento de suas irmãs.
Como traço caracterizador, pode-se salientar que os homens eram detentores de grandes privilégios, sendo algo comum as aventuras com criadas e ex-escravas, observando-se, por necessário, discrição em seus atos. Não era admitido, pelo menos publicamente, que os valores vigentes fossem atentados e colocados em xeque. De outra banda, às mulheres tudo era proibido, sendo-lhes destinada tão somente a função de procriar e tomar conta da casa, lugar em que o patriarcado florescia. Ao lado disso, quadra anotar, com bastante ênfase e destaque, que:
“No romance Clara dos Anjos percebe-se que as mulheres eram educadas apenas para o casamento. A liberdade de pensar e agir era restrita ao domínio do lar, pois o espaço da ação/rua era reservado apenas aos homens. A elas restava, na maioria das vezes ficar à sombra do marido, do pai, e quando sozinhas, a imagem de mulher honesta. Assim, a partir das personagens do romance, percebe-se que o lugar da mulher na moderna sociedade brasileira já estava previamente demarcado, sendo difícil para ela se libertar dessa dinâmica social e conquistar o espaço da rua, assumindo funções consideradas tipicamente masculina[37].”
O demasiado desvelo de D. Engrácia em relação à jovem Clara, procurando protegê-la e colocá-la acima de sua posição acarreta consequência contrária às expectativas existentes e traz à baila, através da figura da genitora, os resquícios inaproveitados da pseudo-elevação social fomentada pelos pais. Conquanto D. Engrácia tivesse nascido filha de escravos, sua condição passou a ser de agregada, em decorrência da mudança do campo para a cidade “levando-a a ser educada quase do mesmo modo que os filhos dos antigos senhores, privilégio talvez devido à possibilidade de ser filha bastarda de algum dos filhos brancos da casa”[38].
No mais, a crítica erigida por Lima Barreto, no que se refere à D. Engrácia, está jungida no fato de ter estendido à sua filha educação semelhante a que tivera, quando criança. Por necessário, a mera imitação alicerçada pela genitora, no que concerne à aplicação dos modos da família patriarcal branca, não foram suficientes, porquanto faltou conscientizar Clara dos Anjos de sua posição particular na vida, a fim de que evitasse situações indesejáveis, notadamente as cenas finais de humilhação e vergonha infligida a ela por D. Salustiana.
Verifica-se, com efeito, que D. Engrácia, enquanto arquétipo da típica mulher do início do século XX, busca, a todo momento, conciliar o legado de instrução e formação recebida da família branca em que foi educada, precipuamente os valores senhoriais e patriarcais, olvidando-se, propositalmente, que a realidade dos antigos senhores nunca foi exatamente a sua. Ao reverso, “Engrácia recebeu boa instrução, para a sua condição e sexo; mas, logo que se casou – como em geral acontece com as nossas moças -, tratou de esquecer o que tinha estudado”[39].
Além disso, conquanto a condição social e econômica, a todo momento, negasse os valores disseminados por D. Engrácia, absorveu tão apenas os valores ornamentais, eis que a adequação ao protótipo da família burguesa mostra-se poroso e deficiente. Trata-se da dicotomia entre a dona de casa e da mãe, “porque o que possui de esposa exemplar ocupando-se como os afazeres domésticos é posto a perder com seu deficiente papel de mãe conselheira”[40].
Ao lado disso, a canina vigilância, como bem descreve Lima Barreto, para a mãe seria o suficiente para evitar possíveis aborrecimentos. Aliás, o aludido escritor transparece que “D. Engrácia, mãe de Clara, tinha medo do que poderia acontecer com a filha, por isso a mantinha sob restrita vigilância. Não deixar Clara sozinha e não permiti-la sair com outras amigas fazia parte da disciplina familiar”[41]. Neste alamiré, há que se colacionar a seguinte passagem da obra que, com bastante congruência, arrima o ventilado:
“Engrácia, cujos cuidados maternos eram louváveis e meritórios, era incapaz do que é verdadeiramente educação. Ela não sabia apontar, comentar exemplos e fatos que iluminassem a consciência da filha e reforçam-lhe o caráter, de forma que ela mesmo pudesse resistir aos perigos que corria[42].”
Infere-se que os valores privilegiados no núcleo familiar “dos Anjos” endossa os pertencentes à família patriarcal, a saber: a castidade das jovens que funcionava como moeda de troca para um casamento formal para a filha; o espaço da casa como um ambiente privado em que as intimidades são reveladas; os assuntos domésticos renegados à figura feminina, desde que com prévia autorização do patriarca. Com o deslocamento dos valores da família para o subúrbio, e aí jaz uma das críticas de Lima Barreto, há um falseamento que culmina com a defloração de Clara por Cassi, em decorrência da ausência de instrução e maturidade. “A mulher é vítima de preconceito, por ser educada diferente nas relações de gênero, estando inseridas dentro de códigos sócias da sociedade do século XX”[43].
Outro ponto a ser estruturado refere-se a um tímido, porém existente, enfraquecimento do modelo da célula familiar pautada no modelo patriarcal, imperiosamente quando Lima Barreto, ao descrever a personagem de D. Margarida, a vizinha de D. Engrácia, viúva, dotada de altivez e iniciativa, um paliativo para as mulheres submissas retratadas na obra. A fim de sedimentar o expendido, um traço a ser realçado na trama tange ao fato de Clara dos Anjos, ao se descobrir grávida de Cassi Jones, procurar D. Margarida, que a acompanha até a casa do sedutor.
Por derradeiro, o arquétipo personificado em D. Engrácia demonstra, com grossos traços, um falseamento desmedido dos valores familiares patriarcais no ambiente suburbano, vez que, tentando reproduzir um ambiente elitista, a genitora falha, de maneira vergonhosa, ao ministrar a educação à sua filha. Clara dos Anjos, a jovem mulata pobre e suburbana, despreparada para uma vida adulta condizente com sua realidade, é amadurecida pelos desencantamentos e agruras vivenciados, a humilhação decorrente de sua condição social e da cor de sua pele.
6 Comentário Final à Clara dos Anjos
Com críticas rotundas, Lima Barreto denuncia à sociedade o padrão de comportamento erigido, o qual obrigava aos libertos e seus descentes a uma adequação aos valores burgueses existentes. Desta maneira, não era o suficiente tão apenas os arquétipos adotados pela sociedade, sendo necessário, além disso, “se comportar como branco, na verdade tornava-se imprescindível negar-se como afrodescendente, buscar o branqueamento da pele por meio de sucessivos casamentos miscigenados”[44]. Os valores arraigados na sociedade imperial ainda gozavam de grande e proeminente destaque, notadamente na elite do início do século XX, na qual as negras e mestiças continuavam a se revestir de má reputação, decorrente de estrutura escravagista, alicerçadas por axiomas patriarcais, como se infere das passagens em D. Salustiana manifestava-se avessa à possibilidade de Cassi Jones contrair matrimônio com uma de suas vítimas.
Conquanto as violências sexuais não mais fossem sistematicamente praticadas por abastados fazendeiros ou ignóbeis capatazes ou ainda por curiosos filhos dos senhores da casa grande, Lima Barreto denuncia a situação de penúria que jovens negras, mulatas e brancas humildes que eram seduzidas e defloradas por jovens integrantes da elite existente. Nesse sedimento, o autor atribuía, ainda, à educação distinta, utilizada por D. Engrácia que que não preparava a jovem para vida adulta, como elemento que fomentava o aumento dos defloramentos. O complexo de inferioridade é algo palpável no romance, Clara, tolamente, anseia por um matrimônio que servisse como um instrumento apto a retirá-la da vida de reclusão que vivenciava.
“Além disso, casar com um homem branco está próximo do pensamento bastante difundido nessa época, porque esse tipo de matrimônio avaliza positivamente a ideologia científica de cunho racial em voga, com livre curso nos meios republicanos e nacionais, da constituição da família brasileira via apagamento dos traços mestiços denunciadores do estigma da escravidão, efetuado pelo cruzamento com as raças brancas – ditas superioras – com afinalidade de promover um futuro melhoramento racial[45].”
“Clara dos Anjos”, enquanto romance de cunho de denúncia, apresenta-se como trama, conquanto despida de um linguajar rebuscado e pomposo, multifacetada, dotada de complexidade, que permite uma análise a partir de distintos seguimentos, vez que, de modo cristalino, retrata a sociedade do início do século XX. O preconceito racial e social vivenciado pela personagem principal, trazendo à luz ainda as profundas e dolorosas feridas da escravidão, revelam um pensamento pautado na valoração de arquétipos que valorava o homem branco, detentor de posse, dinheiro ou influência, em detrimento das camadas mais carentes, que era suplantadas e subjugadas. Aliás, a indignação de tais camadas está corporificada nas linhas finais da obra, quando Clara dos Anjos, amadurecida pela humilhação, pelo defloramento e pelo funesto destino, à sua genitora diz:
“Num dado momento, Clara ergueu-se da cadeira em que se sentara e abraçou muito fortemente sua mãe, dizendo, com um grande acento de desespero:
– Mamãe! Mamãe!
– Que é minha filha?
– Nós não somos nada nesta vida[46].”
O excerto transcrito não traz em seu bojo apenas o desespero de uma jovem deflorada, desonrada, grávida e abandonada por seu sedutor, o ardiloso homem branco, de uma família pseudo-elitizada. Na declaração da personagem, há múltiplos significados que, de maneira velada, trazem à baila a realidade caótica da sociedade brasileira do início do século XX, são os gritos contidos de tantas outras vítimas, homens e mulheres apáticos pela sobrevivência difícil, vencidos pela árdua caminhada, despidos de ambição e achatados pela demais camadas, que infestam os subúrbios cariocas tão bem conhecidos e retratados pelo autor.
De forma contundente, Lima Barreto mostra ao leitor um universo produzido, inclusive juridicamente, e conduzido pelo branco, que cerrava as portas à população negra, negando-lhe o direito de participar, de forma igualitária, da sociedade. Tal assertiva é fortemente corroborada pela passagem que o autor traz à baila que Cassi Jones contava com a silenciosa concordância das autoridades, que viam o comportamento por ele perpetrado como algo corriqueiro e que não reclamava uma forte reprimenda, porquanto as vítimas eram sempre pessoas pobres, de humilde condição, que não detinham grande influência na sociedade. No que concerne às mulheres negras e mulatas, o preconceito era algo mais substancial, pois havia a materialização dos ranços existentes, tanto na cor da pele, como no gênero. O triste destino que esperava as jovens seduzidas e abandonadas, personificado de modo expressivo por Inês, apenas confirma, irredutivelmente, a exclusão imposta pela sociedade dominante e a denúncia feita por Lima Barreto.
[1] CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Literatura Brasileira. São Paulo: Editora Atual, 2000, p. 325.
Informações Sobre o Autor
Tauã Lima Verdan Rangel
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES